Fobofobias e Outros Neologismos Retóricos

May 29th, 2008 by Sergio de Biasi

Em seu divertidíssimo artigo que recomendo integralmente para qualquer um capaz de rir das próprias opiniões (o que provavelmente exclui grande parte dos abortofóbicos), Pedro faz alguns comentários e então procede a desconstruir meu texto sobre aborto (tenho uma amiga que diz que sente vontade de fisicamente desconstruir quem começa a falar em desconstruir alguma coisa, mas quando é o Pedro fazendo fica bom demais pra não ler).

Pra começar, gostaria de dizer que não coloco o Pedro entre os abortofóbicos. Empreguei o termo precisamente com a conotação canônica que se deveria esperar : medo, pavor do aborto ao invés de mera reprovação, rejeição ou oposição. Em certas pessoas o assunto gera histeria automática. Emprestando a analogia do Pedro, é como se a pessoa não apenas não quisesse comer feijão, e não satisfeita em querer tornar o feijão ilegal, adicionalmente começasse a berrar histericamente quando visse alguém defendendo a legalidade do feijão, sendo acometida de incontrolável e óbvio estresse psicológico. Não é o caso do Pedro, mas parece ser o caso de muitos. Na verdade em grande parte dos casos não parece ser uma reação específica ao aborto mas a qualquer opinião divergente que ameace suas frágeis concepções de mundo, que são tão esplendorosamente sólidas e fundamentadas que precisam ser protegidas ardorosamente de qualquer questionamento.

No caso específico do Pedro, porém, acho que acabei pisando em outro calo completamente diferente, que é o cansaço absoluto com ter que responder a chavões, clichês e palavras de ordem cuja única função é despertar sentimentos sem de fato fazerem parte de nenhum argumento coerente. Naturalmente que por vezes os rótulos de fato de aplicam, apenas não podem pretender constituir o fundamento do argumento, mas após ser exposto a abusos retóricos vezes demais é compreensível que se comece a perder a paciência só de ouvir qualquer termo com a estrutura “x-fóbico”. Começa-se a sofrer, por assim dizer, de fobofobia (onde o primeiro “fobo”, note-se, refere-se ao sufixo “fobo” e outros termos desgastados pelo uso em clichês e não a medos indeterminados).

Sobre “expressar a sexualidade”, como qualquer expressão, é claro que pode ser abusada, e não a estou usando aqui no sentido delirantemente abrangente no qual se começa a enxergar discriminação sexual nas situações mais disparatadas. Estou falando de coisas básicas, como digamos, foder. Existe toda uma pressão psicológica, toda uma lavagem cerebral e um mecanismo absurdo de construção de culpas e censuras para que as pessoas não fodam. Caso falar mais concretamente colabore para não despertar a fobofobia do Pedro, aí está.

Com relação à “finalidade objetiva” do ato sexual da qual Pedro argumenta que não se pode escapar, ora, como ateu e defensor da ciência, eu diria que até onde sabemos não há nenhuma. Não acredito que as coisas existam por motivos teleológicos. Podemos por outro lado falar das *conseqüências* objetivas do sexo. E é aí que entra a tecnologia moderna; tais conseqüências não são as que costumavam ser. Os avanços tanto nos métodos anticoncepcionais como nos procedimentos de aborto vêm efetivamente desconectando cada vez mais a causalidade obrigatória entre fazer sexo e provocar o surgimento de um novo ser humano. (Novamente, existe aqui uma divergência fundamental sobre *quando* esse ser humano surgiria, sem a qual fica difícil concordar sobre quais exatamente são as conseqüências do ato sexual.)

Aliás, uma digressão : conseqüência com trema, sim, obrigado que eu como Pedro abomino essas tentativas frankensteinianas de legislar a língua em comitês políticos. Que as pessoas com reverência acrítica às “autoridades” aleatórias de plantão joguem seus tremas no lixo se assim quiserem; talvez daqui a cinqüenta anos prevaleçam e aí não restará senão seguir a norma de fato, mas enquanto isso prossigo tremando meus pingüins.

