Educação Compulsória e Totalitarismo

December 6th, 2009 by Sergio de Biasi

Os homens nascem ignorantes, não incapazes de pensar. O que os torna incapazes de pensar é a educação.
Bertand Russell

Pedro escreveu recentemente um texto falando sobre o fetiche que existe com educação no Brasil (agora disponível aqui). Eu concordo plenamente com o que ele escreveu, e diria que este na verdade é um mal compartilhado pela maior parte das sociedades ocidentais modernas.  Aceita-se como natural, bom e até desejável a obrigatoriedade, repito, a obrigatoriedade coercitivamente imposta por lei, de todos os “cidadãos” de um país passarem grande parte de dez anos ou mais de suas vidas prestando expediente forçado para ouvir idéias selecionadas pelo governo como convenientes para sua “formação”.

E não apenas isso; não é suficiente (embora isso em si já seria opressivo) ser forçado a demonstrar proficiência no conhecimento de tais idéias, algo que poderia ser facilmente aferido com uma série de exames. E que cada um aprendesse como quisesse, onde quisesse, e com quem quisesse. E prestasse os exames com a idade que quisesse. Não, não, não. Quem se pergunta por que tal solução óbvia não é adotada evidentemente não compreendeu o verdadeiro objetivo do sistema todo. É preciso passar pelo processo. O primordial objetivo da educação compulsória não é ensinar coisa alguma. É destruir a independência de pensamento, é cultivar, instilar e estimular subserviência à autoridade até ela desabrochar em toda a sua glória, é tornar tão doloroso o exercício do senso crítico que se adquira por trauma o instinto quase fóbico de evitá-lo a todo custo. Quando finalmente se consegue atingir esses objetivos, então se dá um diploma ao sujeito e se diz “formamos um cidadão”.

O sistema educacional público americano moderno é uma completa aberração e emprestou várias de suas características de um plano declarado de doutrinação e controle social em massa concebido originalmente na Prússia do século 19. O excelente The War On Kids documenta como atualmente existe formalmente e na prática menos respeito às liberdades civis numa escola pública do que numa prisão.

O sistema brasileiro pode não ser tão grotescamente opressivo, mas é igualmente delirante. Ele é usado para tudo menos para ensinar. Ele é encarado como instrumento de assistência social, como creche, até mesmo como ferramenta de segurança pública ao deixar menores desocupados fora das ruas. Historicamente, no Brasil e em grande parte das outras democracias ocidentais (inclusive nos EUA), um dos maiores objetivos que se pretende declaradamente atingir ao se expandir o currículo obrigatório básico é… retirar artificialmente mão de obra qualificada para fora do mercado de trabalho visando diminuir o desemprego e aumentar os salários! Note-se, isso não são “denúncias” ou teorias conspiratórias. Todos esses motivos são explicitamente discutidos por legisladores e membros do poder executivo ao determinarem política educacional.

Ora, isso já seria inaceitável num sistema de educação que visasse preservar tão somente o “direito” à educação, a possibilidade de acesso à educação. Já seria intolerável num programa cujo financiamento é compulsoriamente sustentando por todos nós, e sobre o qual não temos qualquer controle. Mas a barreira final é ultrapassada quando se aceita bizarramente tornar tal “direito” à educação um que deve ser “exercido” de forma compulsória. Isso é totalitarismo puro e simples, e me parece que deveria ser uma das prioridades de qualquer programa seriamente libertário lutar pela total reversão das políticas públicas que literalmente prevêem o encarceramento de toda a nossa juventude por mais de 10 anos de suas vidas.

Agora, vejamos, quais são as ilusões mesmo assim cultivadas por aqueles que defendem que algum mérito efetivamente educacional se possa salvar de toda essa farsa?

A principal ilusão é de que alguém esteja aprendendo alguma coisa. Mas como se pode verificar conversando com qualquer adulto normal, absolutamente ninguém retém os profundos “conhecimentos” que supostamente são terapeuticamente infundidos nos seus cérebros quando adolescentes. Pergunte a alguém que não seguiu carreira relacionada com química qual a diferença entre um éter e um éster e a resposta provavelmente será um bocejo ou um soco na cara. Pergunte a alguém que não seguiu carreira relacionada com línguas em que século viveu Machado de Assis. Aliás, experimente tentar fazer alguém escolhido no meio da rua confessar em que circunstâncias ocorre crase em português. Com enorme probabilidade a vítima não conseguirá fazê-lo para salvar a própria vida. O sistema educacional é uma falha escandalosamente absoluta. Mas é muito mais grave do que uma monumental perda de tempo para todos os envolvidos, como se isso já não fosse suficientemente sério. É um estrupro mental e moral, e deliberado. Educação compulsória não tem absolutamente nada a ver com ensinar coisa alguma. Educação compulsória na escala e nos moldes atualmente aceitos é nada menos que escravização em massa.

Outro objetivo pretensamente atingido é o de produzir magicamente uma elite intelectual sob demanda. Só que educação não é mágica. Nem todos têm vocação ou competência para serem elite intelectual. E embora possa haver mérito em buscar não desperdiçar a competência daqueles que de fato a têm, não é possível produzi-la artificialmente. Se perguntarmos a um atleta olímpico como ele conseguiu uma medalha de ouro, ele provavelmente responderá que treinou arduamente horas por dia durante muitos anos. Não segue daí que se forçarmos todo mundo a treinar arduamente por anos transformaremos todos em atletas olímpicos. Talvez até revelemos acidentalmente alguns mais, ao enorme custo de produzir uma massa de pessoas desfuncionais que não conseguem entender por que não conseguem correr 100 metros em 10 segundos. É impossivel produzir cientistas em massa usando educação forçada. (Aliás, também é impossivel fazê-lo subornando pessoas aleatórias. No máximo produziremos pessoas que ficarão bastante felizes em serem pagas para encenarem uma farsa.)

Quando Richard Feynman, físico americano ganhador do prêmio nobel, foi convidado a fazer um discurso de despedida após visitar a UFRJ durante alguns meses, ele (causando considerável consternação) declarou que infelizmente o ambiente que ele observara tinha sido universalmente o de pessoas profundamente imbuídas da convicção de que a academia consistia em seguir certos procedimentos e protocolos ao invés de produzir certos resultados. Que havia salas de aula, havia professores, havia alunos, havia cursos, havia seminários, havia títulos, havia publicações. Só não havia mesmo era produção de conhecimento. Que todos pareciam estar participando de um grande ritual coletivo de imitar o que universidades de verdade faziam mas sem entender direito o propósito de tais ações, quais os motivos para elas, e quais resultados elas deveriam produzir. Que era como ver um aparelho de rádio, ficar maravilhado com ele, e então buscar imitá-lo construindo uma réplica de isopor pintado e então não entender por que ele não funciona. Isso foi há décadas. Até hoje, o Brasil, uma das maiores potências econômicas do planeta, não consegue ter sequer UMA de suas universidades na lista das melhores DUZENTAS do mundo! Com toda a sua pompa e circunstância, o Brasil permanece essencialmente um zero à esquerda academicamente falando. Que perca para a França ou a Suíça, vá lá. Mas a Índia, a China, a Coréia do Sul têm universidades entre as primeiras cinqüenta! Eles conseguiram produzir o que nós não conseguimos. Talvez ser efetivamente (ao invés de imaginariamente) colonizado pela Inglaterra ou pelos EUA seja bom no final das contas. Nesse ritmo o Iraque terá uma universidade figurando entre as melhores duzentas do mundo antes do Brasil.

Mais um objetivo pretensamente atingido com educação compulsória é “elevar o nível cultural” do cidadão médio, o que na concepção dos burocratas a cargo do assunto se materializa na proposta esquizofrenicamente alucinada de torná-lo enciclopedicamente competente em assuntos que vão desde dinastias do Egito antigo até calcular determinantes de matrizes, mesmo que seu eventual objetivo na vida seja ser caixa de supermercado. Mesmo quando se torna clara a falha do objetivo de produzir pessoas efetivamente cultas, alguns ainda insistem na idéia de que pelo menos se conseguirá despertar algum tipo de apreciação pela cultura. Apreciação pela cultura? Por favor. Isso é comicamente fadado a um retumbante fracasso, e aliás ainda bem, porque a caricatura padronizada (e muitas vezes factualmente errada) que é forçada goela abaixo dos “alunos” na esperança doentia de produzir um saboroso patê em seus fígados tumorosamente gordos é tudo o que “cultura” não é. O que de fato se produz é confusão, na maior parte dos casos seguida de absoluto desprezo pela verdadeira sofisticação cultural, quase universalmente como resultado desse processo percebida como mera competência na repetição autista de fórmulas sem sentido completamente desconectadas da realidade. Que é o que geralmente se exige e premia nos alunos de uma escola. E infelizmente vezes demais em níveis mais altos de educação. Mesmo quando os assuntos abordados incidentalmente coincidem com as inclinações naturais de algum aluno, eles são explorados de forma arbitrária, caótica e fragmentada, sem qualquer liberdade para exploração independente, e sob um regime de força que destruiria o mais espontâneo dos interesses. É como imaginar que para “despertar” o interesse das pessoas por sexo uma boa estratégia seria coagi-las sob ameaças a transar com pessoas que elas não escolheram enquanto você assiste e então dar notas para sua performance. E depois reclamar das que não tiveram boas notas que não se “empenharam” o suficiente.

Ainda mais um objetivo pretensamente atingido como parte de um plano acadêmico que começa com educação compulsória é catapultar o país para indústrias e mercados de alta tecnologia. Ao invés disso o que produzimos no final de um longo processo são pessoas com doutorado fazendo concurso para gari.  Ora, o (pequeno) mercado para pessoas com doutorado no Brasil é completamente fabricado. Ele se resume à atividade essencialmente subsidiada pelo governo de… produzir mais pessoas com doutorado. Note-se, eu digo isso com a infinita tristeza de quem vê imenso valor na pesquisa básica, e de quem acredita que não se deve deixar o talento de pessoas genuinamente competentes para fazer um doutorado ser desperdiçado. Mas a forma de não desperdiçá-lo não é forçá-las por anos a subempregos e rituais arcanos até se concluir que sofreram o suficiente para ganhar uma licença para submeterem outras vítimas ao mesmo processo. O problema real não é não haver um número suficiente de pessoas com doutorado. Isso talvez fosse o problema se houvesse uma demanda insatisfeta, uma variedade de posições clamando por pessoas com doutorado, posições que só alguém com um doutorado estaria capacitado a ocupar, como projetar microprocessadores de última geração ou desenvolver novos antibióticos, e não houvesse pessoas em número suficiente para ocupá-las.  Mas se fosse esse o problema, a solução simultaneamente simples e benéfica para o país seria a mesma que os Estados Unidos adotam – recrutar as pessoas capazes onde quer que estejam no mundo e trazê-las para ocupar tais posições. Isso não ocorre porque tais posições não realmente existem no Brasil e então formamos doutores incompreensivelmente esperando que por eles existirem automaticamente se porão a gerar alta tecnologia trabalhando para empresas inexistentes. Se queremos empresas de alta tecnologia precisamos primeiro e antes de mais nada parar de atrapalhar, que é geralmente a primeira e mais importante providência que um governo pode tomar. Ao invés disso tornamos algo em princípio tão logisticamente simples como abrir uma sorveteria um inferno burocrático e crivado de encargos suficientes para fazer qualquer um pensar trezentas vezes antes de correr o risco.

