Aborto Livre, Sim, Por Favor

May 25th, 2008 by Sergio de Biasi

“Não basta ser contra o aborto. É preciso defender que as mulheres que fazem aborto sejam processadas e penalizadas criminalmente.”

Certo, essa citação passou de todos os limites. Eu vou ter que falar alguma coisa.

Culpar a mãe por uma gravidez indesejada, e colocá-la contra a parede sob a pretensa responsabilidade de arcar com as conseqüências de seus atos é uma falácia tão absurda quanto citar a Bíblia para provar que Deus existe. Não existe atualmente qualquer necessidade do ato sexual resultar em reprodução, mesmo com a ocorrência de gravidez. Em uma sociedade moderna essa conexão é absolutamente artificial e criada de fato em maior ou menos grau justamente pelos movimentos abortofóbicos. Agora, não é logicamente justificável acusar mães perfeitamente dispostas a abortarem de irresponsabilidade enquanto simultaneamente as proibimos de abortarem. Ao contrário, a maior parte delas está exatamente sendo extremamente responsável e lutando contra alguns de seus instintos mais profundos justamente porque prevê as consequências para si e para os outros, inclusive o feto, de não fazê-lo.

Culpar a mãe por uma gravidez indesejada é como culpar a estuprada por usar roupas provocantes, é como culpar o assaltado por usar um caixa eletrônico de madrugada. É por um dedo em riste no nariz dela e pontificar “quem mandou expressar sua sexualidade?”. Poderão tais pessoas porventura terem sido imprudentes ou pouco sábias? Possivelmente. E daí? Esse linha de raciocínio que busca proteger as pessoas de si mesmas é precisamente a que leva à proibição das drogas e outros absurdos totalitários cuja maior conseqüência prática é a opressão psicológica e a restrição das liberdade individuais. Oficializa-se a infantilização geral de todos sem ao menos sequer atingir (ainda bem!) os objetivos pretendidos de reformar a sociedade segundo alguma visão particular de moralidade imposta de cima para baixo. Como isso ultrapassa o limite do que grande parte das pessoas está disposta a aceitar passivamente, é necessário então buscar justificativas para tal impostura, a mais forte delas vindo sob a acusação de homicídio.

A criminalização do aborto consegue ser simultaneamente retrógrada, hipócrita, uma violência contra a dignidade humana, a liberdade individual, a família, o bom senso e a realidade prática.

A acusação de “retrógrada”, clichê hiper-usado e abusado merece explicações. Existe um apelo emocional barato no novo, em querer mudar algo somente por ser tradição, em proclamar que qualquer mudança seja um “progresso”, e simultaneamente partir do princípio que qualquer “progresso” em direção a uma suposta “modernidade” seja bom. Não é a isso que me refiro. Por outro lado, é claríssimo que uma das motivações mais comuns para a defesa da criminalização do aborto provêm de histeria religiosa baseada em ditames dogmáticos retro-racionalizados a posteriori e cobertos generosamente com molho de chantagem emocional e lavagem cerebral. São parte de toda uma visão de mundo completamente em dessintonia com tudo que se descobriu, pensou e viveu nos últimos dois séculos. Claro que imediatamente, como já observado, se pode colocar – quem disse que os últimos dois séculos de pensamento humano sirvam de modelo para qualquer coisa? E certamente existe aí um bom argumento. Mas existe um aspecto que não se pode negar sem descambar para o obscurantismo, que é a realidade dos avanços técnicos e científicos que nos permitem hoje compreender e interagir com a realidade de formas absolutamente revolucionárias. Tais avanços, ao contrário do que muitos querem defender, conflitam sim diretamente com vários valores tradicionais, e embora esse choque deva ser objeto de muita reflexão ao invés de precipitado abandono de tudo em que acreditávamos, é completamente absurdo enfiar a cabeça num buraco e fingir que não existem. Lidar por exemplo com princípios científicos abundantemente estabelecidos como a evolução das espécies como “meras teorias” basicamente porque levam a conclusões que ferem suscetibilidades teológicas é fechar-se em si mesmo e bradar “eu vou acreditar no que eu quero acreditar seja lá qual for a realidade”. O que, novamente, não é novidade e não deixa de ser tentador quando a realidade nos desagrada, e certamente é privilégio pessoal de cada um, mas que termina no limite de sua consciência e não deveria ser imposto – muito menos por força de lei, pelo menos a esse ponto parecíamos ter chegado – a ninguém. Mas naturalmente, a pecha de “retrógrada” não é em si mesma um argumento contra nenhuma posição específica. É apenas um sintoma. Prossigamos.

