“O moralismo é o câncer da ética” – Betinho
Pedro Sette abre seu artigo mais recente citando São Paulo : “Tudo é bom, mas nem tudo é conveniente”. Acho a citação muito feliz e apropriada, e concordaria com ela sem qualquer problema. Portanto, já partimos os dois de uma base consideravelmente comum – o prerequisito para um debate que faça algum sentido. Resta, naturalmente, discutir como decidir o que é e o que não é conveniente.
Com relação a isso, cito acima uma fonte que normalmente não me agrada muito, mas que nos deixou alguns pensamentos interessantes, como esse. Acredito que a intenção nesta frase fosse, em resumo, repudiar a idéia de que seja possível tranformar o pensamento moral em uma cartilha petrificada de atos bons e maus. Mais do que isso, a frase parece conter a noção de que o desejo de impor um determinado conjunto de reflexões éticas criados por uma pessoa ou grupo em particular a todos em volta é algo comparável a uma doença.
Podemos ir ainda mais longe. Eu diria que um significado ainda mais profundo que podemos tirar dessas poucas palavras é o de que mesmo quando estamos com total razão e mesmo que por inspiração divina pudéssemos ser informados onde afinal de contas está o lado do “bem”, mesmo nesse caso pode não ser conveniente – para usar as palavras de São Paulo – tomar em nossas mãos a tarefa de retificar a todo custo e até o último detalhe a mais mínima ação “errada” daqueles à nossa volta. Fazê-lo, além de ser extremamente pretensioso, pode ser invasivo e destrutivo se levado às últimas conseqüências.
Apesar de ter opiniões fortes sobre determinados assuntos, eu tendo a concordar com esta visão desfavorável do moralismo, portanto mais uma vez assinaria embaixo de vários pontos levantados pelo Pedro em seu artigo. Contudo, somente até um certo momento.
Em primeiro lugar, acho equivocadíssimo concluir daí que não se deve “julgar os outros segundo seus (de quem julga) próprios critérios morais”. E ainda por cima usando o argumento de que “todos pecaram” como se daí decorresse que portanto ninguém teria autoridade para criticar o que quer que seja. Se não vamos julgar os outros segundo “nossos próprios critérios morais”, vamos julgar segundo quais, então? Segundo os do autor do ato? Segundo os do papa? Segundo a média da sociedade? Isso sim seria fazer pouco do “julgamento moral pessoal e instransferível” que Pedro descreve. Quanto à não inocência dos julgadores, ora – se formos realmente considerar cegamente as palavras de Jesus de forma literal e concluirmos que ninguém pode realmente julgar ninguém, ponto, então deveremos achar muito bom e normal o canibal, o estuprador, o genocida, etc… pois afinal de contas ninguém aqui é imaculado. Não acho que fosse isso que ele buscasse instar as pessoas a fazerem. Não acho que a pregação dele fosse a de que devamos abrir mão de ter um julgamento moral. Acredito, sim, que o sentido é outro bem diferente – o de que não devemos ser intolerantes e implacáveis ao perceber os erros dos outros. Ao impedir que a mulher infiel fosse apedrejada, em nenhum momento ele levantou dúvidas sobre o fato de que ela havia mesmo pecado.
Pedro diz também que “as coisas não são boas ou más conforme as julgamos, e sim conforme se apresentam em um dado momento”. (Aliás, acho muito engraçado ver essa idéia na boca de quem é incondicionalmente contra o aborto.) Conclui então que “as questões do bem e do mal no mais das vezes se apresentam apenas como casos concretos e irredutíveis, dos quais raramente se pode extrair uma regra geral”. Ora, longe de mim querer defender que o significado moral de um ato não dependa do contexto em que ele se insere. Concordo plenamente que cada ato humano é único e tem também um significado único, e que não há quantidade de regras suficiente para dar conta de todos eles. Porém, isso não quer dizer que as “regras” não nos permitam apreender parcialmente o significado de um ato, um aspecto desse ato, visto à distância, num alto grau de abstração. É claro que a realidade é independente e sempre muito mais rica do que as abstrações que construímos sobre ela, mas somente através da construção de abstrações podemos processar o conhecimento incompleto e imperfeito a que temos acesso. É óbvio que todos os assassinatos são diferentes e têm significados morais muito diferentes. Mas também me parece bastante razoável dizer que um assassinato seja algo em princípio ruim; senão, teremos que rejeitar “Não matarás” por ser “insensível ao contexto”.
Mais adiante, Pedro elabora especificamente sobre a questão do significado moral da aproximação com a namorada de um amigo, e diz : “E ainda pode acontecer de ela ser um bem tão importante e fundamental que justifique o rompimento de quaisquer relações.” Ora, agora sim estamos entrando em terreno perigoso. Quer dizer então que “o rompimento de relações” pode ser um “preço” razoável a se pagar para atingir o “bem” de relacionar-se com a namorada do amigo? Ora, essa é a racionalização mais antiga do mundo para se realizarem as maiores besteiras. Claro, eu consigo construir mentalmente um contexto em que “relacionar-se com a namorada do amigo” (ou até mesmo esposa, estragando seu casamento) possa colateralmente trazer de alguma forma um “bem”, assim como posso imaginar contextos em que matar alguém traz um “bem” (um psicopata ameaçando dez reféns, por exemplo). Porém, isso é uma forma de driblar a questão de que o ato em si é, em princípio, moralmente indesejável! Devemos lutar para que não seja necessário abater o psicopata a tiros e não buscar deliberadamente esse desfecho. Simplesmente executar o psicopata é imoral mesmo que o desejo de fazê-lo seja compreensível (isso me lembra a última cena de “Seven”).
