Uma das coisas que notei ao vir para Nova York foi a existência de placas – todas elas com aparência de muito antigas – pregadas em prédios aparentemente aleatórios com a inscrição “Fallout Shelter”. Essa placas têm um significado tão rico que eu acabei concluindo que elas mereciam um artigo.
Tais placas são os vestígios físicos mais óbvios de uma época em que guerra nuclear total era um perigo muito concreto. Isso é algo cuja dimensão pode por vezes ser difícil de medir, mas com conseqüências muito fortes na história, na cultura e mais profundamente ainda na psique de quem passou por isso. As crianças eram ensinadas em escolas sobre o que fazer em caso de um ataque nuclear. Os cidadãos americanos foram encorajados, e muitos de fato seguiram o conselho, a construírem abrigos contra ataques nucleares sob suas casas, e a estocarem suprimentos para tal eventualidade.
Paralelamente à reflexão sobre esse clima de paranóia, existe aqui também uma observação a ser feita sobre a quase futilidade e falta de sentido das “providências” tomadas pelo governo para proteger a população em caso de guerra nuclear. Diante de uma ameaça contra a qual não há realmente defesa efetiva, se empregam reações de grande visibilidade e com efeito prático no mínimo questionável e mais provavelmente inexistente. Assim como hoje se combate o terrorismo confiscando pasta de dente em aeroportos, naquela época o governo instituiu campanhas como a infame “Duck and Cover“.
Outra “providência” foi a criação do “sistema” de Fallout Shelters, indicados por placas como a retratada no começo do artigo, para os quais as pessoas deveriam se dirigir em caso de ataque nuclear. Deveriam funcionar como abrigos contra a intensa radiação gama produzida por partículas de poeira contendo elementos instáveis que são produzidas numa explosão atômica. As placas ainda existem, e possivelmente (não sei ao certo) até hoje ainda tenham valor oficial no papel.
O sistema todo, até onde eu sei avaliar, é na prática uma ficção absoluta. Hoje com certeza é, mas suspeito que sempre foi. Morei por pouco mais de um ano em um prédio que continha um desses “abrigos” em seu porão. A porta (teoricamente blindada) não existia mais, e havia janelas quebradas dando diretamente para o pátio interno. Mesmo quando novo, há 50 anos atrás, o local era claramente inadequado, não proveria proteção suficiente, e evidentemente não era grande o suficiente sequer para conter os habitantes do prédio em que se localizava. Provavelmente eu estaria mais protegido me escondendo embaixo da cama.
A onipresença dessas placas em Nova York, mesmo 50 anos depois, nos remete ao duplo propósito que cumpriam de assustar e confortar os habitantes da cidade. São ao mesmo tempo problema e solução; estão dizendo “AAAAH CUIDADO BOMBAS ATÔMICAS PODEM CAIR NA SUA CABEÇA A QUALQUER MOMENTO” mas imediatamente emendando “…MAS NÃO SE PREOCUPE O GOVERNO ESTÁ CUIDANDO DE VOCÊ”.
O pior é que o tempo passa e só muda o tema. Hoje em dia, entramos no metrô e periodicamente o condutor nos avisa pelo alto-falante : “Atenção! Se você notar a existência de qualquer atividade suspeita, não fique calado! Procure um policial ou um funcionário do metrô e relate o que viu!”. A mesma mensagem está presente em cartazes, panfletos, avisos em painéis luminosos e até mesma impressa nos bilhetes de metrô. Vejam por si mesmos :
Um bilhete de metrô como esse é ou não é tirado diretamente de Orwell? Isso é lavagem cerebral da mais escancarada. O benefício em termos de segurança pública atingido com esse tipo de anúncio ser bombardeado continuamente sobre todos é provavelmente zero absoluto. Mas o fato é que é esse não é, nunca foi, não poderia ser o propósito. Mais uma vez, como as quase esquecidas placas indicando abrigos em caso de guerra nuclear, trata-se de uma mistura de incentivo à paranóia com uma garantia vazia de que “estamos cuidando de você”.
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Já faz algum tempo vivemos no mundo previsto por Orwell. Os EUA principalmente, com sua paranóia que tudo justifica, ou tenta justificar. Muito bom o texto. Abraço.
Eu não diria que os EUA sejam o país mais Orwelliano do mundo atualmente – sem nem precisar chegar a absurdos como a China, países teoricamente livres como a Inglaterra já foram bem mais longe nesse caminho. Porém, o que mais choca é que os EUA de fato foram fundados – e talvez sejam o único país do mundo sobre o qual se possa dizer isso – sobre bases libertárias. Ao invés de se concentrar em direitos coletivos e sociais, a nação americana em sua origem se preocupa primordialmente com direitos individuais, com a inviolabilidade da pessoa e da consciência humana como fundamento correto para uma sociedade. A liberdade dos próprios americanos, ainda que muito mais ameaçada hoje do que há meros dez anos atrás, ainda é muito maior do que em quase qualquer outra parte do mundo. Ironicamente, o Brasil continua sendo um dos outros países nos quais (comparativamente) se goza de grande liberdade individual. Só que nesse caso não me parece que seja tanto por causa de alguma grande conquista política mas mais devido à absoluta ineficácia do estado brasileiro até mesmo em oprimir seus cidadãos. :-)
Caro Sérgio, hoje moro na Austrália onde exatamente o mesmo slogan e o mesmo tipo de paranóia inglesa vicejam, com direito a câmeras de circuito interno por toda a cidade, as próprias teletelas de Orwell. Quanto ao Brasil, cito a definição de liberdade para Millôr Fernandes: um lamentável descaso das autoridades. No Brasil, é o que é.
Sergio, estou aqui em NY ha 2 anos, e defendo a participacao da populacao nessa campanha IF YOU SEE SOMETHING, SAY SOMETHING. Como voce pode ter notado, nao eh um clima de histeria generalizado. Ah, e vale lembrar que o ataque ao Fort Dix aqui em NJ foi denunciado por um cidadao comum, desconfiado das atitudes estranhas que os terroristas apresentavam.
Aqui nos EUA dificilmente, como querem alguns setores da esquerda, esse tipo de campanha se tornara em uma “caca as bruxas” generalizada. Fecho com o classico “better safe than sorry”.
Concordo com a Patrícia, a campanha é mais uma questão de avisar as autoridades sobre desordeiros e ladrões no transporte público do que ‘paranóia’, o que muito pouco vi quando estive em NYC em set/07. Quanto a tirar o sapato e câmeras, ninguém mandou os ‘turcos’ jogaram o avião nas torres. aliás, em 93 tentaram derrubar as torres com uma bomba num carro alugado e depois foram cobrar o valor do depósito do seguro. o Paulo Francis disse que eram terroristas portugueses…