Há algumas semanas, surgiu na praça próxima à minha residência, no Rio de Janeiro, um grupo de – como direi? – mendigos de rua. Talvez o leitor estranhe que eu não saiba como chamá-los, e é exatamente esse o ponto – é grande também o meu estranhamento. Afinal, mendigos de rua já os vejo, infelizmente, desde quando era pequeno. Há os mais diversos tipos. Bêbados, sóbrios, velhinhas, deficientes, crianças, há até os que parecem ter um trabalho diurno mas não ter um lugar para dormir.
Esses recém-chegados, entretanto, não parecem nada disso.
Apesar de eu assistir há décadas aos mendigos de rua convivendo pacificamente com o resto da população do bairro, inclusive sobrevivendo em grande parte devido à ajuda que recebem, esses, muito claramente, não parecem adeptos da paz. Onde estão, constantemente surgem problemas. E, dado o seu comportamento, isso não chega a ser uma surpresa. Essas pessoas não demonstram o mais remoto sinal de respeito, moral ou civilidade com relação à comunidade ao seu redor. Abordam transeuntes de forma insistente e hostil, bloqueiam os caminhos de passagem, envolvem-se freqüentemente em brigas – mas tudo isso sem qualquer propósito claro, e na verdade grande parte do tempo têm todo o comportamento confuso típico de drogados. Juntam-se num bando do qual os moradores do bairro aprenderam a desviar a caminho de seus afazeres diários.
Digo “bando” pela falta de uma palavra melhor. Para começar, não são dois ou três. Claramente não fazem o tipo de mendigo – ou mesmo núcleo familiar – solitário, que enfrenta suas dificuldades como consegue, vivendo na rua do jeito que dá. Não vejo uma família carente, ou um desempregado, ou crianças de rua, ou um velho sofrendo com o abandono. Por outro lado, também não são uma quadrilha organizada, ou uma gangue de rua. Vejo algo que não sei definir direito. Talvez sejam as crianças de rua de ontem, mas agora não sei mais o que são. Claramente não são mais crianças, com juventude, inocência e fragilidade: há inclusive garotas com bebês no colo e rapazes que metem medo em quem passa perto. Porém, claramente também não são adultos, pois para isso necessitariam de um comportamento com um mínimo de equilíbrio, de responsabilidade, de uma maturidade e uma segurança que nitidamente não têm. Formam um bando amorfo, carente de algum tipo de relação social definida entre eles mesmos ou com a sociedade ao seu redor. Enquanto isso, eles incomodam, irritam e amedrontam os moradores do bairro.
Há alguns dias eu estava voltando para casa e vi uma confusão na praça. Aproximei-me e, pelos comentários, o grupo aparentemente (não posso afirmar pois não estava lá) havia incomodado uma velhinha e, diante disso, um oficial militar que passava resolveu interpelá-los. Daí se iniciou uma discussão, a qual descambou para uma briga em que o militar se atracou com dos membros do grupo. Foi nesse ponto que cheguei. O militar estava fardado e com uma arma no coldre na cintura, mas (muito equilibradamente) em nenhum momento fez sequer menção de puxar sua arma. O grupo começou a comportar-se de forma cada vez mais histérica, mas só isso mesmo: histérica. Berravam e urravam, e faziam ameaças, mas recuavam ante a total segurança e decisão com que agia o militar. A essa altura, passantes e moradores do bairro haviam parado em grande quantidade para observar. A quase totalidade das pessoas fazia comentários como “É isso mesmo! Já estava na hora de alguém fazer alguma coisa!” e “Tem mais é que meter bala nesses caras!” e “Agora talvez minha mãe possa voltar a passar aqui de noite!”.
Afinal, quando a confusão já estava ficando realmente grande, surgiu um PM e dirigiu-se ao militar, com um diálogo que, à distância, pareceu algo como “deixa disso, vamos sair daqui” e ambos foram embora (isso mesmo), deixando o bando furioso e a multidão olhando uns para os outros com cara de “e agora?”.
