Rumo ao Século Dezenove

June 15th, 1998 by Sergio de Biasi

A cada dia que assisto aos noticiários neste país sinto uma sensação de que os eventos estão se sucedendo na ordem oposta à natural. Após pasmar-me repetidas vezes com esse sentimento, concluí que algum estranho fenômeno está fazendo com que, talvez assustados diante do milênio que se aproxima, retornemos correndo em direção ao século dezenove. Com base nesse pensamento, aventuro-me a prever os acontecimentos que nos aguardam, mantido o rumo atual, em nosso futuro.

1998-1985

O ponto de retorno deve ter ocorrido há já uns cinco ou dez anos; passado o efeito do porre e dissipado o entusiasmo com as mudanças trazidas pela “abertura” e pela “Nova República”, os “reformadores” de plantão puseram as mãos na massa para atacar uma série de liberdades duramente resgatadas – em particular, a da atividade intelectual independente e crítica. Justamente aquela cujo retorno, nos últimos anos da ditadura militar, a sociedade em peso celebrou. Que delícia a possibilidade de ver, divulgar e utilizar livros, filmes e músicas que se bem entendesse sem que o estado se intrometesse no assunto! Por alguns anos realmente me pareceu que finalmente vivia em uma nação que entendera que “cala a boca” não é um argumento. Porém, hoje observo que me precipitei. A cada dia que passa, mais e mais políticos, jornalistas, professores, “psicólogos”, etc. defendem, com os meios ao seu dispor, as mais flagrantes violações da liberdade de julgamento individual. Seus argumentos quase sempre se assentam, implícita ou explicitamente, na pretensa necessidade de defender o Cidadão de “idéias ruins”, que vão lhe fazer mal, coitado! (Um projeto grotesco por si só, mas que ainda traz de bônus a colaboração desses mesmos agentes para nos revelar – ou, pensando bem, nos esconder – quais são as “idéias ruins”). Estamos portanto, no processo de “desabertura”, durante o qual a facilidade de criação e comunicação de pensamento não sancionado pelos poderes dominantes será paulatinamente reduzida.

1985-1964

Após o processo de desabertura, é claro, teremos o fim da Nova República; o povo irá às ruas para pedir que um grupo autocrático assuma o poder para nos proteger de ideologias perigosas – sejam elas quais forem, note o leitor que isso não faz muita diferença. Afinal, a essa altura, o representante médio da população já não estará lá em condições muito vantajosas para avaliar sequer em que consistem, afinal de contas, as tais ideologias. (O que não impedirá, naturalmente, apaixonados julgamentos de valor sobre as mesmas.) Os anos passarão e o Cidadão ficará contente em perceber que está sendo cada vez mais “protegido” pelo estado. Seus “direitos” crescem a cada dia, chegando à sua vida pessoal, que o Estado já começa a considerá-lo incapaz de administrar sem a assistência de “especialistas”.

1964-1930

Para perseverar nesse nobre intento, o Estado terá que concentrar em si poderes cada vez maiores, e necessariamente acabará entrando, mais cedo ou mais tarde, em conflito com cada uma de quaisquer outras instituições remanescentes : a religião, a pesquisa científica, o empresariado, o sindicalismo, etc… O Cidadão porém, será ensinado desde cedo a desejar ardentemente o dia de sonhos em que não precisará tomar mais nenhuma decisão, e facilmente enxergará todas essas instituições como empecilhos, com sua irritante persistência em levantar contradições, ao estabelecimento de uma tal situação. Haverá conflitos, alguns deles sérios, mas o Estado vencerá, concentrando em si o poder, a lei, a justiça, o saber, a moral e a transcendência.

1930-1917

Guardião único de valores tão inestimáveis, o Estado se tornará evidentemente mais importante do que qualquer Cidadão, o qual não seria nada sem aquele. Dessa forma, a sobrevivência e soberania do Estado em todas as circunstâncias sobrepujará em importância quaisquer outras considerações, de forma que a conseqüência lógica e quase indolor será a extinção de todos os direitos civis. Afinal, estará atingida a utopia da alocação eficiente das potencialidades de cada um : ao Cidadão, tudo aquilo que não for obrigatório, será proibido.

1917-1900

Infelizmente, um sistema tão maravilhosamente perfeito colapsará justamente ao galgar os últimos degraus, assim como o cavalo que morreu quando estava “quase” aprendendo a viver só comendo papel. Ironicamente, o Estado não é uma entidade metafísica e deve ser encarnado por um grupo de seres humanos reais. Dessa forma, no limite máximo desse modelo, o exercício arbitrário do poder para atingir a objetivos elevados que escapam à competência do Cidadão comum confunde-se com o exercício simplesmente arbitrário do poder. Faltando dezessete anos para o fim do século, a organização formal da sociedade se desintegrará, despontando um neo-feudalismo no qual o poder – muitas vezes localizado – simplesmente existirá, assim como as montanhas e o Sol.

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