Escrevo este texto em parte motivado por este texto aqui (que agora está aqui) do Pedro no qual ele diz que
O “parisiense” é uma abstração. É melhor e mais vantajoso querer ser Baudelaire do que querer mostrar-se “parisiense”.
Sobre isso, eu comento o seguinte.
Eu entendo perfeitamente sob que métrica querer ser Baudelaire é melhor do que querer ser parisiense. Qualquer um pode, em princípio, ser parisiense, sem precisar para isso realmente de grandes méritos ou sequer realmente grandes esforços. Mude-se para Paris e fique lá tempo suficiente. Se o sujeito não for uma ostra e um retardado completo (tá, nem todo mundo vai atender a esse pré-requisito, mas se ele for atendido), ele vai aprender francês, e conhecer a cidade, e eventualmente poder com pleno direito ser chamado de parisiense, mesmo que tenha nascido em Novosibirsk. E daí? Se for uma mera questão de “status” ou deslumbramento com sentir-se por osmose identificado com Baudelaire – e é entre muitos outros motivos de pessoas como Baudelaire que vem o status de ser parisiense – então é como achar que se você comprar muitos livros ficará automaticamente culto. Então, em resumo, eu entendo sim a futilidade de querer ser “parisiense” ou similares.
Por outro lado, e é aí que vem a minha observação, querer tornar-se Baudelaire não me parece um objetivo melhor. Note-se, tornar-se parisiense pelo menos é um objetivo atingível (tanto quanto seja possível capturar a abstração do que seja ser parisiense). Mas tornar-se Baudelaire não é. É fisicamente impossível tornar-se, no sentido literal, Baudelaire. (Isso me lembra “Quero Ser John Malkovich“, uma original parábola sobre querer ser o outro.)
Então a única forma coerente de entender essa afirmação é como metáfora. Não é tornar-se Baudelaire, e sim Baudelariano, à altura de Baudelaire, ou como Baudelaire. Mas aí começamos a escorregar para o mesmo tipo de abstração que é a de ser “parisiense”. Quem julga ou como medir se somos suficientemente “como Baudelaire”? E que tipo de similaridades estamos buscando? Certamente não se trata de vestir as mesmas roupas ou ter a mesma aparência. Provavelmente também não se trata de ter o mesmo caráter ou acreditar nas mesmas idéias. Será que é escrever no mesmo estilo? Provavelmente também não. Imagino que seja mais na direção genérica de escrever com a mesma qualidade. Ou ter o mesmo impacto na cultura humana. E a esse ponto já não abstraímos o Baudelaire a ponto de não restar mais do que um fiapo do ser humano Baudelaire? Já não se torna algo tão abstrato quanto, bem, como querer ser parisience? Afinal, quem quer ser “parisiense” no fundo anseia pela identificação genérica com tudo que Paris represente, inclusive Baudelaire. E se nos é permitido argumentar que não é por motivos fúteis sobre Baudelaire, me parece muito razoável que se possa argumentar que não seja por motivos fúteis sobre ser parisiense. Ou será que por acaso o próprio Baudelaire era parisiense pra ficar contando vantagem? Alías, da mesma forma, poderíamos argumentar que Baudelaire era Baudelaire só para poder ficar contando vantagem.
Então, se por um lado dar excessiva importância a poder dizer “eu sou parisiense” me parece fútil, sem dúvida, por outro lado isso é mais ou menos acessório e periférico aos fundamentos mais profundos da personalidade de uma pessoa. Já querer ser Baudelaire me parece que leva a problemas mais graves. Tornar-se Baudelaire exige um comprometimento mais profundo, e um maior grau de cirurgia mental. Tudo isso para atingir um objetivo tão fútil quanto querer ser parisiense.
Diante disso eu digo que não, nós não temos que querer ser parisienses, ou Baudelaire, ou Shakespeare, ou Einstein, ou iguais a quem quer que seja. Embora existam de fato pessoas que podem servir de referência cultural, científica, moral e sob outros aspectos, querermos “ser como elas” é um péssimo caminho. Nós temos que ser é nós mesmos, e o melhor que conseguirmos ser de acordo com nosso julgamento e com nossa consciência. No processo, se formos muito bem sucedidos, é muito provável que acidentalmente nos tornemos parisienses, Baudelarianos, Shakesperianos, Einstenianos e muito mais. Mas isso tudo como acidente e efeito colateral de sermos nós mesmos, de buscarmos ser o melhor que nós mesmos podermos ser.