Voltando ao assunto : existe uma desonestidade retórica fundamental (da qual Pedro com certeza está consciente) quando se escreve coisas como “não estou dizendo que sou santo, só que não acho legal matar bebês”. Afirmações desse tipo buscam recontextualizar a discussão sobre como se ela fosse sobre “pessoas que acham legal matar bebês” versus “pessoas que não acham legal matar bebês”. A superioridade moral das últimas estaria então auto-evidente, e qualquer argumento em contrário teria implícita a premissa “matar bebês é legal pois…”.

Só que para começar, o argumento principal pela legalidade do aborto é justamente o questionamento de que um aglomerado de células seja ou possa legitimamente ser chamado de “bebê”. Eu não acho nem um pouco “legal” matar bebês; o que ocorre é que eu (e grande parte das pessoas) simplesmente não aceito o argumento de que oito células juntas sejam um bebê. Esse é o primeiro nível de desonestidade no clichê disparado pelo Pedro. Mas existe um outro nível, que é o de que eu não estou em nenhum momento argumentando a favor do aborto, e sim de sua não criminalização. Portanto, não só eu não acho que bebês estejam morrendo num aborto realizado com duas semanas de gestação, como além disso eu não estou dizendo que mesmo isso seja uma atividade divertidíssima e sem nenhum significado. Sim, um aborto tem um caminhão de significado, e é um ato traumatizante e violento. (Aliás, por exemplo, como um divórcio.) MAS na minha concepção não é assassinato e não deveria ser criminalizado.

O argumento olavodecarvalhoso de que “se há alguma possibilidade de que seja um ser humano então devemos apostar nela” é para mim fraquíssimo. Entre as várias falácias embutidas nele está a premissa de que “ser um ser humano” seja uma verdade objetiva dada sobre a qual possamos nos enganar. Prevendo esse tipo de argumentação, eu coloquei a analogia com a maioridade no meu artigo original, mas aparentemente a visão teológica é forte demais para que se conceba que as coisas não tenham todas uma essência significante platônica mágica e um objetivo filosófico intrínseco.

Agora, mesmo que esse fosse o caso, o argumento continuaria sendo muito ruim; a probabilidade de que algo seja verdade deve ser medida contra a probabilidade de que não seja e contra as conseqüências em ambos os casos. A analogia do tiro no escuro que pode acertar alguém é desonesta porque para começar não se coloca nenhum objetivo justificável para explicar tal tiro. Talvez entretenimento do atirador. É pouco benefício comparado com uma absurda chance de 50% de matar alguém. Seria diferente caso você estivesse atirando em legítima defesa para salvar sua vida e corresse o risco de acertar um inocente. Deveria você morrer para não correr tal risco? Existe toda uma gama de possibilidades intermediárias. E o fato é que toda decisão tem conseqüências. Ao escolher sair na rua dirigindo um carro existe uma chance de que eu atropele alguém. Devo então não sair na rua dirigindo? Esse argumento de que “vai que é um ser humano” não faz sentido.

Enfim, eu teria bem mais a dizer e por enquanto fica sem comentários uma coleção de outros argumentos – esses sim “puramente retóricos” – no texto do Pedro (e novamente, tenho certeza de que ele sabe disso), mas vou ficando por aqui enquanto a resposta ainda está num tamanho digerível.

11 Responses to “Fobofobias e Outros Neologismos Retóricos”

  1. Fabio says:

    Sérgio: No penúltimo parágrafo você está aceitando “for argument’s sake” o cenário dos 50%. Disse que vale a pena “dar o tiro” quando se está defendendo a vida de alguém. Mas não é o caso no aborto eletivo (sem risco de saúde para a mãe). É certo um ato com 50% de chance de matar se a motivação é não ter saco para criar um filho?
    Mas voltando ao parágrafo em que você não aceita o cenário porque a distinção entre ser humano e não ser humano não pode ser objetiva. Parece-me que caímos no reino da vontade pura e simples. A mãe decide, simplesmente, se o feto é ser humano ou não. É por aí? Eu entendo a categoria de “maior de idade” necessitar uma atribuição arbitrária, mas “ser humano” por ser arbitrário?

