Estamos observando, na situação de total descontrole que tomou conta do Rio de Janeiro, o resultado direto da arrogância dos dirigentes das políticas de segurança pública.
Após cada ordem dada para se paralisar o funcionamento do comércio, das escolas e dos serviços públicos, dadas por vezes acintosamente por capangas armados, os comandantes da polícia militar, ao invés de se desculparem perante a população e prometerem soluções imediatas, dão declarações que beiram o delirante de que “está tudo sob controle” e que “só fecha quem quiser”.
Será que eles imaginam que alguém por acaso efetivamente queira fechar? Não percebem que para chegar a esse ponto tem que estar havendo um grande movimento de intimidação contra o qual a população não se sente minimamente protegida? Não há necessidade de o leitor responder; o fato é que eles não percebem.
Se um sujeito pode passar na frente da minha loja, armado ou não, ordenando ameaçadoramente que eu feche e absolutamente nada ocorre com ele, por que é que devo acreditar que quando esse sujeito voltar para me matar, agredir ou simplesmente vandalizar a minha loja, então alguma coisa irá acontecer? De que me adianta a polícia chegar duas horas depois dizendo que eu posso abrir a minha loja que “eles garantem”? Se ao invés de me ameaçar, o sujeito tivesse me agredido, claramente nada o teria impedido. E quando anoitecer, a polícia vai embora para casa, mas minha loja continuará lá, no mesmo lugar, no dia seguinte, e no próximo, e no outro. Se eles não estavam lá quando vieram me ameaçar, se não conseguem impedir essas repetidas e truculentas ameaças, se não conseguem eliminar as estruturas de poder que as comandam, então eles não têm o direito, não têm a autoridade para vir me dizer que eu devo me sentir seguro.
Porém, a arrogância dos dirigentes da segurança pública é tão grande que negam que sequer haja uma situação anormal. Repetem seu mantra de que “está tudo sob controle” enquanto bairros inteiros são aterrorizados e uma situação de inexistência de autoridade que há muito já existia nas favelas se derrama sobre toda a cidade, com o aumento paulatino de situações antes impensáveis como barreiras criadas por criminosos em vias expressas, fechamento de túneis, ameaças ao comércio, às escolas e às instituições públicas em geral, toques de recolher, enfim, sintomas patológicos indiscutíveis de que a ordem pública, está, sim, sendo ameaçada.
Não se trata mais de aumento do número de assaltos, de mera estatística de violência urbana. Estamos lidando aqui com um problema muitíssimo mais grave, de ruptura institucional, de luta pelas estruturas de ordem social, de uma briga seríssima travada nas mentes de cada comerciante, cada lojista, cada professor, cada estudante, cada dona de casa para mostrar, afinal de contas “quem é que manda aqui”. Esse é o objetivo dessas manifestações terroristas. E, infelizmente, a polícia e o poder público estão perdendo essa luta.
Os motivos para isso são vários, incluindo talvez recursos e orçamento insuficientes, mas a não ser que haja uma mudança de atitude política, pouco poderá ser feito.
A legislação, os políticos e a polícia têm que parar de tratar a população como um bando de bebês indefesos e incompetentes que só ficam dando trabalho quando são assaltados ou ameaçados. Ao contrário, é preciso que os cidadãos de bem sejam tratados como aliados da polícia. Eles devem estar e se sentir do lado da polícia, e a polícia ao lado deles. A noção de que “segurança pública” e “ordem social” sejam construídas e garantidas pelo governo são um erro grotesco de avaliação. Elas são construídas por todos nós. Sem a colaboração e a boa vontade de 99% da população, a ordem social simplesmente implodiria.
Apesar disso, há fortes tendências políticas e ideológicas, atualmente, no sentido de ignorar ou mesmo excluir cada vez mais o cidadão comum, que é normalmente o mais interessado de todos na segurança pública, do processo de sua construção. A proposição de legislações como as que restringem cada vez mais o porte de armas para o cidadão comum, algumas visando até mesmo sua eliminação completa, são extremamente infantilizantes e deixam o cidadão completamente indefeso. Sem dúvida, um sujeito treinado, equipado e preparado para a ação policial provavelmente a executará melhor e mais seguramente que um cidadão em auto-defesa. Porém, a questão é muito mais profunda do que essa.
Em primeiro lugar, é completamente impossível à polícia estar presente em todos os lugares durante todo o tempo. Na verdade, se formos realistas, a polícia só pode efetivamente estar em muito poucos lugares, com contingentes finitos e durante períodos limitados. E, especialmente quando o foco das agressões à ordem pública muda de simples assaltos para puro e simples terrorismo, não faz qualquer sentido esperar pela posterior reação policial. Quando ela vier, será tarde demais. Eu preciso me defender aqui e agora. Se a própria polícia pede aos cidadãos que desafiem as ordens dos traficantes, é muito lícito que perguntemos então “com que meios?”.
Em segundo lugar, ao prover ao cidadão meios concretos de auto-defesa, estamos revertendo um processo de infantilização da população, de “deixa que o governo resolve isso pra você”. Mesmo aqueles que não têm e não querem ter armas terão uma visão diferente da segurança pública se essa for uma opção individual e não imposta pelo governo. Saberão que têm responsabilidades e escolhas e que seu papel na segurança pública é atuante e não passivo, e isso se refletirá em muitos mais comportamentos do que os que envolvem o uso de armas de fogo.
Finalmente, em terceiro lugar, com base em que dispositivo moral, legal ou constitucional se rouba dos cidadãos comuns o direito à auto-defesa? Que se privem os condenados ou criminosos conhecidos do direito de portar armas legalmente é plenamente compreensível, mas qual o raciocínio, qual a justificativa para fazer o mesmo com o cidadão comum? A de que usarão as armas para o crime? A de que são incompetentes para se autodefenderem? Pessoas às quais se permite dirigir, ter filhos, votar, administrar negócios, clinicar, construir prédios, de tomar decisões em princípio muito mais sérias para a sociedade não têm então discernimento suficiente para saber quando e como utilizar uma arma? Será que é esse realmente o problema? Ou será que é de fato a manifestação de um princípio ideológico bem mais abrangente de buscar concentrar ao máximo no governo todo o poder, ou seja, fruto da noção de que não é a sociedade que tem de mandar no governo e sim o governo que deve mandar na sociedade?