O Indivíduo » Ética ../../../. Porque só o indivíduo tem consciência Tue, 02 Aug 2011 04:56:23 +0000 en hourly 1 http://wordpress.org/?v=3.1.3 Chantagem Emocional ../../.././2011/06/28/chantagem-emocional/ ../../.././2011/06/28/chantagem-emocional/#comments Tue, 28 Jun 2011 15:42:50 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=2582

Sue : I suppose you don’t have any shrinks at Walkabout Creek.
Michael : No, back there if you got a problem you tell Wally. And he tells everyone in town, brings it out in the open, no more problem.

Entre os diversos experimentos altamente perturbadores sobre comportamento social que eu conheço em psicologia estão os que seguem a linha de pesquisa inicialmente explorada por Milgram na década de 60. Para quem não conhece, vale a pena ler uma descrição mais detalhada. Mas em resumo, o resultado é na direção de concluir que o ser humano médio está preparado para sem qualquer coação e sem qualquer remorso praticar os atos mais cruéis e desprezíveis desde que acredite estar seguindo intruções diretas de uma figura de autoridade.

As conseqüências para política, religião, educação, e na verdade em praticamente todas as esferas da existência humana são gigantescas.

Mas eu quero aqui me concentrar em discutir um contexto específico em que esse fenômeno se manifesta de forma a meu ver particularmente perversa, que é o do tratamento psicanalítico (e similares).

Quando um indivíduo decide buscar um terapeuta para discutir suas questões psicológicas, suas angústias existenciais, suas neuroses, seus problemas emocionais, ele se coloca em uma posição bastante vulnerável. Note-se, mesmo sem questionarmos a validade científica ou médica de psicanálise e similares, a maior parte dos pacientes se vê na mesma situação na qual nos descobrimos quando levamos o carro a um mecânico sem termos qualquer noção de como um carro funciona por dentro – que é de que em algum momento somos confrontados com ter que escolher confiar que o mecânico sabe o que está fazendo. Claro, não tomamos essa decisão cegamente – mas quase sempre também não a tomamos com base em conhecimento profundo do assunto. Usamos critérios basicamente circunstanciais para fazê-lo, usamos aparências e inferências para escolher ou não aceitar o terapeuta como uma figura legítima de autoridade sobre certos aspectos da mente humana e sobre os caminhos apropriados para atingirmos saúde mental e emocional.

A questão porém já começa do fato de que definir saúde mental e emocional é altamente problemático. Será que um psicopata perfeitamente feliz e realizado com seu comportamento deve ser classificado como num estado psiquiatricamente patológico? Ou simplesmente como um perigo objetivo aos outros? Será que alguém que decida permanecer com seu cônjuge alcoólatra devido a sentimentos de amor e fidelidade deve ser classificado como autodestrutivo e masoquista? Ou pelo contrário, como idealista e nobre? E se o cônjuge não for alcoólatra mas sofrer um acidente de carro e ficar paraplégico? Alguém que escolha voluntariamente e sem qualquer coação ficar e passar uma vida inequivocamente infeliz ao lado do cônjuge deve ser classificado como emocionalmente perturbado? E se a pessoa estiver *feliz* com essa escolha, deve então ser classificada como delirante? Alguém que *condene* essa escolha deve ser aplaudido, desprezado, ou simplesmente respeitado? Alguém que anseie ser capaz de tais atos de desprendimento deve ser considerado nobre, ingênuo, doente, ou simplesmente portador de uma personalidade?

Espero que com esses poucos exemplos – seria muito fácil construir mais – esteja claro que “saúde mental” dificilmente pode ser reduzido a “felicidade pessoal” sem esbarramos em sérios problemas.

Infelizmente, porém, existe modernamente uma tendência bastante forte de encarar saúde mental exatamente desta forma, isto é – se o sujeito é capaz de funcionar socialmente, e está feliz com seus próprios estados mentais, então como regra geral está tudo bem. Ao diagnosticar grande parte dos distúrbios emocionais e de comportamento como patológicos ou não, grande atenção é dada a como tais comportamento e estados mentais de fato afetam o bem estar – objetivo e/ou percebido – do paciente, e quaisquer determinações de patologia são em grande parte assim relativizadas. Então se eu sinto uma necessidade incontornável de lavar as mãos 10 vezes antes de sair de casa enquanto canto “parabéns pra você” mas estou perfeitamente feliz com isso e isso não prejudica em nada a minha rotina, então boa sorte para mim. Por outro lado se eu me sinto compelido a executar exatamente o mesmo ritual mas isso me causa imensa angústia e perturba minha capacidade de chegar nos meus compromissos a tempo e eu não sei administrar essa idiosincrasia como parte de uma rotina funcional, então eu tenho um problema.

Isso tudo parece muito razoável e flexível e coisa e tal e inclusive foram considerações como essas – em grande medida substituindo o temível e opressivo critério de “normalidade” – que levaram ao questionamento e eventual – bem vindo – repúdio da classificação de diversos comportamentos estatisticamente desviantes – por exemplo homossexualidade – como sendo supostamente merecedores de um diagnóstico patológico para o qual devemos desenvolver um “tratamento”. Afinal de contas, ter um QI de 140 ou ser capaz de compor sinfonias é muito mais raro do que ter tendências homossexuais e ninguém vê necessidade de encontrar “curas” para isso.

