É Tudo Uma Grande Farsa

February 26th, 2009 by Sergio de Biasi

Qualquer um com alguma quantidade de senso crítico começa a suspeitar em algum estágio de sua vida que certas instituições não são o que pretendem (ou querem convencê-lo de que pretendem) ser. Chega um dia – por vezes ainda na infância – em que você olha em volta e pensa “peraí um pouco” e repentinamente enxerga que não são meros detalhes; que aquilo ali é uma farsa. Pode vir primeiro com o governo, com as religiões, com as escolas, com a família, mas em algum momento a incongruência entre seu modelo mental do que aquela instituição deveria representar e o que você efetivamente experimenta todo dia que ela seja fica tão grande que se torna inviável não mudar o modelo. E freqüentemente a mudança é tão drástica que não há como categorizar a descrição anterior como algo menos que uma farsa, uma impostura, uma mentira.

Isso pode resultar em um espectro de reações que vão desde enorme indignação até um simples e pragmático aumento na habilidade de interagir produtivamente com a realidade (ao invés de com uma fantasia). O impacto exato dependerá entre outros do grau de investimento que você tinha naquela realidade fictícia. Alguns dirão “Oh, papai noel não existe! Mas é divertido fingir que ele existe, então está ok.” Outros dirão “O quê, papai noel não existe? Mentiram para mim! Que absurdo!” Seja como for, dificilmente será possível se relacionar com aquela instituição da mesma forma que antes.

Aqueles amaldiçoados com um grau particularmente alto de senso crítico talvez sequer cheguem mesmo na infância a entreter ilusões sobre certas instituições. No extremo oposto, aqueles completamente desprovidos de senso crítico continuam para sempre a depositar aleatoriamente confiança em quaisquer instituições por mais incongruentes e inacreditáveis que sejam, e determinam suas crenças pessoais sobre como a realidade funciona como resultado de uma média ponderada entre os anúncios do governo na televisão, o que o pastor falou na igreja no domingo, o que seus amigos e familiares acreditam e o que os personagens atraentes das novelas dizem.

A maioria das pessoas, porém, mesmo as mais inteligentes, perceptivas e críticas, chega à idade adulta mantendo o respeito e a fé numa certa quantidade de instituições. Talvez o governo seja uma grande farsa, digamos, digamos, mas as religiões ainda têm algum tipo de integridade básica. Ou talvez o mundo acadêmico seja uma farsa, mas por outro lado exista alguma verdade fundamental em investir num casamento e numa família.

E novamente, para a maioria das pessoas, isso acaba funcionando. Para muitos, isso se dá simplesmente por falta de suficiente autonomia e poder intelectivo para enxergar e questionar as aberrantes e abundantes inconsistências que tais instituições apresentam. Ironicamente, se fosse menos absurdo, talvez fosse mais fácil de perceber. Mas do jeito que é, nada faz sentido mesmo e vira tudo ruído de fundo.

Para outros, mais questionadores e com maior clareza de pensamento, fica mais complexo simplesmente varrer esse mar de incongruências para debaixo do tapete. Só que de instituição falida em instituição falida, acaba-se chegando no total vazio, e esse é um beco sem saída existencial altamente desconfortável. Daí para preservar a própria sanidade decide-se acreditar em uma ou mais instituições inacreditáveis. A opção é não restar mais qualquer motivo para fazer qualquer coisa.

Só que essa é uma solução mais ou menos esquizofrênica, que só pode ser sustentada através de uma desonestidade intectual que começa consigo mesmo antes de sequer de ser exportada aos outros. Se formos ser completamente honestos, ou na verdade minimamente honestos, as evidências concretas contradizem continuamente as supostas características que todas as instituições que servem de cola social e arcabouço emocional e existencial para a nossa civilização deveriam apresentar. Quando começamos a jogar fora e refutar as instituições ocas baseadas em mentiras e manipulação, não resta nenhuma.

Se formos ser implacavelmente honestos, pouco a pouco percebemos que não são partes do sistema que são feitas de isopor e papel crepom. É o sistema como um todo.

