Prazer Sem Consciência

June 14th, 2000 by Sergio de Biasi

Mais uma vez sinto-me tentado a escrever sobre este tema. Postado diante do desenrolar da mais absoluta confusão moral sobre o significado de certas atitudes, fui recentemente confrontado com o seguinte argumento/defesa : “Mas sentir desejo é humano e natural, seja qual for o objeto; certamente não podemos ser acusados por isso se formos corretos em nossas ações.”

Eu, que nunca acreditei em crimes de pensamento, tendo a concordar com a afirmação. Certamente, no domínio da lei jurídica, repudio veementemente qualquer tentativa de controlar coercitivamente o que uma pessoa pode ou não pensar. Mas e no campo moral? Será que esse divórcio faz assim tanto sentido ou começa a ter um cheiro danado de racionalização?

Sim, sem dúvida, olhar para as realizações, ou para a aparência, ou para o automóvel, ou para a mulher do próximo e desejá-los para nós mesmos é um sentimento humano e natural. Da mesma forma, são absolutamente básicos no ser humano um sem número de outros impulsos, nem sempre lá muito construtivos ou morais se levados à ação mais imediata. Por outro lado, parece razoável concluir que, se do pensamento imoral não passarmos à açao imoral mais rasteira e óbvia, estaremos mantendo intocada a nossa integridade moral. Será? Será mesmo que é só isso?

Analisemos a seguinte situação. Alguém lhe dá uma fechada no trânsito e lhe cause um acidente sério. Você, tomado pela ira, pensa “vou dar um tiro nesse imbecil”. Daí sua consciência moral entra em ação e você decide não levar esse pensamento à sua realização concreta. Porém, sem qualquer interferência sua, por acaso, um ônibus que passava atropela o outro motorista quando ele sai de seu carro e você sente um enorme prazer com isso. Isso é moral? Supondo que não tenha sido o medo das conseqüências, e sim sua a força de sua consciência moral que lhe tenha levado a decidir não cravejá-lo de balas, deverá você então ficar feliz que outro seja o instrumento involuntário de sua vingança, da manifestação da sua ira? Pergunta ainda mais perigosa : você fez alguma coisa para salvá-lo ou avisá-lo do ônibus? (Ou seja, será que tomado de sentimento tão imoral sua ação realmente permaneceu moral?)

Outra situação. Suponhamos que você convive com um sujeito que leva uma vida confortável enquanto você passa por dificuldades financeiras. Digamos que por vezes você tenha o “impulso natural” de invejar a situação do outro. Só que, a partir daí, você começa a cultivar esse sentimento ao ponto em que não consegue mais tolerar o fato de que o outro viva confortavelmente, em que o bem-estar do outro lhe provoque raiva, ódio, ira. Não sendo um sociopata total, você não toma nenhuma ação para prejudicá-lo. Porém, sem qualquer envolvimento seu, seu colega vai à falência e é atirado numa situação de grande necessidade. E com isso você sente um enorme alívio e prazer. Isso é moral? Isso por acaso pode ser chamado de moral? Ainda mais embaraçoso : você tentou fazer algo para ajudá-lo a salvar sua situação financeira?

Colocados tais exemplos para ilustrar as questões em consideração, vamos nos concentrar no comportamento a que se refere o argumento que abriu o texto – o de desejarmos algo que faz parte da vida de outro. Há várias formas de lidar com tal sentimento.

Podemos buscar atingir o objeto de nosso desejo em analogia, ou seja, deixando intocado o objeto original. Na sua manifestação mais saudável, podemos até mesmo ter (quando exercido com temperança) um sentimento perfeitamente moral – o de admiração. Nesse caso, buscamos, através de nossos esforços, contruir para nós mesmos, independentemente, uma realidade que possua as qualidades que admiramos na do outro. Percebemos nosso desejo como sinal de uma limitação ou insuficiência nossa e buscamos remediá-la através de um esforço contrutivo. Não buscamos ficar iguais ao outro (uma degeneração da admiração) ou roubar o que é do outro – buscamos aperfeiçoar em nossas próprias vidas aquilo que nosso desejo denuncia como incompleto. Ou seja, ao vermos o outro com uma mulher linda, percebemos ainda mais claramente como queremos para nós mesmos uma mulher linda e nos esforçamos para conquistar e merecer uma mulher que consideremos linda. Depois da reflexão inicial, a mulher do outro sequer entra na história.

