Ciência Versus Filosofia ?

November 19th, 1997 by Sergio de Biasi

Iniciamos com este artigo uma coluna cujo assunto será a consideração das relações mútuas entre os desenvolvimentos da ciência e da filosofia.

Vivemos em uma época na qual os filósofos, em sua maioria, estão muito afastados dos cientistas. Historicamente, ciência e filosofia surgiram juntas e durante muito tempo se confundiram; a própria física começou como filosofia natural. À medida em que o tempo passou, e a ciência ganhou uma complexidade cada vez maior, e nossa compreensão do mundo e do universo – pelo menos a nível fenomenológico – se expandiu, porém, uma atividade ficou cada vez mais distinta da outra. À medida em que o território da ciência se expandiu, suas fronteiras – para além das quais está a metafísica e a filosofia – pareceram cada vez mais distantes, para muitos, da quase totalidade da atividade científica. Desse modo, chegamos a uma cisão suspeitíssima na qual acredita-se que é possível produzir ciência de alta qualidade sem nunca gerar qualquer pensamento filosófico novo e que seja possível filosofar sobre a realidade (supondo que exista uma) sem conhecer ou se reportar à ciência.

Ora, em ambos os sentidos estamos cometendo erros crassos, e prejudicando – em certos casos impedindo – tanto o progresso da ciência como o da filosofia. Por um lado, a ciência não pode avançar – ou sequer existir – sem a filosofia. As estruturas filosóficas, conscientes ou não, constituem a ferramenta através da qual tentaremos interpretar a realidade – e isso vale tanto para um bebê recém nascido como para um grupo de pesquisa em física nuclear. Até aí, poderíamos conceber a filosofia como fundamento implícito mas dissociado do objeto da ciência. Só que o conhecimento não consiste apenas em preencher com percepções e experiências uma forma já pronta. Ao contrário, os grandes saltos de compreensão se dão quando reformulamos nossas formas (geralmente ao depararmos com percepções que não sabemos onde encaixar). De fato, o tipo de conhecimento que a ciência pretende obter sobre a realidade está muito mais nas estruturas que descobre serem “adequadas” para interpretá-la do que no acúmulo infinito de percepções. Assim, todo grande avanço na ciência – aquele tipo de avanço que alarga suas fronteiras – não só requer mas consiste em uma mudança nas estruturas filosóficas através das quais pensamos a realidade.

Por outro lado, em particular pelo exposto acima, a filosofia não pode ficar alheia aos avanços da ciência. À medida em que a ciência avança, ela penetra em domínios que antes pertenciam à filosofia. Nossa apreensão da realidade se altera através das eras e, aos poucos, questões que antes pertenciam por excelência ao domínio do debate filosófico puro, e demarcavam até mesmo os limites do cognoscível, passam a poder ser tratadas cientificamente. Dessa forma, questões como “Que são as estrelas ?”, “O que é a luz ?”, “Será o universo infinito ?”, “De onde surgiram os seres humanos ?”, “O tempo passa com a mesma velocidade em todos os lugares ?” que em diferentes épocas já foram – e facilmente esquecemo-nos disso – questões filosóficas, hoje são tratadas pela ciência. Tal mudança de situação não impede incursões da filosofia pura em nenhum desses assuntos – porém é fundamental que quem se disponha a fazê-las considere – e para tanto precisará conhecê-los – os argumentos científicos relevantes. Já outras questões como “O que é o bem ?”, “Por que estamos aqui ?”, “Existe um Deus ?”, “O futuro está predeterminado ?”, ainda hoje são, eminentemente, competência da filosofia. Talvez algum dia se torne possível tratá-las no âmbito da ciência, talvez não; a filosofia é mesmo mais abrangente que a ciência. No entanto, o filósofo deve perceber que as descobertas científicas revolucionárias não apenas apresentam conseqüências filosóficas profundas, mas mais do que isso, consistem em reformulações filosóficas, e muito bem fundamentadas.

A ciência expandiu-se tanto nos últimos séculos que muitas vezes filósofos e cientistas perdem de vista que são atividades com uma fronteira – freqüentemente nebulosa – em comum, e que quanto mais a filosofia fala sobre a realidade concreta, mais próxima ela está da ciência, assim como quanto mais a ciência se universaliza, mais próxima está da filosofia pura. Pretender conhecer a realidade e fazer ciência sem empregar a filosofia é como tentar construir a cobertura de um prédio antes de lançar as fundações. Porém, fazer filosofia ignorando a ciência é como estudar o problema genérico das fundações ignorando os arranha-céus que já estão construídos por aí.