Esse paradigma porém, útil e benéfico que seja para questionar a perversa identificação entre desvio e patologia, esbarra em sérias limitações quando buscamos usá-lo como único critério para diagnóstico e tratamento. Revisitemos variações dos exemplos acima apresentados. Suponhamos que alguém procure um terapeuta e diga “Meu cônjuge sofreu um acidente de automóvel e ficou paralítico e desde então eu tenho estado muito infeliz. Essa relação não tem mais como satisfazer profundas aspirações que eu tenho para o resto da minha vida e eu não quero permanecer nela. Porém eu me sinto profundamente comprometido em ficar, me parece uma traição inaceitável simplesmente ir embora. Que devo fazer?”

Naturalmente que a maioria absoluta dos terapeutas não responderá com sugestões assertivas sobre qual caminho seguir. Ao invés disso, buscará “auxiliar” o paciente no processo de autoinvestigação de suas possibilidades, de seus desejos, de seus motivos, de suas necessidades, etc. E a expectativa – ou pelo menos o objetivo – é de que o paciente se tornará então progressivamente mais capaz de tomar por si mesmo decisões progressivamente mais centradas e mais coerentes tanto com realidades externas como internas, sejam quais forem. Parece bastante razoável.

Só que em primeiro lugar, é uma ficção total esperar ou mesmo sugerir que o terapeuta não tenha, sim, uma – forte – opinião sobre o que o paciente deveria fazer, e é uma ficção em cima dessa ficção achar que seja possível esconder essa opinião. Aliás, muito pelo contrário – ao buscar reprimir ou ocultar sua própria opinião sobre o que o paciente deveria fazer, o terapeuta passará a expressar seus sentimentos e julgamentos sobre o assunto de forma subliminar e o resultado será um “diálogo” manipulativo e farsesco, no qual os – indeléveis e indisfarçáveis – estados mentais do terapeuta permanecerão ostensivamente presentes como subtexto que contorna o senso crítico sem que jamais o paciente tenha uma oportunidade honesta de desafiá-los abertamente. Inclusive na maior parte das vezes o paciente, em busca da aprovação do terapeuta, articulará tais idéias jamais verbalizadas pelo terapeuta como sendo suas próprias, grande parte das vezes acreditando sinceramente que o sejam.

Por um lado, de fato esse fenômeno pode ser usado como “ferramenta terapêutica” para induzir pacientes a questionarem posições e estados mentais que jamais questionariam diante de um ataque direto, e a considerar idéias que parecem ameaçadores demais se apresentadas explicitamente. Por outro lado, quando induzimos qualquer um a desligar seu senso crítico e criamos uma situação na qual previsivelmente a busca de aprovação tornará o paciente vulnerável a dizer basicamente qualquer coisa, a autenticidade do processo como jornada de auto-descoberta se torna altamente questionável, e a distinção de pura e simples lavagem cerebral fica perigosamente nebulosa.

Mais muito pior e mais danoso do que ser uma ficção total que o terapeuta seja neutro é o próprio projeto – falhado que seja – de pretender ser “neutro”. Note-se, ao validar essencialmente *quaisquer* decisões que um paciente tome, desde que sejam “equilibradas”, desde que promovam o “bem-estar” do próprio paciente dentro dos limites do civilizadamente aceitável, estamos basicamente promovendo o mais profundo egoísmo. Sim, egoísmo civilizado e sofisticado e moderníssimo – mas egoísmo assim mesmo. Então se um homem diz “estou infeliz no meu casamento, vou deixar minha mulher e meus dois filhos e recomeçar minha vida sem o fardo de ter essas restrições a minha independência”, se uma filha diz “vou internar minha mãe num asilo porque está muito chato cuidar dela”, se uma esposa diz “meu marido perdeu o emprego e está muito deprimido, isso está muito incômodo, acho que vou dizer que estou saindo de casa”, todas essas proposições partem do princípio geral de que A FELICIDADE DOS OUTROS NÃO É MINHA RESPONSABILIDADE. Aceita-se a premissa de que prejudicar ativamente os outros não é civilizado, mas sair do seu caminho para proteger o bem estar dos outros já é pedir demais. Eles que cuidem de si mesmos. E o terapeuta acaba em muitas circunstâncias provendo precisamente a validação necessária para o paciente, sufocando protestos de sua própria consciência, introjetar essa atitude como saudável e positiva.

Ao que eu afirmo : essa posição é tão cheia de problemas éticos que se precisa de explicação a explicação provavelmente será inútil.

Para começar, genericamente, acreditar seriamente na idéia de que se não é sua culpa então não é seu problema demonstra sério retardamento moral.

Isso já seria perverso como ideologia adotada espontaneamente, mas ao incentivar dentro de uma relação de autoridade a noção de que seria um comportamento saudável e condutor ao equilíbrio emocional desligar-se do sentimento de que somos SIM éticamente responsáveis pela felicidade dos outros, o terapeuta dá permissão ao paciente para desconectar-se de sua humanidade, para caminhar essencialmente em direção à psicopatia, uma permissão que empiricamente – e não só nos experimentos de Milgram, mas em muitíssimo outros contextos, desde nazismo até inquisição – tem um enorme poder de transformar pessoas de outra forma decentes em robôs indiferentes diante das mais impressionantes manifestações de sofrimento humano. Então eu estar mencionando terapeutas aqui é quase acidental; é apenas a forma como isso ocorre em círculos abastados ocidentais pós-modernos. Qualquer figura de autoridade serviria potencialmente para produzir o mesmo efeito; apenas esta é uma que convencionamos aceitar como tal diante da falência da legitimidade de outras.

