A Voz De Um Indivíduo

January 15th, 1998 by Sergio de Biasi

Indivíduo – um ser humano isolado, considerado separadamente de um grupo.

Qual a importância das idéias de um indivíduo ? Qual a relevância do que um indivíduo, sozinho, tem a dizer ? Por que deveríamos proteger o pensamento individual ?
Para melhor refletir sobre essa questão, invertamos a pergunta : Existe algum outro tipo de origem para idéias e pensamentos ? Ou será que, na verdade, tudo o que surgiu de original e belo e, inclusive, atualmente compartilhado como comunitário e coletivo em nossa cultura teve que primeiro ser criado por algum indivíduo em algum momento no espaço e no tempo, incluindo nossa língua, nosso país, nossos valores ? Mesmo que cada pequeno passo adiante tenho sido pensado mais de uma vez por indivíduos diferentes, e que cada um tenha apenas acrescentado sua pequena contribuição, o ato original, inovador, criativo é definitivamente um privilégio do indivíduo. Um dos fatores que mais nos torna humanos e especiais é justamente a nossa enorme capacidade para o pensamento divergente. Sem dúvida, é possível construir uma coletividade sem individualidade – basta examinar um formigueiro. Porém, isso seria abrir mão de tudo o que temos de melhor. Acredito que a humanidade, com toda a abrangência do termo, sustenta-se na existência e em um profundo respeito à individualidade.

Essa constituía provavelmente a principal idéia com cuja divulgação eu pretendia colaborar ao participar da criação e da distribuição do jornal “O Indivíduo”. Infelizmente, no tumulto acalorado que se seguiu, muito pouco da atenção pública resultante se voltou para essa questão, e penetramos todos em um labirinto de equívocos. Escrevo o presente texto para tentar cooperar com os interessados na construção de um mapa desse labirinto.

A resposta ao número zero

Através das conversas que tenho tido e dos e-mails que foram enviados para o site do jornal na internet, cheguei à grata conclusão de que, para a grande maioria das pessoas que efetivamente leram o que foi publicado no número zero, conseguimos comunicar pacificamente e com razoável clareza a maior parte nossas idéias e reflexões. Analogamente, a maioria dos leitores – inclusive os discordantes – manifestou sua posição de modo civilizado e construtivo.

No entanto, paralelamente a esse debate, normal e desejável em uma sociedade livre, houve algumas manifestações (por vezes fisicamente) violentas e muito pouco civilizadas de desagrado, geralmente associadas a acusações ou à “justificativa” de que estaríamos promovendo essa ou aquela ideologia anti-social. Mais do que isso, observamos que tal tipo de reação destrutiva geralmente não veio acompanhada de argumentos, refutações ou do desejo de dialogar, mas, exatamente ao contrário, da defesa ou da exigência de que o jornal fosse banido, proibido ou de alguma forma censurado. Isso, é claro, levanta uma série de importantes questões relacionadas com o direito à liberdade de expressão, se deve mesmo ser permitido dizer publicamente o que quer que seja, etc…

Um redemoinho de mal-entendidos

Porém, curioso mesmo é que as acusações mais sérias se referem a posições que jamais defendemos, ou que até mesmo foram atacadas no próprio jornal.

Como isso é possível ?

Em primeiro lugar, percebo que muita gente simplesmente não leu o jornal mas manifestou (e manifesta) opinião formada sobre seu conteúdo. Incluo nesse grupo aqueles que leram os títulos e algumas frases de dois ou três artigos e consideraram isso suficiente para emitir um julgamento sobre o todo.