Por exemplo : o governo é na prática uma instituição mafiosa no sentido mais literal da palavra. São criminosos que se organizaram para extorquir (leia-se à força) dinheiro e recursos da sociedade para protegê-la de ameaças imaginárias ou criadas pelo próprio governo. (“Seria uma pena se a sua fábrica pegasse fogo, mas nós podemos evitar que isso aconteça…”) Certo, o governo deveria ser uma mistura de gerente e companhia de segurança contratada por todos nós para manter um certo grau de ordem. Mas esqueçamos por um instante o que os governos “deveriam” ser ou o que nós “gostaríamos” que eles fossem. Olhem na prática para o que eles são. Nós pagamos “proteção” ao governo como pagaríamos a um mafioso que ameaça explodir a nossa loja e/ou dar um tiro na nossa cara se não pagarmos proteção. Pagamos ao governo para ele nos deixar em paz. É ingênuo porém achar que o problema seria resolvido com anarco-capitalismo ou algo assim. A rigor, o sistema em que a civilização automaticamente se encontra antes de governos serem organizados *é* anarco-capitalismo. E mesmo assim universalmente governos são organizados. Vácuos de poder tendem a ser preenchidos; onde não existe uma organização coercitiva dominante, sempre existe uma cambada de psicopatas disposta a cria-la. E não há como impedir que o façam a não ser organizando nossa própria entidade coercitiva, derrotando o propósito de não haver uma. Achar que “seguradoras” ou grandes empresas respeitarão ou protegerão liberdades individuais mais do que governos tradicionais (usando por exemplo o argumento de que isso é o que maximiza seu lucro) é de uma ingenuidade delirante. É como tentar subornar o ladrão para que ele não te assalte. É só outro nome para ser assaltado. Enfim, o governo é uma farsa absoluta no sentido de que o que ele realmente é diverge de forma irreconciliável de qualquer interpretação razoável do conceito socialmente dominante do que ele seja. Isso é assunto para muito mais do que dá para abordar aqui neste texto, mas os governos são farsas muito, muito maiores do que a maioria das pessoas percebe ou está emocionalmente preparada para conceber.

Certo, então talvez os governos sejam péssimos mas outras coisas não sejam. Só que governos são apenas um exemplo. É uma grande tentação achar que o problema esteja com a instituição, que se apenas mudássemos a forma de governo, ou o contrato social, ou *algo*, poderia funcionar. Só que o problema não está com a instituição. Assim como com a religião, com as escolas, com as universidades, com as famílias, o real problema está com as pessoas, não com nenhum sistema em particular. As instituições farsescas resultam diretamente de pessoas individualmente farsescas. Se jogarmos o idealismo e a moralidade no lixo, como a maioria absoluta das pessoas faz sob pressão, ou mesmo sem pressão alguma, é evidentemente muito mais vantajoso professar objetivos alinhados com os interesses daqueles cujo apoio você quer conquistar seja lá qual forem seus reais objetivos ou ações do que ser suicidamente transparente. Se o pastor evangélico for à televisão dizer “mande dinheiro porque eu quero um iate” provavelmente não vai funcionar tão bem quanto se ele disser “mande dinheiro e sua vida vai magicamente melhorar”. Infelizmente, está é a natureza básica da maior parte das interações sociais. E é muito complexo desviar disso, porque aqueles que tentam agir de forma honesta e lutar pelos seus interesses sem manipular os outros são violentamente massacrados. É preciso ser mesmo suicida, ingênuo ou ter uma repulsa extraordinária em manipular ou outros para não se juntar ao clube da farsesca respeitabilidade social.

19 Responses to “É Tudo Uma Grande Farsa”

  1. Pallas says:

    Justamente.

    Após descartar todas as instituições, chega-se a si mesmo, e percebe-se que você também é uma farsa. Você não é a pessoa que deveria ser. A partir daí você amadurece e não pensa mais que pode ser o juiz implacável de todas as instituições. Afinal, somos parte do problema.