Vamos ao hipócrita. Essa é quase uma covardia. Basta analisar as estatísticas, por exemplo num país pretensamente católico como o Brasil, das pessoas que se dizem contra o aborto e da quantidade de abortos que são de fato realizados. Essa é de goleada, então não vejo motivo para insistir no ponto. Mas novamente, isso em si mesmo não é um argumento sólido, é apenas mais um sintoma da inconsistência dessa posição; estabelecer que existe abundante hipocrisia não resolve o assunto.

Passemos portanto ao ponto central da questão : o argumento de que um aborto seria comparável ou equivalente a um homicídio. Minha opinião pessoal, que não é nem um pouco incomum, é que num aborto realizado suficientemente cedo, não existe nenhuma relação entre os dois. Um ser humano não é definido ou estabelecido por um monte de células. Ninguém será preso por agressão por espancar um cadáver. Experimente porém fazê-lo minutos antes da morte e o significado será completamente diferente. É disso que estamos falando. Da preservação da integridade física de um ser humano, não do corpo sem vida de um ser humano, de fios de cabelo de um ser humano, ou de células humanas. Então resta a questão : a quais entidades vamos nós agora atribuir esse estado especial de existência chamado “ser humano” cuja integridade merece ser protegida?

Essa não é uma questão muito simples de se responder. Claro, sempre podemos arbitrariamente escolher um momento no tempo para dizer “aqui surgiu um novo ser humano” (tradicionalmente e universalmente, aliás, o momento do parto), mas o fato é que é um longo processo. Creio que podemos em geral concordar que antes da concepção não existe ser humano novo, e depois do parto existe. Mas note-se que isso não é uma “verdade” a ser “descoberta”, porque estamos exatamente tentando *definir* onde começa essa humanidade.

Existe aqui um problema similar ao de determinar a idade para a maioridade civil. Parece razoável concordar que não faz sentido enviar um bebê de dois anos de idade para a cadeia por ter sido descoberto carregando um brinquedo de uma loja sem pagar. Da mesma forma, parece razoável concordar que um cidadão com 21 anos de idade em posse de suas faculdades mentais não deve gozar do mesmo grau de boa vontade. Onde, porém, ocorre essa transição entre “cidadão em treinamento” para “cidadão responsável por suas ações”? A resposta é que evidentemente não ocorre em nenhum momento específico, é um longo e gradual processo e que além disso difere de um ser humano para outro. Claro, poderíamos “pelo sim ou pelo não” tornar a todos criminalmente responsáveis desde o momento do parto, afinal de contas quem sabe quais bebês superdotados não estão na verdade imbuídos de perversas intenções conscientes e se aproveitando da nossa ingenuidade para burlar o sistema judicial? Da mesma forma, em nome de “proteger os inocentes” poderíamos dar imunidade plena a todos até uma certa idade escolhida arbitrariamente. Nesse caso, o que fazer com um indivíduo de 12 anos de idade que por livre escolha cometeu um homicídio durante um assalto? Soltá-lo na rua e dizer “boa sorte”? Mesmo que aceitemos o (para mim duvidoso) argumento de sua “inocência infantil”, suas vítimas não são também “inocentes” a serem protegidos? A conclusão a que se chega é que existem aqui “inocentes” a serem protegidos de ambos os lados. Assim como não é fácil chegar a uma resposta satisfatória para a questão da responsabilidade civil, não é fácil chegar a uma conclusão satisfatória para a questão de onde um ser humano começar a existir, e em ambos os casos os extremos tender a levar a bobagens. Apesar disso, existem aqueles que por considerarem apenas um dos lados, enxergam um dos extremos como a única solução aceitável.

No caso do surgimento da qualidade de “ser humano”, existem aqueles que querem “generosamente” atribuí-la a quase tudo com que consigam desenvolver algum vínculo emocional. (Embora aparentemente tenham uma dificuldade maior em estabelecer tal vínculo com mães, pais e todos os outros seres humanos que objetivamente terão que efetivamente despender tal “generosidade”.) Portanto, tecnicamente parece ser possível ter uma posição abortofóbica baseada meramente em sentimentos antropomorfizantes dirigidos a um glóbulo de células, ou melhor, ao que esse glóbulo “poderia ter sido”.

Não me parece porém que essa simpatia maldirigida seja a força predominante motivando a posição abortofóbica. Pelo contrário, na maior parte das vezes fica claro que a principal agressão percebida em um aborto por seus detratores se dê não no nível objetivo de um ser humano concreto tendo sua vida terminada, mas no nível teológico em que a parte sagrada de um ser humano seria a sua “alma”, e tal “alma” teria os mesmos “direitos” que qualquer outro ser humano pleno. De fato, nesse paradigma, uma “alma” seria a parte mais essencial de um “ser humano pleno” e por motivos teológicos e doutrinários, tal “alma” seria infundida no momento da concepção.