Querer ser o outro, por outro lado, nos distancia de nossas reais potencialidades e nos coloca perseguindo fantasmas, e buscando frustradamente, esquizofrenicamente, mesquinhamente, futilmente, algo que só só o outro pode ser. Muito melhor é fazer as pazes com quem você é e tentar exercer essa inalienável função da melhor e mais plena forma que você conseguir.
[...] .././ [...]
Às vezes acho um porre a contraposição entre aparência e essência, pois ambos se mostram por vezes sob as mais diversas facetas a ponto de se confundirem.
Adorei seu texto.
Curioso mesmo como, se você não estiver disposto a se entender com seu próprio EU – por mais clichê e auto-ajuda que isso possa parecer – você sempre ficará à mercê de algum grupo que irá determinar o que é in ou out. Será uma eterna e frustrante corrida atrás do próprio rabo.
Claudio, esse negócio de correr atrás do próprio rabo parece estranho mesmo. Concordo.
Quem sabe um dia eu possa ser debiasiana? =)
O texto é muito bom mesmo.
Difícil labor de ser quem somos, e não ser quem gostaríamos.
Árdua tarefa de “ser”, pois “estar” é mais confortável.
Como diz meu velho Pai: “Fazer bonito com o chapéu dos outros!”…
Leio e frequento “O Indivíduo” e, por vezes, artigos me inspiraram para expor minhas reflexões e pensamentos em meu “Meu Cazzzulo” que, alías, linko “O Indivíduo” como fonte recomendável.
Parabéns pelo artigo…
NAMASTE!
Muito bom texto!
É foda parecer auto-ajuda (e parece!): mas ser eu mesmo é tarefa de toda a vida…
Mais fácil é querer filosofar como Aristóteles, rezar como Santo Agostinho, falar como Olavo de Carvalho…
[...] Pharmácia inteira em BWV 639. [...]
Sabe, é por causa de comentários como o anterior que eu raramente cedo à tentação de debater com desconhecidos e, principalmnte, em caixas de comentários de blogs (ok, às vezes eu cedo). Um pouquinho de astúcia – digamos assim – é capaz de pegar um trecho de um post sobre como a importância de o indivíduo procurar desenvolver suas potencialidades, descontextualizá-lo e transformá-lo num trecho de uma matéria da “Você S.A.” ou de alguma palestra do Lair Ribeiro.
A grosso modo isso é possível de ser feito com qualquer coisa que seja dita, a não ser que, a cada colocação, o autor se resguarde fazendo dezenas de disclaimers.
Debater nesse contexto é estar certo de que vão pegar o que você não disse, ou alguma explicação que você deixou de fazer por considerar desnecessária, e usar contra você. A coisa fica cansativa e nada produtiva.
A cortesia de responder aos comentarios; mesmo quando eles são insolentes…
*
Querer ser o albatroz do poema de Baudelaire é ainda pior… Eu, o inealienavel eu, versus os matelots sem alma sensivel.
Abraços,
Fui injusto como o albatroz. A imagem da beleza surrupiada pelas mãos e cabeças da multidão…
A ultima estrofe do poema é que me coloca, por assim dizer, em guarda, quando o poeta é associado à ave. O poeta não tem “semblables”; paira, sozinho, sobre o mundo, e ri, assombra! Ai’ esta’, pra mim, o no’ gordio que nos leva o poema : – dois mundos completamente distintos: gregario (e ninguém se identifica à legião; por exemplo, quem esta’ a ler Baudelaire e topa com o belo poema L’albatros; e como seria diferente? ), ou solitario, vivendo num mundo etereo soberbamente belo, até o spleen, pois incomunicavel.
Os cultores do belo podem muito bem, no entanto, fazer parte da tripulação dos marujos; a quantidade de escritores, pensadores, musicos, pintores que alimentaram as linhas do nazismo, do facismo e do comunismo, por exemplo. (Dai’ a frase de Steiner : « O icône de nossa época, é a preservação de uma arvore cara a Goethe ao largo de um campo de concentração. » )
Mas creio que começo a me tornar confuso… Enfim, a distinção “massa” e “poeta” no poema em questão é que me parece falsa, sentimental.