E ao gerar doutores varrendo a rua, essa política faz pior do que desperdiçar recursos; ele desvirtua o próprio sistema acadêmico. Uma superoferta de doutores causa uma mistura de superprodução de publicações inúteis com subempregos dentro da própria academia. E isso tudo acaba por distorcer perversamente também o entendimento da academia pelo resto da sociedade. A noção de “democratização” da educação através da educação compulsória é uma das maiores causas da destruição da percepção da atividade acadêmica como algo desafiante, nobre e meritório no imaginário comum. Historicamente grandes cientistas e grandes sábios sempre ocuparam um lugar de honra em todas as sociedades. Mais amplamente do que isso, quando alguém realiza algo percebido como difícil e que exija uma enorme convergência de competência e esforço, nossa tendência natural é admiração e respeito. Sentimos isso por atletas olímpicos, sentimos isso por grandes artistas. Sentimos isso por quem salva uma criança de um incêndio. Ser cientista porém é no imaginário popular algo cada vez mais alienígena e cada vez menos despertador de admiração. Pelo contrário, existe (em particular no Brasil) o sentimento de que quem segue esta carreira não foi competente o suficiente para conseguir um emprego de verdade. Talvez porque grande parte do tempo, pelo menos no Brasil, o emprego não seja mesmo de verdade. O real emprego é participar de uma farsa na qual se dança em torno da fogueira fazendo rituais bizantinos na tentativa de que sejam suficientemente do agrado dos burocratas de plantão para que nos agraciem magicamente com mais verbas. E a esperança dos burocratas de plantão é de que os rituais bizantinos que escolhem financiar agradem suficientemente os deuses da prosperidade científica para que nos tornemos magicamente uma grande potência tecnológica.

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Existe ainda um ponto adicional que quero levantar sobre o ensino básico compulsório.

Não raro quando desesperados diante das evidências da completa falha do sistema de educação compulsória em ter qualquer mérito acadêmico, seus defensores começam então a apelar para dizer que mesmo que o benefício acadêmico seja nulo ou mesmo negativo, existem outros motivos para mantê-lo que não seja mera e aberta doutrinação. E então vem outro dos grandes truísmos sobre educação compulsória. Que ela é importante, não, essencial para o processo de SOCIALIZAÇÃO dos seres humanos em formação. Socialização. Ora, se há um contexto mais artificialmente inadequado à socialização do que a escola, eu desconheço. Trata-se de um ambiente no qual você é na maior parte do tempo proibido e punido por tentar se socializar, ou mesmo por dizer abertamente o que pensa, onde mesmo nos momentos em que a socialização é permitida ela é altamente regulada, no qual você não escolhe livremente com quem você está se socializando, ou quando, ou como, e aliás no qual a estratégia de socialização a você imposta é tão antinatural quanto “Você vai encontrar todo dia às 7 da manhã APENAS com as mesmas dúzias de pessoas precisamente da mesma idade para sentar em silêncio enquanto é forçado a ouvir longos monólogos sobre assuntos que não escolheu. No meio do expediente talvez tenha 30 minutos para falar com quem quiser, mas se tentar beijar alguém, ou discutir com alguém, ou mesmo ir até a esquina tomar um sorvete com alguém, será imediatamente impedido.” Não, não, não. Como experiência socializante, a escola é profundamente quebrada. Conviver somente com sua família seria provavelmente superior, embora MUITO dificilmente essa seria a escolha da esmagadora maioria das pessoas, que ao invés disso preferiria dez mil vezes ir à sua praça, ou clube, ou praia, ou parque, ou igreja e fazer amigos ou perseguir outros interesses pessoais. Inclusive descobrir seu próprio ponto de equilíbrio saudável entre socialização e introspecção, que é algo muito particular e pessoal, não parece muito favorecido por experiências cotidianas forçadas de socialização compulsória.

Claro, para que essa atividade de socialização extra-escolar fosse possível, talvez se fizesse necessária a supervisão de adultos. Mas se é essa a função que os “professores” estão cumprindo, então que seja, e que se deixem as crianças em paz,  e livres para interagir. Se as escolas existem para socializar as crianças, então abandonemos todo esse sistema fascista que impede a socialização e concentremo-nos em construir um ambiente no qual as crianças sejam deixadas livres para explorar de forma suficientemente segura suas possibilidades sociais. E intelectuais. E culturais. E empresariais.

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52 Responses to “Educação Compulsória e Totalitarismo”

  1. Bruno says:

    Excelente texto. Faltou apenas mencionar a já comum ocorrência do “bullying” nas escolas, quando foi mencionada a falácia da “socialização”.
    Como socializar-se num ambiente no qual aqueles com os murros mais potentes é que mandam!

    • Oi Bruno,

      Sim, com certeza. Sendo que o bullying muito não ocorre apenas da parte de colegas; ocorre da parte de professores, inspetores e toda uma série de outras pessoas às quais o sistema dá a autoridade de violar praticamente todos os direitos civis que entendemos como fundamentais para um adulto.

      Em todos os aspectos possíveis a escola é muito mais um instrumento de ANTI-socialização, no sentido em que em quase todas as oportunidades possíveis REPRIME a tendência fortíssima e natural dos seres humanos de se socializarem. Ela faz exatamente o oposto de socializar as crianças – ela as priva tanto quanto consegue de se socializarem de forma natural e espontânea e as submete a todo tipo de abuso, condicionando-as a uma organização social artificial e opressiva durante todo o processo de formação de suas personalidades.

      O mais perverso é que isso não é simplesmente um efeito colateral. Acostumar as pessoas a prestarem expediente, receberem ordens de capatazes, realizarem tarefas repetitivas que não compreendem, a ficarem trancadas em prédios o dia inteiro… tudo isso é altamente antinatural e precisa ser cultivado e construído. Isso é parte dos objetivos com que a educação compulsória foi instituída, não um defeito ou detalhe. Isso foi explicitamente discutido pelas elites durante a revolução industrial, quando o sistema de obrigação compulsória estava sendo criado. Trata-se de uma grande experiência de lavagem cerebral na qual mais ainda do que subserviência à autoridade, mais ainda do que dogma ideológico, mais ainda do que tudo isso as pessoas são adestradas a introjetar a idéia de que estar infeliz o tempo todo é normal e razoável e a resistência é fútil. E grande parte das pessoas acaba de fato acreditando. Carimba-se então “diplomado” na testa do sujeito e solta-se ele no mundo. Que lindo rebanho de ovelhas temos então.

      Saudações,
      Sergio

    • Xexeo says:

      Isso é socialização. Ou não tem bullying na vida?

      • Oi Xexeo,

        Claro, tem. Esse ponto que você levante de fato é importante e eu não toquei por falta de espaço e porque ninguém mencionou. Mas claro, existe não só bullying como também burocracia, a arbitrariedade, e prazos impossíveis de cumprir, e tudo o mais. Na quase totalidade das carreiras profissionais reais, dentro e fora da academia, teremos que enfrentar isso. E na nossa vida pessoal também. Então alguns argumentam que seria conveniente expor crianças a isso como parte do processo de aprenderem a lidar com conflito, etc. Que se a escola é pra preparar a criança para a vida, tem que conter esses elementos. Muitos vão ainda mais longe : que ser submetido a um sistema de regras arbitrárias fortalece o caráter e ajuda a cultivar disciplina e auto-controle.

        Embora exista alguma lógica nesse argumento, eu não acho que haja mérito, e eu não concordo com ele. Da mesma forma que há bullies na vida, há também dor, e doença, e decepção, e sofrimento. Não acho diante disso seja uma boa idéia deliberadamente provocar essas situações para “preparar” a criança para enfrentá-las. Não acho que seja uma boa idéia amarrar uma criança numa cadeira e enfiar farpas debaixo de sua unha ou dar nela choques elétricos para ela aprender a lidar com dor. Nem submetê-la a tortura psicológica deliberada para que ela aprenda a lidar com frustração. Nem decretar que quem chegar 5 minutos atrasados na aula estará suspenso para ensinar “disciplina”.

        Eu acho que tudo isso, além de cruel, ensina apenas o respeito cego pela autoridade, e destrói o senso crítico e a capacidade de tomar decisões sozinho, que são provavelmente duas das habilidade mais preciosas que podemos esperar desenvolver num ser humano, dentro ou fora do sistema acadêmico. Além de subverter completamente a escala de prioridades do que realmente importa.

        Mas possivelmente além de tudo isso o resultado mais profundamente perverso seja promover a introjeção de um discurso de passividade e a resignação diante das coisas erradas. Os bullies, os abusos de autoridade, as leis arbitrárias, eles não deveriam existir. Claro, eles existem, e temos que lidar com eles de algum jeito, mas quando somos submetidos a um ambiente que sistematicamente não só os tolera como encontra uma ideologia para justificar que ser exposto a eles é positivo, o que as crianças freqüentemente concluem disso é que é assim mesmo e não adianta reclamar, e levam essa atitude para suas vidas, e esse é provavelmente disparadamente o maior desserviço que podemos lhes prestar.

        Mas voltando especificamente ao bullying, sim, é claro, é socializacão, assim como ir para a prisão também é uma intensa experiência de socialização, e digo isso sem querer ser sarcástico, apenas para apontar que por ser uma experiência de socialização não é por isso automaticamente positiva ou desejável.

        Se o objetivo é ensinar a administração de conflito e negociação de poder, existem para isso formas muito menos cruéis e bem mais pedagógicas, como esportes ou jogos. Não acho que forçar uma criança a conviver com alguém que repetidamente a maltrata na vida real ao invés de num contexto lúdico seja um bom método educacional.

        Agora, note-se que uma boa parte do tempo a escola não permite a socialização nem sequer com bullies; o sistema todo é estruturado de forma que em quase todas as circunstâncias você é *punido* se tenta se socializar.

        Enfim, eu até concordo que é saudável e desejável socializar as crianças, mas a escola obrigatória nos moldes modernamente usuais cumpre essa função de uma forma que considero extremamente deficiente e perversa.

        Saudações,
        Sergio

  2. Jonas says:

    “Talvez até revelemos acidentalmente alguns mais, ao enorme custo de produzir uma massa de pessoas desfuncionais que não conseguem entender por que não conseguem correr 100 metros em 10 segundos.”
    OK, nem todo mundo pode ser elite intelectual, mas não é isso que se exige dos estudantes. Aliás, não se exige isso nem da “elite intelectual”. Só se exige que os alunos aprendam alguns conceitos e internalizem alguns procedimentos intelectuais. Não estão sendo treinados para os 100 metros, estão apenas sendo ensinados a caminhar, dar umas voltinhas pela pista. Se há uma coisa da qual o sistema brasileiro não pode ser acusado é de que querer transformar “caixas” em “cientistas”, ele mal consegue formar “caixas”. Tudo que se pede aos alunos é que fiquem quietos algumas poucas horas (o dia letivo brasileiro é menor que o americano, por exemplo) e aprendam alguns poucos conceitos. Durante o resto dia, eles estão por sua própria conta.
    “Aliás, experimente tentar fazer alguém escolhido no meio da rua confessar em que circunstâncias ocorre crase em português.”
    Mas são grandes também as possibilidades do escolhido na rua ter dengue, malária, esquistossomose ou vir a levar uma bala perdida. Por essa lógica, deveríamos fechar hospitais, delegacias e todas as outras instituições que não cumprem a contento suas funções oficiais, começando pelo Congresso. O Brasil teria que fechar as portas. Sem falar que não posso deixar de notar que você provavelmente sabe as respostas das perguntas sobre a crase e sobre Machado, talvez até saiba a resposta da pergunta sobre ésteres e éteres. Será que a escola não teve nada a ver com isso? Não podemos nos esquecer que a educação compulsória é uma conquista da democracia, permitindo que as pessoas possam melhorar de vida e construir uma sociedade mais justa e democrática.