Uma forma menos virtuosa mas não necessariamente destrutiva de expressar esse tipo de sentimento é através da competição. Nesse caso, nosso desejo não é o auto-aperfeiçoamento diante da nossa própria consciência, e sim em comparação ao outro. No melhor caso, tem o mérito de servir como motivador para o auto-aperfeiçoamento. No pior caso, a virtude da qualidade admirada pode ser obscurecida ou mesmo esquecida em função da necessidade de “superar” o outro. Assim, se ele tem uma mulher linda, tenho de arranjar outra igual (ou dez vezes melhor) não por merecê-la ou para fazê-la feliz e sim para esfregá-la na cara do outro.

A partir daí, caímos em manifestações cada vez menos morais de nosso desejo pelo que faz parte da vida do outro.

A mais comum delas é não expressar ou cultivar um tal desejo sob a forma de analogia e sim sob sua forma concreta – ou seja, a de efetivamente possuirmos o que é do outro no lugar do outro. Aí, sinto muito – caímos em alguns dos vícios mais danosos à vida espiritual de qualquer ser humano, universalmente descritos em todas as religiões (em particular na católica, figurando sob mais de uma forma entre os pecados capitais e nos dez mandamentos). Nesse caso, se achamos que o outro encontrou uma mulher linda em sua vida, queremos tê-la para nós. E para consegui-lo, podemos tomar ações auxiliares com diversos graus de imoralidade. Podemos destruir fisicamente o outro – por exemplo matando-o ou conspirando para matá-lo (uma idéia definitivamente comum nas mentes mais pervertidas). Podemos buscar deliberadamente seduzir a mulher do outro através de atos e/ou palavras. Podemos conspirar ou auxiliar para que alguma mulher seduza o outro. As possibilidades são infinitas. (Refletirei mais sobre esse exemplo um pouco adiante.)

Finalmente, a forma mais perversa e degenerada da expressão desse tipo de sentimento é quando a dor de ver que o que é do outro não lhe pertence é tão grande que o sujeito prefere provocar a destruição do objeto cobiçado a admitir a persistência dessa situação. Nesse caso, a perda do objeto cobiçado pelo outro, em si mesma, já traz gratificação, assim como sua eventual usurpação, mesmo que este tenha perdido toda a sua virtude original.

Sim, ter desejo pelo que faz parte da vida do outro é natural e humano. Como cultivamos e expressamos esse desejo, porém, é particular a cada personalidade e consciência.

Voltando ao último exemplo, tornando a situação mais concreta : suponhamos que um amigo seu tenha um relacionamento sério com uma mulher que desperta o seu próprio desejo.

Será por acaso moral continuar próximo dessa mulher após perceber em si o crescimento progressivo desse desejo?

Será que é moral cultivar esse desejo?

Será que é moral continuar próximo dessa mulher após perceber que ela se envolve com você?

Será que é moral cultivar uma situação de total conflito de interesses em que o insucesso do relacionamento do seu amigo lhe beneficie diretamente?

Será que é moral, após uma possível separação do seu amigo, investir num relacionamento com ela sem considerar os sentimentos dele sobre o assunto? Não será isso absolutamente equivalente a torcermos para que nosso colega do lado deixe sua bela calculadora científica na cadeira da sala de aula para então a “encontrarmos”?

Será que é moral iniciar um relacionamento mais próximo com ela mesmo sabendo que isso evidentemente trará desgosto ao seu “amigo”?

Será que é moral, em qualquer uma dessas circunstâncias, agir furtivamente e manter deliberadamente ocultos seus atos? Será que isso em si mesmo já não denuncia a natureza dos mesmos?

Cada um tem (ou deveria ter) sua própria consciência, a qual estará na condição mais privilegiada possível para julgar se incorreu em algum desses comportamentos. Quanto às respostas sobre a moralidade deles, bem – para mim, essa resposta é tão clara que é como aquela piada : “Se você precisa perguntar o que é jazz, esqueça.”

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