Pedro Sette Câmara me escreve sugerindo “por que é que você não escreve um artigo bem ateuzão, antes que isso aqui vire um jornal beato?”
Minha primeira reação foi de duvidar da necessidade ou utilidade de um artigo assim; afinal, o ateísmo é mais uma não-crença do que um conjunto organizado de convicções. Não faria sentido, para mim, criar ou organizar uma escola de pensamento baseada nessa não-idéia – seria como fundar uma “associação de pessoas que não acreditam que sejamos todos uma simulação de computador”. Nunca vi nenhum motivo sequer vagamente persuasivo para cogitar que assim fosse, não vou perder meu tempo com isso. Porém, como é possível? Em Deus muitos dizem acreditar! A idéia em si, a nível abstrato, já é meio fantástica, mas o mais impressionante é que não tem nenhuma mais exageradamente mínima correspondência na realidade acessível!
Minha posição ateísta, destaco, não é metodológica; não parto gratuitamente do princípio de que Deus não existe para então tentar sair tirando conclusões. Ao contrário, minhas convicções atéias são resultado de uma postura metodológica mais ampla, baseada na confrontação da reflexão com a experiência e a observação. A maioria dos teístas, eles sim, têm nesse caminho uma escolha metodológica. Vêem a necessidade – lógica, espiritual ou emocional – de que Deus exista a priori. Ou então, nos casos covardes e hipócritas, é simplesmente tão mais conveniente se convencerem (ou agirem como se) de que Deus existe que o fazem.
Evidentemente, há também aqueles que afirmam que foram exatamente a experiência e a observação que os levaram à conclusão de que Deus existe. Seria a postura filosófico-científica, ou seja, resumindo, a de tentar descrever a realidade através de um modelo, comparar as previsões resultantes com o que realmente ocorre, e então estar disposto a corrigir o modelo. Porém, na prática o que via de regra observo ocorrer é que não há absolutamente nenhuma tentativa, das mais débeis, para se corrigir o modelo. Isso é um dos sintomas mais fortes do caráter não científico de atividades como a homeopatia, a astrologia, a acupuntura, assim como da totalidade das religiões, especialmente as teístas (a maioria das quais, coerentemente, pelo menos não se pretende científica). São atividades baseadas na tradição, na revelação e na repetição, e, nos casos mais nobres, também na reflexão, na meditação e na especulação, mas não na modelagem e experimentação. Mais forte ainda do que isso, as mais prudentes e antigas são, normalmente, completamente não falseáveis, no sentido em que não apontam experiências objetivas com resultados observáveis necessários. Seus modelos não incluem qualquer previsão de resultados não viáveis, como qualquer teoria para o funcionamento da realidade tem a obrigação de fazer para poder proclamar-se científica. Nesse sentido, a afirmação “tudo cai para cima” é infinitamente mais científica do que “Devemos resistir ao mal” ou “Deus é formado de pai, filho e espírito santo” ou “Aquarianos são criativos” ou “Este remédio aumenta a sua energia cósmica positiva”. Como demonstrar que essas últimas “hipóteses” não são verdadeiras? Impossível, e vão; elas não são “hipóteses”, não foram concebidas como algo para ser testado. Não são afirmações científicas. Apresentar afirmações desse tipo como científicas sem apresentar formas de falsificá-las é no mínimo ignorância e no máximo desonestidade.
O interessante é que essa “não falseabilidade”, muito longe de ser percebida como sintoma de possível vacuidade de conteúdo, é muito atraente para a maioria das pessoas, que podem então projetar nesses modelos suas próprias convicções e desejos (muitas vezes inconscientes) sobre o que gostariam que fosse verdade.
Claro, porém, que nem tudo neste mundo precisa ser científico. A meu ver, várias das atividades não científicas que discursam sobre como a realidade funciona podem, em princípio, ser fontes de iluminação e transcendência, afinal, há muitas perguntas cujas respostas não estão e talvez nunca estejam ao nosso alcance e que no entanto são parte fundamental da existência humana. Só pra começar, para que se possa falar sobre a realidade é preciso primeiro supor que ela exista e portanto a filosofia, por exemplo, não só é necessária e útil como precede a ciência como desbravadora do desconhecido. Da mesma forma, embora possa querer determinar, digamos, se meu sistema de valores é internamente coerente ou até mesmo consistente com a realidade, não pretendo que ele seja científico – já que, por exemplo, ele passa por necessidades psicológicas até certo ponto arbitrárias minhas. Claro que disso não decorre que ele seja irrelevante ou vazio de conteúdo.