Em segundo lugar, vejo muita gente que não entendeu o que pretendíamos dizer. Talvez não tenhamos sido “suficientemente” claros (o que seria isso, afinal ?); o fato é que muitos parecem, em vários momentos, extrair de nossas palavras sentidos completamente diferentes daqueles que visávamos transmitir com elas. Alguns chegam a concluir que se interpretaram de um certo modo o que escrevemos então necessariamente era aquilo mesmo que queríamos dizer. Por outro lado, é bom verificar que a maioria da sociedade ainda tem o devido senso de proporção e sabe distinguir o que publicamos das estranhas interpretações que certos grupos vêm veiculando. O artigo que mais tem causado polêmica, por exemplo, não só não é racista como é profundamente anti-racista, tão anti-racista que considera perigoso que a raça seja usada como critério para qualquer coisa. Se ele está equivocado ou não em suas observações é uma discussão importante e válida, mas ele evidentemente não promove a discriminação racial
ou o racismo como comportamentos desejáveis.

Em terceiro lugar, vejo os que leram e compreenderam, mas que ao invés de questionar o conteúdo explícito dos textos apresentados, combatem o que “denunciam” como significados e propósitos “ocultos” nos textos – significados, os quais, é claro, subentende-se que nós jamais iríamos “confessar” abertamente. Esse argumento é particularmente irrespondível, pois é impossível demonstrar que não há uma conspiração ocorrendo. Ao contrário, quanto mais evidências se apontam para demonstrar que não há absolutamente nenhuma “intenção oculta” associada a seja lá o que for, mais perfeita e sofisticada a “conspiração” parecerá aos olhos de quem “já sabe” que “só pode” se tratar de uma. O fato concreto é que somos quatro estudantes universitários que se reuniram espontaneamente e por iniciativa própria para fazer um jornal contendo exclusivamente artigos de nossa autoria e que distribuímos o resultado de nossa iniciativa no campus da universidade onde estudamos com o único propósito de que as pessoas que participam daquela comunidade pudessem pacificamente lê-lo.

Será isso algo assim tão inusitado ?

Contribuíram para os ânimos acalorados alguns fatores externos ao jornal. Por exemplo, a PUC-Rio havia acabado de passar por uma das eleições para o DCE mais movimentadas dos últimos anos, e a nova chapa eleita tomava posse justamente enquanto distribuíamos “O Indivíduo”.

Talvez a maior coincidência, ou sincronicidade, como queiram, tenha sido o fato, extensamente apontado, de que a impressão do jornal tenha ficado pronta às vesperas do dia de Zumbi e da comemoração do dia da consciência negra. Isso contribuiu para que grande parte dos leitores não percebesse que o artigo “A Negra Noite da Consciência” se refere a uma semana de eventos e palestras promovida na PUC há algum tempo atrás, e não ao dia da consciência negra, promovido na época da distribuição do jornal. Não estou argumentando aqui que isso faria ou não muita diferença no conteúdo do artigo – isso deve ser perguntado a seu autor. A questão é que essa proximidade foi usada como argumento em acusações de que “o que o jornal visava mesmo era criar tumulto”. Ora, novamente, é impossível provar a inexistência de intenções conspiratórias, mas o fato objetivo é que já pretendíamos – e até preferíamos – distribuir “O Indivíduo” semanas antes, quando estaríamos em aulas e mais alunos teriam acesso ao jornal. Contudo, estávamos em provas, houve vários atrasos, e o jornal impresso acabou só chegando a nossas mãos na véspera do dia em que foi distribuído. Isso foi exatamente o que aconteceu – nunca planejamos lançar o jornal em nenhum dia específico.

Individualidade versus Individualismo

Apesar do editorial publicado no número zero, que pretendia esclarecer o significado do título do jornal, houve quem nos criticasse pela defesa do “individualismo” no sentido egoísta da palavra. Retorno, portanto, ao tema.

Examinemos a definição de indivíduo :

Indivíduo – um ser humano isolado, considerado separadamente de um grupo.