Agora, o tipo de terapeuta ao qual me refiro não para em advogar, por vezes até mesmo explicitamente, e com literalmente essas palavras, que “a felicidade dos outros não é sua responsabilidade”, como se fosse uma grande e profunda revelação mística. Uma à qual qualquer um vulnerável e confuso e em sofrimento muito facilmente sentirá grande tentação de se agarrar. Afinal, enxergar-se como moralmente implicado no bem estar e na felicidade de outros de fato é uma enorme responsabilidade. Só que a pergunta – originalmente e deliberadamente retórica – “por acaso sou guarda de meu irmão” é já em si mesma um triunfo de desonestidade. O grande alívio produzido por quem venha lhe dizer vindo de uma posição de autoridade que a resposta poderia ser “não, você não é” explora o medo e as fragilidades emocionais de um ser humano em sofrimento da forma mais vil. Essa arquetípica situação nos remete à cena crucial de “A Última Tentação de Cristo” em que ele, pregado na cruz, sofrendo absurdamente, e agonizante, diz “Meu pai, por que me abandonaste?”… para então ver descer do céu um anjo que diz “Você já sofreu o suficiente, já fez o seu trabalho… não precisa seguir adiante, desça da cruz, vai ficar tudo bem…” E Cristo, confuso, em choque, mas imensamente aliviado, desce da cruz e vive uma existência vazia de significado na qual assiste tudo aquilo por que lutou desmoronar em pedaços. E eventualmente, prestes a morrer de velhice, percebe que traiu a si mesmo e à sua consciência, e que o suposto anjo era o demônio (o qual evidentemente é muito mais sedutor vestido de anjo e pregando que ao fazermos o que nós é conveniente estaremos fazendo a coisa certa).

Não, o tipo de terapeuta ao qual me refiro não para em simplesmente promover essa atitude psiquicamente desestruturante na qual pessoas basicamente saudáveis são encorajadas a agirem psicopaticamente, a acreditarem que o mais fácil e conveniente e superficialmente vantajoso para elas mesmas seria o saudável e correto. Não, junto com as idéias fornecem-se alguns mecanismos mentais para justificar e sustentar essa charada, dado que qualquer pessoa normal sente um instintivo desconforto com a idéia de que a felicidade dos outros não seria sua responsabilidade. Buscar “superar” e “desconstruir” e renegar esse desconforto como simplesmente neurótico e pouco saudável é um objetivo perverso que porém infelizmente parece ser um dos grandes triunfos da “modernidade”.

E então como sustentáculo dessa perversidade promovem-se noções como a de que apelar para a empatia, os sentimentos, a humanidade dos outros seria intrinsecamente desonesto e inaceitável. Que seria no pior caso hipócrita e mentiroso, e no melhor caso possível, de extremo mau gosto e manipulativo. Que olhar para alguém e dizer “Mas você não vê o quanto está me magoando?” não só não serviria como argumento como denotaria uma tentativa do interlocutor de usar contra você os seus próprios neuróticos e indesejáveis sentimentos de responsabilidade pela felicidade alheia. “Como você ousa me fazer sentir mal por minhas ações causarem o seu sofrimento?!” O truque de prestidigitação ética é desqualificar automaticamente qualquer apelo à sua consciência como chantagem emocional.

Claro, alguém que de fato invente motivos delirantes para se sentir ofendido ou magoado pelas mais inócuas ações alheias, ou que se coloque deliberadamente em posição autovitimizante imaginada ou real, e então venha tentar usar isso como forma de instigar sentimentos injustos de culpa e responsabilidade nos outros está de fato abusando da compaixão alheia. Mas em muitos outros casos o sofrimento dos outros é real e a responsabilidade não é uma fabricação. Se você encoraja alguém, digamos, a largar seu emprego e se mudar para o Alasca para casar com você e aí quando você chega lá a pessoa diz “Ah, sinto muito, mudei de idéia, a gente se vê por aí, valeu? Vai embora e não enche o saco.”, exclamar diante disso “Peraí, isso não é razoável, você não vê a posição em que está me colocando?” não é uma reação imatura, ou manipulativa, ou inadequada, muito pelo contrário.

Além disso, embora seja perfeitamente legítimo considerarmos nossos próprios interesses como crucialmente importantes, existe aí uma medida e uma escala. Se os seus menores e mais fúteis interesses consistentemente se sobrepõem aos mais profundos e essenciais interesses alheios, sinto informar, mas você é um psicopata. A idéia de que os seus próprios interesses em quaisquer circunstâncias tenham total precedência sobre quaisquer interesses alheios torna qualquer noção de responsabilidade ética risível. Na verdade, diria eu, o fundamento mais essencial de qualquer ética que eu considere não perversa está precisamente no principio de que seu próprio bem estar *não* tem precedência sobre quaisquer outras considerações.

Então por mais que apelos à consciência e à solidariedade e à sua responsabilidade com o bem estar alheio de fato se prestem a farsas e manipulação, querer classificá-los em bloco – especialmente quando você está diretamente implicado – como “chantagem emocional”, isso sim é que é no mínimo hipócrita e no pior caso psicopático. E querer reprimir em si mesmo os próprios sentimentos espontâneos de solidariedade como neuróticos, e comprar a idéia de encarar qualquer tentativa de suscitá-los como manipulativa, tudo isso leva ao mais destrutivo egocentrismo solipsista. O qual, por outro lado, naturalmente, não só não é logicamente incompatível com a felicidade pessoal, mas mesmo que fosse, este seria um argumento meramente utilitário. Então, no final das contas, como sempre, é uma escolha. É uma escolha sobre que tipo de pessoa você quer ser, e que tipo de universo você quer ajudar a construir.

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Aborto Livre, Sim, Por Favor ../../.././2008/05/25/aborto-livre-sim-por-favor/ ../../.././2008/05/25/aborto-livre-sim-por-favor/#comments Sun, 25 May 2008 14:19:00 +0000 Sergio de Biasi http://oindividuo.com/?p=623

“Não basta ser contra o aborto. É preciso defender que as mulheres que fazem aborto sejam processadas e penalizadas criminalmente.”