    Então começamos a tentar ser a pessoa que deveríamos e descobrimos uma insuspeita simpatia pela imperfeição das pessoas e das instituições. Pelo menos comigo foi assim: nada é como deveria, nem mesmo eu, por isso não tenho o direito de ser a palmatória do mundo.

    Achar que o mundo inteiro é uma farsa e que você paira acima dele ainda está no estágio “O Apanhador no Campo de Centeio” do pensamento. Já faz tempo que não tenho mais 13 anos.

    == Pallas

  2. Ricardo says:

    Sua análise crítica diante da realidade universal parece-me kantiana demais, afinal o senhor crê ou não na verdade? Se for julgar pelo o título acima, parece que não, se julgar pelo o final existe sim, mas o problema da “farsa” está nas pessoas. Todo mundo tem algo a dizer enquanto sua visão de realidade, caso contrário não existiria opiniões, as suas, por exemplo. Mas..opiniões não destricham mistérios ou anulam dogmas, falando de uma forma simples e direta, o que acontece no governo brasileiro é resultado do modernismo pós-idade média, da arte obcena e oculta do renascimento, da reforma protestante luterana, dos filósofos relativistas e subjetivistas dos séculos XVI, XVII e XVIII e principalmente do materialismo marxista do século XIX que causou a morte de milhões com o nazicomunismo no século XX. Esses homens foram problemas e tinham “problemas”. E há outros fatos, que por desconhecimento ou esquecimento histórico não os mencionei. Vês? A máfia em Brasilia é consequência de tudo isso, o homem que nega a verdade ou a realidade, acaba por negar a si mesmo e aos outros, pois se não existe verdade, que diabos estamos fazendo no mundo? Vamos roubar então, vamos fazer nossas próprias leis, tudo é permitido. Eu ou o senhor somos uma mentira? Chegar a essa constatação é sim um grande problema!

    Concordo que o “problema” está nas pessoas, sabendo disto, o que fazer para amenizar tais “problemas” que todos nós temos? De qualquer forma, a verdade existe, ela é visivel em nossa existência, e misteriosamente superiora a nossa razão, essa verdade é Deus e sua Instituição, Igreja Católica Apostólica Romana, não é uma farsa, os homens que a governam ou participam dela sim, possuem tais “problemas”.

    Não o critico, nem lhe imponho nada, só quero lhe mostrar a verdade.

    Um abraço!

  3. Cesar says:

    Camarada Sérgio,

    Compartilho de suas opiniões em parte. Me parece exagero quando você fala do governo, estou a dizer isso sem melindre algum. É que me parece que você menciona governo como uma instituição universal, digo, todo e qualquer governo. Se for isso, não concordo, porque o nosso e alguns outros são mais sujinhos, fico meio puto da vida também de ter que pagar imposto de renda, ipva, iptu, todo o pacote da surra fiscal e ainda pagar seguro saúde, dentista, estudo, etc.

    Isso é porque aqui é erradinho e não convém discutir o porquê, mas alguns países a coisa funciona melhor, na Alemanha, por exemplo, a carga tributária é pesada também, mas volta pro cidadão em benefícios reais.

    O camarada Ricardo quis floerar o texto e destilar conhecimento e soltou uns absurdinhos também. “(…)e misteriosamente superiora a nossa razão, essa verdade é Deus e sua Instituição, Igreja Católica Apostólica Romana, não é uma farsa, os homens que a governam ou participam dela sim, possuem tais “problemas”. (…)”

    Rá rá, a instituição igreja não é uma farsa, ora bolas, ela foi concebida por homens, com tudo de ruim que isso traz! Já se contradisse te contradizendo. Concordou discordando, sem saber.

  4. Cesar says:

    Como não posso editar o que escrevi, escrevo mais um pouquinho. Percebi que você na verdade usou o exemplo do nosso governo para ilustrar sua idéia de que instituições são farsas em não raros casos, pois são compostas de grupos de indivíduos que na sua individualidade são imperfeitinhos e cheios de intenções orientadas a proveito próprio. Então, é claro que o capitão egoísta quer conduzir o resultado da pilhagem, pilhagam a qual todos os piratas ajudaram a roubar, pra sua ilha particular, deixando somente as migalhas pra tripulação, que dá a vida e põe o barco pra funcionar. Mente pra eles pra levar o barco onde lhe melhor convier.