Saudações,
Fernando
[...] poucos argumentos que a solução é atacar o interlocutor ao invés de suas idéias. Achar que o meu texto tivesse qualquer coisa a ver com “eu me basto”, ou com egoísmo, ou com narcisismo, [...]
http://caminhanca.blogspot.com/2009/04/conhece-te-ti-mesmo.html
http://princesasubmissa.blogspot.com/2010/06/sobre-futilidade-de-querer-ser-o-outro.html
Além de levar a argumentos como “Oh, mas lá no fundo Hitler era uma *ótima* pessoa, muito simpático e gentil, sabe?” :-)
Valeu! :-)
Beijos,
Sergio
Valeu. :-)
Ironicamente, o seu comentário me lembra a cena de “Life of Brian” na qual Brian diz para a multidão que o segue acreditando que ele seja o messias : “Não, não, não me sigam! Vocês têm que seguir sua própria consciência! Pensarem livremente! Usarem seu próprio julgamento!” e então a multidão responde em uníssono : “Oh, como ele é sábio! Diga-nos mais, diga-nos mais!” :-D
Ou, colocado de outra forma : “If you meet Buddha on the road, kill him!“.
Saudações,
Sergio
Sal Terrae linkou para cá dizendo :
Naturalmente que quando concretamente “pílulas milagrosas” fazendo de fato parte de uma “pharmacia” com vários PHs são produzidas por católicos, o resultado é que o responsável pela invenção do esquema é… ora, canonizado, evidentemente! Agora vejam vocês : ambos os “milagres” atribuídos a ele (e coloquem-se aspas nisso) decorreram do uso das tais “pílulas milagrosas”.
Talvez o papa pudesse canonizar alguém não por realizar “milagres” mas por exemplo escolher quem por querer tanto ajudar os que sofrem se tornou médico e dedicou sua vida a de fato curar diretamente pobres e doentes com remédios, operações ou diagnósticos corretos. Mas isso seria entender muito mal como funciona a igreja católica. Assim como no caso da Madre Teresa, não se trata de efetivamente ajudar ninguém neste mundo e sim de salvar suas almas ao trazê-los para o catolicismo. Trata-se de prover “conforto espiritual” enquanto morrem sem interferir em nada com o processo. E se inesperadamente melhorarem, realmente, é mesmo um milagre. Ou seja, com menos hipocrisia, é um prêmio para quem mais efetivamente conseguiu promover o obscurantismo místico – que interessa a Roma incentivar.
Aliás, muito ironicamente, venho da Lombardia, não da Calabria. Mas só o fato de o meu sobrenome fazer parte do “argumento” contra o que eu escrevi já demonstra a estrutura de pensamento e o grau de honestidade intelectual do autor do comentário.
Oi Claudio,
Sim, concordo. :-) Mas por vezes não é nem sequer falta de noção de quem comenta, é falsificação total do que foi dito mesmo. Então acaba servindo como perfeito exemplo para certas coisas que eu queria ilustrar mas que ilustram-se a si mesmas melhor do que qualquer descrição.
Agora, você precisava ver os comentários que são tão desconexos que nem pra isso servem. :-)
Saudações,
Sergio
Não me parece que o albatroz de Baudelaire lá estivesse voluntariamente, ou que ele sequer estivesse tentando lutar. :-)
Mas o comentário foi um pouco críptico; você acha então que os matelots devem ser deixados em paz?
Para quem ficou curioso segue abaixo o poema em questão :
L’Albatros
Souvent, pour s’amuser, les hommes d’équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.
À peine les ont-ils déposés sur les planches,
Que ces rois de l’azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d’eux.
Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu’il est comique et laid!
L’un agace son bec avec un brûle-gueule,
L’autre mime, en boitant, l’infirme qui volait!
Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l’archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l’empêchent de marcher.
— Charles Baudelaire
Ah, certo. Bem, eu diria que a massa como eu a estou conceituando é quase que auto-eleita. A massa está em escolher deliberadamente jogar fora tudo que há de único e diferente em sua consciência individual para decidir, bem – juntar-se à massa. Esforçar-se deliberadamente para pensar igual a todo mundo, buscar propositalmente destruir qualquer vestígio de personalidade e pensamento independente em si mesmo como forma de comprar aceitação social e isenção de responsabilidade individual. Buscar segurança existencial e identidade em números e em constante reforço mútuo de uma mitologia comum ao invés de na especificidade da sua própria experiência.
Então a massa não são exatamente os “ignorantes”, ou os “espitirualmente pobres”, ou os “miseráveis”. Essa distinção soa mesmo falsa e sentimental. A massa são os que aterrorizados pela solidão do incomunicável resolvem aderir a uma conspiração perversa baseada na idéia de que se todos nos forçarmos a pensar as mesmas idéias tiradas de uma cartilha então nos sentiremos finalmente em harmonia e compreendidos uns pelos outros. Cujo efeito colateral quase inevitável, aliás, é que quem não aderir ao plano é uma ameaça à harmonia.