Como conseqüência, nesta visão de mundo, não são ignorados apenas a mãe, o pai, a família e a sociedade ao redor. Perversamente, o bem-estar físico objetivo do ser humano que daí surgirá é considerado irrelevante (ou completamente secundário). Mas isso é plenamente consistente com toda a moral e prática dominante em particular na religião católica e parentes próximos; o bem estar objetivo das pessoas é irrelevante desde que sua “alma imortal” seja “salva”. Daí derivam-se todo o tipo de aberrações, como a preocupação em efetuar uma conversão num leito de hospital preceder a preocupação em efetivamente salvar a vida do paciente (se vocês acham que eu estou inventando pesquisem o que acontece ainda hoje quando a religião católica é levada por falta de freios sociais às suas últimas conseqüências). Ou, por exemplo, a obrigação de prender por homicídio mães solteiras que ousaram tomar pílulas abortivas com duas semanas de gravidez, ou a obrigação moral que alguém teria de dar à luz um filho com síndrome de Down, ou ainda mais absurdamente, de levar a termo uma gravidez de alto risco de um feto inviável, seja por defeitos genéticos, seja por estar o feto aderido à trompa de falópio. Para quem não percebe aonde isso tudo leva (ou não acredita), o material é vasto e abundante, busque reportagens sobre o que aconteceu e está acontecendo nos países que levaram essas idéias a sério. (Exemplo aleatório de outro texto que espero inspire o leitor a pesquisar o assunto mais profundamente.)

Assim sendo, a citação que abre o artigo é perfeitamente coerente. De fato a argumentação de que aborto seria equivalente a homicídio não exige menos do que isso para ser levada a sério. Como ocorre com freqüência, a absurdidade de certas premissas se torna mais óbvia quando as levamos a sério e começamos a delas extrair suas conseqüências lógicas.

26 Responses to “Aborto Livre, Sim, Por Favor”

  1. ana lucia says:

    As vezes tenho a impressão de que todos discutem a situação da mulher menos ela mesma…Minha opinião sobre o aborto é a seguinte: evite a gravidez indesejada a qualquer custo, porque depois vai “sobrar” só para a mulher, ou a responsabilidade de fazer um aborto, ou a de criar sozinha aquela criança que foi gerada.

  2. Rafael says:

    A questão do aborto, para mim, se resume a um ponto: quando começa a vida humana. Essa é a questão crucial. Não acredito, como a maior parte dos católicos, que ela comece já na concepção.

    Para boa parte dos países mais desenvolvidos e civilizados, isso ocoreria por volta das 12 semanas.

    Não sei exatamente os critérios utilizados para uma definição dessas, talvez formação do sitema nervoso do feto. A mim parece algo bastante razoável.

    Tendo então esta definição sido feita, as coisas se estabeleceriam dessa forma: até o tempo estabelecido pela ciência para o começo da vida humana, escolha da mulher. Após isso, obviamente tratar-se-á de assassinato e, sem dúvida alguma, sou favorável a que ela responda criminalmente por isso.

  3. Claudio says:

    Concordo com o que disse o Rafael. A questão toda se resume em definir a partir de quando existe a vida. À medida que a ciência avança e os mecanismos para monitorar os fetos vão se modernizando, novas descobertas vão sendo feitas. Hoje estamos em 12 semanas; no passado estivemos em outros patamares.

    O trecho sobre a hipocrisia vou deixar por conta da exaltação :-), já que ninguém em sã consciência pode defender algo apenas porque todo mundo faz. Mesmo assim você reconheceu que não é um argumento sólido. Eu diria que não é um argumento, ponto.

    Nem toda objeção a um princípio científico estabelecido – ainda mais com princípios cuja observação não pode ser reproduzida – é de origem teológica. Na verdade, o que podemos ver hoje em dia são cientistas sendo calados através de manifestos, boicotes, cortes de verbas, etc. justamente por ousarem discutir esses princípios estabelecidos.

  4. Sergio says:

    Caro Claudio,

    Obrigado pelos comentários.