    Entendi certo?
    Abraços

  5. bruno says:

    é claro que é imperfeito, que é tudo imperfeito. não fomos desenhados pra pensar sobre as coisas nem pra falar sobre elas; fomos desenhados pra pegar bananas e matar veados. tudo que desvia desse fim é isso, um desvio, e carro que sai da estrada começa a tremer.

  6. Eliane says:

    Olá Sergio,

    Sou uma leitora do blog do Pedro, um dos meus preferidos.

    Seu post acrescenta muito, vejo sua crítica como uma bússola, é muito bom poder contar com pessoas que não naufragam facilmente.

    Segue abaixo um texto do Guenon que complementa o seu comentário através do ponto de vista das Tradições :

    É notável que, em todo o conjunto do que constitui propriamente a civilização moderna, qualquer que seja o ponto de vista sob o qual a encararmos, constatamos sempre que tudo se mostra cada vez mais artificial, desnaturado e falsificado; muitos daqueles que hoje em dia criticam a civilização, são até mesmo mais surpreendidos enquanto não saibam ir mais longe e não tenham a mínima idéia do que se esconde por trás disso tudo. No entanto, nos parece, bastaria um pouco de lógica para se dizer que, se tudo se tornou assim tão artificial, a própria mentalidade a qual corresponde a este estado de coisas não deve ficar atrás, que ela também deve ser “ fabricada “, de modo algum espontânea; e, desde que façamos esta simples reflexão, não poderemos mais deixar de ver esses mesmos indicativos concordantes multiplicando-se por todos os lados e quase que indefinidamente; também é preciso crer que infelizmente é muito difícil de escapar completamente das “ sugestões “ às quais o mundo moderno como tal deve a sua própria existência e a sua duração, pois aqueles mesmos que se declaram mais resolutamente
    “ anti modernos “ em geral não vêem nada disso, e aliás é por isso que seus esforços são tantas vezes gastos em pura perda ao mesmo tempo sendo desprovidos de alcance real.
    ( O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, capítulo XXVIII, As Etapas da Ação Anti Tradicional )

    Abraço,

    Eliane

  7. Luiz says:

    Creio que através do desenvolvimento moral e espiritual de cada um de nós, é possível transformarmos o meio em que vivemos. Nenhum sistema de govêrno, nenhuma lei ou constituição, poderá fazer o ser humano mais humano. É do coração que nascem as nossas questões. Precisamos querer mudá-lo. É de dentro para fora. É doido. A lei pode até restringir mas nunca transformar. Esta luta diária, de cada um, é pràticamente impossível para uma sociedade que se acostumou a pensar coletivamente. A individualidade precisa ser respeitada. A honestidade e o amor pela liberdade de consciência, acima de tudo. Abraços. Luiz

  8. Júlio Oliveira says:

    Sérgio,

    Quando o sujeito decai para o estágio em que a única verdade que lhe resta é só acreditar que não crê em mais nada nem ninguém, talvez seja a hora de começar a rever seus valores para tentar sair dessas trevas ao meio-dia. Ler Sto. Agostinho ou Sto. Tomás talvéz ajude a por a sua lógica nos trilhos.

