Algo que por vezes parece escapar a muitos comentaristas políticos que falam entusiasticamente do “colapso” do comunismo soviético é que este não se deu exatamente e nível ideológico, e sim por ter se tornado economicamente insustentável. A fragilidade econômica interna do sistema, associada à necessidade de responder a programas armamentistas estratosféricos promovidos pela administração Reagan levou o império soviético à bancarrota.
Tal falência, porém, se deu basicamente a nível material, de recursos, e não a nível de idéias. Não se deu através de nenhuma “revolução” motivada por anseios de liberdade, justiça e independência individual, mas pelo muito menos transcendente problema de que o estado ficou sem dinheiro para manter de forma eficaz e organizada seus sistemas de repressão interna. Por um lado, parece claro que o plano de derrotar o império soviético através de conflito armado direto seria não só inviável como a tentativa resultaria em suicídio coletivo de grande parte da humanidade. Por outro, o plano que concretamente “funcionou” de derrotá-los através de sufocação econômica derrotou apenas uma certa manifestação externa de um problema muito mais profundo.
A questão (pelo menos para alguém que acredita que as pessoas devem tanto quanto possível serem deixadas em paz para administrarem suas vidas como quiserem) é que a idéia básica de que seja moralmente aceitável e/ou socialmente desejável que o governo (ou qualquer outra entidade coletiva) controle irrestritamente a vida individual das pessoas não passou nem perto de ser derrotada, e continua bastante forte. E isso não só por lá nos confins da Ásia. Em quase todo o mundo, me parecem serem pouquíssimas as pessoas que acreditam atualmente que suas próprias consciências individuais devam ter precedência moral sobre quaisquer preceitos receitados pelo governo, pelas igrejas, pela família, pelas escolas ou por quem quer que seja. Não acredito ter havido qualquer vitória realmente significativa ou duradoura sobre tais idéias despersonalizantes. Muito pelo contrário, após um revolucionário período histórico em que a humanidade parecia destinada a libertar-se dos grilhões da opressão violenta e organizada ao pensamento individual divergente, vejo no horizonte as nuvens de um retorno ao obscurantismo massificante.
Inclusive, note-se que mesmo economicamente, o sistema soviético não era intrinsecamente “inviável”, afinal sempre é uma opção logicamente disponível escolher voluntariamente viver na miséria por burrice, ignorância ou fanatismo (ou mesmo por preguiça, falta de ambição ou – num caso mais sofisticado – escolha consciente ao invés de acidental). O problema não foi tanto uma implosão espontânea quanto uma competição direta com economias um pouco mais eficientes (ou pelo menos eficazes), associada à não-passividade de tais economias diante de um projeto muito real de serem assimiladas.
O governo da China atual percebeu isso claramente e construiu um modelo divergente do soviético no qual o desrespeito mais desprezível às liberdades individuais é amplamente tolerado tanto internamente como externamente através da implementação de politicas econômicas pragmáticas. Por esse ponto de vista, pode-se argumentar que, muito ironicamente, o colapso do império soviético se deu não por ser opressivo, mas sim por não sê-lo suficientemente. Ao apegar-se a uma bagagem idealista e fantasiosa de estar cumprindo uma missão semi-divina cujo resultado eventual seria a construção de uma utopia na terra em que todos os seres humanos teriam (mesmo que à força) dignidade, felicidade, segurança, etc…, o governo soviético perdeu a chance de usufruir de diversos caminhos pragmáticos para obter progresso econômico concreto, recusando oportunidades que acreditava não poder coerentemente aproveitar.
O governo chines, por sua vez, despindo-se de tais vernizes e melindres, alavanca suas possibilidades econômicas ao máximo enquanto destrói sistematicamente qualquer tentativa de preservar a autonomia individual de pensamento, expressão e administração da própria vida. A sustentabilidade dessa estratégia a longo prazo descobriremos ao longo do resto do século, mas a noção de que tal sistema seja economicamente viável é preocupante.
O que nos leva à seguinte questão. Sou em princípio sim a favor do “livre” mercado em sua acepção mais ampla. Mas *não* porque esse sistema seja necessariamente o mais eficaz ou o que gera mais riqueza, e sim como efeito colateral da minha convicção de que as pessoas devem ser em princípio deixadas em paz para fazerem o que bem entenderem com suas vidas. Mesmo aceitando a premissa de que o “mercado” maximize ou de alguma forma otimize a “produção de riqueza” (por exemplo investindo trilhões na China), não acho que maximizar a produção de riqueza coincida automaticamente com maximizar as coisas que eu gostaria de vez maximizadas. Prefiro ter um carro um pouco pior mas não precisar ter medo de ser preso ou punido por expressar idéias impopulares.
Mas isso sou eu, e talvez essa posição não seja nem representativa nem evolutivamente ótima. Por um lado, talvez uma grande parte das pessoas se importe muito mais com ter carro um pouco melhor do que com poder dizer livremente o que pensa. Por outro, talvez maximizar a produção de riqueza seja o que efetivamente determina a sobrevivência material de um grupo humano, então os grupos que escolhem ao invés disso alguma noção abstrata de dignidade talvez estejam fadados a serem constantemente sendo varridos para fora da história.