    Não, a observação da (transbordante) hipocrisia que existe em torno do assunto não entra por conta da exaltação; a hipocrisia entra pensadamente como argumento indireto que evidencia – ainda que circunstancialmente, é claro – a inconsistência da posição abortofóbica socialmente falando. Não se trata de apenas um cheap shot ad hominem genérico, bem mais do que isso, trata-se de uma observação sociológica de que o comportamento professado como correto não coincide nem um pouco com o efetivamente observado. Em qual dos dois devemos então acreditar? A contradição surge do fato de que não é socialmente aceitável em alguns círculos professar certos valores. Da mesma forma, existem muito mais ateus, ou homossexuais, ou pessoas usam cocaína regularmente do que se percebe em geral pelo simples fato de que existe uma enorme pressão social (no último caso uma coação violenta) contrária a tais fenômenos. É o argumento então que “se está todo mundo fazendo, deve ser bom”? Não, o mérito do assunto é discutido depois, como dito explicitamente. O argumento relacionado à hipocrisia é “se está todo mundo fazendo, então esse evidentemente não é um valor assim tão predominante, e se o discurso difere do comportamento, minha interpretação é que isso é explicado por uma fortíssima pressão alienígena empurrando as pessoas a proclamarem valores em que não acreditam de fato.”

    Quanto à atividade científica estar carregada de política e ideologia, não resta qualquer dúvida. Isso não desmonta automaticamente todo o imenso progresso de conhecimento que de fato se atingiu. O problema (por vezes altamente complexo) é conseguir distinguir as bobagens e modismos circunstancias das verdades mais sólidas que sobreviverão ao escrutínio e questionamento constante. Toda “verdade” científica é obrigatoriamente provisória ou seria um dogma e não ciência. Essa é a grande força da ciência – a capacidade de perceber que errou e descartar idéias que não funcionam por mais que gostaríamos que fossem verdade.

    Aliás, falando em ciência, na minha opinião, distinguir onde começa a vida ou o que é um ser humano não é exatamente um problema científico ou algo que será melhor esclarecido com o avanço da tecnologia. A ciência pode melhorar cada vez mais em medir coisas, mas continua cabendo a nós decidirmos o que deve ser medido para estabelecer que ali está um ser humano.

  5. Rafael Daher says:

    Para evitar o aborto é simples: não abra as pernas.

  6. Sergio says:

    Citando comentário acima : “Para evitar o aborto é simples: não abra as pernas.”

    Certo… Depois não venham me dizer que a repressão ao aborto não tem nenhuma conexão com repressão à liberdade sexual… a condenação ao aborto tem MUITO a ver com “quem mandou transar” e pouco a ver com proteger vidas humanas… vidas humanas de glóbulos de células? Por favor, esse argumento de “vida potencial” é ridículo, nesse caso todos nós deveríamos transar ao máximo possível desprotegidamente para não desperdiçar as “vidas potenciais” que somos capazes de gerar. Isso tudo tem muito mais a ver com sexo, aliás, como grande parte das “questões” que preocupam a igreja católica. Existe uma obsessão óbvia com sexo, sempre cheia de desculpas e motivos pretensamente lindos e inquestionáveis, mas que na prática se expressa histericamente como perseguição, opressão, agressão (por vezes física) e tentativas concretas de tornar ilegal ou pelo menos inviável praticamente qualquer forma ou conseqüência de livre expressão sexual : masturbação, pornografia, homossexualismo, aborto, métodos anticoncepcionais, poligamia, sexo antes do casamento, sexo na adolescência, até mesmo pura e simples nudez… a lista não acaba… ora, até mesmo seus sacerdotes e freiras têm que fazer voto de “castidade”, como se a castidade fosse algum tipo de virtude moral. A capacidade de autocontrole pode sem dúvida ser encarada como uma virtude, imagino; seu exercício arbitrário e ritual sem atingir qualquer objetivo meritório, porém, é para mim apenas mórbida autoflagelação.

  7. Mauro says:

    Acho que minha contribuição não vale 5 centavos, mas cá está ela:
    http://eradogelo.blogspot.com/2008/05/aborto.html

  8. Sergio says:

    Sobre o link fornecido pelo Christian, acima :

    Não concordo com quase nada do que é dito no texto linkado, mas pelo menos se trata de uma contra-argumentação civilizada.

    Alguns argumentos, porém, são para mim muito fracos, como por exemplo, discutir se alguém que seja contra o aborto ser ilegal comeria ou não um feto. Isso não prova nada; eu também não comeria um cachorro e não acho que por isso então a vida de um cachorro seja tão valiosa quanto a de um ser humano.

    Mas a afirmação que eu mais considero importante questionar é que “o principal argumento” dos que defendem a legalidade do aborto seja o direito de controle da mãe sobre seu corpo. A forma como o aborto foi legalizado nos EUA foi completamente tortuosa, apelando para argumentos que concordo serem completamente falaciosos, como “o direito à privacidade”. Para mim, a legalidade do aborto não tem nada a ver com a privacidade. Para mim, a questão principal na discussão da legalidade do aborto – e eu coloco essa posição claramente em meu artigo – é decidir se um feto deve ou não ser considerado um ser humano para efeitos legais, e no caso afirmativo, a partir de quando. Ressalto mais uma vez que para mim essa não é uma questão científica, pois “humanidade” não é algo que se possa medir com um termômetro.