    Saudações,

    Júlio Oliveira

  9. Bruno says:

    Se tudo é uma grande farsa, se nós não passamos de macacos “espertos” e egoístas, se nossas ideias e instituições são terrivelmente falhas, se a realidade é tão somente uma coisa caótica, muitas vezes monstruosa e intrinsecamente desprovida de “sentido”, de “lógica” (estes dois subprodutos da evolução de certos primatas) então… Não é de se admirar que a maioria das pessoas escolha “Oba, bananas!” ou “Oba, mentiras!”… Um porco satisfeito vale menos que um Sócrates insatisfeito? Talvez apenas nas mistificações de filósofos infelizes… Se o mundo e as pessoas são assim como seu post diz ser, talvez ser escravo, burro, alienado e malvado não sejam coisas assim tão ruins afinal… Por que macacos deveriam querer algo mais além de bananas, sombra e água fresca? Já quanto as pulgas,”tá no inferno, abraça o diabo”, não é o que diz o ditado? O que é certo, o que é verdadeiro, o que é bom? O que é progresso? Seriam também essas ideias farsas (com o perdão do trocadilho matuto, hehe)? Qual o valor da farsa? Qual o valor da verdade? Viva a farsa!? Ou viva a verdade? Ou viva a absurda e quotidiana convivência entre ambas? Acaso não são estas idéias “quimeras úteis”, sempre transigíveis, de acordo com nossos interesses? O mundo parece continuar a girar com, sem ou apesar de nós… Teria ainda muito que comentar, muitas perguntas semi-retóricas a fazer, e talvez até algumas respostas a insinuar – pois o post é deveras interessante… Mas, quem sabe outro dia… De resto, me despeço com uma anedota cínica/cetica:
    “Um dia um homem resolveu desposar a verdade… Pouco tempo depois divorciou-se. Perguntaram então os amigos: Porque te divorciaste tão cedo, se protestavas por ela um amor tão grande?
    - Ora meus amigos, só se ama a verdade quando não a conhecemos bem… É uma mulher tão caprichosa que demanda toda nossa energia, tão feia que retira todo nosso ânimo e tão tagarela que nos deixa constantemente atordoados e com dores de cabeça… Além disso é incrivelmente gastadeira e porcalhona, embora, a bem dela mesma, ajude com as despesas e no serviço doméstico… Enfim, uma lástima!
    De minha parte penso agora em desposar sua meia-irmã que, possuindo quase todos os seus dotes, não padece de seus graves defeitos… Quanto à verdade, minha ex-esposa, que volte a extorquir os sábios e ludibriar os orgulhosos, como sempre fez antes de enganar-me…”

    Saudações,
    Bruno

  10. eliane says:

    Saudações!

    http://www.puc-rio.br/centroloyola/pdf/16-catolicismo.pdf

    é mais uma sugestão de leitura, quem sabe você possa comentar depois.

    saudações,

    eliane

  11. Pallas,

    Sua crítica é perfeitamente válida e apropriada. Só que ela se aplica precisamento ao tipo de questionamento que pessoas de 13 anos fazem das instituições. Questionamento superficial e ainda confuso, e carregado de inexperiência. E do qual freqüentemente surgem crenças bem intencionadas mas delirantes na linha de “eu sei como consertar o mundo”. E olha que grande parte das pessoas não chegam nem sequer nesse estágio; atingem a velhice num estado intelectual ainda pré adolescente.

    Só que não é disso que estou falando. Não estou falando meramente do fato de que as instituições não funcionam, ou que estão carregadas de defeitos, ou que as pessoas não são perfeitas. Isso de fato pessoas com um mínimo de senso crítico percebem aos 13 anos e provavelmente bem antes. Estou falando de algo que é tão grotesco que é difícil de encarar de frente. Estou dizendo que o buraco é muito, muito, muito mais fundo do que a maioria das pessoas percebe. Os paradigmas nos quais as pessoas navegam sobre como a sociedade está estruturada são falsos. Isso precede um julgamento sobre certo e errado. A realidade simplesmente não está organizada nem funciona da forma que a vasta maioria da sociedade está disposta a acreditar. E não só não está como passa a uma longa distância. Eu estou falando algo mais fundamental do que “tal e qual instituição é ruim”. Estou dizendo que ela nem sequer é o que as pessoas pensam que seja, num grau imensamente maior do que as pessoas pensam ser possível. É mais do que “a luta para combater os fantasmas não está funcionando”. É no nível “não vai funcionar nunca porque fantasmas não existem”.

    Colocado isso, eu de fato não tenho qualquer simpatia pelas imperfeições das pessoas e das instituições. Um psicopata cheio de motivos lindos e comoventes continua sendo um psicopata. Existe um equilíbrio delicado entre não julgarmos fanaticamente os outros mas também não nos juntarmos à farsa e nos tornarmos cínicos ou apáticos. Nossa primeira e mais importante atitude tem que ser mudarmos a nós mesmos. Confortar-se na percepção de que também somos imperfeitos é muito pouco.