  2. Imagino que este seja um daqueles assuntos onde não há e nunca haverá um mínimo de consenso. Sim, um feto é um ser humano em formação e abortá-lo não é a mesma coisa que tomar um analgésico contra a dor de cabeça. É algo muito sério que não pode ser banalizado. Ao mesmo tempo, esse feto está no corpo da mulher que, independentemente do que a lei diz, pode simplesmente interromper a gravidez sem deixar nenhum rastro, a não ser talvez em sua consciência.

    Então é aquela questão entre o ideal e o real. O ideal seria que toda gravidez estivesse de acordo com o conceito da liberdade (de engravidar) com a responsabilidade (de criar a criança). Mas a realidade nem sempre é assim. Pessoas são impulsivas e fazem coisas que depois se arrependem. Quando tem sexo no meio então, a chance de acontecer algo “imprevisto” é grande.

    “Pensasse melhor antes de transar. Abortar ou não é uma escolha moral”.

    Verdade. A não ser em casos onde o sexo foi forçado e não houve então “escolha”. Ou quando a gravidez representa um risco à vida da gestante.

    O aborto é uma violência, mesmo que no início da gestação, mas forçar a mulher a ter um filho indesejado – pelo motivo que for – também não me soa bem. Uma saída possível, mesmo que não resolva a situação, é dar informação e estimular o sexo responsável, pra que algo prazeroso não se transforme num dilema de vida ou morte.

  3. Sergio says:

    Comentando o Fabio :

    Sobre a questão do tiro, o ponto do meu argumento era que é preciso pesar os dois lados da questão, assim como a probabilidade de cada uma. Mesmo que pudéssemos atribuir ao feto uma “probabilidade” de ser humano (for argument’s sake, como você disse), ainda assim teríamos que mostrar que essa probabilidade é alta para a analogia com o tiro funcionar. Se ela for de uma em mil é bem diferente de ser 50%. Não basta simplesmente dizer “oh, se houver *qualquer* chance de haver ali um ser humano então temos que agir como se houvesse” pois não abortar também tem conseqüências, e sérias.

    Gostaria também de comentar que retratar quem aborta meramente como alguém que “não tem saco” para criar um filho é caricatural e não me parece que corresponda à realidade de uma grande parte (talvez a maioria) dos abortos. Existe um instinto muito grande de procriar e para quase qualquer mulher um aborto é uma decisão difícil, dolorosa e com freqüência traumatizante. Uma boa parte (novamente, talvez a maioria) das mulheres não abortaria se achasse que teria condições adequadas de criar seu filho. Paciência e amor grande parte delas até teria, só que por circunstâncias faltam coisas fundamentais como dinheiro ou uma estrutura familiar.

    Finalmente, sobre decidir quem é humano ou não, não estou dizendo que essa decisão deva ser deixada a cargo da mãe e sim que ela é razoavelmente arbitrária. Na minha opinião, os direitos e interesses da mãe e da sociedade superam os de um aglomerado de células que poderia um dia vir a se tornar um ser humano, e portanto a situação legal de um feto deveria ser de não humano pelo menos até um certo ponto da gestação. Agora, filosoficamente, não acho que exista uma resposta “certa”. Muito provavelmente cada um terá eternamente seu próprio julgamento sobre o assunto.

  4. Em primeiro lugar, não entendi o que faz esse texto a favor do aborto no site de um anti-abortista. É compartilhamento de blog? Um hacker? Ou pura cessão do blog? Gosto muito de ler as opiniões de Pedro Sette Câmara, e tomei um susto ao ver esse texto aqui. Mas mesmo assim achei interessante.

    De qualquer forma, achei muito coerentes os argumentos levantados por Sérgio. Não sou um defensor aguerrido do aborto. Só acho que um aglomerado de células, glástulas, blástulas ou seja lá como se o denomine, não constitui um ser humano.

    A formação do ser humano é progressiva, e isso nos faz cair, creio, naquela velha controvérsia filosófica medieval entre realistas e universalistas, controvérsia, a meu ver, não resolvida, embora eu não conheça o tema a fundo.