Próximo ao final do artigo, Pedro afirma que “A idéia de uma moralidade atéia, que permaneça como uma régua fixa de um objeto mutante, dissociada das necessidades da vida real da alma, e daquilo que lhe convém ou não em tal ou qual momento na sua peregrinação rumo à perfeição, não pode ser minimamente aceita.” Pra começar, não percebo qual a relevância do “atéia” neste caso. Quer dizer então que uma moralidade que permaneça como uma régua fixa, etc… seria muito boa se não fosse atéia? Não deve ser isso, pois nesse caso vários trechos do artigo seriam refutados por um ou dois mandamentos. Será então que ele está querendo defender que do atéia decorrem as outras críticas? Acho que não, pois a posição atéia nitidamente permitie (e até favorece) o relativismo moral e coisas como “réguas não fixas”. Acredito, portanto, que a rejeição aqui seja ao “atéia” em si mesma, como na frase “não posso aceitar uma moralidade atéia”, independentemente das outras críticas apresentadas na frase. E acho que a motivação para isso está na colocação prévia de que “E ao meu amigo Sergio, a quem estimo e respeito, falta a medida fundamental, que é a admissão da existência de Deus. Somente o absoluto divino pode mensurar e dar sentido ao relativo humano.” O problema é que o benefício apontado pela admissão da existência de Deus nesse contexto seria, portanto, precisamente estabelecer uma escala em comparação à qual poderíamos avaliar alguma coisa. Só que o que seria isso senão exatamente a “régua fixa para objetos mutantes” execrada logo em seguida? Aliás, a própria imagem não me parece muito bem escolhida, pois o objetivo mesmo de uma régua é justamente ser fixa diante de objetos mutantes – esse é seu comportamento esperado e apropriado. Senão, tudo teria o mesmo valor moral e avançar um sinal seria um erro de valor tão grande quanto (ou no mínimo incomparável ao de) dar um tiro em alguém. Claro, isso, por mais que o Pedro não queira, acaba sendo a indefensável (a meu ver) posição relativista. Portanto, a idéia de usar “réguas mutantes” para “objetos mutantes” definitivamente não parece muito acertada. Vem então a crítica “dissociada das necessidades da vida real da alma”. Bem, aí, já concordo; uma moralidade baseada em modelos abstratos e que não se refira, a cada aplicação, à vida real e concreta, provavelmente resultará em um erro de julgamento atrás do outro. Em nenhum momento eu fiz a defesa do contrário. Exprimi meu julgamento pessoal sobre várias situações, com afirmações como “roubar é ruim”, mas é claro que não pretendi com isso excluir o contexto no qual a ação ocorre. Se um mendigo “rouba” um pão quando ninguém está olhando porque está com fome isso tem um significado moral bem diferente de apontar um revólver para cabeça de alguém e dizer “isso é um assalto”. Novamente, posso até imaginar um contexto em que um roubo possa trazer, colateralmente, um bem (o mendigo não morrer de fome certamente me parece ser um bem) mas isso não significa que (aliás, como alguns acabam se enrolando em achar) o roubo que o mendigo cometeu, em si, seja um “bem”. Não vamos agora tentar resolver o problema da fome dos miseráveis incentivando-os a furtar (não que não haja gente que ache a idéia ótima).
Finalmente, Pedro conclui ao final que “a correção nas ações é mais importante do que o fluxo descontrolado da simples imaginação e dos desejos”. Concordo plenamente com isso, e nunca sugeri que o contrário fosse verdade. O que defendi (e reitero) em meu artigo original é que deliberadamente cultivar pensamentos imorais é diferente de sentir atração uma passageira atração pela mulher que passou ali na esquina. E que acreditar que “o fluxo descontrolado da imaginação e dos desejos” possa ocorrer sem quaisquer conseqüências concretas me parece meio pouco realista. E nisso, não estou sozinho:
Mateus, 5 (Sermão da montanha)
27 Vós ouvistes o que diziam nos tempos antigos : “Não cometais adultério”
28 Mas eu vos digo : Aquele, seja quem for, que olhar para uma mulher com desejo por ela já terá cometido adultério com ela em seu coração.
29 E se vosso olho direito vos ofende, arrancai-o o jogai-o longe, pois é de maior proveito para vós que um de vossos membros pereça a que o corpo todo seja atirado ao inferno.
Ou seja, no cristianismo, o mandamento não é algo óbvio como “não tomar a mulher do próximo” e sim algo de significado moral mais amplo que é “não cobiçá-la”.
Por que é que não há mandamentos como “não estuprar” ou “não comer carne humana”, etc…? Acredito que isso se deva ao fato de que é tão óbvio que isso não é pra fazer que ninguém normal tentaria ficar inventando argumentos para dizer que fazê-lo seja bom. Já em algumas outras situações – como cobiçar a mulher do próximo, e não apenas dar uma olhadela nela e achá-la atraente – nossa inteligência pode freqüentemente nos prestar um desserviço ao construir elaboradas racionalizações para tentar justificar o que no fundo é imoral mesmo.
Boa noite!
Parabéns, você foi tão profundo que não tenho argumentos.
Creio que é por ai que as coisas se passam.