O Fantástico Argumento de Santo Anselmo

July 12th, 2009 by Sergio de Biasi

Para quem desconhece, o “argumento” de Santo Anselmo, é um argumento ontológico visando supostamente “provar” a existência de deus, apresentado (entre outros) por, bem, Santo Anselmo. (Existem outros argumentos ontológicos.)

O “argumento” de Santo Anselmo é essencialmente o seguinte :

1. Deus é a entidade mais completa / perfeita / maior / superior a todas as outras entidades concebíveis.
2. É mais completo / perfeito / maior / superior necessariamente existir do que não existir.
3. Portanto deus deve necessariamente existir.
4. Portanto deus existe.

Tem tantas coisas erradas com este argumento que é até difícil criticá-lo. É similar a criticar “Se todos os morangos que voam têm um PhD em lingüistica então eu sou um limão.” Com a diferença de que este argumento, ao contrário do argumento de Santo Anselmo, está perfeitamente correto do ponto de vista de lógica.

Usarei abaixo “A” para o quantificador lógico “para todos” e E para o quantificador lógicos “existe pelo menos um”.

O problema já começa quando tentamos atribuir significado lógico a essas idéias. Essa relação de “maior” está absolutamente mal definida, por exemplo. Mas digamos que formalmente exista uma relação binária M(x,y) definida sobre “todas as entidades concebíveis”, seja M qual for. E chamemos a propriedade de “ser deus” de D(x). Temos então :

1. A(x) [ D(x) <--> A(y)M(x,y) ] (definição)

Então chegamos ao passo 2, no qual é dito que é “mais perfeito” ser necessário do que não ser. O que se está dizendo então é que se x e y são entidades concebíveis e x existe mas y não existe, então x é “mais perfeito” do que y (implicitamente, sejam quais forem todas as outras propriedades de x e y). Aliás, note-se portanto que “existir” não é uma propriedade necessária das entidades concebíveis. Então chamemos essa propriedade de existir na realidade (e não apenas como “entidade concebível”) de R(x). Temos então :

2. A(x)A(y) [R(x)^~R(y) --> M(x,y)] (premissa)

A partir daí, chega-se (usando 1 e 2) ao centro do argumento, que é a conclusão de que algo que seja deus tem necessariamente que existir. Este passo está perfeitamente correto logicamente. Temos então :

3. A(x) [ D(x) --> R(x) ] (de 1 e 2)

O problema é no último passo, quando se conclui então que necessariamente existe uma entidade tal que ela satisfaz a definição de deus e ela é real (em oposição a meramente concebível).

4. E(x) [ D(x) ^ R(x) ] (errado, injustificável logicamente!)

O que efetivamente nós podemos concluir com base nas premissas apresentadas é que *se* deus como definido acima existe como entidade concebível, então existe como entidade real. Isso de forma alguma estabelece a necessidade lógica de que exista algo, mesmo no mundo das entidades concebíveis, que de fato satisfaça à definição de deus – *caso em que* teria que existir. Essa definição da propriedade “algo maior do que todos os outros” não é necessariamente instanciável para qualquer relação, ainda mais no caso de conjuntos infinitos, e isso não é nenhuma novidade. Isto é, claro, a não ser que estejamos dispostos a aceitar contradições, mas nesse caso automagicamente tudo é verdadeiro sem precisar de prova e não estamos mais falando de coisa alguma.

Portanto, o argumento não faz sentido nem mesmo em termos de lógica abstrata. Note-se que mesmo que ele *fizesse* sentido em termos puramente lógicos, as definições dadas são completamente arbitrárias, e não apresentam qualquer justificativa ou explicação sobre o que exatamente é ser “mais perfeito” ou por que seria “mais perfeito” existir do que não existir. Para o argumento ter qualquer relevância prática seria necessário estabelecer conexões entre tais afirmações e definições e o mundo real, porque senão estamos falando somente sobre um mundo imaginário no qual relações com essa estrutura formal são válidas.

Uma parte do problema de historicamente descontruir o argumento de Santo Anselmo é que um entendimento mais profundo da relação entre lógica e linguagem não apareceu até muito recentemente. Noções mais claras do que seja uma prova e da relação entre sintaxe e semântica em lógica formal só apareceram quase comtemporaneamente. Os gregos de fato iniciaram uma tentativa heróica de estudar o assunto mas chegaram a resultados bastante incompletos e depois disso houve um gigantesco hiato em que o progresso foi muito lento.