    Outra observação que eu gostaria de fazer é que são duas coisas completamente diferentes defender a legalidade de realizar abortos versus defender abortos. Isso deveria ser absolutamente claro e óbvio, e de fato não é difícil encontrar mulheres que *jamais* fariam um aborto mas que enxergam isso como uma decisão pessoal que não têm o direito de impor a mais ninguém.

    Contudo, assim como no questão de legalização das drogas, qualquer um que levante essa bandeira motivado por questões de princípio, empatia ou respeito à liberdade alheia é imediatamente confundido (inconscientemente ou como dispositivo retórico) com defensor incondicional e entusiástico da atividade em si. Como se quem acha que adultério não deva mesmo ser crime se tornasse então automaticamente entusiasta da infidelidade conjugal.

    Essas tentativas de impor uma visão particular de moral a força a toda uma sociedade são perniciosas e totalitárias. O poder de coação do governo é extremamente perigoso e não deve ser usado levianamente para proibir tudo aquilo de que não gostamos e muito menos ainda para forçar as pessoas a serem boazinhas segundo nossos critérios.

  9. Rafael Daher says:

    “Não concordo com quase nada do que é dito no texto linkado, mas pelo menos se trata de uma contra-argumentação civilizada.”

    Não, isso não merece contra-argumentação. No máximo, um bom chiste ou uma surra de gato morto, interrompida apenas no primeiro miado do gato.

  10. Sergio says:

    Para alívio cômico, reproduzo acima o comentário seguinte do sujeito que acha que a solução para a questão do aborto é “não abrir as pernas”. Certo… provavelmente deve ser também a favor de legislação obrigando todas as moças em idade fértil a usarem cinto de castidade com chave depositada numa repartição pública e só liberada com exibição da certidão de casamento – e mesmo assim só para o marido.

    Segundo ele, a reação apropriada a opiniões das quais discorda é uma “surra de gato morto”. (Não dá pra não rir, pelo menos a criatividade está sendo estimulada.)

    Quem foi que disse certa vez que para determinar se um grupo é radical / fanático / perigoso ou não, olhar para seu grau de truculência é em geral bem mais informativo do que olhar para suas lindas idéias? É altamente irônico (e patético) que com freqüência os heróicos defensores de glóbulos de células humanas indefesas não demonstrem um décimo da civilidade ao lidarem com pessoas reais.

  11. Fernando Carneiro says:

    1) Um feto não é vida em potencial, nem ser humano em potencial; é vida humana em ato, e um adulto em potencial.

    2) O aborto é um ato bastante violento, veja fotos ou videos de abortos realizados. Você me parece bastante sensível às violências contra as mulheres impedidas de abortar – impedimento legal – e contra você – comentários incivilizados, mas bastante insensível à violência de um aborto.

    3) A posição religiosa é a mesma em relação a óvulos fecundados in vitro, caso em que não há a realização do ato sexual.

    Civilizadamente,

    Fernando

  12. Sergio says:

    Respondendo ao Fernando acima :

    1) Eu não concordo com essa afirmativa; certamente é algum tipo de vida, mas discordo que digamos com uma semana de gestação já mereça os mesmo direitos e privilégios de um ser humano pleno. Existem argumentos decentes tanto contra como a favor mas a meu ver os argumentos contra são mais fortes.

    2) Um ato ser violento ou mesmo grotesco não é argumento para torná-lo ilegal. Isso é um apelo à irracionalidade. Uma amputação de um membro ou uma operação de apendicite também são atos grotescos e profundamente violentos e poucos duvidam de que possam ser justificados. (Porém interessantemente até mesmo nesses casos esses poucos existem, alegando a inviolabilidade do corpo humano por quaisquer motivos que sejam.) O argumento de “isso é grotesco” é portanto para mim fraco. O argumento realmente importante continua sendo, a meu ver, defender que ali está uma pessoa – seria um ponto muito forte e relevante, mas eu não concordo que seja o caso. Ser esteticamente desagradável, por outro lado, seria irrelevante caso ali não estivesse uma pessoa. Se fosse assim teríamos por exemplo que fechar também todos os abatedouros (e mais uma vez também existem aqueles que defendem exatamente isso…)

    3) Bem observado, mas continuo defendendo que a motivação mais profunda para se criar tanta comoção em torno de algomerados de células tem muito mais a ver com teologia e controle psicológico do que com proteger “bebês” reais. Naturalmente que existem pessoas bem intencionadas e generosas no meio disso tudo, mas elas provavelmente gastam seu tempo tentando dar apoio a mães solteiras que resolver não abortar ao invés de perseguindo as que resolvem. (Não estou afirmando que você pertença especificamente a nenhum dos dois grupos, não tenho como saber.)