    Parece-me que subjaz a pergunta: o que faz uma coisa ser o que é? Não tenho a menor intenção de respondê-la – deixo-o para os sábios -, e por isso opino pautado apenas num juízo de bom senso – do qual reputo gozar em alguma medida.

    Ora, blástulas são blástulas; embriões são embriões; fetos são fetos e gente é gente. Pode não ser lá muito correto matar blástulas, não definitivamente isso não é o mesmo que matar um feto de 5 meses, com conformação humana definida e tudo o mais. É óbvio que óvulos fecundados são vida, assim como os não fecundados, mas não é isso que está em questão.

    Acho a maior parte dos argumentos pró-aborto cretinos, assim como alguns anti-aborto. Parece que ninguém quer entrar na discussão que realmente interessa: é errado matar blástulas? Se houver um certo grau de consenso sobre a questão, a conduta deve ser criminalizada; se não o houver, creio que o estado não pode fazê-lo, pois se pauta, no modelo aqui adotado, na vontade da maioria.

    Eu sou contra o assassinato de bebês, mesmo que estejam no útero de suas mães. Mas acho um excesso opor-se veementemente contra o assassinato de blástulas ou glástulas, excesso esse que, por outro lado, não considero em nada cretino.

    Conversando com um amigo anti-abortista, ele me disse que não era contra a pílula-do-dia-seguinte porque ela mata o óvulo fecundado que não aderiu à parede do útero. Então aderir à parede do útero é o critério para definir o que é humano? Parece-me que cada um tem seu critério, e, a menos que haja consenso, não se pode criminalizar uma conduta.

    Falaram aqui a favor do aborto em caso de estupro, mas que culpa tem o feto nessa hipótese? Embora eu defenda o aborto, vejo anti-abortistas mais abortistas que eu em alguns casos. Matar um feto de 6 meses só porque ele é fruto de aborto é um assassinato de um ser por uma conduta da qual ele não foi nada responsável.

    Portanto, acho legítima a postura anti-aborto e nada legítima a postura pró-aborto como ela é colocada. Pena que nenhuma dessas correntes expressa a minha opinião. O mais perto que vi dela foi esse artigo publicado por Sérgio, mas, mesmo assim, discordo do caso do estupro.

    Quanto ao termo inicial para definir o momento em que o aborto deveria ser proibido, creio que se deva estabelecer artificialmente um momento fixo em que, incontestavelmente, o embrião terá se tornado feto com características humanas bem definidas. Aí é com os biólogos. Talvez algo como 3 meses.

    No direito, esses marcos artificiais são praxe, para poder viabilizar a aplicação da lei sem que se caia num casuísmo caótico. Isso é feito na definição da maioridade penal, por exemplo. Nela, define-se cronologicamente um marco que represente a assunção da consciência dos atos, de modo a permitir a imputabilidade penal. O mesmo ocorre para os atos da vida civil. Ou alguém acha que um indivíduo assume consciência dos seus atos magicamente quanto completa 18 anos?

    Portanto, defina-se um marco temporal para se permitir o aborto, caso se o deseje. Caso contrário, então se proíba a pílula-do-dia seguinte.

    Termino dizendo que não me choca o assassinato de uma glástula, embora eu seja um opositor feroz de aborto de fetos com mais de 3 meses, em qualquer hipótese, salvo risco para mãe (se o estado de necessidade nos permite matar pessoas adultas, que dirá fetos em gestação). Nem por isso, considero-me satanista, fanático pelo aborto (que a meu ver deve sempre ser evitado), muito menos um sociopata amoral, muito pelo contrário, questões morais me corroem o tempo todo. Só não acho legal incutir nas pessoas mais tormentos do que aqueles que elas já têm por seus dramas baseados em preceitos morais incontestáveis e natos.

  5. Sergio says:

    Comentando o Fabio (outro) :

    Por favor não se ofenda com minha impertinência, mas sem ironias, excelentes seus comentários.

    Não ficou claro para mim porém se você acompanhou os links até o começo porque entre outras coisas você apresenta um exemplo (o da maioridade) que é precisamente o que eu havia dado no texto original que gerou o comentário do Pedro.