Por mais forte e clara que seja essa ligação, há porém uma forma de sabotá-la, que desfruta de considerável popularidade : negar não só a acessibilidade mas a própria existência de uma realidade objetiva, concreta, suposição básica sem a qual a ciência se torna não só desconectada da filosofia mas completamente inviável. A conseqüência direta dessas concepções subjetivistas e relativistas é um universo no qual todas as opiniões têm o mesmo valor e ninguém está efetivamente “com razão” sobre coisa alguma. Deliciosamente “democrático” ? O que de fato ocorre é que demolida a distinção entre o pensamento/sentimento de cada um e tudo o que está fora de nós, entre o que projetamos nos outros e o que vem de nós mesmos, fica, de fato, impossibilitada a comunicação e compreensão do outro, dado que estamos efetivamente negando seu direito de existir independentemente. E, como nada faz sentido mesmo, estamos isentos de qualquer responsabilidade e só o que pode prevalecer é nossa vontade pessoal. Em uma tal situação, só nos resta submeter (a marretadas) continuamente tudo e todos a nossas ilusões e fantasias (ao invés de, ao contário, adaptar nossas concepções e representações internas ao que vemos),num orgasmo de egocentrismo esquizofrênico.

Felizmente, essa visão de mundo se revela não somente dantesca mas também de pouca consistência. Afastada a possibilidade da unificação de todas as nossas realidades subjetivas em uma única e universal realidade objetiva, qualquer proposta filosófica fica transformada em um fim em si, em um delírio exclusivamente formal. E, de qualquer forma, não adianta espernear e dizer que não é possível fazer o que já está efetivamente sendo feito. A evidência mais contundente da existência de algum tipo de realidade objetiva é justamente o gigantesco e cada vez maior sucesso que a ciência vem obtendo em operar baseada nessa suposição.

17 Responses to “Ciência Versus Filosofia ?”

  1. [...] O Sérgio escreveu um ensaio defendendo um estreitamento dos laços entre ciência e filosofia; o José Roberto fez um artigo sobre três projetos de lei da deputada Marta Suplicy; eu fiz um artigo sobre Canudos, que questionava o posicionamento ideológico que nubla a mente dos nossos historiadores; e o Pedro trouxe um artigo humorístico ao estilo Agamenon Mendes Pedreira (3), um poema lírico-intimista e um ensaio sobre a Semana de Consciência Negra realizada na PUC algumas semanas antes do jornal. [...]

  2. [...] Sérgio escreveu um ensaio defendendo um estreitamento dos laços entre ciência e filosofia; o José Roberto fez um artigo [...]

  3. Matheus says:

    desde que não envolva metafísica, tudo bem.

    • Se o comentário é de que a física, ao avançar, não contribuiria para a metafísica, eu acho que não é precisa ir muito longe analisando a história da ciência para verificar que exatamente o oposto ocorre repetidamente…

      Saudações,
      Sergio

  4. Edmundo Barreiras Ricardo says:

    Ólá,parabens pelo excelente texto.eu de filosofia sou um zero.E em ciêcia sou
    igual..Mas como escreveu,Joseph Brodsky…Se existe uma verdade sobre o
    mundo,ela é certamente não-humana,,.
    Se o universo não tem principio nem fim não sabemos .Se há matéria em que
    o tempo não tem qualquer influÊncia nas suas propriedades fisicas e quimicas,
    tambem não sabemos..A ciÊncia só consegue avançar tendo por base um
    relativo conhecimento da matéria..
    O cerebro humano não se consegue libertar da sua herança animal,do seu
    terrivel passado——————–continua——–

    • Oi Edmundo,

      A ciência tem lá suas limitações, mas é possível fazer ciência sim sem se referir em nenhum momento ao “relativo conhecimneto da matéria”… inclusive alguns dos avanços mais significativos da ciência nos últimos 100 anos se deram precisamente na área da lógica formal e do pensamento completamente abstrato sem qualquer referência direta à realidade “material”.

      Quanto ao cérebro humano não conseguir se “libertar” de sua “herança animal”, veja, em que consistiria exatamente essa libertação? No momento em que estivermos completamente libertos dos nossos instintos, olharemos para nós mesmos, perceberemos a total e completa futilidade da nossa existência, e não teremos qualquer motivo para fazer o que quer que seja. Assim como os nossos “piores” instintos são animalescos, também os são os nossos “melhores”. Se “libertos” de nossa irracionalíssima e em última análise injustificável vontade de sobreviver e prosperar, o que nos restaria? Então eu não vejo a nossa “herança animal” como algo a ser incondicionalmente repudiado. Pelo contrário, eu acho que para caminharmos para uma identidade que possamos perceber como mais existencialmente satisfatória precisamos antes de mais nada fazermos as pazes com a completa arbitrariedade de todos os nossos esforços, e a única forma que eu enxergo de fazer isso é mesmo termos atávicos instintos que dispensem justificativa no sentido de sobreviver, e prosperar, e colaborar. Se alguém precisa ser convencido através da lógica a seguir vivendo, não haverá argumentos que cheguem. No final das contas, a partir do momento em que ganhamos autoconsciência suficiente para apreendermos a completa falta de sentido da nossa existência, a única realidade existencialmente significativa que nos resta são as nossas emoções, é a insufocável vontade de viver que dispensa explicação ou justificativa.