    Então, sobre sermos imperfeitos nos desautorizar a julgar os outros, eu nunca aceitei esse argumento como legítimo. É uma desculpa muito conveniente, diria eu até arrogante, dizer “bem, do alto da minha humildade eu não vou julgar os outros pelos mesmo padrões que eu exijo de mim mesmo”. Isso sim é se achar “acima” da farsa. A percepção da própria falibilidade deve sim nos levar à prudência, mas não à passividade ou inação. Senão ficaremos sentados assistindo as maiores barbaridades enquanto nos justificamos dizendo “bem, não posso falar nada porque também tenho erros a explicar”. Ou então cinicamente concluindo “bem, já que é tudo uma farsa vamos nos juntar a ela”.

    Adicionalmente, eu enfaticamente não acredito na impossibilidade de pessoas isoladas enxergarem mais longe do que a sociedade na qual estão inseridas. Pelo contrário, se isso fosse impossível nunca haveria progresso algum no conhecimento. Isso é freqüentemente mais a regra do que a exceção. Verdades perturbadoras e impopulares são muito mais facilmente percebidas e exploradas por pessoas isoladas do que por grandes grupos sociais.

    Saudações,
    Sergio

  12. Ricardo,

    Para não ficar ambíguo : eu de fato acredito na existência de uma realidade objetiva, de uma verdade única que independe das crenças ou da vontade de qualquer um de nós. A farsa está nas pessoas, não na realidade. Está no fato de que o que nossas sociedades “modernas” escolhem acreditar, ensinar e compartilhar como zeitgeist está tão delirantemente distanciado do que realmente é verdade que vivemos num mundo de fantasia, numa pantomima esquizofrênica que ultrapassa o surreal.

    Para mim, religião é uma peça muito importante desse quebra-cabeça. Para mim é cristalinamente evidente que todas as grandes religiões modernas são patentemente, transbordantemente, evidentemente falsas além de qualquer dúvida razoável. Elas nem sequer fazem sentido logicamente. E no entanto uma quantidade inconcebível de pessoas escolhem organizar suas vidas morais e sociais em torno disso. Mas o meu questionamento vai além disso. O que estou dizendo é mais do que “a igreja está errada”. Estou dizendo por exemplo que a igreja não é o que a maioria das pessoas acha que é, que por exemplo os dogmas católicos não são o que a maioria das pessoas (católicos e não católicos) acha que são, etc. É mais do que um erro, um engano; é uma farsa. Infelizmente não para na religião.

    Saudações,
    Sergio

  13. Cesar,

    O que eu quis dizer vai mais ou menos na direção que você falou no final sim; a gente fica indignado com as imperfeições das instituições e então começa a discutir capitalismo versus comunismo ou esquerda versus direita ou ateísmo versus catolicismo e etc mas no final das contas isso acaba não fazendo quase diferença alguma diante do fato de que as instituições são na prática tão boas quanto as pessoas que as implementam concretamente. Quando as pessoas “ruins” são algumas exceções ainda dá pra argumentar que a instituição permanece mais ou menos válida, mas se formos ser implacavelmente sinceros, isso não é o que ocorre em praticamente nenhum caso.

    Considere-se por exemplo a atual crise econômica americana. Defendem os liberais (no sentido Adam Smith do termo) que a economia deve ser deixada em paz porque o mercado se auto-regulará diante do fato de que decisões equivocadas de negócios levarão a falências, etc. Só que existem pessoas – seres humanos individuais – que lucram com tais falências, assim como com guerras ou com a miséria. Então não importa se a guerra não faz sentido economicamente, ela será travada de qualquer forma. Alguém que leia isto pode então achar que estou defendendo “oh, você então é a favor de sair regulando fortemente a economia?”. Bem, só até certo ponto, porque neste caso você está apenas transferindo a oportunidade de abuso de poder para outros. E estatisticamente, esse poder será abusado.

