Delícias do Anarco-Capitalismo

March 17th, 2009 by Sergio de Biasi

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Não me entendam mal, eu sou libertarian e coisa e tal, mas assim como não dá para chegar na Lua subindo em árvores, não dá para preservar os direitos individuais abolindo todas as entidades que poderiam garanti-los.

Senão vejamos, partamos do fundamento do que considero o espírito libertário : o ser humano individual deve ter garantidas certas liberdades e certas seguranças pessoais, mesmo contra a vontade ou até mesmo interesses reais ou imaginados do resto da sociedade. Não interessa por exemplo se meus rins poderiam salvar a vida do presidente; ninguém pode me forçar a doá-los contra a minha vontade. A integridade do meu corpo físico, a liberdade de expressar idéias, a preservação da propriedade contra apropriação indevida são, entre outros, princípios que gostaria de ver defendidos.

Mas aí começamos já desde a fonte a esbarrar em problemas. Para isso funcionar em sociedade, precisamos de alguma forma concordar sobre *quais* princípios serão defendidos. E mais do que isso, defendidos por *quem*?

Suponhamos que meu vizinho resolva sem qualquer provocação atacar-me violentamente buscando tomar minha vida. Parece razoável considerar que para evitá-lo eu possa, se necessário, tomar sua vida, mesmo contra a idéia de que a vida deve ser em princípio preservada, e que não me torno, por assim dizer, socialmente indesejável por fazê-lo. Isso leva a todo o tipo de discussão sobre que direitos devem prevalecer sobre quais, e em que circunstâncias, etc. E infelizmente, não existe uma resposta “certa” para o sistema de direitos e garantias mais correto. Além disso, muito provavelmente haverá discordância generalizada entre pessoas com um mínimo de independência crítica já sobre quais sistemas são remotamente bons, quanto mais sobre qual seria o ideal.

Isso acaba por nos criar o seguinte problema. Defender coercitivamente qualquer formulação específica do conceito de liberdade individual vai contra o conceito de liberdade individual.

Para resolver essas questões, certas correntes resolvem que portanto a solução é basicamente não forçar coercitivamente de forma universal qualquer formulação específica do conceito de liberdade individual. Deixemos os indivíduos sozinhos, cada um livre para cuidar do que é seu.

Evidentemente se pararmos por aí isso não vai funcionar, porque nada impedirá que parasitas desajustados sem qualquer escrúpulo quanto às liberdades individuais dos outros imediatamente se unam para saquear e pilhar o resto da sociedade. A única forma de evitar que isso aconteça é aquele que mais ou menos concordam sobre a desejabilidade de certas garantias fundamentais se unam então para fazer valer tais idéias. Só que dificilmente é realista, desejável (ou sequer possível) que uma sociedade moderna se construa em torno da idéia de que teremos professores universitários de dia que são vigilantes à noite.

Para encurtar o argumento, a essência da tese dos anarco-capitalistas é que coisas como a segurança pessoal, a propriedade privada e os contratos seriam eventualmente garantidos por seguradoras (e seus respectivos serviços por exemplo de segurança e arbitragem) que cobrariam pelo serviço.

Bem, para começar, eu vejo grande similaridade entre isso e o que já ocorre. Os governos são hiperinfladas instituições precisamente deste tipo. Após uma sucessão de reviravoltas retóricas e semânticas, chegamos a uma situação na qual efetivamente pagamos a grandes instituições às quais não temos a menor chance de individualmente nos opormos para nos protegerem dos outros. É de uma ingenuidade muito grande imaginar que tais instituições colocarão meu bem estar acima de seus interesses, ou que a “perda de credibilidade” ou de negócios espontaneamente fará com que elas se comportem de forma a preservar a minha liberdade. Pelo contrário, a pura e irrefreada motivação de maximizar o lucro me parece que definitivamente não só não está logicamente atrelada à maximização da minha liberdade, como pode em muitos casos ir diretamente contra ela.