  13. Paulo says:

    Há três interesses em jogo. O da mãe abortista, o do feto que deseja nascer, e o do pai que normalmente é solenemente esquecido. Não vejo como seja possível deferir unicamente à mãe o direito de dizer quem tem e quem não tem o direito de viver. Que abuso. Enquanto é feto, e um prolongamento do corpo da mãe; depois que nasce, vira prolongamento do bolso do pai. Nunca vi nenhuma mulher querer abortar um filho do Ronaldinho ou do Mick Jagger…

  14. Lauro says:

    Quanto ao surrado argumento de “para evitar o aborto, não abra as pernas”: Sr. Daher, o senhor vive no mundo real? No mundo regido pelas leis da física, sobre o qual o senhor NÃO TEM nenhum poder? Porque é neste o mundo no qual homens e mulheres sexualmente ativos vivem.

    Para evitar um roubo, não tenha dinheiro. Ah, mas você quer ter dinheiro, não quer? A pessoa que engravida sem querer, seja ela a mulher casada e religiosa ou a mulher não-casada e não-religiosa não tem NENHUM CONTROLE ABSOLUTO sobre sua concepção. Por mais que exista a lógica relação causal entre sexo e procriação, todos sabemos (imagino que o senhor saiba, já que vive no mundo real) que essa relação causal NÃO PASSA PELA CABEÇA das pessoas que fazem sexo NO MOMENTO EM QUE ELAS FAZEM SEXO – não estamos falando especificamente dos casais que fazem sexo com o objetivo primordial de ter um filho, estamos falando da humanidade em geral.

    Se o senhor pretende que as pessoas sempre pensem no fator “gravidez” sempre que forem fazer sexo… boa sorte na empreitada. Aconselho esperar sentado.

  15. Welberson says:

    3) A posição religiosa é a mesma em relação a óvulos fecundados in vitro, caso em que não há a realização do ato sexual.

    Neste caso, então, os religiosos têm que necessariamente ser contra a fertilização in vitro, já que para que um único bebê nasça por este processo, uma dezena de embriões é “fabricada” e depois descartada.
    Ou então, obrigatoriamente TODOS os embriões teriam que ser implantados e todos obrigatoriamente com sucesso, caso contrário a mãe teria que levar a termo uma gravidez de um bebê mostruoso ou ter um natimorto, apenas porque os embriões excessivos jamais poderiam ser descartados em hipótese alguma, já que são um ser humano a partir do primeiro minuto de fertilização.
    Sou contra o aborto, porque sou contra o sexo desprotegido, mas e quanto a esses embriões que não são fruto de irresponsabilidade? E quanto a essas células congeladas que ainda não são feto, são apenas um aglomerado de células menor que uma unha cortada, e mesmo assim querem fazer parecer que são gente e estão sendo injustiçados e maltratados dentro do vidrinho?
    E o aborto terapêutico é, a meu ver, uma necessidade. Mulher nenhuma deveria ser coagida a suportar uma gravidez de um feto defeituoso só porque alguém que ela nem conhece acha que ela tem que fazê-lo. Ele vai criar a criança defeituosa? Ele vai apoiar essa mãe quando o menino morrer, algumas horas depois do parto?
    Mas abortar fetos saudáveis só pelo direito à “privacidade” ou porque se esqueceu de usar camisinha, é ultrapassar os limites da responsabilidade.

  16. Sergio says:

    Comentando o Paulo acima :

    Essa é uma questão que é complexa. Supondo que o aborto seja permitido, será que o pai precisa aprová-lo? Parece razoável querer pensar que o pai também deveria ter alguma voz no assunto, mas por outro lado supondo que a mãe queira abortar e o pai não, cai-se novamente na posição meio indefensável de coagir a mãe a levar a gravidez adiante.

    Agora, de fato toda a questão de direitos de paternidade é atualmente muito falha. Muito poucos dispositivos existem em todos os passos do processo para proteger os legítimos direitos e interesses dos pais. Existe toda uma celeuma em torno de o pai ser forçado a assumir a paternidade e a responsabilidade civil por seus filhos, porém quase nenhuma atenção para o caso contrário – de pais que *querem* assumir tal responsabilidade e são impedidos pelas mães. Nos EUA, por exemplo, em grande parte dos lugares nem sequer é uma exigência legal que a mãe informe ao pai que ficou grávida ou que teve um filho dele!