    • Só se exige que os alunos aprendam alguns conceitos e internalizem alguns procedimentos intelectuais. (…) Se há uma coisa da qual o sistema brasileiro não pode ser acusado é de que querer transformar “caixas” em “cientistas”.

      Ah, não? Examine então o currículo de primeiro e segundo grau das escolas brasileiras. Verifique o que cai no Enem. Compare com o que uma pessoa normal efetivamente sabe. Aliás, compare com o que um professor de escola está efetivamente qualificado para discutir criticamente. Chore.

      Seleção (restrita!) de exemplos de assuntos sobre os quais se espera (alguém realmente espera isso?) que o Zé das Couves esteja preparado para discursar (retirados do programa oficial) :

      – Relações entre a dialética cosmopolitismo / localismo e a produção literária nacional
      – Organizaçao da macroestrutura semântica e a articulação entre idéias e proposições
      – Os recursos lingüísticos e os gêneros digitais
      – Variância
      – Energia potencial gravitacional
      – Leis de Kepler
      – Efeito Joule
      – Teoria cinética dos gases
      – Aspectos qualitativos das propriedades coligativas das soluções
      – Entalpia
      – Equações termoquímicas
      – Lei de Hess
      – Potenciais padrão de redução
      – Transformações nucleares
      – Produto iônico da água
      – Aplicação da velocidade e do equilíbrio químico no cotidiano
      – Estrutura e propriedades dos hidrocarbonetos
      – Aspectos bioquímicos das estruturas celulares
      – Aspectos gerais do metabolismo celular
      – Metabolismo energético : fotossíntese e respiração
      – Aspectos genéticos da formação e manutenção da diversidade biológica
      – Ciclos biogeoquímicos
      – Fluxo de energia em ecossistemas
      – Noções sobre células tronco, clonagem e tecnologia do DNA recombinante
      – O desenvolvimento do pensamento liberal na sociedade capitalista e seus críticos nos séculos 19 e 20.
      – Os sistemas totalitários na Europa do século 20 : nazi-fascista, franquismo, salazarismo e stalinismo. Ditaduras políticas na América Latina : Estado Novo no Brasil e ditaduras na América.
      – A globalização e as novas tecnologias de telecomunicação e suas conseqüências econômicas, políticas e sociais.
      – As questões ambientais comtemporâneas : mudança climática, ilhas de calor, efeito estufa, chuva ácida, a destruição da camada de ozônio. A nova ordem ambiental internacional; políticas territoriais ambientais; uso e conservação dos recursos naturais, unidades de conservação, corredores ecológicos, zoneamento ecológico e econômico.

      A única forma possivel que o Zé das Couves vai falar sobre essas coisas é sem entender absolutamente nada do que está dizendo. Para então ficar feliz de nunca mais ter que pensar no assunto. Forçar pessoas a fazerem isso é um estupro intelectual. Levar algumas delas a acreditarem que se não estão entendendo nada é por falta de esforço ou burrice é um estupro emocional.

      Mas são grandes também as possibilidades do escolhido na rua ter dengue, malária, esquistossomose ou vir a levar uma bala perdida. Por essa lógica, deveríamos fechar hospitais, delegacias e todas as outras instituições que não cumprem a contento suas funções oficiais, começando pelo Congresso.

      Só que não são não. A maioria das pessoas não tem dengue, ou malária, ou esquistossomose, nem foi ou vai ser atingida por uma bala perdida. A quase totalidade das pessoas por outro lado evidentemente não sabe nada de 99% dos conteúdos alucinados e delirantes que são bizarramente incluídos no currículo escolar obrigatório. Então nem sequer a desculpa de “mas pelo menos funciona” existe. Talvez a escola até meio que consiga elevar uma boa fração de suas vítimas de analfabetos totais a analfabetos funcionais, de forma que conseguem por exemplo ler um endereço e saber que estão na rua certa. Mas a maior parte das pessoas nem sequer consegue ler as legendas de um filme antes de elas sumirem da tela. E vamos pedir a elas para discutirem fusão nuclear? Por favor.

      Sem falar que não posso deixar de notar que você provavelmente sabe as respostas das perguntas sobre a crase e sobre Machado, talvez até saiba a resposta da pergunta sobre ésteres e éteres. Será que a escola não teve nada a ver com isso?

      Absolutamente nada a ver no caso da crase. Eu já estava cansado de saber isso quando tentaram me “ensinar”. E não me parece que ninguém à minha volta que já não soubesse tenha entendido. Quanto aos ésteres e éteres, eu não me lembro mais a diferença e isso não faz absolutamente falta alguma. Pelo contrário, a escola sempre furtou com exercícios inúteis de delírio curricular do tempo que eu gostaria de gastar para investigar mais profundamente os assuntos que realmente me interessavam. Eu queria ler sobre teoria da relatividade e ao invés disso tinha que ficar idioticamente calculando quantos gramas de ácido sulfúrico existem em um litro de água com PH igual a 2. Eu queria ler com calma peças de Shakespeare do começo ao fim e ao invés disso tinha que ficar escrevendo resumos de livros brasileiros esquerdosos pseudo-socialmente-relevantes que eu não queria ler, não tinha gostado de ler, e certamente não tinha qualquer interesse em analisar. Então não, não e não. A escola só me atrapalhou.

      Não podemos nos esquecer que a educação compulsória é uma conquista da democracia, permitindo que as pessoas possam melhorar de vida e construir uma sociedade mais justa e democrática.

      “Não podemos nos esquecer”? Espero que possamos. Esse é precisamente o truísmo que eu estou argumentando que deve ser demolido a marretadas. A educação compulsória nos moldes atuais não faz absolutamente nada disso. Ela produz analfabetos funcionais portadores de diploma. E o problema mesmo não está com detalhes de implementação, e sim com a idéia básica de que acorrentar alguém por 10 anos numa cadeira e submetê-lo a horas diárias de lavagem cerebral e abuso psicológico seja um procedimento moral, util, razoável, ou de qualquer forma justificável.

  3. Muito bom, Sergio.

    MEC – Máfia do Endoutrinamento Compulsório.

  4. Ana Beatriz says:

    Fiquei meio curiosa. O que você propõe? Que não haja nenhum tipo de educação compulsória? Concordo com o fato de o currículo ser absurdamente exigente e sempre achei imposível (e indesejável) que todas as pessoas se tornassem intelectuais, afinal de contas temos aptidões diferentes e todas as profissões são necessárias ao bom funcionamento da sociedade.
    Também acho que muitas pessoas poderiam começar a trabalhar mais cedo. O irmão da minha empregada, por exemplo, tem 15 anos, detesta estudar, mas é super disposto e está trabalhando em construção. Agora, os próprios empregadores dele fazem muita pressão para que ele acabe o segundo grau, não entendo bem porque.
    Mas não deveria haver um currículo mínimo, como ler escrever e fazer as quatro operações?
    Também fico imaginando como ficaria a cidade, cheia de crianças no meio da rua…
    Ana Beatriz

    • Oi Ana,

      Fiquei meio curiosa. O que você propõe? Que não haja nenhum tipo de educação compulsória?

      Ok, ótima pergunta. O que fazer? Para começar, e antes de mais nada, eliminar quase a totalidade da educação compulsória. Essa história de que educação compulsória é uma “conquista” e essencial para a democracia e coisa e tal é como dizer que voto obrigatório é uma “conquista” e essencial para a democracia bla bla bla. Os Estados Unidos nunca tiveram voto obrigatório e são uma democracia no mínimo tanto quanto o Brasil (que qualquer um dos dois seja realmente uma democracia é discutível, mas não foi o voto obrigatorio que fez falta ou que resolveu qualquer coisa). Impor a educação compulsória na escala e os moldes em que isso é feito é além de todas as possibilidades de justificativa. Então ponto número 1, acabar com a quase totalidade da educação compulsória.

      Feito isso, eu pessoalmente acho que investir em educação é uma das poucas “liberdades” civis nas quais faz sentido investir afirmativamente. Mas não tornando compulsório EXERCER essa liberdade. O que se precisa fazer é buscar garantir a possibilidade acesso voluntário à educação para quem a quiser. Assim como pode ser um projeto meritório buscar informar as pessoas sobre como votar e ajudá-las a votar se quiserem. Mas novamente, não tornando compulsório. Tornar compulsório é inverter tudo e buscar combater a fome proibindo não comer e tornando obrigatório três refeições ao dia.

      Mas como tornar possível o acesso universal à educação não compulsória? Bem, como eu disse, eu até aceito que o governo use impostos para financiar educação. MAS, e isso é crucial, não primordialmente como administrador de escolas e de currículos, e sim como financiador, dando bolsas, empréstimos e assim por diante. Um dos possíveis sistemas é o descrito aqui.

      Agora, pode-se argumentar que existe um mínimo de educação – como saber ler – abaixo do qual indiscutivelmente produziremos pessoas aleijadas. Então esse currículo ABSOLUTAMENTE MÍNIMO para uma pessoa não ser um bicho talvez possa ser “compulsório”. Mas compulsório NÃO no sentido de forçar todas as pessoas indiscriminadamente a freqüentarem a escola por 10 anos, e sim a demonstrarem que desenvolveram apropriadamente tais e quais habilidades absolutamente básicas, que certamente não envolvem responder perguntas sobre fusão nuclear. Da mesma forma que se faz um exame de vista para tirar uma carteira de motorista. Nada de aulas forçadas, ou horas e horas de servidão. Faz-se um teste obrigatório e pronto. Com, sei lá, 6 anos de idades as crianças têm de fazer um exame e demonstrarem que conseguem ler um texto simples e fazer umas contas básicas por exemplo. Se não forem capazes, aí podemos pensar em educação básica compulsória para essas pessoas até elas passarem no teste. E com o professor, tutor ou instituição de sua preferência. E somente para desenvolver essas habilidades limitadas. Quem quiser aprender mais que isso se matricule voluntariamente numa escola de sua escolha. Note que isso é infinitamente mais brando que o sistema atual.

      Concordo com o fato de o currículo ser absurdamente exigente e sempre achei imposível (e indesejável) que todas as pessoas se tornassem intelectuais, afinal de contas temos aptidões diferentes e todas as profissões são necessárias ao bom funcionamento da sociedade.

      É totalmente absurdo esperar que todas as pessoas se tornem intelectuais. É bizarro forçar um ser humano médio a responder perguntas sobre a estrutura dos hidrocarbonetos.

      Também acho que muitas pessoas poderiam começar a trabalhar mais cedo.

      Concordo. O maior problema (complexo) que vejo é garantir que a escolha de trabalhar seja suficientemente voluntária e não uma imposição da família.

      Mas não deveria haver um currículo mínimo, como ler escrever e fazer as quatro operações?

      Tendo a concordar que sim. Mas não essa aberração que está aí. Teria que ser muito pouco, quase nada mesmo. E seja qual o tamanho do currículo, deveria sempre ser o caso de ser possível fazer uma série de testes, passar, e não ser mais forçado a fazer coisa alguma.

      Também fico imaginando como ficaria a cidade, cheia de crianças no meio da rua…

      Para começar as crianças estariam aprendendo infinitamente mais do que na escola. :-)

      O investimento tem que ser em bibliotecas, em creches, em programas de financiamento de bolsas na educação privada. Em dar às pessoas as ferramentas para aprenderem.