Nesse momento, um dos membros do grupo se jogou no chão e começou a berrar “ai, ai, ai” e um outro a gritar “A polícia bateu num menor! A polícia bateu num menor!”. Um dos membros da multidão que achou aquilo uma farsa ridícula e revoltante começou a exclamar “Isso é ridículo, esse cara está fazendo teatro!”. Os berros foram esquentando e a situação também, até que apareceu um amigo do sujeito para dizer “deixa disso” e começou a levar ele embora. Quando ele começou a ir embora, o que estava no chão gritando “ai, ai” se levantou, aos berros, e começou a atirar pedras e objetos no que denunciava seu teatro. Este ficou finalmente furioso, e partiu com tudo pra cima do que estava no chão, iniciando uma nova briga com o bando, na qual distribuiu e recebeu pancadas.
Diante disso, um sujeito que estava perto de mim, com jeito de trabalhador que estava a caminho de algum lugar e havia parado para ver o que estava acontecendo, falou com preocupação : “É a guerra civil. Ninguém quer dizer, mas ela já começou.”
E eu ouvi aquilo, e pensei, e pensei… e não é que o sujeito tem razão? Eu ligo a televisão, e vejo os traficantes fazendo emboscadas para a polícia. Vejo a prefeitura sendo metralhada. Vejo que os fazendeiros brasileiros próximos à fronteira com a Colômbia estão se reunindo para criar organizações paramilitares para se defender do MST. Se fosse em outro país, talvez percebêssemos mais claramente com todo o seu significado sombrio: GUERRILHA. Não se tratam de simples ladrões ou desordeiros; seus objetivos não são meramente financeiros, mas políticos. Não é uma somente uma quadrilha querendo dinheiro. Tratam-se de movimentos políticos nem um pouco secretos, organizados nacional e internacionalmente com o objetivo declarado de mudar nossas instituições pelo uso da força.
Agora, o que deveríamos esperar dos fazendeiros, dos comerciantes, da população em geral se o governo primeiro determina o monopólio do poder de polícia e depois não o exerce? Se o MST anuncia publicamente sua intenção de cometer crimes, efetivamente os comete e, escandalosamente, NADA ocorre, ninguém é preso nem investigado? Se fazendas inteiras são queimadas e destruídas, policiais são atacados e o resultado final é que os atacantes levam suas vítimas à justiça por reagirem? Se a política federal de segurança pública consiste em confiscar os meios de autodefesa dos cidadãos? Se ao policial nunca é permitido agir em defesa da sociedade porque o agressor sempre “é de menor”? O pivete te roubou no sinal? Sinto muito, é de menor. O capanga do traficante fuzilou um líder comunitário? Sinto muito, é de menor. Pois parece que a mesma resposta está sendo dada (ou farsescamente imposta) em outros casos. O MST invadiu sua casa? Sinto muito, é de menor.
E assim como eu vi o militar que passava, por iniciativa própria e praticamente solitária, atracar-se com um bando no meio da rua para nos defender a todos, imagino o dia em que finalmente chegaremos a um ponto tão terrível em que será preciso que não a polícia, mas o exército tome uma atitude para nos salvar a todos do MST. E quando e se ele ousar fazê-lo, as mesmas vozes de sempre gritarão: “Selvagens! Genocidas! Hereges!” na tentativa de convencer a platéria hesitante de que o MST “É de menor”. Que é inocente, coitado, que são um bando de crianças miseráveis e indefesas armadas com toscas foices e lutando contra tanques e bombas. Só que eles não se reúnem às centenas com foices para atacar um quartel, e sim para deliberadamente aterrorizar fazendeiros e suas famílias. E, enquanto hesitamos diante de tantas mentiras, a verdadeira revolução já está ocorrendo nas nossas cabeças. Pois a maior revolução não é assustar fazendeiros, destruir suas propriedades, matar seus funcionários e invadir suas casas; qualquer bando de desocupados pode fazer isso. A revolução está em conseguir fazer isso em rede nacional de televisão e a sociedade ser engambelada a deixar por isso mesmo.
Algum tempo após a confusão, chegaram vários carros de polícia à praça próxima à minha casa. Pararam um pouco, fizeram algumas perguntas, foram embora. E o bando, retomou à sua rotina de costume.