    Existem histórias terríveis (não incomuns!) de mães que não querem cuidar de seus filhos mas decidem não abortar, então os colocam para adoção, o que em si eu já acho meio trágico, provavelmente mais trágico do que um aborto, mas a parte terrível vem a seguir : ao saber da situação, com freqüência é o caso de que o pai *quer* cuidar do próprio filho (um instinto muito natural, compreensível e nobre). Só que a mãe recusa-se a registrá-lo como pai ou a reverter sua decisão, então o pai tem que assistir desesperado ver seu filho ser entregue a estranhos para adoção. Os procedimentos legais para impedir que isso aconteça são convolutos ou inexistentes; a mãe tem basicamente poder absoluto sobre o assunto e uma vez oficializada a adoção (o que se dá rapidamente no caso de um recém-nascido) revertê-la fica quase impossível. Isso para mim é um buraco do tamanho de um trem na legislação.

    Existem outros, inclusive mais discutidos (envolvendo por exemplo custódia e sustento em caso de disputa), mas acho que esses exemplos já ilustram bem o ponto de que os direitos de paternidade estão de fato muito mal resolvidos.

  17. Sergio says:

    Complementando o Lauro acima :

    E mesmo no caso de pessoas absolutamente responsáveis e cuidadosas, que de fato param pra pensar em gravidez sempre que fazem sexo, como bem observado, no mundo real não temos controle absoluto da situação – métodos anticoncepcionais de fato por vezes falham. É completamente absurda a insinuação (altamente comum e abusada) de que todo aborto seja resultado de irresponsabilidade ou promiscuidade.

  18. [...] Adaptando uma das conversas que nós, do OrdemLivre.org, tivemos com o Tom Palmer, a primeira coisa que pensei ao ler o Sergio falar em “abortofobia” foi no seguinte diálogo: [...]

  19. [...] grande parte dos abortofóbicos), Pedro faz alguns comentários e então procede a desconstruir meu texto sobre aborto (tenho uma amiga que diz que sente vontade de fisicamente desconstruir quem começa a falar em [...]

  20. Não conhecia o blog de vocês, mas, gostei muito!

    sobre esse assunto, concordo plenamenteo. Não só como mulher, mas como cidadã. O póprio ministério da saúde diz que mais de um milhão de abortos são feitos por ano, e cerca de 70 mil mulheres morrem no mundo, por ano, por consequência de procedimentos mal feitos. No SUS, por exemplo, só no ano passado mais de R$ 33 milhões foram aplicados para o tratamento de complicações. Esse dinheiro poderia ser utilizado, por exemplo, para melhorar a saúde pública e investir na saúde neonatal, que é extremamente precária.

    As pessoas confundem religião com saúde pública. Vivemos num país realmente laico?

    Graças a mudança de comportamento do Juduciário, alguns avanços têm acontecido. Como a aprovação das pesquisas com células-tronco embrionárias. Novamente, a igreja tentou “meter” o dedo ali… E, não conseguiu… Vamos torcer para que a questão do aborto vá para o mesmo caminho… e até mesmo em outros aspectos como a eutanásia, que também sou favorável. De quem é o corpo afinal? Do Estado? ou Nosso?

    Eu sou favorável em todos os âmbitos ao aborto. Se faria ou não, é uma decisão pessoal, mas, deve ser legalizado.

    :)

    beijo pra vcs.

  21. João says:

    Aborto? Já ouvi muitos argumentos a favor, mas a minha opinião não muda, independentemente de ser já legal em muitos países: aborto não é apenas um crime, é um crime HEDIONDO, do pior nível possível que conheço por ter sido um acto praticado pela própria mãe! É uma grande monstruosidade, e quem a pratica devia era ser linchado, varrido deste planeta: mulheres, médicos, enfim todos os envolvidos! Não é assim que gostam de criticar os assassinos, ou quem faz mal a crianças indefesas? Pois então tomo a liberdade de resumir a minha opinião: ABORTO É TUDO ISSO JUNTO!!!!