      Mesmo mantendo o arcabouço do sistema atual, se pegássemos as escolas públicas como são e acabássemos *completamente* com as aulas obrigatórias, transformássemos os professores em supervisores que explicariam aos alunos os assuntos sobre os quais fossem perguntados e deixássemos boas bibliotecas com muitos livros e com computadores com acesso à internet disponíveis para as crianças, isso em si mesmo já seria um programa educacional INFINITAMENTE superior e geraria uma quantidade de pessoas MUITO mais culta, bem-preparada e psicologicamente equilibrada. E quem quisesse passar o dia conversando com amigos e jogando futebol e brincando, ótimo. Geraria exatamente o mesmo resultado acadêmico que o sistema atual e pessoas muito mais felizes.

      Saudações,
      Sergio

      • Natalia says:

        Sergio (e Ana),

        eu li a conversa de vocês e fiquei intrigada com a questão do “currículo mínimo”.

        Sergio, por que deveria haver um exame obrigatório para crianças de seis anos? E por que deveria haver educação compulsória para as crianças que não passam?

        A pergunta é sincera, pois eu não consigo entender essa opinião. Fiquei tentando imaginar motivos. Um dos motivos talvez fosse: para garantir que essa pessoa vai ter habilidades mínimas requeridas para qualquer trabalho que se possa imaginar. Esse argumento não me convenceria; aferir essas competências deve ser responsabilidade do empregador, e além disso é completamente possível que alguns trabalhos não requeiram nem essa educação mínima. Então, não vejo justificativa para obrigar ninguém a nada.

        Outro possível motivo: para evitar que essa população analfabeta e … — hm, não tem uma palavra em português para “innumerate” :) — se deteriore em uma população criminosa. Esse argumento também não me impressiona nem um pouco (e acho que nem a você). Pra começar, cometer crimes já é proibido.

        O argumento mais provável que consigo imaginar vai na direção de proteger essas pessoas de si mesmas, no sentido de capacitá-las minimamente para não serem escravizadas em seus empregos, ou não ficarem pegando todas as doenças do mundo, ou, sei lá, conseguirem ler placas de trânsito. Eu não acho que isso seja papel do Estado, mas não vou nem entrar nesse mérito. Mesmo que fosse, esse currículo mínimo não seria suficiente pra evitar nenhuma dessas coisas. (Bem, talvez sobre as placas de trânsito, que são o menos importante. Mas quem precisa mesmo ler placas de trânsito faz exame de motorista, e quem é analfabeto provavelmente aprende a reconhecer as placas relevantes iconicamente, sem decifrar as palavras.) Além disso, se a opressão for real, ela deverá ser combatida diretamente: se não se permite trabalho escravo, então que se fiscalize o trabalho escravo.

        Então quais são os argumentos para a necessidade de um currículo mínimo? Não é que eu não sinta desconforto (fortíssimo, aliás) com a ideia de que alguém não saiba ler ou somar dois números, mas acho que podemos concordar que esse desconforto somente não legitima coerção.

        • Oi Natália,

          Bem, por mais que coisas como currículo mínimo obrigatório e etc em princípio me horrorizem, para tudo tem limites. Consideremos, por exemplo, matar pessoas. Eu princípio sou contra, quem matar pessoas deve ser preso mesmo, etc. Mas daí não decorre que eu ache que matar deva ser proibido / ilegal / punido em absolutamente TODAS as circunstâncias. Existem casos em que matar é não só legítimo como desejável, e essas exceções não são detalhes, muito pelo contrário, são fundamentais. Se um policial mata um bandido que está assaltando um banco e dando tiros na polícia isso deve ser previsto e aceito. Resumir diante disso minha posição como “o Sergio é a favor de matar pessoas” é então caricatural e absurdo. Porque algo é em princípio indesejável não devemos automaticamente assumir que é sempre injustificado em todos os casos possíveis, esquecer o contexto, e decretar por ortodoxia ideológica que ou algo é sempre certo ou nunca deve ser feito. Isso tende a levar a besteiras.

          Enfim, voltando ao caso das crianças de seis anos etc. O problema com crianças é que em constraste com um adulto plenamente desenvolvido elas têm infinitamente menos autonomia para escolher. Até uma certa idade elas precisam literalmente que alguém faça escolhas por elas. Então elas precisam ser protegidas não apenas de agressões diretas (espancamentos, estupros, etc) que já são em princípio previstas em leis que se aplicam a todos mas também de abandono e omissão por parte dos pais ou seja lá quem for responsável por cuidar delas. Não é aceitável por exemplo deixar um bebê sob seus cuidados ficar mentalmente retardado por ser alimentado apenas uma vez por dia. Claro, não existe lei prendendo ninguém por deixar o mendigo da esquina morrer de fome, e provavelmente não deve haver mesmo. Mas no caso de uma criança sob seus cuidados a coisa muda completamente de figura. Da mesma forma não é aceitável não trocar a fralda de um bebê e deixá-lo regularmente imerso em fezes durante 24 horas de cada vez. Novamente, não existe lei dizendo que você tem que dar banho no mendigo da esquina, mas em ele sendo adulto a coisa muda completamente de figura. Também é totalmente inaceitável por exemplo deixar convenientemente um bebê no seu berço todo o tempo a ponto de ele nunca aprender a andar. Ou ficar o tempo todo no escuro de forma que não desenvolva corretamente o sentido da visão. Etc.

          Chegamos então ao caso da educação. Eu concordo que o currículo mínimo obrigatório do jeito que é não faz qualquer sentido, é absurdamente opressivo, e deveria ser abolido. Agora, não ensinar uma criança nem sequer a ler e escrever é aleijante. Talvez na idade média não fosse, mas hoje em dia é. Uma pessoa que não saiba ler e escrever estará privada de prerrogativas fundamentais para se integrar na sociedade e no mundo e para se desenvolver como indivíduo num grau tal que só pode ser descrito como maus tratos. E não é como se ela pudesse depois com 15 anos de idade resolver “pensando bem quero aprender a ler e escrever”. Esses anos formativos são fundamentais para o próprio desenvolvimento do cérebro. Não é uma questão primordialmente profissional ou acadêmica ou de segurança pública de que estou falando aqui; é uma questão de dar à pessoa certas ferramentas absolutamente fundamentais para se tornar um ser humano não aleijado.

          Novamente, é uma liberdade positiva? No sentido de que estamos protegendo alguém de OMISSÃO e não de AGRESSÃO? Sim, é! Mas novamente, eu não apenas acho que isso é legítimo em certos casos, como é particularmente e obviamente legítimo no caso de crianças. Os pais não são “donos” das crianças, e acho razoavelmente consensual que não se pode permitir que façam qualquer coisa que quiserem com elas. Em especial no caso de crianças, a proteção de certas liberdades positivas é para mim ululantemente necessária.

          Isso posto, eu acho que a inflação de liberdades – inclusive negativas, note-se! – que certas ideologias modernas querem das às crianças absolutamente alucinada. Em alguns países uma simples palmada numa criança pode levar os pais à delegacia e possivelmente à perda da custódia. Outras leis buscam proibir explicitamente colocar a criança de castigo. Não que eu seja fã de bater em crianças, mas que se note – essa é uma liberdade *negativa* e que além disso é universalmente considerada legítima em adultos (você não pode simplesmente dar um tapa num adulto aleatório). Então por que não deveria se aplicar também a crianças? Aliás, esse é exatamente o argumento de alguns ativistas – segundo eles crianças devem ter precisamente os mesmos direitos que adultos. Isso é obviamente insano. Quem achar que não que defenda então os direitos de bebês de votarem para presidente. Interessantemente, enquanto na Europa pais são levados à delegacia por tradicionais e não perigosas palmadas em seus filhos, nos EUA ocorre o fenômeno complementar, que é crianças de 8 anos serem levadas à delegacia algemadas porque deram um empurrão num colega de classe. Não estou inventando! Então sim, eu acho que crianças devem ter protegidas liberdades tanto positivas quanto negativas que são diferentes das de um adulto.

          Beijos,
          Sergio

  5. Estudante alienado says:

    Quero apenas relatar minha experiência e digo que, pelo menos em partes, seu argumento é verdadeiro. Ainda sou estudante do “ensino superior”, e os professores fazem crer na minha turma – menos a mim- que a doutrinação marxista é inrevogável e essencial, embora admitam, cinicamente, que ainda se trata de uma teoria.

    Ainda na sexta feira passada, tive um colóquio com uma professora que falava sobre o comunismo, a ditadura do proletariado e a sua suposta necessidade de se aplicado de forma correta, pois o que aconteceu com os paises que não funcionaram o regime na prática, segundo ela, é porque o comunismo aplicado simplesmente não seguiu a cartilha de Marx, mas de outros intérpretes de Marx, ou não se compreendeu Marx.

    Uma colega de sala tinha objetado sobre esta prática, tendo como exemplo, a ex- União Soviética, e claro ela queria uma resposta em forma de uma desprentensiosa pergunta, que infelizmente, nao me lembro como reformula-la, visto que eu não estava interessado na aula e nem tampouco nas perguntas que poderiam surgir, nesse instante eu lia distraidamente uma apostila.

    A pergunta era mais ou menos do tipo: “Por que o comunismo Soviético não deu certo? E a professora respondeu mais ou menos que a causa é o que expliquei acima: não seguiram a cartilha de Marx; Marx não foi compreendido e etc.

    Depois, disse que Lênin teve um governo mais parecido com o que pedia Marx, e que seu sucessor Stalin é que criou uma verdadeira ditadura com um golpe de Estado.

    Eu então, não resisti e disparei:

    -Mas Lênin deu um golpe de Estado?!
    Professora: -Hãaa?
    -Lênin..ele deu um golpe de estado..
    Professora:….
    -LÊNIN.. ELE DEU…um golpe de estado no Kazar.
    Professora: Não é Kazar é Czar!
    - Que seja, mas ele..
    Professora: Lênin deu um golpe de estado, mas com o apoio do povo.

    Eu calei-me, mas consegui arrancar dela uma contradição que ninguém da turma talvez não tenha conseguido assimilar. Infelizmente, quase todos sofreram lavagem cérebral esquerdista. E é claro que ela para aliviar o clima, manter o ego e agradar ambas as partes, acabou por afirmar que houve sim injustiças e abusos no governo de Lênin, o aspecto importante que tinha sido omitido por ela mesma no inicio.

    Para a professora esquerdista, se o regime tiver o apoio do povo, é válido e justo. Ora, o chamado golpe de estado de 1964 organizado pelos militares no Brasil teve o apoio em massa do povo e da imprensa brasileira. E é terrivel e reprovável pela esquerda.

    É isso que fazem, nos forçam a serem guerrilheiros e bandidos a compactuar com essa ideologia delirante e contraditória. É esse o atual legado da educação brasileira.

    • Pois é, além de tudo a educação brasileira é absurdamente ideologizada.

      E sim, existe uma cegueira desesperante nos que precisam manter a ortodoxia ideológica a todo custo.

      Está tudo bem fazer um golpe de estado desde que seja com o apoio do povo. Quer dizer, a não ser que o povo seja alienado e esteja apoiando a causa errada, caso em que o golpe de estado e uma desprezível violação do contrato social e da normalidade institucional.

      Agora, quem esta disposto a defender o marxismo realmente já atirou o senso crítico e a honestidade intelectual no lixo e cuspiu em cima há eras atrás; esse tipo de discurso delirante é inevitável se alguém insiste a essa altura dos acontecimentos em afirmar certas posições.