Porém, existe, a meu ver, uma grande distância entre filosofar e refletir sobre o sentido da vida, deveres morais, metafísica, etc… e acreditar em qualquer coisa. Há uma diferença entre elaborar uma determinada interpretação transcendente da realidade – como por exemplo, as religiões em geral fazem – e, por outro lado, dessa interpretação começar a derivar conseqüências práticas não sobre o significado ou o valor de determinados eventos mas sobre sua existência e/ou verificabilidade concretas.
A maioria das pessoas tem, por exemplo, a necessidade psicológica de dividir os atos humanos em bons ou maus, para conseguir viver uma vida produtiva e equilibrada. Sendo essa necessidade um fato em si, e seus benefícios palpáveis; é natural que se queira justificá-la ou discutir suas causas. Pode-se supor, por exemplo, que alguma mega-consciência universal tenha acordado numa manhã de domingo sem ter nada melhor pra fazer e decidido o que é certo e o que é errado. Ok, é uma especulação válida. Mas por que ela seria melhor ou pior do que supor que isso foi um resultado da evolução biológica, ou um artefato cultural, ou obra de lavagem cerebral realizada por alienígenas? Podemos refletir sobre o assunto e especular sobre a resposta – que é a solução filosófica, a única acessível em muitos casos – ou, para certos tipos de questões, podemos comparar o que filosofamos com a realidade, e estarmos preparados para a possibilidade de termos uma decepção – e então estaremos fazendo ciência no sentido moderno da palavra.
No caso das atividades que se aventuram a sustentar previsões e modelos pseudo-científicos, como a homeopatia e a astrologia, sua inconsistência fica patente a partir do momento em que não há tentativas minimamente sérias de confrontá-las com a realidade efetivamente observada (aliás, como dito anteriormente, já fica patente a partir da inexistência dessa preocupação nos praticantes dessas atividades). No caso específico da explicação “Deus”, desconheço qualquer escola de pensamento o coloque seriamente no campo científico da experimentação; normalmente os argumentos apresentados são pessoais e não reprodutíveis (intuição, revelação, etc…) ou então filosófico/lógicos.
Caímos então na tentativa de justificar a crença na existência de Deus através da filosofia, algo que foi repetidamente tentado através da história – o que já é indício de quão nebulosas são tais “provas”. Tomemos, por exemplo, o argumento ontológico. Vou ter que ser sincero aqui; para mim trata-se de uma das asneiras mais inacreditáveis que já se concebeu. A idéia é mais ou menos a seguinte : Deus é perfeito; não existir seria uma imperfeição; logo Deus existe. Só posso dizer o seguinte : caramba! Esse argumento não é piada; foi usado seriamente por teólogos. Claro, não cabe aqui buscar refutar minuciosamente essa ou qualquer outra das milhares de “provas” filosóficas da existência de Deus – para isso precisaria de mais algumas centenas de páginas. A questão que quero colocar é que, na minha avaliação, todas as que conheço dão saltos mortais mirabolantes e indefensáveis de anti-lógica, recorrem à “necessidade de um princípio organizador” ou ao fato de que “nada ocorreria sem uma força motriz” ou “tudo o que existe é criado por algo que lhe é superior” ou “o conceito do perfeito não pode surgir espontaneamente de uma realidade imperfeita”, e assim por diante. Em resumo, ouvi, processei, e não estou nem um pouco convencido.
Claro, podemos também simplesmente ignorar todas as evidências e argumentos devido à necessidade de acreditar numa determinada explicação, assim como uma criança pode ter necessidade de acreditar em coelhinho da páscoa. Isso pode se dar por comodidade, por medo, por corresponder a anseios emocionais – as motivações possíveis são várias e poderosas. O que observo é que a crença em Deus – assim como em algumas outras coisas – na maioria absoluta das vezes está mais ou menos por aí; ele é um papai noel que conquistou respeitabilidade social, resultado de um estado infantil de desenvolvimento psicológico em que o sujeito não percebe, não compreende ou não aceita o fato de que a realidade independe de suas necessidades e fantasias. Aliás, um problema muito comum.
Finalmente, há aqueles que parecem perceber a distinção entre fantasia e realidade, que parecem não estar numa armadilha dessas e mesmo assim proclamam acreditar em Deus. Geralmente tendo a acreditar que apesar de não parecer, no fundo estão – que o custo de renunciar a essa crença seria grande demais, que precisam dela por algum motivo. Porém, suponho que até nas melhores famílias na busca da verdade às vezes é mesmo possível cometer alguns grandes erros de julgamento.