    Assim sendo, é preciso enxergar as instituições não pelo que elas deveriam ser ou pelo que elas pretendem ser, e sim pelo que elas são na prática. Eu acho fantástico que os católicos economicamente liberais argumentem (e eu concordo) ser absurdo que ainda hoja muitos tenham a audácia de defender o comunismo como sendo uma idéia linda apesar de todas as suas implementações práticas terem levado ao inferno na terra *mas* ao mesmo tempo dizerem coisas como “a Igreja é santa, as pessoas é que falham”. Ora bolas, a Igreja é composta de pessoas. É como dizer “Eu sou santo, minhas células é que conjuntamente decidiram cometer um crime contra a minha vontade.”

    Tentar reformar a sociedade numa direção melhor é um objetivo vão se tentarmos atingi-lo primordialmente mudando ou consertando “o sistema”. Se estivermos cercados de pessoas decentes, o “sistema” é uma mera decisão administrativa. Se não estivermos, nenhum “sistema” vai realmente funcionar. Isso é verdade tanto no nível macro quanto no pequeno microcosmos da sua comunidade, escola ou igreja. O problema mesmo está com as pessoas.

    Então somos defrontados com o seguinte dilema : precisamos reformar as pessoas, mas fazer isso à força é totalitário (note que isso só é um dilema se ser totalitário lhe desagrada). Para reformar as pessoas, podemos por exemplo punir pensamentos “desviantes” ou submeter seus filhos a educação obrigatória em escolas padronizadas. Só que ir nessa direção não é compatível com a noção de preservação da liberdade individual. Então aqueles que pregam a liberdade individual (como eu) existem problemas com este caminho. Infelizmente, para aqueles que não têm pruridos ou hesitação em fazer lavagem cerebral nos outros, a solução é precisamente na direção de bombardear a sociedade com maciças doses de propaganda para que as pessoas sejam condicionadas a pensar e agir de uma certa forma.

    Só que o resultado quase inevitável disso é criar uma noção de escravos pateticamente vulneráveis à exploração por aqueles (comunistas, capitalistas, budistas, positivistas, o que for) que estiverem no poder. Como isso não é feito através de argumentação, convencer as pessoas a fazerem o “certo” confunde-se a convencê-las a pensar e fazer qualquer coisa, mesmo que essa forma de pensar e agir seja irracional, falsa, viole completamente os interesses objetivos dessas pessoas, contradiga sua consciência ou cause o fim do mundo. Então quaisquer que fossem os lindos motivos originais para fazer assim (se é que havia algum), se perdem no fato de que forçar as pessoas a aceitarem crenças acriticamente, sejam quais forem tais crenças, danifica e desfigura seu senso crítico.

    Que é o que acaba ocorrendo na maior parte do mundo moderno, mesmo em sociedades relativamente “livres” como a americana. A quantidade de controle que a sociedade tem sobre a vida das pessoas é fenomenal, apenas as pessoas foram condicionadas a aceitar isso como normal e/ou necessário, a ponto de na maior parte das vezes nem sequer enxergarem. A totalidade das instituições é uma gigantesca farsa, o rei está completamente nu, mas as pessoas permanecem cegas à verdade por incapacidade de violarem o condicionamento socio-intelectual a que foram submetidas.

    Saudações,
    Sergio

  14. Bruno,

    Eu discordaria do “desenhados”, mas concordo com o espírito do que você está dizendo. Nós não evoluímos para atingir a plenitude espiritual ou por nenhum outro motivo superior ou inferior. Nós estamos aqui porque nossos antepassados conseguiram de alguma forma sobreviver e se reproduzir. Se conseguirmos nós também nos reproduzirmos, deixaremos algumas pessoas mais ou menos similares a nós, senão não deixaremos. Não existe propósito ou sentido no processo. Assim sendo, eu concordo que o que sabemos mesmo, a grosso modo, é pegar bananas e o nosso cérebro só existe porque quem tinha cérebro conseguia pegar mais bananas. Se toda a nossa alta espitirualidade e questionamento existenciais nos levarem a nos reproduzirmos mais eficientemente, tais traços serão reforçados. Senão não serão.