      Saudações,
      Sergio

  6. Jonas says:

    Evidentemente, há desvios e falhas no nosso sistema educacional, mas é importante não jogar o bebê junto com a água suja.
    Pode parecer estranho para você, mas a maior parte dos estudantes, se liberados do currículo-padrão, não se dedicaria a ganhar créditos do Advanced Placement em Literatura Inglesa e Física, lendo Shakespeare e estudando Einstein. A maioria simplesmente desperdiçaria seu tempo ou faria coisas más. A Sociedade Moderna, em que as crianças ficam largos espaços de tempo sem supervisão e na qual elas já não possuem mais um função econômica produtiva, simplesmente não poderia existir sem as escolas e o currículo unificado. Além disso, se é verdade que muitas pessoas nunca aprendem a acompanhar legendas de filmes, outras aprendem muito bem, mostrando que o que é necessário é aumentar os investimentos no sistema educacional, qualificar os professores e aperfeiçoar as técnicas de ensino. Assim como os problemas da democracia se resolvem com mais democracia, os problemas do ensino se resolvem com mais (e melhor!) ensino. A escola é talvez o agente de transformação social mais importante do nosso tempo. Pesquisas indicam que, ao chegar à idade escolar, as crianças negras americanas-em média, de famílias mais pobres que as crianças brancas- já estão atrás das crianças brancas em vocabulário e desenvolvimento intelectual, devido ao ambiente culturalmente pobre em que vivem. A escola é, portanto, toda a esperança que as crianças mais pobres têm de uma vida melhor. Nos EUA, por exemplo, o sistema público de ensino é visto há muito tempo como um instrumento de democratização de oportunidades-o depoimento de Colin Powell em sua autobiografia é tocante- e assimilação dos imigrantes, permitindo a estabilidade da diversidade cultural da sociedade americana. Além disso, em um mundo em que uma mão-de-obra altamente qualificada é necessária para que um país se mantenha competitivo, um sistema educacional eficiente e exigente-como já provaram Japão, Coréia e os Tigres Asiáticos- é o passaporte para o progresso econõmico e para o desenvolvimento social. Pense em como esses antigos buracos no chão se desenvolveram e se tornaram prósperos e invejáveis. O Brasil pode ser assim também se dermos ênfase adequada ao ensino compulsório e o tomarmos pelo que ele é: uma conquista da Cidadania.

    • Pode parecer estranho para você, mas a maior parte dos estudantes, se liberados do currículo-padrão, não se dedicaria a ganhar créditos do Advanced Placement em Literatura Inglesa e Física, lendo Shakespeare e estudando Einstein.

      Não me parece nem um pouco estranho, e aliás, é o mais provável. O que só reforça o meu ponto : é impossível satisfazer ao mesmo tempo as minhas necessidades e as do sujeito ao meu lado com um sistema massificado tamanho-único-para-todos. Essa diversidade de interesses, capacidades, origens e contextos é ainda mais um motivo por que ter um plano único de educação em massa é uma insanidade absoluta. Esse é outro dos gravíssimos problemas estruturais do sistema. A idéia de ensinar os mesmos conteúdos na mesma velocidade para milhões de pessoas é completamente absurda, opressiva, burrificante e fadada ao fracasso. Essa noção é comparável a ter um programa de combate à fome no qual todos são alimentados com exatamente as mesmas refeições, no mesmo horário, na mesma velocidade forçados a engolir na marra a mesma quantidade de comida. Com a “justificativa” de que se deixados livres para escolher comeriam as coisas erradas e na quantidade errada. Não!

      A maioria simplesmente desperdiçaria seu tempo ou faria coisas más.

      “Desperdiçaria” seu tempo? Você está seriamente falando que é tarefa do governo decidir como as pessoas devem usar seu tempo? Conceber um plano para como as pessoas devem usar seu tempo e então forçá-las a segui-lo? Isso bate vários recordes de totalitarismo. Obrigado por explicitar uma das premissas fantásticas por trás da educação compulsória.

      A Sociedade Moderna, em que as crianças ficam largos espaços de tempo sem supervisão e na qual elas já não possuem mais um função econômica produtiva, simplesmente não poderia existir sem as escolas e o currículo unificado.

      A parte do “currículo unificado” entrou nessa frase de forma completamente non-sequitur. E quanto à primeira parte do argumento, se as escolas vão cumprir a função de creches oferecidas como serviço público pelo governo, daí não decorre que tenham que se obrigatórias, nem que de quebra devam fazer lavagem cerebral.

      Além disso o fato de as “crianças” de 15 anos de idade não terem “função econômica produtiva” é um artefato antinatural e grotesco artificialmente produzido em grande parte… por estarem ocupadas prestando sua servidão compulsória mandada por lei.

      Além disso, se é verdade que muitas pessoas nunca aprendem a acompanhar legendas de filmes, outras aprendem muito bem, mostrando que o que é necessário é aumentar os investimentos no sistema educacional, qualificar os professores e aperfeiçoar as técnicas de ensino.

      Outro total non-sequitur. Eu não aprendi a ler na escola. A escola só me atrapalhou. O primeiro passo para “aperfeiçoar as técnicas de ensino” é fazê-lo deixar de ser compulsório.

      Assim como os problemas da democracia se resolvem com mais democracia, os problemas do ensino se resolvem com mais (e melhor!) ensino.

      Esse discurso é opressivo e totalitário e cego. Discordo absolutamente.

      A escola é talvez o agente de transformação social mais importante do nosso tempo. Pesquisas indicam que, ao chegar à idade escolar, as crianças negras americanas-em média, de famílias mais pobres que as crianças brancas- já estão atrás das crianças brancas em vocabulário e desenvolvimento intelectual, devido ao ambiente culturalmente pobre em que vivem. A escola é, portanto, toda a esperança que as crianças mais pobres têm de uma vida melhor.

      Você está confundindo completamente a escola ser *oferecida* com ela ser *obrigatória*. É como as pessoas que dizem “o direito ao voto é fundamental num estado democrático então vamos torná-lo obrigatório porque quanto mais gente votando mais democrático”. Nesse caso vamos fazer eleições todo dia e quem não votar será executado, afinal de contas, os problemas da democracia se resolvem com mais democracia, né?

      Nos EUA, por exemplo, o sistema público de ensino é visto há muito tempo como um instrumento de democratização de oportunidades-o depoimento de Colin Powell em sua autobiografia é tocante- e assimilação dos imigrantes, permitindo a estabilidade da diversidade cultural da sociedade americana.

      Mais uma vez você está confundindo completamente a escola ser *oferecida* com ela ser *obrigatória*.

      Além disso, em um mundo em que uma mão-de-obra altamente qualificada é necessária para que um país se mantenha competitivo, um sistema educacional eficiente e exigente-como já provaram Japão, Coréia e os Tigres Asiáticos- é o passaporte para o progresso econõmico e para o desenvolvimento social. Pense em como esses antigos buracos no chão se desenvolveram e se tornaram prósperos e invejáveis.

      Pois bem, pensemos. O que de fato ocorreu com Japão e Coréia do Sul é que ambos foram literalmente ocupados militarmente pelos EUA que então achou por bem imediatamente decretar reformas econômicas revolucionárias que eliminaram todo tipo de entraves ao livre mercado e ao livre comércio. Depois se retiraram e disseram boa sorte. O resultado todos conhecemos. Enquanto isso países como Rússia e Cuba, com um sistema de educação compulsória lindo e maravilhoso produziram hordas da tal mão de obra altamente qualificada que foi então forçada a ir pras ruas varrer lixo ou se prostituir. Esse plano é comprovadamente uma droga.

      O Brasil pode ser assim também se dermos ênfase adequada ao ensino compulsório e o tomarmos pelo que ele é: uma conquista da Cidadania.

      “Conquista da cidadania” que consiste em meus direitos civis serem cassados para melhor servir compulsoriamente ao plano delirotecnoburocrático de virar uma grande potência tecnológica forçando caixas de supermercado a responderem perguntas sobre fusão nuclear? Não, obrigado. A tal “conquista da cidadania”, se é que isso tem condições de significar mais do que um slogan usado arbitrariamente, se dá na via exatamente oposta, de cada um resgatar das mãos do governo o poder de decisão sobre sua própria vida.

      O caminho para o Brasil saltar de enorme cidade do interior para uma potência global muito não é forçando caixas de supermercado a regurgitarem sandices sobre fusão nuclear. É deixando o caixa de supermercado abrir seu próprio supermercado sem ser infernizado pelo governo. É preciso gerar riqueza. Alguém tem que ter dinheiro e liberdade para investir na tal alta tecnologia e contratar os miraculosos doutores. Contratá-los para projetar e produzir coisas que as pessoas de fato espontaneamente queiram. Enquanto o único mercado e emprego para doutores no Brasil for produzir mais doutores, produzir ainda mais doutores não vai miraculosamente consertar tudo.

  7. Aline says:

    Ótimo, ótimo. Ótimo.

  8. Que tal se o autor desse uma lida na proposta da escola da Ponte em Portugal? Ela é uma proposta que resolve a falsa oposição Estado e seus tentáculos versus interesses pessoais. Os alunos neste escola trabalham em cima dos seus interesses e em tempo recorde dão conta de toda a exigência curricular feita pelo Estado malvado, ruim, terrível, etc.

    Acho que o texto poderia, deveria ser mais sistemático. Atacar ponto por ponto com mais clareza e apresentar os fortes argumentos em favor de uma educação pautada nos interesses pessoais (seja essa educação dada em uma escola, numa comunidade, em casa, etc).

    A estratégia de atacar a escola usando de exemplos é sempre ruim, pois haverá sempre contra-exemplos. Há as melhores escolas médias, há exemplos de escolas públicas e privadas do passado onde as pessoas realmente aprendiam algo, por múltiplos fatores. Conheci um senhor do Acre com mais de sessenta anos que cantava o hino da França, ainda lembrava-se do básico de inglês e escrevia de forma impecável.

    Não entendi o motivo da atenção especial aos doutores garis e o espaço extenso dedicado a eles. Eu sei que isso é um texto de blog, porém acaba sendo extremamente superficial quando o tiroteio não é mais focado.

    Cordialmente,

    Daniel

    • Oi Daniel,

      Eu concordo completamente que a verdadeira oposição não é tanto entre o estado e os interesses pessoais quanto entre os interesses dos outros e os nossos. O estado é apenas uma das formas que os outros têm de impor sua vontade a nós. É uma forma muito importante, mas não é a única, e eu acho equivocado um projeto libertário concentrar-se seja a) na idéia de que o estado é a única fonte de opressão e b) que tudo o que o estado faz é opressivo.

      Note, eu também quero ser protegido de ser oprimido pelos outros, e nesses casos o estado tem papel fundamental. O problema é quando uma inflação desenfreada de deveres coercitivamente cobrados de cada cidadão é criada pelo estado, tornando-se então ele mesmo um agente opressor. E sem dúvida uma das causas mais freqüentes para tal inflação de deveres é uma insensata inflação de “direitos” que para serem efetivamente garantidos requerem uma correspondente inflação de deveres. Então é preciso haver equilíbrio, e impedir que o estado se torne intrusivo, mas desintegrar o estado é uma não-solução a meu ver.

      Para quem não sabe, o escola da Ponte é uma iniciativa dentro do sistema de ensino público português que busca atingir, entre outros objetivos, fornecer um ensino mais individualizado do que o método tradicional massificado. Ela apresenta, como várias outras escolas piloto ao redor do mundo, um projeto que é simultaneamente interessante, revolucionário e de impacto limitadíssimo. A expansão desse tipo de modelo de ensino – nem que fosse nessa direção genérica – seria para mim imensamente vantajoso para todos.

