Mesmo quando eu era criança eu nunca achei que Deus fosse uma idéia muito acreditável. Mas mais do que isso, eu nunca achei uma idéia realmente atraente. Claro, a falta de sentido incomoda, mas eu não vejo *mais* sentido no fato de que um ser todo-poderoso tenha me criado arbitrariamente e escolhido objetivos arbitrários para a minha existência com os quais eu possivelmente nem sequer concorde.
Para mim, a mágica está no fato de que, apesar de tudo, vemos significado em quase todas as coisas, apesar de nada realmente fazer sentido. Está no fato de que contra todas as probabilidades, temos sentimentos transcendentes, mesmo cercados por todos os lados de finitude e mortalidade. Está nos fugazes momentos em que não precisamos de qualquer justificativa para estarmos fazendo exatamente o que estamos fazendo e aquele instante poderia durar para sempre.
Portanto a dicotomia entre racionalidade e sentimentos se resolve numa grande síntese quando percebo e aceito que apesar de tudo, quase sem querer, e contra toda a lógica, eu vejo constantemente significado, a realidade está transbordando de significado. Significado injustificável, inexplicável, significado que pela mera racionalidade não deveria estar lá, mas está.
Dessa forma, por um lado o mundo faz total sentido racionalmente. Racionalmente, somos um monte de átomos girando no espaço, resultantes de um grande processo evolutivo sem qualquer propósito. Nada tem realmente um fim, um objetivo. Nada é certo ou errado. Nós não somos nada, não significamos nada, não podemos almejar ser mais do que nada. De onde vieram as leis da física? Ninguém sabe. Mas não saber faz completo sentido racionalmente. Na verdade o uso mais elevado da razão nos revela que existe uma quantidade infinita de verdades incognoscíveis, muito mais numerosas que aquelas às quais temos acesso, mesmo em teoria. Querer ser capaz de explicar tudo vai contra os limites demonstrados pela própria razão. Faz total sentido. Pode até ser frustrante, mas isso é completamente irrelevante sob o aspecto da lógica pura.
Por outro lado, admiravelmente, o mundo também faz sentido emocionalmente. Não devia fazer, não há qualquer motivo lógico para fazer, mas faz. Constantemente vemos sentido. Evidentemente, pessoas inteligentes e/ou com suficiente grau de consciência perceberão aí um problema, e poderão cair na tentação de não se conformarem com o fato de que o mundo possa fazer sentido emocionalmente sem que haja uma base racional para isso. Note-se, porém, que “fazer sentido” emocionalmente não é o mesmo que “fazer sentido” racionalmente. Fazer sentido racionalmente tem a ver com lógica, e silogismos, e axiomas, e provas, e teoremas, etc… Fazer sentido emocionalmente é algo muito mais fugidio. É mais um sentimento holístico de “isto é bom”, “isto está certo”, “isto é como deveria ser”. Tentar capturar isso em qualquer sistema filosófico, teológico ou cosmológico é uma quimera. Porque é eminentemente arbitrário e profundamente pessoal. Cada vez que vemos sentido em alguma coisa é uma mágica acontecendo.
Diante disso, porém, minha reação não é de concluir pela existência de alguma entidade externa que tenha lá colocado esse significado. Alguns chamariam a esse caminho que não tomo (suspeitamente e literalmente “deus ex machina” para mim) de fé, mas eu digo que é justamente o oposto – de alguma forma exigir uma explicação é que demonstra falta de fé. O que se costuma chamar de fé soa para mim como incapacidade de simplesmente aceitar o surpreendente dom de ver sentido transcendente onde ele verdadeiramente não existe. Soa como incapacidade de aceitar que o que nos faz felizes não tem absolutamente nada a ver com lógica ou racionalidade. Que o que achamos que é bom e certo é completamente arbitrário mas importante assim mesmo. Pode até ser frustrante pelo aspecto racional, mas isso é emocionalmente irrelevante – continuamos sentindo o que sentimos.
Muito mais provavelmente se trata de que essa “mágica” esteja programada nos nossos genes para que consigamos lidar com sermos simultaneamente seres capazes de racionalidade e autoconsciência mas ainda assim avassaladoramente impelidos pelo imperativo evolutivo de sobreviver e replicar. Se não víssemos significado nas coisas possivelmente afundaríamos na apatia ou reverteríamos a macacos movidos de forma mais direta pelos nossos instintos – caso em que não gastaríamos nosso tempo com usinas nucleares, aviões a jato, satélites e outras realizações que representam uma enorme vantagem evolutiva com relação aos nossos primos menos transcendentes.