Antes de formarmos qualquer grupo ou coletividade, somos todos indivíduos. Somos as células da coletividade, sua unidade estrutural indivisível. Quando um grupo de pessoas “decide” fazer alguma coisa, não surge uma “consciência grupal” autônoma que passa a deliberar independentemente. Dizer que uma coletividade “decidiu” alguma coisa é apenas uma imagem que simplifica a criação de um modelo para os fatos sem descrevê-los completamente. Para que essa “decisão” se efetive, é preciso que cada indivíduo, separadamente, decida por si mesmo colaborar com a “decisão” do grupo. Essa pode ser uma decisão emocional ou até mesmo inconsciente, mas permanece uma decisão individidual. Os indivíduos são os únicos com a capacidade de decidir o que quer que seja; um monte de indivíduos juntos decidindo mais ou menos a mesma coisa não é o mesmo que uma suposta entidade metaindividual tomando uma única decisão.

Por que isso é tão importante ? Porque é perigoso imaginar que “o grupo” tenha uma consciência moral – ele não tem. Quem dispõe da consciência moral é o indivíduo, e do ponto de vista prático só a pode exercer individualmente ou encontrando outros indivíduos dispostos – por seu julgamento individual – a colaborar com ele. A maturidade moral só é atingida quando um indivíduo percebe que pode estar errando apesar de todos à sua volta o apoiarem e que pode estar acertando apesar de todos à sua volta o condenarem. A verdade não surge do consenso ou da vontade da maioria, e sim da obervação e da reflexão cuidadosas.

Há uma história que diz que há muito tempo a China era governada por um imperador que nunca aparecia em público. Depois de algum tempo, os súditos começaram a se perguntar sobre a seguinte questão : “Qual será o comprimento do nariz do imperador da China ?”. Como era impossível verificar diretamente, um “sábio” resolveu então usar o seguinte método : reuniu vários camponeses e instruiu-os a percorrer a China perguntando, a todos os que encontrassem, qual eles acreditavam que era o comprimento do nariz do imperador. Com certeza, imaginou o “sábio”, quanto mais pessoas fossem consultadas, mais próximo ele estaria da resposta correta, bastando para isso obter a média das respostas colhidas. Pois é exatamente dessa forma que eu vejo muitas pessoas executando seus julgamentos éticos e morais. E o que eu tenho a dizer é : cuidado, isso é perigosíssimo.

Portanto, o título “O Indivíduo” pretende ressaltar o fato de que é preciso que cada indivíduo, isoladamente, exerça sua consciência ética, sua inteligência, sua criatividade, seus sentimentos, sua humanidade para que possamos então, juntos, formar uma sociedade ética, inteligente, criativa, sensível e humana. O sentido de nossas reflexões, portanto, não se encontra de forma alguma no individualismo egocêntrico mas sim na individualidade característica de todo e cada ser humano. Somos todos diferentes e especiais e misteriosos uns para os outros, e portanto cada ser humano é insubstituível e deve ser respeitado em sua singularidade.

Liberdade de pensamento e de expressão

Em nosso Brasil atual tenho visto algumas pessoas clamando pela repressão aos “abusos do direito à liberdade de expressão”. Ora, o próprio conceito de liberdade de expressão existe justamente porque há idéias que nos provocam repulsa, idéias que consideramos “perigosas” ou “erradas”. Ou seja, a liberdade de expressão não foi imaginada tendo em mente quem diz algo que ouvimos com prazer, e sim para proteger aqueles que têm a nos dizer coisas de alguma forma incômodas que não queremos que sejam ditas. Portanto, me parece muito estranho e perigoso falar em “abuso da liberdade de expressão” com base no fato de que alguem sentiu-se ofendido com o que foi dito. Ou é um direito fundamental ou não é. E o princípio é que não é desejável que as pessoas sejam punidas por comunicarem aquilo em que realmente acreditam. Mesmo crimes como perjúrio ou falsidade ideológica fundamentam-se justamente no fato de que o que foi manifestado não representava a expressão do pensamento do autor da manifestação! Claro, há o caso de incitações explícitas ao crime, que é mais complicado. A fronteira entre o crime, a incitação ao crime, e opiniões sobre o crime pode por vezes ser tênue mas é fundamental que a procuremos. Se não o fizermos, daqui a pouco estaremos prendendo médicos por escreverem artigos científicos dizendo que a maconha não faz tão mal assim. Estamos atravessando tempos difíceis, tempos em que uma parte da sociedade, rapidamente esquecida dos terrores do patrulhamento ideológico e da censura, novamente se deixa inebriar pela tentação de reinstaurar em nosso país o delito de opinião. Quando isso ocorrer, teremos mais uma vez perdido nossa duramente conquistada democracia. É preciso que a maioria silenciosa que enxerga e teme essa terrível ameaça se manifeste. Lembremo-nos do seguinte diálogo, se não me engano imaginado por Thomas More em uma de suas obras, e que aqui recrio de memória :