      Eu pessoalmente cursei meus primeiros anos de educação formal em uma escola Montessoriana. O método de ensino consistia em ser deixado na escola junto com outras crianças, e no começo de cada mês o professor dizia para todos : vejam bem, até o fim do mês você precisa saber esses conteúdos listados nessas fichas plastificadas que vão ficar aqui no canto da sala. Se você precisar consultar livros, tem na biblioteca. Se você quiser ajuda para entender, eu estarei aqui na sala dando aula. Quando você achar que estiver pronto para ser avaliado sobre esses tópicos me avise e eu avalio você. E anexada à sala de aula havia uma outra sala cheia de jogos e brinquedos educacionais que *a qualquer momento* todas as crianças tinham total liberdade de usar, sem ninguém ficar mandando você fazer coisa alguma. Tipo, se você quisesse, podia simplesmente passar o dia lá e pronto. Como as crianças sabiam que tinham que fazer os exames em algum momento, escolhiam assistir às aulas quando achavem que isso estava sendo útil. Durante uma parte do dia podíamos deixar o prédio e ficar ao ar livre. Eu freqüentemente usava esse tempo ao invés disso para ir tocar piano. Ninguém vinha me dizer “não, você tem que ficar ao ar livre”. Se chegasse o fim do mês e você não tivesse espontaneamente pedido para ser avaliado, era então avaliado junto com os outros na mesma situação. Eu tinha uns 7 anos de idade. Funcionava perfeitamente bem.

      Porém, essa escola só abrangia os níveis mais fundamentais, então posteriormente fui transferido para uma escola apostólica ortodoxa romana jesuíta tradicionalóide. O constraste foi indescritível. O método de ensino consistia em “senta aí e cala a boca enquanto eu vou monologar em tom monocórdio por horas exatamente o mesmo conteúdo na mesma velocidade para 40 crianças diferentes”. Ninguém aprendia absolutamente nada e as respostas nas avaliações eram simples regurgitações mecânicas de pseudofatos enlatados e pseudoopiniões decoradas. Minhas respostas nas provas eram freqüentemente do tipo “o que você quer que eu responda é X, mas isso está errado e na verdade o correto é Y”. Isso tinha sucesso variável dependendo do professor.

      Nos últimos três meses de aulas antes de me formar e ingressar numa universidade, minhas notas até então já tinham sido suficientes para ficar claro que eu ia inevitavelmente me formar, então eu simplesmente parei de ir a todas as aulas. Passei a ir à escola ocasionalmente apenas para jogar pingue-pongue com meus amigos. Estudei para as provas de ingresso nas univesidades ignorando completamente o currículo escolar e ao invés disso lendo os livros texto que eu escolhi como adequados para entender os assuntos que precisava saber. O resultado das provas de admissão? Fui aceito com bolsa de estudo por mérito acadêmico para a escola de engenharia de uma das melhores e mais prestigiadas universidades de pesquisa do Brasil. A escola no modelo tradicional é pior que inútil e sempre só atrapalhou os meus estudos.

      Sobre o comentário de que o texto poderia ser mais “sistemático”, bem, eu diria que ele até é bastante sistemático; a questão é que de fato ele não aborda alternativas ou o que colocar no lugar no modelo tradicional em qualquer profundidade. Isso é de fato relevantes, mas envolve todo um outro conjunto de questões e o texto já estava comprido que chegasse. Se eu tivesse que fazer UMA sugestão de reforma absolutamente essencial no sistema de ensino tradicional que já consertaria MUITA coisa é a seguinte : dar ao aluno o poder de dizer “eu já sei isso”. Mesmo que nada mais fosse modificado, se permitíssimos que qualquer aluno pudesse a qualquer momento do ano letivo (ou, por questões de praticidade, digamos, uma vez por mês, inclusive antes do início das aulas) inscrever-se para ser testado nos assuntos da ementa, e com base em resultados suficientemente altos, ser completamente liberado de ter que assistir a aulas sobre o assunto, isso já consertaria um CAMINHÃO de problemas com o sistema, e sem que aqueles que acham que o currículo essencial deva mesmo ser essencial e compulsório possam afirmar com qualquer legitimidade que ele não está sendo cumprido.

      Sobre atacar a escola usando exemplos arbitrários, eu não acho que tenha feito isso. Os exemplos que dei são de fato pretensamente representativos do resultado esmagadoramente mais comum. Claro que existe quem não se encaixa nisso, mas eu estou de fato afirmando que são a exceção. A pessoa média se forma analfabeto funcional.

      Sobre a questão dos garis e etc isso é porque meu texto foi em parte motivado por este texto aqui.

      Saudações,
      Sergio

  9. Oi Sérgio, obrigado por seus comentários.

    Sou professor de filosofia e fico observando a tarefa inútil e ridícula de discursar para um público que não está nem aí pra mim. Como o sujeito não está nem aí pra mim, então todas suas faculdades mentais parece que não funcionam adequadamente. Uma simples frase se torna um monstro, qualquer palavra nova impossibilita o diálogo, relações que se faça caem no vazio, os temas são um tédio, nada faz sentido, tudo é inútil, chato…

    Nem a alfabetização se está fornecendo adequadamente que dirá outras coisas. Falar em cidadania, ou preparação para o trabalho, formação básica cultural, ou na escola como local da socialização só pode ser piada. Eu esperava realmente que a escola fosse um local onde se conseguisse dar uma formação básica geral que possibilitasse ao aluno posteriormente fazer o que bem entendesse de sua vida. Estaria apto a conhecer, a lidar com informações, produzir algum conhecido, etc. Mas com tanta passividade, apatia é impossível superar tantas adversidades.

    Saudações,

    Daniel

    • Oi Daniel,

      Pois é, eu também dou aula e me identifico com o que você disse. Agora, por mais que sintamos que certos conteúdos são “necessários”, torná-los obrigatórios é provavelmente a maior causa dessa passividade, de tudo passar a ser percebido como vazio, entediante, inútil, chato… Neste semestre dei aulas num curso obrigatório para estudantes de graduação de basicamente todas as áreas técnicas que aborda entre outras coisas fundamentos de lógica matemática. As pessoas que montam currículos acharam que isso era absolutamente fundamental para quem vai estudar matemática superior saber, o que até faz sentido. Pois bem, só que esse é o tipo de assunto que se você tem interesse ele é vastíssimo, profundíssimo e interessantíssimo, mas se você não tem… ele é árido como uma pedra desidratada.

      Então eu fico tentando explicar as conseqüências filosóficas da definição padrão do operador de implicação material em lógica proposicional… e os alunos ficam olhando com cara de “tá, mas isso vai cair na prova”? Eles pragmaticamente buscam resumir a compreensão que vão sequer tentar ter do assunto a um entendimento operacional sem qualquer consideração sobre significado. Isso é meio que uma perda de tempo para todos os envolvidos.

      A conclusão à qual eu chego é que antes de mais nada é preciso eliminar o conceito de que seja sequer possível educar as pessoas à força. As tentativas de fazê-lo são no mínimo fadadas ao fracasso, e se suficientemente ensusiásticas e coercitivas, psicologicamente desfigurantes. Aprender é um processo ativo no qual se questiona seu próprio entendimento de como o mundo funciona. Exige que cada um reconstrua dentro de sua mente o raciocínio apresentado e não só entenda como concorde e o integre em sua visão de mundo. Isso dá trabalho, é exaustivo e é impossível de fazer na taxa que o sistema acadêmico em geral exige. Ao forçarmos certas coisas goela abaixo de pessoas que na maior parte das vezes nem sequer querem saber aquilo, forçamos a criação de uma patológica compartimentalização entre o saber escolar e acadêmico de um lado é o conhecimento efetivamente útil e concreto sobre o mundo real do outro. As pessoas se submetem a responder na academia o que percebem como perguntas artificiais sobre um mundo fictício de relações arbitrárias e então prosseguem resolvendo problemas reais na vida real usando seus próprios recursos. E no processo desenvolvem um total desprezo pela academia.

      Quanto à educação compulsória para todos, como eu comentei antes, eu acho que no máximo (se tanto) deve ser restringir a alfabetização e olhe lá.

      Agora, quanto a como criar um sistema de ensino *opcional* mas no qual seja possível aferir se alguém está aprendendo alguma coisa, acho que o primeiro e mais importante passo é desconectar completamente as aulas da avaliação, e (isso é MUITO importante) parar de tentar forçar todo mundo a aprender exatamente as mesmas coisas na mesma velocidade. O sistema correto para mim seria todas as aulas serem 100% opcionais, professores estarem disponíveis para tirar dúvidas, e os exames serem tomados no momento em que as pessoas achassem que estivessem prontas e não antes disso. Ah, isso é mais difícil de fazer de forma massificada? Sim, é claro que é! Só que o ensino massificado simplesmente não funciona.

      Saudações,
      Sergio

  10. Valéria says:

    Olá Sérgio

    Acompanhei em partes o que foi escrito aqui, posso ter passado se falou sobre isso, mas gostaria de fazer um questionamento: os professores de modo geral reclamam muito que não são bem remunerados, muito menos reconhecidos. Não aprovam aumento salarial com base na meritocracia, e tem nos seus sindicatos o “Pai Protetor”.
    Qual sua opinião sobre isso.
    Grata,
    Valéria

    • Oi Valéria,

      Bem, você toca aí em diversos pontos de uma só vez.

      Eu vou me concentrar em um dos pontos, que e a questão da meritocracia, porque ela está fundamentalmente relacionada com as outras.

      Veja bem, para implementar uma meritocracia é preciso antes de mais nada concordar sobre alguma forma mais ou menos objetiva de medir “mérito”. Como se faz isso com professores? Com pesquisadores e cientistas ainda tem indicadores como o número e impacto de publicações, que embora altamente controversos, são pelo menos uma direção genérica na qual ir. Mas e com, digamos, professores de escola primária e secundária, cuja função é mesmo ensinar e não fazer pesquisa científica?

      Está mais ou menos claro (acho eu) que o que queremos medir então é “quão bem eles ensinam”. Mas que indicador usar para aferir isso?

      Bem, um indicador óbvio por excelência seriam as notas de seus alunos; essa é supostamente uma medida precisamente de quanto eles dominam os conteúdos propostos. Infelizmente esse indicador é extremamente problemático por uma série de motivos, entre eles que um professor não tem culpa de receber uma turma ruim que nada aprende ou mérito de receber uma turma excelente que já sabia tudo. Seria preciso então medir o conhecimento *antes* do ensino ocorrer, e *depois*. Porém, não há *qualquer* tentativa de fazê-lo, o que é completamente inacreditável, não só pela questão de tornar impossivel medir a eficácia do processo de ensino como porque nem sequer se verifica se ele é necessário para começar!

      Isso sem nem tocar na questão de que a pessoa que ensina e a pessoa que verifica se alguém aprendeu alguma coisa… são a mesma pessoa! Que professor incompetente vai anunciar ao mundo sua própria ineficácia admitindo que não conseguiu ensinar nada para ninguém? No mínimo não tem como comparar as notas dadas por diversos professores.