    Quanto a eu estar escrevendo “no blog do Pedro”, isso é uma longa história que por vezes fica meio adormecida. Esse site teve origem numa série de eventos ocorridos na PUC do Rio há uns dez anos atrás, ocasião na qual eu, o Pedro e mais um terceiro “indivíduo” (o Álvaro) nos vimos no meio de uma série completamente alucinada de eventos decorrentes de termos tido a ousadia de expressar no campus idéias que feriam as sensibilidades da ortodoxia ideológica dominante.

    Inicialmente o site foi administrado por mim, depois por anos pelo Álvaro, e agora já faz um bom tempo que o administrador é o Pedro, que tem sido a alma e a força motriz mantendo O Indivíduo vivo, ativo e lido. Porém, quando as circunstâncias permitem (vontade não falta) eu ainda escrevo.

  6. Caríssimos,

    Admito que estou “em cima do muro” nessa discussão sobre aborto.

    Sou ateísta e desprezo opiniões bíblicas e religiosas sobre os temas diversos, salvo se estiverem de acordo com a minha noção do que seja algo “moral”. (Sim, sou individualista, embora tente ser justo.)

    O Código Penal admite o aborto apenas em duas situações: estupro e risco de vida para a mãe. Para mim, e acredito que para a maioria das pessoas também, tais exceções são aceitáveis. A mulher teria a faculdade, não a obrigação, de abortar nessas situações. (Ou seja: o pai ou a mãe que quiser carregar e criar um filho fruto de um estupro, que o faça; mas não obrigue os outros a fazerem o mesmo.)

    Adicionaria uma terceira exceção: caso o feto fosse inviável. Creio que chamam a isso aborto “eugênico”, e muitos vão rotular de “nazista” ou idiotices do gênero quem defenda essa opinião.

    Isso, obviamente, se o feto estivesse no início de sua formação, de acordo com a Biologia. Afinal, soa-me criminoso abortar com 8 meses de gestação.

    Deveria ser feito um plebiscito amplo sobre o tema, com total participação de todos os grupos de pressão envolvidos.

    Assim, discussões desgastantes seriam evitadas, pelo menos no que pertine à legitimidade e legalidade da decisão popular.

    Sds.,

    DFS

  7. David says:

    “Acho a maior parte dos argumentos pró-aborto cretinos, assim como alguns anti-aborto. Parece que ninguém quer entrar na discussão que realmente interessa: é errado matar blástulas? Se houver um certo grau de consenso sobre a questão, a conduta deve ser criminalizada; se não o houver, creio que o estado não pode fazê-lo, pois se pauta, no modelo aqui adotado, na vontade da maioria.”

    Não sei se é errado matar blástulas, mas de uma coisa tenho certeza:é errado matar pessoas. Você foi muito superficial na abordagem. A uma PESSOA se pode chamar de muitos nomes: feto, criança, adolescente, adulto, idoso, deficiente, normal, esclerosado, etc… Também deve haver, na ciência , muitos termos técnicos para se denominar os estágios pela qual passa uma pessoa desde a geração até a morte. Mas sua observação me pareceu fugir da questão essencial.

    Quanto ao resto, quer dizer que se a maioria decidir que o assassinato é bom e aceitável, ele seria, por esse motivo, legítimo?

  8. Sergio says:

    Comentando o Daniel :

    A solução “vamos então fazer o que a maioria quiser” levanta uma questão completamente diferente. Essa idéia é sedutoramente “democrática”, e existe um instinto moderno de automaticamente concordar que ela seria meritória em princípio. Porém é justamente nesse tipo de questão que o lado problemático da democracia aparece em toda a sua intensidade. Estou me referindo ao fato de que a interpretação mais literal e irrefletida de um governo democrático é simplesmente “vamos fazer o que a maioria quiser”. Isso é evidentemente incompatível com a existência de direitos e liberdades fundamentais invioláveis do ser humano (exceto naturalmente aqueles reconhecidos graciosamente pela maioria).

    Naturalmente que aí se recai no problema de quem decide quais são esses direitos e liberdades, e numa democracia moderna isso é deixado a cargo de uma casta eleita e supostamente mais qualificada (e não apenas por motivos práticos) que escreve uma constituição com a qual não se fica brincando (ou pelo menos não se deveria).