O fato é que objetivamente somos máquinas biológicas descartáveis replicantes, e o domínio numérico de um certo perfil genético / cultural está inexoravelmente ligado em última instância à habilidade de se reproduzir. Especialmente num contexto em que conquistas científicas e tecnológicas facilmente se espalham universalmente, dignidade ou independência de pensamento do ser humano médio talvez pouco tenham a ver com sucesso material do grupo como um todo. Uma casta intelectual pode facilmente – e talvez até mais eficientemente – produzir toda a ciência que uma horda de zumbis “suficientemente inteligentes” se põe então a colocar em ação.
Talvez seja o caso de que o modelo economicamente mais eficiente seja de fato sermos todos descartáveis, substituíveis e intercambiáveis, abandonando qualquer noção de dignidade – seja isso atingido com ou sem um planejamento central. E se gostamos disso ou não (eu pessoalmente detesto), talvez não importe no grande esquema das coisas, porque o grupo mais eficiente em se reproduzir é o que vai predominar seja qual for a sua maravilhosa justificativa filosófico-político-ideológica. Talvez nem tentar ter uma justificativa e sim friamente e objetivamente enxergar toda a questão como um xadrez Darwiniano seja o próximo passo evolutivo/histórico. Não porque isso seja o “certo” ou o “bom”, mas porque talvez seja a estratégia que com mais eficácia aumente sua própria representatividade.
Claro que aqui não estou dizendo nada de realmente novo. O receio de que este seja o caso pode ser encontrado em um grande número de autores e obras mais ou menos óbvios. Mesmo assim, tais questões parecem por vezes se perderem nos discursos de quem associa automaticamente a pura “eficiência econômica” a um mundo no qual um ser com uma consciência que reconheceríamos (ou que atualmente idealizamos) como humana desejaria viver. Ignorar que recursos não podem ser criados do nada leva a um certo tipo de desvio perverso; achar que então a solução seja maximizar a geração de recursos a todo custo leva a outro. Infelizmente a segunda idéia talvez funcione.
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Caminhamos realmente para um domínio maior do Estado sobre a sociedade. E a crise econômica global só contribuirá para isso nos próximos anos. Recomendo-lhe este artigo que pode esclarecer bastante para onde o mundo, principalmentes os EUA, estão indo > http://www.novae.inf.br/site/modules.php?name=Conteudo&pid=1096
OK, mas quem disse que as pessoas acham que a queda da URSS era uma inevitabilidade? Todo esforço americano para se proteger de um eventual ataque comunista (a começar por aquelas pilhas de armas nucleares) e a paranóia anti-comunista provam que ninguém pensava que a URSS não poderia vencer os EUA só porque os americanos tinham mais carros. O máximo que se alega é que os incentivos e as interações no “Mundo Livre” tendem a favorecer a inovação e o progresso (inclusive no campo militar). O Ocidente foi poupado do Lisenkoísmo e da “Física Ariana”. Na verdade, se alguma coisa, eu diria que o surpreendente é que a economia soviética tenha se deteriorado tão rapidamente sob Brezhnev e que, quando viram aonde as reformas de Gorbachev estavam levando, os chefões comunistas não tenham resolvido restabelecer a ordem antes que fosse tarde demais. Tudo isso só prova que tiranos totalitários são seres humanos e estão tão sujeitos a erros de julgamento quanto qualquer um de nós.
Realmente, outros autores já enveredaram por tal reflexão. Dentre eles Vilém Flusser acertou em cheio, pois ficara claro que não se tratava de alternativas bipolares de um mesmo mecanismo (a produção econômica), mas a tomada do mecanismo da produção por uma ordem ética. É o triunfo do que ele chama de aparato, a figura que você, Pedro, ilustrou no fim do texto:
(…) “Sem dúvida que agora essa concepção kafkiana do aparato tem se mostrado patente, e que a persistência do otimismo moderno e progressista (seja na forma do liberalismo, seja na forma do socialismo) tem algo de patético. E isso porque temos vivido a experiência existencial de uma mudança da relação pré-industrial “homem-máquina”: durante nossas atividades (o “trabalho”), funcionamos, da mesma forma que em nossas ocupações do tempo livre (o “consumo”): como funções de numerosos aparatos.” (vide http://br.geocities.com/vilemflusser_bodenlos/textos/PARAALEMDASMAQUINAS.pdf )
Fruto de nossa liberdade? É estranho que a igualdade acabe por se tornar o horizonte moral, e isto de uma forma ou de outra. Não sei se estou me fazendo entender. Não se trata de igualdade material, mas de escopo, de finalidade de vida. Creio que a resposta deva ser sucinta: o liberalismo pode ser tomado como norte ético, mas o homem é que deve sê-lo.
Caro Thiago,
Quem disse que as pessoas acham que a queda da URSS era uma inevitabilidade? Eu! Eu disse. Eu e a torcida do Flamengo (talvez não literalmente, mas certamente metaforicamente). Claro que nem todos concordaram.