      Então o problema é bem mais profundo do que os professores não serem “valorizados” ou promovidos com base no “mérito”. O problema é que o sistema é estruturado de forma que medir esse “mérito” é estruturalmente impossível. Certas mudanças fundamentais são necessárias antes disso. Uma delas, a meu ver, é separar completamente o processo de ensino e dar aulas do processo de avaliação. Os dois não deve ser feitos pelas mesmas pessoas, e possivelmente nem sequer pelas mesmas instituições. E embutida nisso está a idéia de que um aluno não deve ficar sendo submetido a “aulas” sobre algo que ele já sabe. Qualquer um deveria poder simplesmente fazer certos testes a qualquer momento, demostrar competência, e passar o resto do ano fazendo o que quisesse. Esses são alguns dos primeiros passos que percebo como necessários para a atividade de dar aula poder ter seu mérito medido. Como as coisas são no sistema padrão, o professor vai lá, todos são obrigados a ouvir, ele dá notas, e aí? Que diferença faz se ele é bom ou não? Que diferença faz se alguém aprendeu alguma coisa ou não?

      Saudações,
      Sergio

  11. Antonio Victor says:

    Sergio, o que você pensa sobre o homeschooling?

    • Oi Antonio,

      Bem, pra começar eu acho que no mínimo deve ser perfeitamente previsto e permitido pela lei. Mesmo que se queira forçar a todo custo um currículo obrigatório, pode-se verificar que ele está sendo cumprido através de testes periódicos.

      Agora, eu acho que existem motivos de qualidade variável para se querer ensinar uma criança em casa. Infelizmente, uma boa parte dos americanos que fazem isso são fundamentalistas religiosos que querem “proteger” seus filhos de opiniões divergentes. Esse é um péssimo motivo para educar alguém em casa. Um dos principais objetivos de uma educação deve ser justamente ser exposto a opiniões divergentes. Uma educação que não o leva a questionar suas próprias crenças fracassou.

      Além disso, nem todos os pais têm vocação pedagógica, e mesmo os que têm, não possuem conhecimentos realmente sólidos de todas as áreas às quais seria desejável que uma criança fosse exposta. Adicionalmente, isso requer um investimento muito grande de tempo e esforço que nesses tempos em que ambos os pais trabalham, poucas famílias têm sequer oportunidade prática para dispender.

      Mesmo no caso de pais brilhantes, informados e com competência e tempo para ensinar, e que não sejam opressivamente doutrinadores, ser exposto a apenas uma pequena seleção (seus pais) de formas de pensar é provavelmente problemático e danoso para a formação. Uma pessoa precisa ser exposta a diversos pontos de vista, a várias visões de mundo, a vários paradigmas de se relacionar com o universo para poder ter alguma chance de realmente tomar uma posição informada e descobrir o que mais combina com suas inclinacões e com sua personalidade.

      Então mesmo que se eduque a criança em casa, eu acho desejável contratar tutores adequados aos diversos assuntos. Aliás, para começar, eu acho um CRIME deixar crianças em seus anos formativos horas por dia com babás semi-analfabetas. Tem que deixar com alguém que fique por exemplo falando francês com elas. E depois com alguém que toque piano. E depois com alguém que realmente saiba direito história. Etc. Pouquíssimos pais do mundo poderão suprir todos esses aspectos de estímulo intelectual.

      A essa altura naturalmente a coisa já está ficando caríssima e poucos pais poderão arcar com o custo.

      (Quanto à socialização, é provavelmente de fato uma boa idéia que crianças possam ter a oportunidade de conhecer outras pessoas num ambiente suficientemente seguro, e é claro que isso não vai acontecer dentro de casa. Mas não precisa ser numa escola, pode ser em um milhão de ambientes sociais diferentes, quase todos eles com certeza muito superiores a uma escola.)

      Então em resumo, sobre home schooling eu penso que
      1) deve ser permitido a todos
      2) para ser uma boa idéia tem que ser feito direito
      3) está ao alcance de poucos fazer direito
      4) para a maior parte da população não é realista nem razoável

      Saudações,
      Sergio

  12. Osias says:

    O problema com esse texto é que eu morro de raiva ao ler, porque é tudo verdade.

    E porque não posso fazer NADA pra mudar.

    • Oi Osias,

      Bem, existem várias coisas que se pode fazer individualmente. Uma delas, e não é pequena, é falar sobre o assunto. Uma parte do problema é a quantidade de pessoas que compraram a noção de que é assim mesmo que tem que ser, como demonstram alguns comentários a este texto.

      Outra coisa que se pode fazer, no caso das pessoas que estão dentro e fazem parte do sistema acadêmico, é buscar na esfera da sua limitada autoridade empurrar na direção oposta a isso.

      Finalmente, algo que só alguns poucos terão condição ou oportunidade de fazer, mas para isso precisarão do apoio de muitos mais, é preciso haver ação politica concreta sobre o assunto. Não que a base intelectual e ideológica não seja fundamental, mas é preciso com base nela produzir um plano concreto a ser defendido, e então engajar-se a defendê-lo no mundo das instituições reais. Infelizmente isso é uma atividade inconcebivelmente desgastante e frustrante, e envolve se atolar num mar de lodo e lama com risco real de não produzir resultado algum. Quem resolve fazê-lo por idealismo (e não para garantir uma sinecura ou para se locupletar com tráfico de influência ou para agir a mando de algum lobby) é um herói e um mártir, e não é surpreendente a escassez de pessoas capacitadas a assumirem essa luta que tenham resolvido fazê-lo. Intelectuais brasileiros que no passado tentarem não raro se viram em apoptose e se autodestruíram no processo. Precisamos começar a apoiar o surgimento de partidos politicos que defendam esse tipo de idéias no Brasil, precisamos dar a eles os instrumentos para fazerem alguma coisa concreta. Infelizmente isso ainda é muito incipiente, e as propostas ainda são muito abstratas. Mas são primeiros passos vacilantes. Você veja, um partido como o PV, fundado em 1986 e defendendo algumas causas francamente alienígenas ao imaginário e preconceitos populares conseguiu através de esforços sustentados paulatinamente ganhar mais representatividade, impacto e aceitação.

      E assim como o ambientalismo foi uma dos grandes movimentos que alterou o cenário politico nas décadas de 80 e 90, estamos agora numa nova onda de partidos políticos surgindo no mundo inteiro relacionados com a modificação do papel do indivíduo na sociedade proporcionada pelas revolucionária mudanças nas tecnologias de informação e conectividade. A situacão e o desenvolvimento educação, a cultura, a economia, a tecnologia, a ciência do século 21 estão todos relacionados com como se dará esta necessária e urgente renegociação dos direitos individuais e coletivos relacionados com o acesso à informação. Um exemplo prototípico é o Pirate Party sueco, que é para ser levado muito a sério (já é o terceiro partido do país em número de filiados).

      Então embora de fato eu também ranja os dentes de impotência ao olhar para essa situação como é atualmente, talvez não seja o caso de que não haja absolutamente NADA que possamos fazer para mudar. Claro, individualmente e sozinhos temos poder limitado, mas não subestimemos o quanto é possível atingirmos a longo prazo apoiando todos alguma acão política organizada nessa direção.

      Saudações,
      Sergio

  13. Ricardo says:

    Parabéns pelo excelente texto e comentários. É quase tudo o que penso sobre nossa educação e mais algumas provocações. Escrevi uma tese de mestrado num tema que explorou um pouco o sistema de educação atual (que por sinal, é praticamente o mesmo em quase todo o mundo, seguindo a revolução industrial como você comentou).

    À época, aproveitei para resumir alguns pontos que salientam a gravidade da situação e poucos se dão conta para discutir com amigos. abaixo alguns dos principais problemas que relatei:

    1) A falta de estímulos à interação da comunidade (entre alunos, com
    professores, e com pais). Os trabalhos em grupo sempre foram poucos,
    quase nunca eram assistidos por professores, e suas apresentações eram pro-forma. Pais também raramente se envolviam no processo de
    aprendizado dos alunos e não eram encorajados para tal.

    2) O uso secundário da informática. Aulas uma vez por semana, em um
    laboratório mal equipado enquanto em todo resto do tempo os
    professores usavam quadro negro e giz sempre foram a norma.
    Atualmente, as coisas evoluíram: ao invés de quadro negro, temos
    quadros digitais!!! Nossa, realmente uma revolução na educação do
    país.

    3) Falta de didática. Aulas chatas, teóricas, com conteúdo que não
    interessa a quase ninguém, fora de contexto e sem prática. Quem
    merece? Não é à toa que ninguém lembra mais de 5% do que é lecionado em aulas deste tipo (segundo estudo de Moe, 2000).

    4) Descompasso entre as disciplinas. Não havia conexão entre os temas.
    Um assunto de uma disciplina não era utilizado em outros. Seguindo
    nosso Paulo Freire (lá na década de 70), conhecimento continua sendo
    tratado como pacote a ser entregue ao aluno; que é, claro, obrigado a
    absorvê-lo apenas até a próxima prova.

    5) Avaliações inadequadas. Provas medem o quê, afinal? Sem contar toda a pressão em função de notas que toda a sociedade exerce. É um erro grave, institucional do que as pessoas esperam da educação de seus filhos.

    6) Separação em classes. Não tenho dúvidas que os alunos são prejudicados por esta segregação como você bem comentou.

    7) Horários rígidos, bem cedo, com classes em horários limitados como
    se o aprendizado tivesse hora para começar e acabar. Grande erro.

    8) Vestibular. Nem preciso argumentar neste né?

    É tanto erro, de forma tão intrínseca que vejo com pessimismo possíveis mudanças. Você sugeriu algumas interessantes mas que exigem primeiro mudanças institucionais, que pressupõem mudanças de modelos mentais. É algo que pode persistir por muitas gerações ainda. Até porque, muitos destes problemas já foram identificados desde o começo do século XX. Pouca coisa mudou de lá pra cá.

  14. Rafaela says:

    Oi Sérgio.
    Quanto ao sensacional texto, eu não poderia concordar mais. É exatamente o que penso sobre o sistema de ensino.
    Mas um dos comentários levantava um assunto relativo ao marxismo, então o que eu queria saber é se você recomenda algum livro ou site ou outra fonte para que eu possa entende-lo, além das situações em que ele foi aplicado (ou tentou-se aplicá-lo). O muito pouco que sei não me pareceu nada positivo, mas não gostaria de definir minha opinião, já que não tenho noção do que ele é realmente.
    E, mais uma vez, texto sensacional!
    Rafaela.

    • Oi Rafaela,

      Excelente e rara sua posição de “talvez eu devesse buscar saber mais sobre isso antes de dar opiniões muito fortes”. :-)

      Infelizmente eu não tenho nenhum livro em particular que eu recomendaria sobre os resultados das tentativas de aplicar o marxismo a sistemas de governo no mundo. Mas essa é de fato uma ótima pergunta, e talvez outros leitores tenham recomendações sobre o assunto, caso em que os convido a deixá-las aqui como comentários adicionais…

      Uma possivel sugestão é essa aqui.

      Saudações,
      Sergio

      PS : Aliás, pensando bem, seria uma ótima sugestão que o Ordem Livre buscasse acrescentar à sua biblioteca algum livro sério (ou pelo menos recomendações) sobre o que aconteceu de fato – ao invés de genericamente – nos países onde se tentou usar o marxismo como guia para organizar o governo e a sociedade…

  15. Manoel says:

    Sérgio,

    Seria uma solução, pelo menos emergencial, segregar boa parte da vida escolar em áreas de concentração? Talvez, após o famigerado “currículo mínimo”, os alunos pudessem ser levados a escolher entre Humanas, Saúde e Exatas… Seria algo como o que ocorre em cursos superiores, com cadeiras eletivas, obrigatórias, etc.

    • Oi Manoel,

      Eu não acho que isso resolveria muito… o principal problema é obrigar as pessoas a ficarem sentadas todas ouvindo a mesma coisa na mesma velocidade por horas sem fim todos os dias… seja quais forem os assuntos.