      Saudações,
      Sergio

  5. Edmundo Barreiras Ricardo says:

    ——O nosso cerebro assenta em camadas sucessivas de evolução,que,
    ao longo da história do ser humano,nos prendem ao passado e nos
    impedem de nos libertar ,dos medos,das superstições,das crenças,das magias,
    dos fantásmas,dos sonhos e pesadelos..Hoje a nossa fé está na ciÊncia,ela
    nos pode aliviar deste passado tenebroso,deste passado triste..
    Mas não será fácil .E não sabemos se o nosso futuro não será,aínda piór
    que o passado…UM ABRÁÇO…

    • Oi Edmundo,

      A ciência não pode nos “libertar” da nossa irracionalidade; a nossa irracionalidade, precisamente por sê-lo, não precisa de justificativa e nem pode ser refutada através de argumentos. É absolutamente óbvio que não existe nenhum motivo “lógico” para prosseguir vivendo; nós o fazemos porque nos sentimos irracionalmente compelidos a fazê-lo.

      O que nos leva ao fato de que a questão é ainda mais complexa do que isso. Se nos “libertamos” de tudo o que não é “racional”, seja ou não através da ciência, sobrará exatamente o quê? Que motivos teríamos para fazer qualquer coisa? Então me parece que isso de nos “libertarmos” de nossa natureza primata e animal deve ser enxergado com extrema desconfiança, e é um erro achar que tudo em nossa natureza animal negaria a nossa transcendência, ou jogaremos fora o bebê junto com a água do banho. O que temos é que fazer as pazes com o fato de que sem motivações arbitrárias não sobra motivação alguma.

      Saudações,
      Sergio

  6. T says:

    “…..dispensa explicação ou justificativa.”

    Eis a jogada de mestre do ateísmo desorientado no pós-modernismo….

    • Isso não é uma “jogada”, isso é o que é. Nós de fato não precisamos de religião para nos impingir um senso de moralidade, altruísmo, empatia, justiça, fraternidade e propósito. Tais sentimentos ocorrem naturalmente nas sociedades humanas e espontaneamente na maior parte das pessoas, sem necessidade de qualquer justificativa ou lógica. É a religião sim que se aproveita desses sentimentos inatos para fraudulentamente fazer a jogada de mestre de afirmar que tais sentimentos teriam origem externa a nós e se auto proclamar conhecedora e porta-voz de sua natureza última.

      Saudações,
      Sergio

  7. Eu gostaria que alguém me esclarecesse uma coisa:

    Como pode a filosofia ser a “mãe da ciência”, como se diz muito por aí, se a ciência é anterior à filosofia?

    • Eu não diria que a ciência é “anterior” à filosofia. Inclusive eu diria que se alguém precedeu alguém cronologicamente, foi a filosofia que precedeu a ciência. Mas no começo as duas eram meio indistingüíveis – aliás, inclusive também em grande parte de superstição e de religião. De onde vem essa afirmação de que a ciência seria anterior à filosofia?

      Saudações,
      Sergio

  8. Edmundo Barreiras Ricardo says:

    Oi Sergio, permita que escreva uma METÁFORA.
    A humanidade comporta-se como um animal selvagem,com medo e em fuga
    em cima de uma bola gigante.Ele só corre, não ólha para os lados,vai em
    frente.Tem pressa em chegar mas não sabe onde,tem medo e não sabe
    de quÊ.Ele não sabe que abola é redonda,e por isso nunca chegará a lado
    nenhum.Esta METÁFORA é bem o retráto da nossa humanidade..Éla não vai modar,já não temos tempo para isso;A rápida alteração do clima no nosso
    planeta, não nos deixa tempo para arrepiar caminho..
    Os humanos pensavam e pensam que conseguem ————-continua—-

    • Mas não tem como escapar disso aí exclusivamente com base em “deixar o lado animal pra trás”. Sem uma busca arbitrária, injustificável e instintiva de sentido, não resta nada. Concordo que temos que deixar as ilusões e a ignorância sobre nossa própria natureza para trás, mas o maior desafio é mesmo construir um sentido que não seja baseado em ilusões.

      Saudações,
      Sergio

  9. Edmundo Barreiras Ricardo says:

    —–dominar a natureza.Nunca vão conseguir,porque a humanidade é uma
    parte da própria natureza,e uma parte não pode dominar o toudo.
    Só os humanos criam as suas próprias ílusões, nas quais acreditam..
    Mas como alguém já escreveu,o homem perdoa ás vezes, Deus
    perdoa sempre,a NATUREZA nunca perdoa…
    muito obrigado…

    • A natureza nunca perdoa mas também nunca condena. Ela simplesmente é.

      Quem condena ou perdoa são as consciências humanas, a começar pela nossa, não nada externo a nós. E são precisamente essas que me interessam.

      Inclusive eu diria que não só isso é um fato como é determinante para como enxergaremos a natureza da nossa responsabilidade moral.

      Saudações,
      Sergio

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