Eu não disputaria que o sistema de justiça tal como implementado na maior parte dos países é notoriamente caro, vagaroso, arbitrário, politizado e cheio de vários outros tipos de problemas. Diante disso, mesmo sem mudarmos completamente a estrutura política, a arbitragem, um dos pontos do programa anarco-capitalista, parece uma possibilidade que poderia ou até deveria ser mais explorada. Ou não? Bem, em países como os Estados Unidos isso tem sido uma prática crescente, freqüentemente para surpresa de quem diante de uma disputa descobre que assinou um contrato no qual, nas letras miúdas, abriu mão de seu direito de reclamar uma solução na justiça e ao invés disso se submeterá obrigatoriamente a arbitragem sem possibilidade de recurso. Maravilhosamente anarco-capitalista? Bem, o resultado prático parece ser mais na direção de dar as empresas o direito de colocar como um dos termos do contrato “as leis pertinentes não serão aplicadas”. O que aliás de fato *é* maravilhosamente anarco-capitalista. Principalmente para o lado mais poderoso do contrato, que pode simplesmente impor a sua vontade, e danem-se as garantias individuais à liberdade, propriedade, etc.

Apesar disso tem sido porém quase um mantra entre certas correntes ultra-laissez-faire que a busca do lucro individual à la Ayn Rand dentro de um sistema de livre mercado automaticamente cria um sistema que naturalmente converge para o ponto ótimo da função utilidade coletiva para todos.

Infelizmente, quando indivíduos egoístas se põem a comandar grandes empreendimentos sem qualquer tipo de freio, o que ocorre é exatamente o oposto. Pateticamente e ridiculamente, não exatamente porque os “patrões expoliadores” criem uma oligarquia burguesa que oprime o proletariado. Pelo menos não num estado moderno. O que ocorre é que as pessoas colocadas em tais posições simplesmente roubam a maior quantidade possível de dinheiro e saem correndo. A crise americana atual, que assume proporções desastrosas, não foi conseqüência dos bancos agirem, para proveito próprio, contra os interesses da sociedade. Pelo contrário, os bancos agiram radicalmente contra seus próprios interesses, e alguns dos maiores bancos americanos quebraram, estão quebrando, ou estão moribundos. Enquanto isso executivos e traders foram rindo pra casa com literalmente bilhões de dólares. O que foi que deu errado? O que deu errado – e isso foi um erro até mesmo dos próprios capitalistas investidores – foi a idéia de que se deixarmos a economia nas mãos de um bando de egoístas amorais, tudo magicamente vai dar certo no final porque se eles administrarem mal o dinheiro perderão os investidores. Ora, me parece que isso não importa muito de você já levou mais dinheiro pra casa do que poderá gastar em dez vidas. É a isso que o rational self-interest descontrolado concretamente nos leva. Para que o interesse individual racional em obter lucro pessoal não supere todas as outras considerações, é preciso que haja algum desincentivo, alguma conseqüência para quem agir como um psicopata.

5 Responses to “Delícias do Anarco-Capitalismo”

  1. Anarcapitalista says:

    A crise americana não é exemplo do que ocorre em um livre-mercado, ela é exemplo do que ocorre em um mercado sob domínio do estado.

    Nos EUA usam sistema de economia mista como aqui e, tanto lá quanto cá, todo o mercado está sujeito ao arbítrio e nas garras do governo, dos sindicatos e nas federações.

    A crise, por exemplo, foi fruto da especulação financeira.
    Os especuladores calcularam que poderiam agir daquela forma uma vez que o governo injetaria bilhões de dolares na economia quando a bolha estourasse.

    Acertaram no calculo e tiveram o comportamento recompensado pelo governo.

    Em um livre mercado crises podem ocorrer, mas uma vez que os agentes envolvidos na crise estão sozinhos, são punidos pela crise em si e são obrigados a buscar um comportamento mais adequado.
    No caso o comportamento seria buscar uma menor dependência da economia na especulação, algo que é realmente desnecessário em uma economia capitalista.