Certo, essa citação passou de todos os limites. Eu vou ter que falar alguma coisa.

Culpar a mãe por uma gravidez indesejada, e colocá-la contra a parede sob a pretensa responsabilidade de arcar com as conseqüências de seus atos é uma falácia tão absurda quanto citar a Bíblia para provar que Deus existe. Não existe atualmente qualquer necessidade do ato sexual resultar em reprodução, mesmo com a ocorrência de gravidez. Em uma sociedade moderna essa conexão é absolutamente artificial e criada de fato em maior ou menos grau justamente pelos movimentos abortofóbicos. Agora, não é logicamente justificável acusar mães perfeitamente dispostas a abortarem de irresponsabilidade enquanto simultaneamente as proibimos de abortarem. Ao contrário, a maior parte delas está exatamente sendo extremamente responsável e lutando contra alguns de seus instintos mais profundos justamente porque prevê as consequências para si e para os outros, inclusive o feto, de não fazê-lo.

Culpar a mãe por uma gravidez indesejada é como culpar a estuprada por usar roupas provocantes, é como culpar o assaltado por usar um caixa eletrônico de madrugada. É por um dedo em riste no nariz dela e pontificar “quem mandou expressar sua sexualidade?”. Poderão tais pessoas porventura terem sido imprudentes ou pouco sábias? Possivelmente. E daí? Esse linha de raciocínio que busca proteger as pessoas de si mesmas é precisamente a que leva à proibição das drogas e outros absurdos totalitários cuja maior conseqüência prática é a opressão psicológica e a restrição das liberdade individuais. Oficializa-se a infantilização geral de todos sem ao menos sequer atingir (ainda bem!) os objetivos pretendidos de reformar a sociedade segundo alguma visão particular de moralidade imposta de cima para baixo. Como isso ultrapassa o limite do que grande parte das pessoas está disposta a aceitar passivamente, é necessário então buscar justificativas para tal impostura, a mais forte delas vindo sob a acusação de homicídio.

A criminalização do aborto consegue ser simultaneamente retrógrada, hipócrita, uma violência contra a dignidade humana, a liberdade individual, a família, o bom senso e a realidade prática.

A acusação de “retrógrada”, clichê hiper-usado e abusado merece explicações. Existe um apelo emocional barato no novo, em querer mudar algo somente por ser tradição, em proclamar que qualquer mudança seja um “progresso”, e simultaneamente partir do princípio que qualquer “progresso” em direção a uma suposta “modernidade” seja bom. Não é a isso que me refiro. Por outro lado, é claríssimo que uma das motivações mais comuns para a defesa da criminalização do aborto provêm de histeria religiosa baseada em ditames dogmáticos retro-racionalizados a posteriori e cobertos generosamente com molho de chantagem emocional e lavagem cerebral. São parte de toda uma visão de mundo completamente em dessintonia com tudo que se descobriu, pensou e viveu nos últimos dois séculos. Claro que imediatamente, como já observado, se pode colocar – quem disse que os últimos dois séculos de pensamento humano sirvam de modelo para qualquer coisa? E certamente existe aí um bom argumento. Mas existe um aspecto que não se pode negar sem descambar para o obscurantismo, que é a realidade dos avanços técnicos e científicos que nos permitem hoje compreender e interagir com a realidade de formas absolutamente revolucionárias. Tais avanços, ao contrário do que muitos querem defender, conflitam sim diretamente com vários valores tradicionais, e embora esse choque deva ser objeto de muita reflexão ao invés de precipitado abandono de tudo em que acreditávamos, é completamente absurdo enfiar a cabeça num buraco e fingir que não existem. Lidar por exemplo com princípios científicos abundantemente estabelecidos como a evolução das espécies como “meras teorias” basicamente porque levam a conclusões que ferem suscetibilidades teológicas é fechar-se em si mesmo e bradar “eu vou acreditar no que eu quero acreditar seja lá qual for a realidade”. O que, novamente, não é novidade e não deixa de ser tentador quando a realidade nos desagrada, e certamente é privilégio pessoal de cada um, mas que termina no limite de sua consciência e não deveria ser imposto – muito menos por força de lei, pelo menos a esse ponto parecíamos ter chegado – a ninguém. Mas naturalmente, a pecha de “retrógrada” não é em si mesma um argumento contra nenhuma posição específica. É apenas um sintoma. Prossigamos.

Vamos ao hipócrita. Essa é quase uma covardia. Basta analisar as estatísticas, por exemplo num país pretensamente católico como o Brasil, das pessoas que se dizem contra o aborto e da quantidade de abortos que são de fato realizados. Essa é de goleada, então não vejo motivo para insistir no ponto. Mas novamente, isso em si mesmo não é um argumento sólido, é apenas mais um sintoma da inconsistência dessa posição; estabelecer que existe abundante hipocrisia não resolve o assunto.

Passemos portanto ao ponto central da questão : o argumento de que um aborto seria comparável ou equivalente a um homicídio. Minha opinião pessoal, que não é nem um pouco incomum, é que num aborto realizado suficientemente cedo, não existe nenhuma relação entre os dois. Um ser humano não é definido ou estabelecido por um monte de células. Ninguém será preso por agressão por espancar um cadáver. Experimente porém fazê-lo minutos antes da morte e o significado será completamente diferente. É disso que estamos falando. Da preservação da integridade física de um ser humano, não do corpo sem vida de um ser humano, de fios de cabelo de um ser humano, ou de células humanas. Então resta a questão : a quais entidades vamos nós agora atribuir esse estado especial de existência chamado “ser humano” cuja integridade merece ser protegida?