    A democracia direta e universal, por outro lado, facilmente descamba para a ditadura da comunidade (como se pode observar em algumas cidades pequenas) e pode ser ainda mais cruel e inescapável que a de um governo centralizado e possivelmente impopular. Esse é na verdade para mim o maior argumento a favor da existência de um governo, e o motivo pelo qual sou libertário mas não anarquista. Eu não quero o governo interferindo coercitivamente na minha vida, mas eu também não quero as outras pessoas interferindo coercitivamente na minha vida. O governo em doses moderadas vem justamente preencher esse vácuo de poder que de outra forma existiria, e que seria ocupado por gângsters, aproveitadores, e pela polícia moral.

    Em resumo, não acho que “colocar em votação” seja sempre uma boa solução. O excelente filme Manderlay ilustra esse ponto muito bem.

  9. Sergio says:

    Comentando o David :

    Concordo que simplesmente dar um outro nome a um estágio de desenvolvimento do feto não resolve a questão. A pergunta essencial aqui não é exatamente “é errado matar gástrulas?” e sim se gástrulas já são suficientemente equivalentes, digamos, a um bebê de um ano, caso em que mereceriam automaticamente todos os direitos de proteção à vida que em geral se concorda que um bebê de um ano deve receber.

    Estabelecida tal equivalência, a discussão sobre se seria ou não errado/aceitável matar gástrulas se torna desnecessária, e é em torno desse ponto que gira a maior parte da discordância na questão do aborto.

    Claro que se por outro lado pudéssemos todos concordar que gástrulas não são ainda seres humanos, ainda teríamos que decidir se é aceitável matá-las, mas não é esse o ponto onde normalmente surge conflito de opiniões.

    Aliás, segundo a posição mais radical pelo lado anti-abortista, um zigoto (óvulo fecundado) seria eticamente equivalente (ou pelo menos essencialmente similar) a um bebê de um ano, enquanto que um óvulo e um espermatozóide separados não seriam. Eu discordo completamente dessa posição. Não acho que ocorra nenhuma tranformação mágica imediata no momento da fecundação. Minha posição pessoal é que nesse momento e por algum tempo os interesses e bem-estar da mãe e da sociedade ainda são mais importantes do que o da entidade que ali está.

    Dito isso, é evidente que fazer um aborto não é igual a remover uma verruga. É um ato com profundo signficado filosófico e psicológico, mas a meu ver não é um assassinato pelo simples fato de que ali não existe *ainda* algo que seja moralmente equivalente uma criança.

  10. Obrigado, pessoal, pelos comentários. Gostaria de fazer mais colocações com base neles. Tá um pouco extenso, espero não estar passando dos limites. Pois aí vão.

    Antes de tudo, valeu, Sérgio, pelo esclarecimento sobre a administração do blog. Eu já tinha lido que ele surgira por conta de um problema na PUC. Boa iniciativa.

    De fato, não peguei a discussão desde o começo. Gostaria de fazê-lo agora, mas não posso por problemas técnicos.

    Sérgio, quanto à sua “impertinência”, não precisa se desculpar. Não vi impertinência alguma, pra falar a verdade.

    Sobre um eventual plebiscito pra decidir a questão do aborto, eu queria tecer alguns comentários. Em primeiro lugar, é importante separarmos a discussão entre o que “achamos” que deva ser a lei e o “como achamos” que ela deva ser elaborada. Tentando simplificar, eu diria que o que expus no comentário anterior seria uma “justificativa” do meu voto, caso houvesse um plebiscito, o que não quer dizer que eu ache que deva haver um plebiscito. Não quero entrar na discussão sobre democracia, por isso me detenho na primeira discussão, qual seja, o que eu faria se fosse o legislador, se a caneta estivesse na minha mão.

    Sou obrigado a concordar com David quando ele diz que não abordei a questão em sua completude, embora não ache que eu tenha sido propriamente “superficial”. Eu preferiria falar em “incompleto”, mas tudo bem, de qualquer forma. Não obstante, graças a sua observação, quero me emendar para definir melhor o espectro do debate.

