Os Guardiães da Democracia

May 15th, 1999 by Sergio de Biasi

“Este ano entrará para a história como aquele em que, pela primeira vez, uma nação cililizada possui um registro completo de suas armas. Nossas ruas serão mais seguras, nossa polícia mais eficiente, e o mundo seguirá nossa liderança em direção ao futuro.”

Como abertura deste artigo, convido o leitor a refletir sobre a citação acima.

Será ela obra de um humanitarista genial, preocupado com o bem estar da população? Será ela o produto de uma grande nação que alcançou um grau admirável de sabedoria?

Vamos inverter a questão. Suponha que você seja um estadista que, por qual motivo for, deseja executar uma determinada política sem questionamentos, sem entraves. Suponhamos, por exemplo, que você acredite que a sua política é a melhor para todos. Adicionalmente, suponhamos que nem todos concordem com você. Aliás, suponhamos que você não quer ter que levar em conta quantos concordam ou não com você. Em outras palavras, suponhamos que você seja um estadista antidemocrático.

Bem, estaremos então diante do seguinte – eterno – problema político : como implementar uma política com a qual nem todos concordam? Evidentemente, à força. Se os discordantes forem as exceções, os pontos fora da curva da sociedade, tudo mais ou menos bem – o estado de direito e a democracia são isso aí mesmo (do que já dá pra tirar várias conclusões elucidativas sobre o assunto…).

Só que nesse caso, temos um problema um pouco mais grave. O que fazer se você quer implementar essa política seja qual for a reação da sociedade, ou seja, independentemente do que a massa da população efetivamente quer, como quem entorna um remédio (ou veneno) ruim goela abaixo da criança doente? Bem, então esse “à força” se torna mais difícil. É fácil noventa e nove pessoas obrigarem uma a seja lá o que for. Cinqüenta obrigarem cinqüenta já fica bem mais complicado. Dez obrigarem noventa, hummm – à força acho que não vai dar.

Porém, se as primeiras dez pessoas possuírem rifles e as últimas noventa, nada, bem – acho que nem é preciso dizer o que acontece. Mas eu digo assim mesmo. Acontece o que acontece em um presídio – está claro quem manda e quem obedece, está claro de onde “emana o poder”.

Só que nossa sociedade não é um presídio. O poder legítimo deveria, segundo nossa constituição, emanar da população, e não do presidente, do congresso, dos juízes ou da polícia. “O poder emana do povo” não é apenas um mero jogo demagógico de palavras. É um esclarecimento filosófico crucial sobre o modo correto de interpretar o papel do estado na sociedade. O estado não existe para dizer às pessoas o que fazerem. Existe para fazer o que as pessoas dizem. Não existe para obrigar as pessoas a fazerem o que ele quer. Existe para ajudá-las a fazerem o que elas querem. Não existe para julgar seus cidadãos. Existe para organizar o julgamento de alguns cidadãos pela maioria da sociedade. Quando a polícia prende um bandido, não foi o estado que desceu do céu miraculosamente e nos ajudou em sua infinita sabedoria. Foi a sociedade organizada que resolveu não tolerar um determinado comportamento, com a aprovação (supõe-se) das vítimas do bandido, dos parentes das vítimas, do policial que o prendeu, etc… A polícia não está acima ou abaixo ou ao lado do cidadão comum. A polícia é o cidadão comum, organizado para proteger os interesses comuns, assim como o síndico de um prédio é um morador que chamou a si, com a autorização dos outros, a tarefa de cuidar de certos interesses do condomínio. O governo é o síndico do prédio, não o diretor de alguma prisão. Quem realmente manda são os condôminos, não o síndico, cujo poder é limitado e transitório. Ou, pelo menos, assim recomenda a nossa constituição.

Suponhamos, porém, que este “esquema”, como estadista antidemocrático que é, não lhe agrade. Digamos que você se sentiria muito mais confortável se quando você desse uma “ordem” ela fosse prontamente cumprida, sem possibilidade de questionamento ou recusa. Ou seja, digamos que você queira que o poder emane de você, e não de nenhum algum outro lugar desagradável; digamos que você queira ser o diretor de uma prisão, e não o síndico de um prédio.

Bem, neste caso, acho que será necessário arranjar formas de eliminar qualquer poder que você não possa controlar.

Note que, seja qual for a motivação por detrás, estamos lidando aqui com duas visões diferentes da relação entre estado e sociedade. Em uma, o estado é a sociedade organizada; o cidadão ajuda o policial a livrar-se dos criminosos, e o policial ajuda o cidadão a livrar-se dos criminosos, pois são ambos uma única coisa : pessoas, juntas, defendendo valores que compartilham. Em outra, o estado paira sobre a sociedade – mesmo se “eleito” por ela – e interfere de forma coercitiva em suas atividades. O policial é um ser alienígena que entra indistintamente na vida do cidadão e do criminoso para cumprir determinações arbitrárias do estado com as quais talvez nenhum dos envolvidos concorde.

Agora, diga-me você, leitor, em qual desses dois estados será permitido ao cidadão comum ter armas?

Ou, invertendo a pergunta : se você é um estadista antidemocrático, você lutará pela proibição ou pela liberação das armas para os cidadãos comuns?

Se, por outro lado, você – estadista ou não – prefere não viver em uma prisão, e quer que a responsabilidade e o poder de agir sejam, em princípio, acessíveis a todos, qual será a sua escolha?

Se o cidadão comum, quando oprimido, tiver os meios de reagir por si mesmo, a democracia se auto-sustentará; nenhum grupo minoritário – estatal ou não – poderá impor sua vontade à força ao resto da sociedade. Serão então os cidadãos comuns os guardiães da democracia. Os melhores e verdadeiramente únicos que ela pode ter. Se tiramos deles sua voz, sua autonomia, seu poder concreto de agir, bem…

A quem ainda não entendeu do que estou falando, vamos ao autor da citação que abre o artigo. Trata-se de uma declaração de Hitler, em uma entrevista de jornal em 1935, sobre o controle da posse de armas na Alemanha nazista.

O fato é que se realmente acreditamos na democracia, somos obrigados a acreditar na capacidade de julgamento – ou ao menos no respeito ao julgamento – do cidadão comum. Afinal, toda a idéia da democracia é justamente essa – a administração da sociedade segundo os valores, objetivos e diretrizes do cidadão comum. Qualquer outra coisa não é democracia.

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