Essa não é uma questão muito simples de se responder. Claro, sempre podemos arbitrariamente escolher um momento no tempo para dizer “aqui surgiu um novo ser humano” (tradicionalmente e universalmente, aliás, o momento do parto), mas o fato é que é um longo processo. Creio que podemos em geral concordar que antes da concepção não existe ser humano novo, e depois do parto existe. Mas note-se que isso não é uma “verdade” a ser “descoberta”, porque estamos exatamente tentando *definir* onde começa essa humanidade.

Existe aqui um problema similar ao de determinar a idade para a maioridade civil. Parece razoável concordar que não faz sentido enviar um bebê de dois anos de idade para a cadeia por ter sido descoberto carregando um brinquedo de uma loja sem pagar. Da mesma forma, parece razoável concordar que um cidadão com 21 anos de idade em posse de suas faculdades mentais não deve gozar do mesmo grau de boa vontade. Onde, porém, ocorre essa transição entre “cidadão em treinamento” para “cidadão responsável por suas ações”? A resposta é que evidentemente não ocorre em nenhum momento específico, é um longo e gradual processo e que além disso difere de um ser humano para outro. Claro, poderíamos “pelo sim ou pelo não” tornar a todos criminalmente responsáveis desde o momento do parto, afinal de contas quem sabe quais bebês superdotados não estão na verdade imbuídos de perversas intenções conscientes e se aproveitando da nossa ingenuidade para burlar o sistema judicial? Da mesma forma, em nome de “proteger os inocentes” poderíamos dar imunidade plena a todos até uma certa idade escolhida arbitrariamente. Nesse caso, o que fazer com um indivíduo de 12 anos de idade que por livre escolha cometeu um homicídio durante um assalto? Soltá-lo na rua e dizer “boa sorte”? Mesmo que aceitemos o (para mim duvidoso) argumento de sua “inocência infantil”, suas vítimas não são também “inocentes” a serem protegidos? A conclusão a que se chega é que existem aqui “inocentes” a serem protegidos de ambos os lados. Assim como não é fácil chegar a uma resposta satisfatória para a questão da responsabilidade civil, não é fácil chegar a uma conclusão satisfatória para a questão de onde um ser humano começar a existir, e em ambos os casos os extremos tender a levar a bobagens. Apesar disso, existem aqueles que por considerarem apenas um dos lados, enxergam um dos extremos como a única solução aceitável.

No caso do surgimento da qualidade de “ser humano”, existem aqueles que querem “generosamente” atribuí-la a quase tudo com que consigam desenvolver algum vínculo emocional. (Embora aparentemente tenham uma dificuldade maior em estabelecer tal vínculo com mães, pais e todos os outros seres humanos que objetivamente terão que efetivamente despender tal “generosidade”.) Portanto, tecnicamente parece ser possível ter uma posição abortofóbica baseada meramente em sentimentos antropomorfizantes dirigidos a um glóbulo de células, ou melhor, ao que esse glóbulo “poderia ter sido”.

Não me parece porém que essa simpatia maldirigida seja a força predominante motivando a posição abortofóbica. Pelo contrário, na maior parte das vezes fica claro que a principal agressão percebida em um aborto por seus detratores se dê não no nível objetivo de um ser humano concreto tendo sua vida terminada, mas no nível teológico em que a parte sagrada de um ser humano seria a sua “alma”, e tal “alma” teria os mesmos “direitos” que qualquer outro ser humano pleno. De fato, nesse paradigma, uma “alma” seria a parte mais essencial de um “ser humano pleno” e por motivos teológicos e doutrinários, tal “alma” seria infundida no momento da concepção.

Como conseqüência, nesta visão de mundo, não são ignorados apenas a mãe, o pai, a família e a sociedade ao redor. Perversamente, o bem-estar físico objetivo do ser humano que daí surgirá é considerado irrelevante (ou completamente secundário). Mas isso é plenamente consistente com toda a moral e prática dominante em particular na religião católica e parentes próximos; o bem estar objetivo das pessoas é irrelevante desde que sua “alma imortal” seja “salva”. Daí derivam-se todo o tipo de aberrações, como a preocupação em efetuar uma conversão num leito de hospital preceder a preocupação em efetivamente salvar a vida do paciente (se vocês acham que eu estou inventando pesquisem o que acontece ainda hoje quando a religião católica é levada por falta de freios sociais às suas últimas conseqüências). Ou, por exemplo, a obrigação de prender por homicídio mães solteiras que ousaram tomar pílulas abortivas com duas semanas de gravidez, ou a obrigação moral que alguém teria de dar à luz um filho com síndrome de Down, ou ainda mais absurdamente, de levar a termo uma gravidez de alto risco de um feto inviável, seja por defeitos genéticos, seja por estar o feto aderido à trompa de falópio. Para quem não percebe aonde isso tudo leva (ou não acredita), o material é vasto e abundante, busque reportagens sobre o que aconteceu e está acontecendo nos países que levaram essas idéias a sério. (Exemplo aleatório de outro texto que espero inspire o leitor a pesquisar o assunto mais profundamente.)

Assim sendo, a citação que abre o artigo é perfeitamente coerente. De fato a argumentação de que aborto seria equivalente a homicídio não exige menos do que isso para ser levada a sério. Como ocorre com freqüência, a absurdidade de certas premissas se torna mais óbvia quando as levamos a sério e começamos a delas extrair suas conseqüências lógicas.

