Uma das respostas mais convenientes para a omissão diante do mal, geralmente pronunciada com incontida satisfação com a própria argúcia, é : NÃO É MINHA CULPA, NÃO É MEU PROBLEMA.
Aqueles que acham este raciocínio uma fortaleza de lógica e um respeitabilíssimo princípio moral parecem (seja genuína ou hipocritamente) não perceber quão ridiculamente mal disfarçada esta é, despida de sofismas e maquiagens, simplesmente uma afirmação de que NÃO ME AFETA, NÃO É MEU PROBLEMA.
Por esse raciocínio, se você está passeando sozinho na praia e então observa um bebê abandonado na areia, você pode perfeitamente pensar “eu não causei isso, eu não tenho nada a ver com isso, vou continuar caminhando, não é minha culpa, não é meu problema”. Se você trabalha varrendo o chão para uma companhia que produz antibióticos e descobre por acaso que por um erro de administração um lote inteiro estragou mas eles vão vendê-lo assim mesmo para não perder milhões, você pode perfeitamente pensar “eu não causei isso, eu não tenho nada a ver com isso, não é minha culpa, não é meu problema”. Se você vê está dirigindo numa estrada à noite, observa um atropelamento com fuga do motorista deixando uma vítima agonizante no asfalto, você pode perfeitamente pensar “eu não causei isso, eu não tenho nada a ver com isso, não quero me envolver com isso, vou continuar dirigindo, nao é minha culpa, não é meu problema”. Se você trabalha numa concessionária servindo café e nota que está sendo apresentado a um cliente um orçamento de serviços para seu carro que são flagrantemente desnecessários e desonestamente superfaturados para substituir peças que estão funcionando perfeitamente além de qualquer dúvida, você pode perfeitamente pensar “eu não causei isso, eu não tenho nada a ver com isso, não é minha culpa, não é meu problema”.
Ou você pode escolher fazer alguma coisa sobre o assunto.
Percebam, escolher não fazer nada é também uma escolha, é também uma ação, é também uma iniciativa com significado ético. Mesmo que você possa argumentar que não foi o causador original de um certo resultado, e que talvez nem sequer o desejasse, isentar-se diante da injustiça, da maldade, do que você sabe que está errado e incorreto, calar-se diante da mentira, omitir-se diante da opressão, assumir calado seu papel no que você sabe que é uma farsa e uma impostura, tudo isso é sim transbordante e pleno de implicações éticas. E não fazer nada certamente afeta o outro, especialmente quando você está numa posição privilegiada para mudar o curso dos eventos. Então sim, mesmo que não seja sua “culpa”, suas ações – ou omissões – continuam tendo conseqüências e significado.
Muitas vezes somos confrontados com situações que não criamos mas sobre as quais no entanto temos poder de agir, de interferir. Não interessa de quem é a “culpa” de aquela situação existir, ela está ali e requer que você faça uma escolha sobre como vai reagir diante dela. Se você acha realmente que não ter causado a situação o isenta de qualquer responsabilidade ética, então você perdeu completamente o ponto e o espírito do que significa ética. Se sua única preocupação é “Será que alguém poderá vir a me culpar por isso?”, então transparentemente você está preocupado apenas com você mesmo. Ética não é levar em conta que se você fizer algo errado isso poderá ter conseqüências para você. Até um psicopata convicto se preocupa com isso. Ética é se preocupar com como o resultado das suas ações e escolhas vão afetar o OUTRO.
Claro, você pode aí observar : tá, ok, o fato de não ser minha “culpa” não resolve automaticamente a questão. Mas seja por ação direta ou por omissão, dirá talvez você, continua não sendo “seu problema”, no sentido em que você não aceita como responsabilidade sua zelar pelo bem estar dos outros. Você pode honestamente perguntar : por que eu deveria me preocupar com a consequência das minhas ações sobre os outros, seja ou não por omissão? Por que eu deveria me preocupar se ao buscar ativamente um benefício para mim mesmo e ao cuidar dos meus próprios interesses causo diretamente a desgraça do outro se isso não me afetar diretamente e se não houver pragmaticamente a expectativa de quaisquer represálias ou conseqüências para mim? Chegamos então ao verdadeiro fundamento da questão, que é que para alguns (muitos, possivelmente a maioria) o bem estar dos outros não é realmente seu “problema”. Mas note, esta é justamente a questão central da ética. O que você está realmente perguntando, nesse caso, é : por que deveria eu me importar com os outros, ou com agir eticamente, ou com o fato de que minhas escolhas afetam a felicidade dos seres humanos à minha volta? Por que o bem estar dos outros seria “meu problema”?
Colocada desse jeito, pelo menos é uma questão um pouco mais honesta. E eu não tenho nenhuma resposta irresistível para ela. Eu não tenho absolutamente nenhum argumento filosófico, lógico, científico ou de nenhuma outra ordem que realmente demonstre que a única posição razoável, aceitável, coerente ou justificável seja a de considerar sim o bem estar dos outros. Eu gostaria de ter, e muitas grandes mentes ao longo da história dedicaram imenso esforço para articular um motivo, mas a verdade mesmo é que não há. É essencialmente uma escolha, uma escolha com profundas implicações sobre quem somos e como viveremos nossas vidas, mas ainda assim basicamente uma escolha. Eu poderia dizer que você será infeliz com essa escolha, ou que será eventualmente punido, ou que não está sendo fiel ao seu coração, ou dar um monte de outros argumentos que, bem, refletem muito mais o meu sistema de valores do que a estrutura da realidade. Em geral, nenhuma dessas conseqüências é necessariamente verdade, especialmente se você conhecer a si mesmo e agir de forma minimamente inteligente. Ou seja, é perfeitamente possível e realista ser um patife desprezível e viver uma vida muito feliz. Inclusive, se isso não fosse verdade, não haveria qualquer dilema ou escolha a fazer.
Claro, existem milhões de motivos para escolher não aceitar essa responsabilidade, mesmo quando você a percebe como sendo de alguma forma justificada. Fazer a coisa certa pode ser custoso, inconveniente, desagradável. Agora, vejam – fazer a coisa certa quando ela coincide com os seus interesses é fácil. Difícil é fazê-lo quando ela os prejudica. Escolher fazer a coisa que você percebe como certa em casos nos quais isso vai contra os seus interesses é penoso e complexo, mas isso sim é agir eticamente.
Note, não estou dizendo aqui que devemos ser todos mártires no sentido de colocar o valor do bem estar dos outros acima do nosso e nos autodestrurimos no altar da “etica”. Eu tenho uma prerrogativa tão legítima de valorizar meu próprio bem estar quanto os outros, e eu acho muito natural e correto que em havendo conflito direto de interesses, eu valorize meu próprio bem estar mais do que o de o de um sujeito aleatório. Mas existe uma diferença enorme, gigantesca entre eu TAMBÉM considerar o meu bem estar como importante e eu considerar APENAS o meu bem estar como importante. É preciso buscar um equilíbrio aí. Mas se ao invés disso você considera o seu bem estar tão mais acachapantemente valioso do que o de todos mais que um pequeno e fútil benefício para si mesmo valha a extrema miséria e infelicidade alheia e você está perfeitamente feliz e satisfeito com isso, então meus parabéns, você é um sociopata.
Sim, você tem nas suas mãos a escolha de ser ou não o protetor de seu irmão e não apenas de si mesmo. Você é perfeitamente livre para optar. E isso só faz com que por mais forte razão ainda escolher não o ser, não enxergar como imperativa a responsabilidade e o dever de o ser, que isso seja uma posição estalante de significado.