Só que do jeito que as coisas são, saber que o sol é uma bola de hidrogênio não muda o que sinto ao olhar para o horizonte no amanhecer. Nada faz realmente sentido, e no entanto se certas condições forem satisfeitas somos capazes de viver muito felizes como se fizesse. *Isso* é mágica, e está ao alcance da maioria das pessoas. A “fé” pode até servir como algum tipo de muleta que as ajuda a aceitar e viver suas necessidades emocionais, para que se sintam autorizadas e justificadas em sua instintiva busca de transcendência. Porém, minha visão é de que se por um lado essa autorização não é de forma alguma justificada, ela também não é necessária, e é muito mais verdadeiro simplesmente aceitar que nossa necessidade de transcendência prescinda e preceda qualquer justificativa do que se afundar em buscas sem fim por um inexistente motivo cósmico que nos autorize a sentir e expressar o que sentimos de qualquer forma.
[...] .././ [...]
Isto me lembra das velhas discussões na PUC e no Shopping da Gávea há 10 anos… E também de como observávamos que havia (há) mais discordâncias entre nós mesmos do que entre nós e nossos opositores. :-)
incrível. há tempos tenho impressões parecidíssimas, mas o difícil é justamente colocá-las em palavras. Deus, no entanto, continua algo inatingível pra mim. falta de fé, quiçá.
Texto muito bom. Concordo plenamente.
Bom contraponto ao Sr. Sette Câmara (cujos os textos são também sempre bons).
Caro Sérgio,
Sem querer polemizar, mas apenas seguir a linha de raciocínio, o sr. está certo ao dizer que exigir explicações não é fé. A existência de Deus, por exemplo, é uma dedução racional, e não um artigo de fé.
A fé só é possível naquilo que não podemos conhecer ou comprovar. Então, diga-me, se “o mundo faz total sentido racionalmente”, como alguém pode simplesmente ignorar o fato “racional” da existência de Deus, sem que isso seja ignorância, fuga da realidade, má-fé ou estupidez?
André – Se o fato da existência de Deus é perfeitamente racional, por que colocá-lo entre aspas? :-) Comento tentando manter tanto quanto possível a brevidade que eu não aceito nenhum dos argumentos que já ouvi para justificar “racionalmente” a existência de Deus. Existem várias linhas possíveis de raciocínio para se buscar essa conclusão, mas todas elas me parecem falhas.
Um dos argumentos mais comuns é o de utilizar Deus como “tapa-buraco” para lacunas em nosso conhecimento. A forma geral é “Não conseguimos explicar X, logo Deus existe”. Para mim, é completamente non sequitur. O fato de que não conseguimos explicar tudo não comprova nenhuma explicação específica. Os seres humanos poderiam igualmente bem terem sido criados por alienígenas ou sermos uma simulação de computador. Aliás, mesmo que se aceite a idéia de uma divindade como necessária, por que suas propriedades teriam que ser exatamente de um certo tipo de não de outro? E por que não várias entidades?
Outra linha possível, sem pretensão de ser exaustivo, é por argumentos filosóficos e/ou ontológicos através dos quais se tenta concluir que Deus seja logicamente necessário. Eu enxergo tais argumentos como igualmente falhos. Por exemplo, um caminho tradicional é argumentar que a mera definição de uma entidade que tem como uma de suas propriedades necessariamente existir implicaria que ela necessariamente exista. Isso para mim é um gigantesco non sequitur.
A posição não-teísta, apesar do que muitos filósofos cristãos por vezes buscam colocar, me parece perfeitamente respeitável do ponto de vista de racionalidade. Pelo contrário, os mesmos filósofos em geral admitem que a aceitação de um credo como o da religião católica exige, esse sim, necessariamente, em algum momento, mais do que um salto de fé, um ato de fé orientado externamente, uma aceitação incondicional de um certo conjunto de dogmas.
Mas isso não significa, para mim, e acho que isso está sugerido no artigo original, que a racionalidade seja suficiente. Meu entendimento é que quando resolvemos ser verdadeiramente rigorosos, chegamos à conclusão de que praticamente qualquer interação com o mundo exige algum tipo de ato de fé. Atividades como a pesquisa científica buscam apenas cuidar que nossos atos de fé colidam o menos possível com a racionalidade e a lógica, na esperança de que assim estejamos mais próximos da verdade.
[...] Complementando o post de ontem, Racionalidade, transcendência e fé de Sérgio de [...]