Esta semana (12/06/00) foi publicado no Globo um artigo em que o Sr. Osias Wurman festeja com enorme entusiasmo uma maré de leis e condenações voltadas a reprimir… a reprimir o que mesmo? A princípio poderíamos imaginar que fosse o exercício do racismo. Porém, um exame mais atento mostra que a simples livre descrição ou discussão de doutrinas racistas já lhe parece odiosa e criminalizável. Na verdade, a conclusão inevitável é a de que o que ele defende (entusiasticamente) é a proibição de que qualquer um divulgue, discuta ou mesmo cite qualquer idéia que não seja previamente autorizada pelo governo.
Esse conceito, naturalmente, não é novo. Ele floresceu com muita força em diversos momentos históricos – normalmente não muito edificantes. Tivemos isso na União Soviética (onde cientistas que insistiam em encontrar resultados que “contradiziam” a linha do partido eram internados em hospícios como loucos), temos atualmente na China Comunista (onde antes de uma “manifestação popular” o governo distribui uma lista dos slogans que poderão/deverão ser usados em cartazes), e nem é preciso ir tão longe : ocorreu aqui mesmo em nosso país (onde já vivemos, por exemplo, a indignidade de ter que submeter letras de música à análise prévia do governo – o qual vetava mesmo).
Claro, o exemplo mais clássico de esmagamento do senso crítico das massas e da imposição à força da opinião oficial é um que talvez não agrade ao Sr. Wurman – a execrada Alemanha Nazista. Os “filhos de Goebbels”, como o Sr. Wurman diz, acreditavam justamente no uso da máquina governamental para, através da força, impingir suas idéias, valores e símbolos goela abaixo de todos ao seu alcance. Talvez o Sr. Wurman possa argumentar “ah, mas é diferente, pois nesse caso quero tornar ilegais justamente as idéias ruins”. E eu respondo : pois é, esse é justamente o modo nazista de fazer as coisas.
Tornar idéias ilegais, por mais odiosas que nos possam parecer (ou que sejam mesmo) é algo que não cabe numa sociedade que pretenda ser democrática.
O conceito de “liberdade de expressão” não existe por acaso. Ele não serve para defender e proteger aqueles que dizem coisas bonitinhas com as quais concordamos. A profundíssima idéia por trás dele é a de que é muito importante que as pessoas que têm coisas desagradáveis para dizer possam dizê-lo, mesmo que nos pareçam “erradas” ou “nocivas”. Mesmo que efetivamente sejam imorais. Podemos até restringir ou qualificar esse direito (não tenho direito de expressar minhas opiniões com um megafone às três da manhã), mas chamar de “liberdade de expressão” uma situação em que apenas podem ser manifestados pensamentos que alguém decretou que são bonitos, verdadeiros e construtivos é uma contradição e uma farsa.
A relevância do conceito de “liberdade de expressão” está justamente nisso : ele está aí, sim, para proteger justamente os heréticos, os iconoclastas, os nazistas, os racistas, os pornógrafos, os revolucionários… Dizer que não devemos confundir liberdade com libertinagem é muito razoável, mas parece, na visão do Sr. Wurman, significar que não devemos confundir liberdade com liberdade.
É óbvio e claro que não devemos permitir que as pessoas saiam na rua agredindo ou ameaçando minorias – ou, na verdade, quem quer que seja. Só que isso já é ilegal! O Sr. Wurman quer mais. Ele gostaria de proibir que um universitário que estuda história tenha acesso, por exemplo, ao que Hitler escreveu. Ou que alguém abra um site questionando o número oficial de vítimas do holocausto. Ou que alguém divulgue teorias malucas sobre conspirações de negros, brancos, índios, judeus ou esquimós contra quem quer que seja.
Agora me digam, como é que um jovem ou mesmo um cidadão qualquer de hoje vai saber que deve odiar Hitler se não souber quem ele foi e o que pensava? Se não puder ler “Mein Kampf” e pensar “que horror”? Ah, claro – talvez o Sr. Wurman tenha receio de que a verdade histórica e a honestidade não sejam páreo para a (desonesta, evidentemente, sem ironias) retórica nazista. Nesse caso, devemos esconder todos os livros nazistas e contar para as “crianças” somente o que os nazistas realmente pensam e o que eles realmente fizeram. Para isso, contaremos – defende o Sr. Wurman – com a ajuda do governo, que se encarregará de decidir que opiniões e informações são ou não legítimas sobre o assunto. E quem tiver o azar de ter uma opinião “errada”, bem, além de ser criminalizado, torna-se automática e oficialmente – pelo menos no mundo imaginado pelo Sr. Wurman – um “nazista”.