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Reflexões Sobre A Prostituição Em Tempos Modernos ../../.././2007/07/30/reflexoes-sobre-a-prostituicao-em-tempos-modernos/ ../../.././2007/07/30/reflexoes-sobre-a-prostituicao-em-tempos-modernos/#comments Mon, 30 Jul 2007 08:19:03 +0000 Sergio de Biasi http://oindividuo.com/?p=472 soliciting_discreetly

Hoje fiquei pensando sobre como a poligamia nas sociedades islâmicas deve ter um efeito colateral não intencional : necessariamente, haverá homens que nunca terão esposas. Mais do que isso, o número de homens sem esposas será sempre superior ao de mulheres sem maridos, e será tão maior quanto mais polígama for a sociedade. Considerando além disso a atitude dominante nas sociedade islâmicas sobre sexo fora do casamento, não é de admirar que as mulheres sejam proibidas de saírem sozinhas na rua, tenham que usar roupas que escondam suas formas, e que em tais países as pessoas estejam dispostas a se explodirem em nome de Alá esperando com isso irem parar num paraíso cheio de virgens. Eu, pessoalmente, não vejo nada de terrivelmente errado com a poligamia (supondo que os envolvidos a aceitem voluntariamente e construtivamente), mas há de se convir que se ela for somente masculina (que é mesmo a que biologicamente faz mais sentido), isso contém em si as sementes de uma tensão social constante.

Aí eu pensei que uma forma de compensar (parcialmente) isso seria haver umas poucas mulheres que prestassem à sociedade o serviço público de transarem com os homens que ficassem sem esposas/parceiras. Só que tais mulheres já existem em todas as sociedades – são as prostitutas. Então eu comecei a pensar sobre o papel que elas têm nas sociedades cristãs, e acabei por concluir que elas prestam um excelente e muito saudável serviço à comunidade.

Porém, apesar disso, a prostituição é quase sempre cercada de um estigma negativo. Mas pensemos com cuidado. Uma prostituta faz mal a alguém? Não, ela presta um serviço ardentemente desejado por seus clientes. O argumento normalmente utilizado é que esse serviço seria degradante para a própria prostituta, que é colocada como vítima. A construção dessa descrição da prostituta como “vítima” geralmente se dá por duas vias : 1. prostituir-se seria intrinsecamente degradante e 2. para muitas mulheres, a prostituição seria imposta, e não voluntária.

Comecemos pelo segundo ítem. Impor uma profissão a qualquer pessoa já é ilegal. Um trabalhador rural, por exemplo, que seja contra a sua vontade mantido em sua profissão ou ligado a um empregador específico, seja sob ameaças, por contatos abusivos, por falta de meios de escapar, por não poder pagar dívidas ou por qualquer outro motivo, terá pleno apoio da lei e das instituições em quase todas as sociedades modernas. Não que o trabalho escravo tenha desaparecido completamente da face da terra, mas o que o caracteriza – e à sua ilegalidade – não é a natureza da atividade exercida e sim a relacão entre prestador de serviços e empregador. Querer tornar prostituição ilegal porque existem gigolôs ou bordéis abusivos é como querer tornar colher cana ilegal porque existem pessoas enganando ou forçando bóias-frias a realizarem o que constitui na concepção moderna trabalho escravo. E, adicionalmente, não seria justificado tornar ilegal o exercício autônomo dessa atividade (pelo menos nesse aspecto a lei brasileira é coerente). Pelo contrário, é exatamente a ilegalidade da profissão que permite que exista a exploração, escravização e tráfico de prostitutas. Uma prostituta, ao contrário de um trabalhador rural, não tem a quem recorrer quando ameaçada, pois se recorrer ao estado, apenas acrescentará mais uma entidade à lista daqueles que a vitimizam. A forma mais óbvia e simples de proteger as prostitutas de trabalharem sob ameaças ou coação seria simplesmente a descriminalização da atividade. Isso imediatante faria com que as prostitutas pudessem de fato serem ajudadas (ao invés de perseguidas) pela sociedade, e adicionalmente baixaria os preços dos serviços (pelo aumento da concorrência e diminuição do risco), diminuindo cada vez mais o incentivo para que se voltasse para essa área quem se sentisse muito agredido com isso.

O que nos leva ao primeiro ítem. Quão degradante é prostituir-se? Para começar, é evidente que mulheres diferentes reagirão de forma diferente. Cada pessoa tem uma personalidade e uma vocação. Mas no caso geral, o que é mais degradante, dar prazer a um estranho ou ser forçado a aceitar que um editor mexa aleatoriamente em um texto que você escreveu? Fazer sexo sem sentir prazer ou entregar para os clientes um programa de computador que você sabe que não funciona porque seu chefe mandou? Ser tocada intimamente por alguém que você não ama ou passar noites acordado estudando assuntos que você considera irrelevantes para poder ganhar um título ou passar num concurso? Fazer sexo por dinheiro é mais degradante do que ir ao dentista? Ao ginecologista? Do que passar fome no meio da rua e ver seus sonhos se desmancharem? Do que trabalhar como um cavalo e ganhar um salário mínimo? Do que ser garçonete? (Essa é respondida diretamente por *muitas* prostitutas com um ressonante “não”!) Mais ainda, pergunto : é mais degradante casar-se com um homem de quem você não realmente gosta para ter uma vida financeiramente segura ou cobrar abertamente de homens para prestar os serviços de que eles biológica e psicologicamente precisam? Especialmente nesse último caso, acho a segunda opção bem menos degradante para os dois lados. Além disso, assim como no caso por exemplo de homossexualismo, se eu escolho voluntariamente fazer coisas que outros acham degradantes para mim, isso é problema meu. Se outros quiserem me “ajudar”, me dar opções, fazer discursos ou qualquer outra coisa que não envolva coação, é escolha deles. Mas me forçar a seguir as escolhas que fariam no meu lugar é nada menos que totalitário e opressor.