      Se fosse para fazer UMA mudança revolucionária no sistema para mim seria dar a todos a possibilidade de passar num teste a qualquer momento e se livrar de ter que ver as aulas sobre o assunto em questão. Se a idéia (mesmo que errada) é forçar as pessoas a aprenderem sob coação, esse seria o maior incentivo possível que alguém poderia criar para estudar. Mas como o propósito da escola não é realmente ensinar coisa alguma, a resistência a isso é da ordem do instransponível…

      Saudações,
      Sergio

  16. Arthur says:

    Oi, Sérgio,

    Há aquele caso dos pais mineiros que retiraram os filhos do sistema de educação pública brasileiro alegando a precariedade do mesmo. Qual o argumento usado, sobre essa atitude, por uma ex-secretária municipal de Educação em São Paulo? Eu cito: “Do ponto de vista estritamente individual dá para compreender a atitude dos pais. Mas tem o ponto de vista maior, que é [b]preservar uma política pública[/b]. Não dá para deixar que cada um resolva a escolaridade do seu filho à sua maneira.” (http://www1.folha.uol.com.br/folha/educacao/ult305u416702.shtml)

    Parece que ela é educadora. Eu digo parece porque ela não demonstra entender o real propósito da educação, e sim ter entrado na dança da “preservação da política pública”.

    Enfim, tendo sofrido com a educação compulsória, percebo que todo o sistema é pensado para amarrar os cidadãos. Os pais, atribulados, confiam a educação dos filhos à escola, contentando-se com um boletim cheio de boas notas e pensam “meus filhos estão aprendendo, que ótimo”. Mas a verdade é que todos estão presos numa teia perversamente tecida pelo Estado. Pais desejam a continuação dos estudos dos filhos, por exemplo, pressionando-os a passarem no vestibular (para universidades públicas, principalmente), concurso público que exige todos os conhecimentos inúteis ensinados no ensino médio.

    Isso torna a coisa toda ainda mais macabra no ensino privado: escolas particulares deliberadamente desrespeitam o já fracassado currículo governamental, e selecionam conhecimentos e métodos mais eficazes para adestrarem os estudantes de modo que estes se desempenhem da melhor forma possível no vestibular. Maior é a aprovação, maior a propaganda feita pela escola, mais matrículas no próximo ano: “Olha, aquela escola aprovou mais no vestibular, teve os 3 primeiros lugares. É pra lá que meu filho vai.”

    Se eu não me engano, passou uma reportagem na Globo alguns anos atrás sobre uma escola que garantia maior liberdade para os alunos. A ideia era que eles pesquisassem informações sobre um tema específico, por exemplo, então podiam utilizar livros, consultas à Internet e discussão entre si, sendo supervisionados por professores, que orientavam as buscas e respondiam dúvidas, se requisitados. Não sei o resultado dessa ideia, no entanto, mas me pareceu interessante.

    Ótimo texto, por sinal, Sérgio. =)

    Abraços,
    Arthur

    • Oi Arthur,

      Para mim, o problema principal não é nem a, coloquemos assim, precariedade do sistema de educação pública brasileiro; eu vejo como maior problema a sua estrutura e principalmente a sua obrigatoriedade. Falar que o problema é ele ser precário é como falar que o problema com os campos de concentração é que as condições sanitárias eram deficientes. Tá, seria melhor se não fossem, mas não é esse realmente o problema. Forçar pessoas a passarem mais de 10 anos de suas vidas freqüentando essas instituições é o problema. Essas instituições funcionarem de forma similar a um sistema prisonal é o problema. As ementas delirantes e obrigatórias são o problema. Diante disso os professores não serem realmente qualificados, faltar material didático, as taxas de aprovação não serem altas, tudo isso viram meros detalhes.

      Saudações,
      Sergio

  17. Victor Perez says:

    O texto é quse integralmente excelente e o autor foi muito feliz na escolha de exemplos e fatos demonstrativos. Foi extremamente difícil encontrar algo a se discordar num texto tão bem escrito e coerente, mas acredito que esse trecho final me parece na melhor das hipóteses mal desenvolvido, ou inocente demais.

    O problema não está no método educativo em si de confinar crianças diante de um instrutor para que este passe suas próprias experiências e conhecimentos para elas, e disciplinando-as quando necessário.

    Aliás, uma das razões para o fraco desempenho comparativo do Brasil é que a disciplina, a ordem e o respeito a autoridade do professor foram completamente abolidos em nome de abordagens pedagógicas “mais modernas”. A educação burocratizada no mundo se fez atravez da cópia de vários elementos da tradicional educação religiosa, e esta emergiu e se desenvolveu da espontânea busca pelo conhecimento. Seus métodos e protocolos foram testados pelos séculos, formatando lentamente aquilo que viria a ser copiado pelos socialistas “laicos” que se encarregaram apenas de eliminar os conteúdos doutrinários cristãos, substituindo-os pela doutrinação socialista-laica.

    Existe uma lei em economia que diz que você terá mais daquilo que você subsidia. Se os produtores de laranjas forem protegidos da competição externa via tarifas ou subsídios diretos, seu país produzirá fatalmente mais laranjas (e menos artigos comparativamente mais eficientes).

    Na URSS e no Leste Europeu, duas classes profissionais eram bastante subsidiadas: a dos cientistas em áreas como matemática, física e engenharias voltadas para a pesquisa bélica e espacial, e os atletas de alto desempenho. Nessas duas categorias, bastante visíveis diga-se de passagem, esses países e sobretudo a Rússia possuiam uma produção desproporcional em relação as suas populações e situações econômicas. E não era apenas uma questão de produzir quantidade, os cientistas e atletas das assim chamadas “repúblicas democráticas” socialistas estavam evidentemente entre os melhores do mundo, e em muitos casos eram OS melhores.

    Não há nada de absurdo aqui, muito menos trata-se de um elogio ao sistema socialista por eles adotado. Os burocratas desses países ecolheram sacrificar a produção da sua sociedade para subsidiar certos setores “estratégicos”, seja para fins de propaganda e guerra ideológica, seja para fins militares mais tradicionais, e o resultado desse investimento massivo nesses setores foi que eles realmente ficaram agigantados, o que não quer dizer que isso não se deu as custas de um desperdício enorme.

    Mas o desperdício só não foi maior porque os socialistas por lá não tentaram ser modernosos demais. Mantiveram a rigidez das instituições educacionais, até exagerando-as certas vezes. Essa é a única razão para o fato de que o dinheiro que eles investiram tenha produzido resultados relativamente expressivos: eles usaram os métodos tradicionais. Não havia nada de revolucionário na escolas soviéticas que já não houvesse em escolas católicas ortodoxas dos tempos do Czar Ivan o Terrível. Ainda que o culto a personalidade do líder e o ensino da versão marxista da história tenham sido amplamente estabelecidos, a rigor nada de essencial tinha sido alterado no ensino das disciplinas duras, exceto o fato deles investirem ainda mais nos talentos que surgiam.

    No Brasil o investimento em educação é realmente um desperdício completo, pois além de retirar os recursos da sociedade ele simplesmente destrói completamente o valor ao produzir uma farsa grotesca chamada escola/universidade pública. Aqui o professor não possui a autoridade do conhecimento maior, aliás, a maioria dos professores sequer possui o conhecimento maior, o que é ainda mais desmoralizante. A aplicação sistemática das idéias ilustradas em [i]A pedagogia do oprimido[/i], talvez a obra mais influente jamais escrita por um brasileiro, criou uma gigantesca linha de produção de analfabetos funcionais e marginais em potencial, algo que não se observou mesmo nas republiquetas socialistas mais falidas, como Cuba, que também preservara um sistema educacional tradicional bem sucedido de antes da revolução.

    É verdade que o excedente de produção de doutores competentes é um desperdício assim como o excedente de produção de trigo. Um dotor competente é um artigo de alto luxo, que consome inúmeros recursos antes de começar a ser produtivo (caso venha realmente a ser). Mesmo a excelência vista na educação básica em matemática e física naqueles países é na maioria dos casos um enorme desperdício, sobretudo de tempo. O ganho vísivel de superar outras nações em testes comparativos internacionais não se compara a despesa incorrida em treinar exaustivamente crianças e adolescentes a manusear ferramentas que elas provavelmente nunca se servirão mais tarde quando sua função for dirigir taxis ou reparar encanamentos. Muita sopa rala de batata teve que servir de banquete para famílias russas para que os burocratas produzissem scores marginalmente maiores para seus países em olimpíadas internacionais de matemática.

    Mas o excedente de produção de pseudo-intelectuais e vigaristas diplomados é um desperdício muito pior, e o Brasil, mesmo sem jamais ter adotado um regime totalitário coletivista conseguiu essa proeza. A noção estabelecida de educação tem sufocado o potencial do Brasil há quarenta anos e continua matando qualquer esperança, mas a solução que todos vêem é mais educação, sempre [i]à la brasilienne[/i].

    • Oi Victor,

      Sobre estar mal desenvolvido, você está falando do trecho final sobre socialização ou sobre a parte final do texto principal? Se for sobre a questão da socialização, pois é, isso em si dava um outro texto inteiro. :-) Mas já estava comprido demais, então falei mais resumidamente. Outras pessoas comentaram sobre o assunto, então eu mesmo acabei escrevendo mais sobre isso nos comentários.

      Saudações,
      Sergio

  18. Gerson B says:

    Algumas ideias aqui batem com as de Ivan Illich e Everett Reimer. Você já leu Sociedade sem Escolas do Illich e/ou A escola está morta do Reimer?

    • Oi Gerson,

      Não, não li… valeu pelas dicas. Eu certamente devia ler o “Deschooling Society” em algum momento. Estou vendo aqui que aparentemente o Ivan Illich deu aulas na Penn State, interessante. O Everett Reimer eu não conhecia.

      Eu me lembro do impacto que teve sobre mim quando ainda criança, depois de ser transferido de uma escola montessoriana para um colégio católico e estar pensando “aaaaaargh!” deparei numa livraria com o Cuidado, Escola (que recomendo altamente para todos), li ele inteiro lá mesmo e pensei “bolas, então eu não estou delirando, isso *está* errado!”.

      Saudações,
      Sergio

  19. [...] manifestada a nível de interações sociais espontâneas. Um deles é o sistema educacional, que da forma como modernamente constituído na maior parte das vezes, parece ter como diretiva mais importante punir, sufocar, destruir, [...]

  20. Edmundo Barreiras Ricardo says:

    Oi–o que posso eu dizer.O problema é mundial.Aínda há poucos anos se
    dizia que o progresso das sociedades é ínfinito,e que as pessoas que mais
    estudacem,melhor seria o seu futuro,melhor que dos seus próprios páis.
    Hoje aqui, em Lisboa,o que veijo jente sem nada para fazer.Cada vez mais
    pessoas pobres,muitas estudaram muitos anos.E o trabalho que conseguem é limpar o lixo nas ruas,outras cortar relva nos jardins.Jente que ao olhar no seu rosto,se nota uma enorme tristeza.Jente que sente a esperança de uma vida
    melhor se esgotar em cada dia que passa..
    MUITO OBRIGADO.

    • O sistema educacional moderno é uma farsa em muitos níveis, mas provavelmente um dos mais trágicos é o que você menciona – ele falha completamente em preparar as pessoas para se tornarem membros produtivos da sociedade, para desenvolverem adequadamente seus talentos e potencial e para descobrirem formas de exercê-lo de uma forma que seja socialmente reconhecida e recompensada como útil.

      Saudações,
      Sergio

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