    Então sim, quando saímos da estrada o carro começa a tremer e freqüentemente capota e explode. Começamos a tentar justificar nossas necessidades instintivas como tendo algum significado maior e isso só dá em besteiras. Não há justificativa. Podemos usar nossa inteligência brilhantamente para pegarmos toneladas de bananas, mas se levarmos isso ao próximo nível lógico que é “peraí, por que é que eu estou coletando bananas para começar”, a resposta é que esse é um comportamento instintivo que maximiza as chances de você produza um coletor de bananas. Alguns abraçam isso ardentemente e falam “oba, então vamos lá pegar mais bananas”. Outros pensam “bolas, isso não faz qualquer sentido”. Esses últimos deixam menos filhos.

    Saudações,
    Sergio

  15. Oi Luiz,

    Concordo completamente com você. Meu temor é que talvez em termos objetivos a coletividade que anula a consciência seja mais eficaz, eficiente e inevitavelmente vencedora quando se trata de brigar pela sobrevivência física. Os valores que você enumerou se levados a sério levam um cidadão a ser massacrado pela sociedade em que vivemos.

    Saudações,
    Sergio

  16. Julio,

    O fato de não gostarmos das conclusões não as invalida… o problema com essas conclusões não é de lógica. Faz perfeito sentido sermos apenas macacos espertos, e me parece disparadamente o mais provável. Só não é agradável. Mas diante disso concluir “bem, então vou postular que magicamente há um sentido contra todas as evidências porque assim me sentirei melhor”, isso sim me parece ser tirar a lógica dos trilhos. Talvez viver na ilusão funcione melhor emocionalmente para grande parte das pessoas, mas não me parece que seja por a lógica ter entrado nos trilhos.

    Saudações,
    Sergio

  17. Bruno,

    A resposta para todas as perguntas da primeira parte do seu comentário, no meu entendimento, é : não existe nenhum motivo para fazer coisa alguma. Nem para buscar a verdade, nem para buscar bananas. Na verdade, me parece que só aprendemos a buscar a verdade um pouco melhor que um porco porque isso nos ajuda a catar mais bananas. E a matar o porco se ele resolver mexer nas nossas bananas. O que no fim das contas é novamente sobre as bananas e não sobre o porco. Mas mesmo isso não tem qualquer sentido ou objetivo. Somos assim apenas porque os que não eram morreram e não deixaram filhos.

    Agora, minha observação sobre tudo ser uma grande farsa não era exatamente sobre esse (outro) fato de que nada faz sentido. Era mais na direção de que vivemos imersos num universo de coisas em que todos combinam (ou são levados / forçados a) acreditar que são muito mais distantes da realidade do que a maioria absoluta das pessoas remotamente percebe.

    Sobre divorciar-me da verdade, por algum motivo, eu nunca o desejei. Não porque a verdade me torne mais feliz ou mais qualquer outra coisa, mas eu nunca enxerguei isso como uma opção muito atraente. A verdade é em geral uma droga, mas é o que é. Não deixa de ser o que é se tapamos os ouvidos, fechamos os olhos e começamos a gritar “LA LA LA LA”. No contexto da sua anedota, o que ocorre é que *todas* as esposas possíveis são em última análise de verdade, com todas as suas imperfeições. Podemos ou tentar escolher uma com a qual queiramos conviver apesar de todas as suas falhas, ou podemos fingir que estamos numa realidade alternativa na qual as coisas são como gostaríamos e ir em frente dizendo “LA LA LA”. A primeira opção me parece superior (inclusive em probabilidade de funcionar) à segunda, mas isso sou eu.

    Talvez uma parte da questão seja que as ilusões que funcionam para a maiora das pessoas eu vejo como tão evidentemente precárias e falsas a ponto de se tornarem bizarramente inacreditáveis. Pelo menos me apresentem algumas ilusões que prestem, pô! Fica difícil acreditar que estou comendo salmão quando tem gosto de isopor com areia.

    Saudações,
    Sergio

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