Em tempos mais recentes porém houve grande progresso na área, e um entendimento bem mais rigoroso do que constitui uma prova formal, e um dos grandes expoentes nisso foi Gödel.

Muito ironicamente, Gödel foi uma das pessoas que buscou de alguma forma atualizar ou “consertar” o argumento ontológico. Ele escreveu uma versão da mesma idéia usando lógica modal. A versão de Gödel nunca foi realmente considerada prova de coisa alguma pela comunidade matemática em geral, e sofre de problemas similares, embora menos primários.

Note-se que Gödel, apesar de ser um gênio, não era exatamente um modelo de equilíbrio psicológico e no final de sua vida tinha um grande temor de ser envenenado, comendo somente a comida preparada por sua mulher. Ocorreu então de sua mulher ficar doente e ter que ser hospitalizada por um longo período, e como resultado Gödel parou de comer, eventualmente falecendo (!) devido a subnutrição extrema.

O que isso prova sobre seus teoremas? Absolutamente nada! Teoremas não são verdadeiros dependendo de quem os publicou, e sim por causa de sua estrutura. A verdade é verdade independentemente de quem a diga e “fulano disse x” é no máximo evidência circunstancial, seja contra seja a favor. Elevar a autoridade a critério de verdade é subverter completamente a possibilidade de honestidade intelectual. Os maiores gênios da humanidade por vezes (aliás quase sempre) também dizem enormes bobagens e sua genialidade está muitíssimo mais na sua capacidade de enxergar coisas que ninguém mais viu do que na de serem infalíveis. Distinguir o joio do trigo, distinguir a verdade que corresponde objetivamente à realidade dos fatos de historinhas e devaneios é tarefa crítica inalienável do ouvinte sem a qual passa-se simplesmente a acreditar em “coisas”. O que, infelizmente, é a estratégia intelectual de grande parte da população mundial.

39 Responses to “O Fantástico Argumento de Santo Anselmo”

  1. Fabiano Costa says:

    Kant procurou refutar o argumento de Santo Anselmo de um modo mais simples que Gödel, mas parece que alguns filosófos neotomistas contra-refutaram Kant. A refutação de Gödel é mais nebulosa, e acho que mesmo os filosófos ateus sentem dificuldade em expressá-la porque a sua lógica é demasiadamente matemática.

  2. GROSSO says:

    Você está atrasado. O argumento ontológico de Santo Anselmo foi refutado por Santo Tomás de Aquino.

  3. Carlos says:

    Me explica uma coisa: por que todo ateu vive tão preocupado com Deus e com quem Nele crê?

    Se Deus existe, há motivos de sobra para que seus crentes tentem alertar os ateus, vistos pelos crentes como cegos ou ignorantes.

    Se Deus não existe, tal como crêem os ateus, os crentes são todos completamente loucos e iludidos. Não acha que tentar convercer os loucos de que sua loucura é grande através de argumentos lógico-matemáticos é uma atividade por demais idiota?

    Um exemplo prático: que o Pedro Sette caridosamente ature o teu ateismo na esperança de que um dia você abra os olhos, isso é perfeitamente compreensível. Por outro lado, que você ature a completa insanidade do Pedro Sette (que insiste em crer em Deus) mantendo com ele um diálogo, como se fosse possível manter um diálogo racional com um doido, isso eu não consigo compreender.

    Por fim, exatamente como Santo Anselmo, um crente nunca fundamenta sua crença em argumentos lógicos ou filosóficos. Isso significa que de nada adiantaria refutar toda a filosofia cristã do universo, pois isso não diminuiria a fé de quem crê. E, se o axioma fundamental de toda filosofia cristã é a fé, e a fé é, na melhor das hipóteses, algo completamente louco e idiota para um ateu, ocupar-se de refutar filosofia cristã é, para um ateu, semelhante a ocupar-se de refutar os argumentos de um louco. Quem, neste mundo, ocupa-se de refutar argumentos de um louco?

  4. “Você está atrasado. O argumento ontológico de Santo Anselmo foi refutado por Santo Tomás de Aquino.”

    Correto. Por isso não faz sentido o sujeito atacar o argumento de Santo Anselmo como se estivesse fazendo algo de grande originalidade.

  5. Pedro says:

    Acredito que sua refutação está incorreta, Sérgio.

    3. Portanto deus deve necessariamente existir.

    Isso seria mais próximo de:
    3*. E x : D(x)^R(x)

    do que de:
    3. A(x) [ D(x) --> R(x) ] (de 1 e 2)
    (que pode ser lido como: para todo x, se x é deus, então x existe)

    (não estamos tratando da unicidade, claro.)