Me parece que a humanidade, nos tempos modernos, cada vez menos consegue lidar com a questão de sexo de uma forma positiva e construtiva. Metade da sociedade trata sexo de forma cada vez mais despersonalizada e niilista, enquanto que a outra metade o trata de forma fóbica e hipócrita. Onde estão as pessoas que enxergam sexo como algo que envolve sim, sentimentos, compromisso e responsabilidade mas que ao mesmo tempo o vêem de forma natural e construtiva?

Sexo não é apenas sobre orgasmo. Se fosse, masturbação seria suficente e os homens não gastariam tanto tempo, dinheiro, esforço, saúde, paciência, dignidade e reputação cavando – muitas vezes desesperadamente – uma parceira sexual. Especialmente na sociedade ocidental moderna, sexo evidentemente também não é apenas sobre ver mulheres nuas – isso é trivialmente fácil, e novamente, claramente não é a questão. Desnecessário dizer que sexo também não é somente sobre ter filhos, ou ninguém veria qualquer sentido em fazer sexo quando filhos não pudessem ser um resultado, enquanto que evidentemente a maioria das pessoas toma extremo cuidado para que filhos não sejam um resultado. Etc, etc. O papel do sexo na psique humana é muito mais complexo do que tudo isso. Tem a ver com afetividade, com afirmação da identidade, com relações de poder, com necessidade de aceitação, com tantas coisas tão fundamentais que é difícil imaginar um ser humano mal resolvido sexualmente que leve uma vida plena e feliz. Grande parte dos psicanalistas do mundo provavelmente ficaria sem emprego se as pessoas pudessem simplesmente fazer as pazes com suas necessidades sexuais.

O que nos leva de volta à prostituição. As prostitutas não existem por acaso. Elas prestam um serviço que satisfaz necessidades profundíssimas e muito poderosas na psique humana. Desde que trabalhem voluntariamente, qual o problema? Por que uma atividade se tornaria *mais* degradante pelo fato de que alguém está extraindo prazer dela? O cliente acho que ninguém discute que está, mas é ainda mais fantástico ver os ultra-moralistas de plantão criticarem as próprias prostitutas por se entregarem à “luxúria”. É um discurso completamente esquizofrênico, e incompatível com sua suposta vitimização. Como se um boxeador (ou qualquer atleta realmente competitivo) não levasse seu corpo até os limites. Como se um guarda penitenciário não fosse submetido a intenso estresse psicológico. Como se um bombeiro ou policial não corresse risco de vida. Isso me parece altamente sintomático daquela lógica repressora masoquista de que se alguém está se divertindo, então algo está errado.

Acho que chegamos a um ponto de desenvolvimento social e cultural em que antigas leis tribais concebidas há milhares de anos não são mais uma base adequada para o nosso sistema de moral. Talvez em algum momento histórico tenha feito sentido enxergar a prostituição como perniciosa; não sei dizer. Mas hoje, me parece que isso não faz mais qualquer sentido. Diria ainda mais – a aceitação e a normalização dessa atividade vêm potencialmente a contribuir para amenizar vários dos desequilíbrios da sociedade moderna.

Enumeremos aqui algumas das forma como esse efeito positivo poderia ocorrer. Comecemos por alguns benefícios mais diretamente ligados à descriminalização para então prosseguir a outros associados a uma prestação mais ampla e disseminada do serviço de prostituição.

- Proteção das prostitutas contra abusos. A partir do momento em que prostituição não fosse mais criminalizada, e sim legalmente uma atividade profissional como qualquer outra – como babá, dançarina ou psicóloga – o problema de uma mulher ser “forçada” à prostituição diminuiria sensivelmente. Da mesma forma, seria possível organizar as condições de trabalho das que decidissem oferecer seus serviços através de uma agência ou agente. Só seria prostituta quem escolhesse, e em condições mais seguras de trabalho.

- Desmonte de estruturas mafiosas. Como toda atividade criminosa na qual tanto cliente quanto prestador de serviço estão interessados na transação (outro exemplo típico é o tráfico de drogas), a prostituição é notoriamente complicada de combater, e gera toda uma estrutura de poder paralelo (já que não é possível contar com a lei para garantir segurança e contratos). Isso deixaria de fazer sentido e passaria a funcionar como qualquer outro mercado de prestação de serviços.

- Queda dos preços, juntamente com melhora da qualidade e disponibilidade dos serviços. Sem a necessidade de altas taxas de lucro para compensar o risco associado à ilegalidade, assim como com o aumento da concorrência devido à possibilidade de se oferecer e anunciar abertamente os serviços (se bem que em lugares como o Brasil isso já é uma realidade na prática), é natural esperar-se uma queda de preços dos serviços prestados, juntamente com um aumento da qualidade, sem necessariamente uma correspondente diminuição da remuneração, já que de fato o custo de oferecer o serviço diminuiria, além de que a demanda aumentaria.