    A meu ver, a questão cinge-se, pois, a dois aspectos: se zigotos (blástulas, glástulas ou o que for) SÃO, efetivamente, seres humanos; e se, em não o sendo, seria errado matá-los.

    Sendo afirmativa a pergunta se zigotos são seres humanos, então se deveria dispensar o criminalização do aborto, posto que ele constituiria, na verdade, um homicídio, já apenado no art. 121 do Código Penal, que define o crime como “matar ALGUÉM”. Se zigoto é gente, então é alguém, logo, estaríamos diante de um assassinato. Vai me desculpar, David, com todo o respeito, acho isso muita forçação. Sei que pode haver dúzias de argumentos racionais pra se defender isso, mas meu bom senso me força a rechaçar essa idéia peremptoriamente. É demais pra minha cabeça. Eu já desisti de ser racional… Depois de quebrar muito a cara, fico com a intuição.

    Agora, para quem acha que zigotos não são ainda seres humanos, mas que devam ser poupados, eu pergunto para essas pessoas se elas conseguem, francamente, ficar moralmente abaladas com o assassinato de um zigoto. Tenho uma forte inclinação cristã, e por isso tentei por muito tempo incutir essa idéia em minha cabeça, mas não consegui. Resolvi ser honesto comigo mesmo. Talvez eu tenha mesmo um sério desvio moral, mas tenho a íntima convicção de que nascemos com a noção de certo e errado. Ela às vezes pode ficar obscurecida por um juízo de conveniência, mas um olhada sincera “para dentro” é capaz, na minha opinião, de esclarecer a coisa (por favor, não me taxem de gnóstico).

    Sobre a questão da visão dos libertários e conservadores (que eu acho que subjaz ao debate), eu gostaria de fazer umas colocações, se não for abusar da paciência que quem for ler. Trata-se de um desabafo. Por favor, não se ofendam, mas eu queria muito falar isso.

    Acho, sim, que a sociedade deve se pautar nos preceitos morais religiosos. Desconsiderar isso é um absurdo (perdoem-me os libertários). É evidente que não podemos fazer tabula rasa do nosso legado civilizacional, que advém, como em qualquer civilização, da religião. Quer queiram, quer não, a religião é uma dimensão inescapável da existência humana.

    Por outro lado, o purismo dos religiosos me incomoda (purismo esse também encontrado nos ateístas e laicizantes, que, por exemplo, perturbam por causa de crucifixos em tribunais). Devemos, sim, observar os mandamentos morais da nossa herança civilizacional, mas não em minúcias, a ponto de destoar completamente da realidade atual. Proibir o divórcio (como manda a Bíblia, com algumas exceções), por exemplo, não está de acordo com a nossa realidade, mesmo achando que não devamos nos render a ela totalmente. A religião diz que é errado? Sim, salvo em alguns casos. Agora, vá você, religioso, conviver com alguém pelo qual você já não tem mais nenhum sentimento. Será preciso fazermos da vida um inferno pra ganharmos o reino dos céus?

    Voltando ao aborto, digo que um filho indesejado pode ser algo muito prejudicial. Concordo que as pessoas devam ser responsáveis por seus atos, mas, convenhamos, deslizes ocorrem. Uma menina de 16 anos fica muito prejudicada com uma gravidez indesejada. As repercussões individuais e sociais disso são gravíssimas. Será que se deve obrigá-los (mãe, futura criança e sociedade) a arcar com isso, para não se prejudicar um embriãozinho com poucas semanas de existência? Eu acho um exagero. Até admitiria algum tipo de reprimenda, mas não de ordem penal – leia-se: cana. Poxa, pessoal, tanta coisa séria e incontestável pra ser combatida…

    Por outro lado, já não vejo com bons olhos esses depósitos de embriões fabricados para pessoas inférteis, dos quais fatalmente apenas uma parcela será “aproveitada”. Acho isso “Admirável Mundo Novo” demais pra minha cabeça…

    Resumindo, nem tão ao céu, nem tão à terra. Mas isso é apenas uma opinião, sem a menor pretensão de convencer ou persuadir.

    Abraços a todos,

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