- Quer dizer que você passaria por cima da lei se enxergasse o demônio do outro lado?
- Certamente que sim! Eu abriria um grande buraco na lei para poder atingir o demônio!
- Meu caro amigo, se você assim perseguir o demônio, e derrubar lei após lei, quando finalmente houver derrubado a última lei da Inglaterra e o demônio se voltar, sorridente, contra você, onde você se esconderá?

Divergências entre os autores

Já no momento em que apresentei meu artigo “Ciência e Filosofia” aos outros editores do jornal, eu ouvi : “Discordo completamente do que você escreveu.” Da mesma forma, eu não necessariamente concordo com tudo o que está escrito nos outros artigos do jornal. Isso não é nenhuma novidade. Não é algo que tenhamos descoberto agora. Já o sabíamos antes mesmo de imprimir o jornal. Porém, esse é o espírito que precisa prevalecer em uma sociedade que se pretenda “plural” e “multicultural” : o respeito à individualidade de cada um, ao que cada um tem para dizer. Sem individualidade, como se pode falar em pluralidade ?

Divergências editoriais

Infelizmente, o episódio todo acabou resultando em desdobramentos sobre os quais não conseguimos, como um conselho editorial, assumir uma postura coerente que pudéssemos defender todos juntos. É uma ironia, considerando a proposta do jornal; porém, é uma questão eterna com a qual tem de se defrontar todo empreendimento conjunto. Portanto, devido a divegências irreconciliáveis quanto à concepção da postura e da ação concreta a assumir com relação a nossos críticos, defensores, e quanto ao futuro do jornal, decidi deixar voluntariamente o conselho editorial do jornal “O Indivíduo”. É com tristeza que o faço, por considerar que “O Indivíduo” ainda tem, entalada na garganta, uma quantidade enorme de reflexões e idéias cujo debate poderia ser profundamente enriquecedor. Faço votos de que as idéias mais importantes não se percam e de que os editores remanescentes se deixem motivar pela vontade de estimular a reflexão e o pensamento crítico e não pela compreensível mas profundamente destrutiva vontade de agredir aqueles que os agrediram. Ao permanecer como webmaster e diagramador do jornal, é com satisfação que constato que assim tem sido.

Comentário adicional, 10 anos depois

Minha saída do conselho editorial foi devida basicamente a discordâncias quanto à publicação de certos textos de outros que não nós três. Eu definitivamente não aprovei certas escolhas, e achei por bem resolver o impasse retirando-me da posição de decidir textos de quem seriam ou não publicados. Mas passadas as turbulências que se seguiram à distribuição inicial do jornal, e em sua subseqüente existência como site, acabamos na prática por administra-lo conjuntamente. No princípio fui eu a cuidar do site, seguido pelo Álvaro, que por anos foi sua principal força motriz. Após um breve período de abandono, O Individuo foi eventualmente reinventado e revitalizado pelo Pedro, que passou então a ser seu principal arquiteto, autor e mantenedor, comigo fazendo contribuições moderadas e o Álvaro escrevendo cada vez mais raramente. Quando voltei a contribuir com mais freqüência, revelaram-se, coloquemos assim, diferenças de preferências sobre como fazer as coisas, e eventualmente o site se separou em dois, um administrado por mim e outro pelo Pedro.

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