- Controle de doença sexualmente transmissíveis. Talvez contra-intuitivamente, isso provavelmente resultaria em um controle muito melhor da propagação de doenças sexualmente transmissíveis. Enquanto as pessoas recorrerem a parceiras aleatórias, que desconhecem e que não querem conhecer, premidas primariamente pela necessidade de satisfazer seus impulsos sexuais em situações muitas vezes absolutamente insensatas, é claro que haverá uma taxa muito maior de transmissão de doenças sexualmente transmissíveis. Ironicamente, é muito mais fácil controlar e regular esse tipo de problema quando se trata de uma profissional do que num encontro aleatório. Em tempos modernos, nos quais testes clínicos são baratos e imediatos, é possível facilmente acompanhar o estado de saúde de uma profissional. Já o mesmo não pode ser dito de alguém encontrado aleatoriamente. Adicionalmente, uma profissional em geral terá muitíssimo maior conhecimento e determinação em detectar doenças e precaver-se de contaminação do que uma pessoa aleatória.

- Diminuição do número de estupros. Esta é auto-explicativa. Claro que em grande parte das vezes o estupro é um ato de poder e agressão, não primariamente sexual, etc, mas mesmo assim – existem sim pessoas por aí desesperadas e/ou revoltadas por causa de sexo e um acesso mais universal e menos estigmatizado a esse tipo de serviço mitigaria o problema. Além disso, uma profissional de sexo não é o mesmo que uma namorada; ela poderia no caso geral com muito mais competência (por conhecimento e por estar sendo paga) satisfazer / desarmar de forma controlada os impulsos que desviassem do trivial simples.

- Controle de natalidade. Estamos chegando em uma época em que a humanidade simplesmente não pode continuar se reproduzindo nas taxas que historicamente manteve. Porém, nossa necessidade biológica e psicológica de sexo não se alterou em nada devido a essa conjuntura. Por imbecil que possa soar, uma quantidade substancial das pessoas ainda têm filhos não porque queira ter uma família mas sim como conseqüência colateral da concretização de seus impulsos sexuais. Seria bastante conveniente que tais pessoas suprissem suas necessidades sexuais sem superpovoar o mundo. Nos casos em que tal desejo sexual poderia ser expresso por qualquer pessoa ao invés de por uma parceira específica, uma profissional provavelmente realizará um controle de natalidade muito superior a uma mulher aleatória.

- Casamentos mais estáveis e fortalecimento da família. Existem muitos homens que aceitam ingressar num casamento ou iniciar uma família como forma de garantir uma parceira sexual. Eles não estão necessariamente entusiamadíssimos de vontade de terem filhos com aquela mulher, ou de partilhar uma vida com ela, mas sentem uma necessidade insufocável de terem uma parceira sexual. Nesses casos, a melhor forma de resolver o assunto não é se casar e ter filhos, e sim ter uma parceira sexual. O homens que seriam chantageados a terem uma família como forma de terem acesso a sexo provavelmente estarão mais bem servidos por uma profissional. Por outro lado, as famílias que de fato se formarem provavelmente estarão mais fortemente fundamentadas em interesses comuns, inclusive sexuais. E um homem não precisará desesperar-se em casar com “alguém” (gerando um casamento provavelmente frustrado que terminará em divórcio) por falta de uma parceira sexual. Poderá esperar com muito mais calma por uma parceira com a qual realmente haja uma relação de complementação mútua.

- Homens mais felizes. Existe uma quantidade substancial de homens em nossa sociedade que têm que passar extensos períodos lidando com a (em muitos casos extrema) frustração de não terem atendidas suas instintivas, naturais e saudáveis necessidades sexuais. Sejam quais forem os motivos para essa situação, ela gera uma grande quantidade de infelicidade, que transborda também para a sociedade ao redor.

- Mulheres mais gentis. Nossa sociedade atual pulou de uma situação na qual as mulheres tinham pouca independência política, social e sexual para uma situação diametralmente oposta na qual (especialmente nos EUA) elas têm efetivamente uma quantidade de liberdade superior à dos homens. Por exemplo, se uma mulher chama um homem para sair e ele não está interessado, a resolução normal é ele dizer que não está interessado e a vida continuar normalmente. Já se um homem chama uma mulher para sair e ela não está interessada, por ser que ocorra o mesmo, mas também pode ser que ocorra qualquer coisa desde uma (injustificável, ridícula, hipócrita, neurótica) reação de indignação, uma (cruel) reação de escárnio até, dependendo do contexto, um processo por assédio sexual ou por stalking. Isso tudo tem a ver com uma reação exagerada a uma prévia situação de opressão, mas também com um desequilíbrio entre os comportamentos sexuais femininos e masculinos que ficou muito mais evidente após a “revolução” sexual das décadas de 60/70 após a qual as pessoas se sentiram muito mais livres para perseguir relacionamentos sexuais precedendo ou mesmo sem pensar em casamento. Em nossa sociedade atual, uma mulher normal que deseje sexo (não estou falando necessariamente de relacionamentos) precisa apenas andar até o clube da esquina e esperar. Ja um homem que deseje sexo passa por um processo infinitamente mais desgastante. Diante disso, grande parte dos homens está disposto a aceitar *muita* besteira de uma mulher que seja (ou mesmo que poderia ser) sua parceira sexual. Isso corrompe o caráter de grande parte das mulheres, que se sente numa situação de poder, e abusa desse poder ao invés de agir com dignidade e respeito. Essa atitude se tornaria insustentável num contexto em que o acesso ao sexo fosse trivial. Mulheres antipáticas e rudes seriam simplesmente ignoradas.

- Homens mais sinceros e afetivos. Uma reclamação razoavelmente comum que se ouve no meio feminino é de que “os homens só estão interessados em sexo”. Ora, se eles tiverem acesso simples, seguro e garantido à satisfação de seus impulsos sexuais instintivos, buscarão relacionamentos não profissionais com outras mulheres primordialmente por motivos mais afetivos, como companheirismo e amizade, não apenas para conseguir sexo, ao qual já têm acesso fácil. Isso me parece ser altamente benéfico para ambos os lados.

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