  22. luiza says:

    Carta de um Bebê
    Oi mamãe, tudo bom?
    Eu estou bem, graças a Deus faz apenas alguns dias que você me concebeu em sua barriguinha.
    Na verdade, não posso explicar como estou feliz em saber que você será minha mamãe, outra coisa que me enche de orgulho é ver o amor com que fui concebido.
    Tudo parece indicar que eu serei a criança
    mais feliz do mundo !!!!!!
    Mamãe, já passou um mês desde que fui concebido,
    e já começo a ver como o
    meu corpinho começa a se formar, quer dizer,
    não estou tão lindo como você,
    mas me dê uma oportunidade !!!!!!
    Estou muito feliz!!!!!!
    Mas tem algo que me deixa preocupado…
    Ultimamente me dei conta de que há algo na sua
    cabeça que não me deixa dormir, mas tudo bem,
    isso vai passar, não se desespere.
    Mamãe, já passaram dois meses e meio, estou muito feliz com
    minhas novas mãos e tenho vontade de usá-las para brincar…
    Mamãezinha me diga o que foi?
    Por que você chora tanto todas as noites??
    Porque quando você e o papai se encontram,
    gritam tanto um com o outro?
    Vocês não me querem mais ou o que?
    Vou fazer o possível para que me queiram…
    Já passaram 3 meses, mamãe,
    te noto muito deprimida, não entendo
    o que está acontecendo, estou muito confuso.
    Hoje de manhã fomos ao médico e ele marcou
    uma visita amanhã.
    Não entendo, eu me sinto muito bem….
    por acaso você se sente mal mamãe?
    Mamãe, já é dia, onde vamos?
    O que está acontecendo mamãe??
    Porque choras??
    Não chore, não vai acontecer nada…
    Mamãe, não se deite, ainda são 2 horas da tarde,
    não tenho sono, quero continuar brincando
    com minhas mãozinhas.
    Ei !!!!!! O que esse tubinho
    está fazendo na minha casinha??
    É um brinquedo novo??
    Olha !!!!!! Ei, porque estão sugando minha casa??
    Mamãe !!!!
    Espere, essa é a minha mãozinha!!!!
    Moço, porque a arrancou??
    Não vê que me machuca??
    Mamãe, me defenda !!!!!!
    Mamãe, me ajude !!!!!!!!
    Não vê que ainda sou muito pequeno
    para me defender sozinho??
    Mãe, a minha perninha, estão arrancando.
    Diga para eles pararem, juro a você que vou me comportar bem e que não vou mais te chutar.
    Como é possível que um ser humano possa fazer isso comigo? Ele vai ver só quando eu for grande e forte…..
    ai…..
    mamãe, já não consigo mais…
    ai…
    mamãe, mamãe, me ajude…
    Mamãe, já se passaram 17 anos desde aquele dia,
    e eu daqui de cima observo como ainda te machuca
    ter tomado aquela decisão.
    Por favor, não chore, lembre-se
    que te amo muito e que estarei aqui te esperando
    com muitos abraços e beijos.
    Te amo muito
    Seu bebê.
    QUE DEUS TENHA PENA DE NOSSAS ALMAS!
    Tenhamos consciência.

    • Oi Luiza,

      Um aborto já é algo suficientemente traumatizante em si mesmo para que ainda por cima se queira torná-lo ilegal. Punir a mãe então como querem alguns beira a insanidade. Talvez um feto de meses já tenha consciência suficiente para pensar algo não igual a isso aí que você escreveu, mas “algo”. Agora, um óvulo recém fecundado certamente não tem. O fato de que o aborto tem um profundíssimo significado psicológico NÃO o torna automaticamente uma agressão a outro ser humano, ESPECIALMENTE logo após a concepção. A grande discussão em torno do aborto é precisamente devida ao fato de que um aglomerado de células NÃO pensa as coisas que você descreveu; se pensasse, poucos discutiriam se aborto deve ou não ser crime. Aliás, embora eu seja contra a criminalização do aborto, eu não sou e não conheço ninguém que seja “a favor” do aborto, no sentido de achar que aborto é bom mesmo, tem mais é que ser feito e não apresenta problema algum. Eu acho que existem circunstâncias em que ele faz sentido, assim como existem circunstâncias em que faz sentido dar um tiro num ladrão que invade sua casa, ou circunstâncias em que faz sentido amputar uma perna. E não, é claro que eu não estou dizendo que um feto é igual a um ladrão ou a uma perna com gangrena. Estou apenas apontando que algo ser indesejável e ruim tomado isoladamente não se torna por isso automaticamente condenável num contexto maior ou, pior ainda, assunto para legislação criminal.

      Saudações,
      Sergio

  23. Eu fico recorrentemente surpreso em constatar o quanto a solidariedade e empatia a um aglomerado de células pode ser tão inversamente proporcional àquela demonstrada por multidões de pessoas reais e concretas.

    Mas enfim, ainda bem que tal distorção ética não é universal e torço que caia na obsolescência juntamente com a idéia de que haja algo errado em sexo antes do casamento, ou em transar com alguém do mesmo sexo, ou em usar métodos anticoncepcionais, etc.

    Aliás, a quantidade de preceitos de comportamento relacionados com sexo pregados pela maior parte das religiões revela muito sobre quão elevadas, espirituais e transcendentes realmente são as preocupações em questão.

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