    • Com certeza os EUA não são um exemplo de mercado “completamente livre” ou mesmo perto disso. Concordo com essa afirmação.

      Mas eu NÃO acho que os especuladores tenham “calculado” que o governo injetaria bilhões de dólares na economia. Tudo indica que eles não calcularam nada. Grande parte deles simplesmente faliu, quebrou, explodiu mesmo. Agora, a questão, colocada de forma perplexa pelo próprio Alan Greenspan é : como foi possível que até mesmo bancos gigantescos com muito a perder e com alguns dos melhores cérebros do mundo trabalhando para eles tenham agido de forma tão suicida e flagrantemente contra seus próprios interesses? Isso quebra a tese anarco-capitalista, porque uma parte da suposição é que o auto-interesse racional impediria esse tipo de coisa nessa escala.

      A explicação mais ou menos clara é que as pessoas que tomaram essas decisões NÃO tinham o interesse das próprias instituições para as quais trabalhavam em mente. Eles apenas manipularam o sistema – e aí o sistema inclui as próprias instituições financeiras – para colocar bônus gigantescos no bolso e sair correndo. Alguns ainda conseguiram manter seus empregos, mas isso só foi possivel mesmo porque o governo resolveu jogar dinheiro de helicóptero em cima do incêndio, algo que não poderia ser previsto nessa escala e que de qualquer forma salvou apenas uma fração das instituições atingidas. Meu ponto é que as pessoas que tomaram as decisões relevantes para causar a crise teriam feito o que fizeram mesmo que o governo simplesmente deixasse todo mundo quebrar (algo que possivelmente teria sido o certo). Elas não estavam nem aí se os bancos para os quais elas trabalhavam desintegrariam por causa disso.

      É triste, mas a “liberdade total” infelizmente cria situações nas quais pessoas entram na sua casa e levam a sua televisão quando você não esta olhando. Eu sou totalmente a favor de um sistema político que maximize a liberdade individual, mas eu não acho que a desregulamentação total de tudo leve a isso, muito pelo contrário. Infelizmente se criamos certos tipos de vácuo de poder aparecem gângsters e sociopatas para ocupá-lo, e para mim ser oprimido pelo governo ou por gângsters dá no mesmo. De certa forma pode-se pensar que certos tipos de regulamentação estarão protegendo as empresas de pessoas desonestas. Leis existem justamente para que não se precise julgar absolutamente TUDO caso a caso, que seria completamente inviável. Se eu saio dando tiros a esmo no meio de uma praça ou eu tenho uma explicação MUITO boa ou tenho mais é que ser preso mesmo. Da mesma forma, se alguém está a cargo de administrar um milhão de dólares de um banco e então faz empréstimos no valor de 100 milhões, e então embolsa por isso bônus no valor de um milhão de dólares, evidentemente tem algo errado. Isso é o equivalente financeiro de dar tiros a esmo no meio da praça. Alguém que faz isso ou é maluco ou está agindo de má fé. Não pode acabar bem, para nenhum dos envolvidos. Claro que sempre se poderia construir uma explicação maravilhosa sobre “eu achei que era um bom investimento”, assim como o cara dando tiros no meio da praça pode inventar motivos, mas se formos pensar assim então matar pessoas e violar contratos também deveria ser o aceitável em princípio. Quão sensato parece ser isso?

      Agora, se eu preferia viver num mundo em que não fosse preciso ter policiais me vigiando por via das dúvidas? Claro, mas só que aí eles também não estariam vigiando os gângsters, e eles não têm como saber quem é quem.

      O problema mesmo é onde a regulamentação começa a ficar excessiva e a destruir mais liberdades do que preserva. Esse é para mim o ponto de equilíbro que deve ser buscado. Mas se por um lado eu concordo plenamente que regular tudo é opressivo e absurdo, não regular nada também não funciona.

      Saudações,
      Sergio

  2. http://arsenaldosinvalidos.blogspot.com

    Discutindo o anarco-capitalismo, dê uma olhada nos nossos textos e comentários.

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