Mas infelizmente o motivo da inevitabilidade talvez não fosse necessariamente a inexistência aberrante de liberdade política, e sim a completa incompetência em modernizar seu modelo de produção.
E novamente infelizmente, talvez essa incompetência não decorra automaticamente de um modelo politicamente totalitário para o qual um ser humano é apenas uma engrenagem. Como a China está fazendo um grande esforço para demonstrar, talvez seja perfeitamente possivel ter uma sociedade consumista, materialista e com modernidade econômica mas sem liberdade política ou respeito à dignidade individual. Como eu disse, o erro da URSS talvez tenha sido ter sido idealista demais; consumismo era considerado decadência ocidental. Deu no que deu.
Ironicamente, a questão é que talvez no final fosse precisamente porque os americanos tinham mais carros (e não mais liberdade ou mais justiça ou dignidade) que a URSS não tinha como “vencer”.
Saudações,
Sergio
Caro José Luis,
Aponto para o fato de que o texto em questão foi escrito por mim (Sergio) e não pelo Pedro!
Mas sim, concordo com o que você disse, e temo que ao transicionarmos de sociedades tribais com grande escassez de recursos para um mundo cada vez mais cosmopolita onde as vidas individuais são objetivamente descartáveis, a importância de noções como fraternidade, empatia e generosidade, mesmo que baseada num completamente pragmático tit-for-tat, se torne cada vez menor e possivelmente até desfavorável à sobrevivência de um grupo. Talvez uma horda de cínicos materialistas seja a otimização final do processo produtivo, e eles vencerão porque terão mais poder material concreto para fazer prevalecer sua vontade.
A economia moderna, globalizada, interconectada e ao mesmo tempo distribuída e móvel, transforma as pessoas em commodities, de forma que eu sempre posso trocar de fornecedor para os serviços humanos de que necessito. Sempre posso comprar minha comida em outro lugar, ou ir a outro médico, ou trocar de secretária, ou de namorada. Essa massificação basicamente nos liberta da necessidade pragmática de sermos seres humanos decentes que estabelecem relações significativas com quem que quer seja. Infelizmente, parece bastante concebível que esta talvez seja mesmo a organização mais economicamente vantajosa uma vez que superamos uma estrutura social tribal baseada em pequenos grupos mais ou menos independentes.
Marx percebeu isso de alguma forma, mas resolveu se revoltar contra a logica (sempre uma má opção) e decidir que um governo suficientemente bem intencionado poderia decretar que a despersonalização dos seres humanos como agentes econômicos seria proibida, apesar de isso ir tanto contra a otimização da produção (colocando imediatamente qualquer sociedade que escolha esse caminho em desvantagem) quanto tambem contra a liberdade dos próprios agentes econômicos cuja despersonalização estaríamos supostamente buscando evitar.
Os ultra-liberais também perceberam essa questão, mas ao invés de se horrorizarem com as conseqüências decidiram que na verdade não existe qualquer contradição e que existiria algum tipo de identidade automática entre a maximização da função utilidade da raça humana e da função utilidade individual. Isso parece para mim um enorme esforço de wishful thinking de pessoas inteligentes que percebem que esse caminho de fato otimiza a produção e é quase inevitável historicamente mas que não podem aceitar que a nível pessoal isso talvez seja extremamente degradante.
O problema é que talvez o que maximize o potencial de sobrevivência de grandes grupos e talvez até mesmo da raça humana seja precisamente a tendência de o ser humano individual se tornar cada vez mais descartável. Quando temos um grupo de 100 pessoas tentando sobreviver, é melhor não perdermos a única pessoa que sabe fazer fogo, ou cozinhar, ou governar. Quando temos bilhões de pessoas numa economia global, podemos nos dar ao luxo de descartar praticamente qualquer um. E de certa forma isso nos torna muito menos vulneráveis conjuntamente!
Imaginar que um tal sistema ruiria meramente por causa de algum tipo de descontentamento pessoal generalizado é, novamente, para mim, wishful thinking. Contentamento ou descontentamento individual são completamente arbitrários, são truques evolutivos cujo objetivo final é nos impelir a fazer o que maximiza a sobrevivência do nosso grupo; isso é óbvio quase que imediatamente pelo absurdo da hipótese contrária. Os grupos que maximizam sua sobrevivência predominam sobre os que não o fazem. Portanto é muito mais fácil imaginar que o que define contentamento para o ser humano médio se altere para se alinhar com o que maximiza a sobreviência do grupo do que o contrário.
Para evitar que isso aconteça temos que conscientemente preferir sistemas econômicos menos eficientes. E então um quinto da população mundial decide que a dignidade humana não é assim tão importante e de repente tudo o que compramos é produzido lá. Não funciona. Então talvez não seja nem sequer uma questão de escolha. Talvez seja o futuro inevitável.
Só para constar, eu detesto profundamente imaginar que este seja o caso.
Saudações,
Sergio
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