    O seu 3 segue de 1^2, mas não é a formulação de Santo Anselmo. E se 3* é válido, 4 também é (tautologia – as duas afirmações são a mesma logicamente).

    Claro, 3* não segue de 1^2. E 2 é uma premissa não trivial, que precisaria ser provada anteriormente.

  6. Carlos says:

    Caro Sérgio,

    Teria outras coisas a dizer, mas vou me ater a duas:

    1 – Sugiro a leitura de uma livro bastante básico: ‘A História da Filosofia Cristã’, de Philotheus Boehner e Etienne Gilson. Lá há uma introdução interessante sobre as relações da filosofia cristã com a fé dos cristãos e também um capítulo sobre Santo Anselmo que talvez te interesse, nem que seja apenas para levantar o status da questão.

    2 – De tudo que disse em tua resposta, pela qual agradeço o tempo dispensado, só uma coisa eu não poderia deixar passar: “A religião produz sistematicamente pessoas raivosas como você”. Ora, de onde deduziu que eu estivesse com raiva? Muito pelo contrário, estava verdadeiramente curioso para entender o que motiva um ateu a dedicar algum tempo de estudo para refutar um argumento que considera tolo e que, uma vez refutado, não causaria efeito nenhum nos interlocutores, considerando que não atingiria o fundamento da fé. Quando se dedica a refutar um marxista, ao menos teoricamente se está refutando o fundamento de sua ‘fé’, que é supostamente racional. Se os cristãos não são loucos, mas estão apenas enganados, não muda nada do que eu disse: refutar as consequências desse engano não refuta o engano em si, continua sendo um gasto tolo do tempo de um ateu.

    Desculpe, Sergio, se pareci raivoso. Eu realmente não estava. E, relendo meu texto, não encontrei nada nele que indicasse raiva.

    Cordialmente,
    Carlos

  7. [...] Julho 13, 2009 Um texto do Sergio de Biasi: ./ [...]

  8. Paulo says:

    Sérgio,

    Ao contrário de você, sou cristão, mas admiro sua coerência. Tenho certa pregüiça de me aplicar em estudos que não me levem a ter uma acertividade de fato, antes a argumentos bons para olhar meditativo para o espaço. Sou engenheiro. Qual a bibliografia básica que vc me indicaria para começar a brincar de verdade?

  9. Marcelo says:

    “Eu em particular nunca tive qualquer “preocupação” sobre se deus existe. Sempre foi para mim absolutamente claro que não há qualquer motivo remotamente razoável para acreditar que ele exista, e nunca perdi o sono ou tive dúvidas existenciais por causa disso.”

    - Então não há uma necessidade de uma causa primeira? Mesmo que você não tenha percebido qualquer motivo para a existência de Deus, então por que tantas pessoas crêem em algo? Essa crença de um monte de gente não é um “motivo remotamente razoável”? Ainda que se trate de uma loucura ou burrice generalizadas, por que haveria essa anomalia de comportamento em pessoas que compartilham do mesmo momento histórico “esclarecido”? Culpa da Igreja? Mas os homens que formam a Igreja também naõ acreditam em algo? Você nega a existência da fé?

    “Por outro lado, os religiosos de fato saem repetidamente do seu caminho para tentar convencer a todos de que deus existe, e são historicamente obcecados em demonizar e perseguir aqueles que nele não crêem. E não raramente tentam impor coercitivamente seus valores e seu sistema alucinado de crenças a todo o resto da sociedade. Aí realmente a coisa vira meu problema.”

    - Trata-se de puro preconceito e, para utilizar um termo já citado, “raiva”. Digo “raiva” porque a única justificativa mais ou menos sensata para o trecho acima é comparar a pregação religiosa dos crentes a uma saída “do seu caminho para tentar convencer a todos de que deus existe, e são historicamente obcecados em demonizar e perseguir aqueles que nele não crêem”. Isso simplesmente não é verdade, e flerta com a limitação da liberdade religiosa, coisa que iremos notar em um trecho mais à frente. De qualquer modo, mesmo se fosse verdade, os ateus, hoje, fazem isso com muito mais destaque do que os crentes. Basta comparar o espaço dedicado na mídia ao “Dawkins burrão”. Finalmente, se você se refere, como perseguição, a momentos históricos em que a Igreja tomou ações que, hoje, são julgadas injustificadas, basta dizer que a ideologia comunista é ateísta. Ou, ainda, não existem assassinos ateus? Logo, a religião não é a causa de fatos moralmente condenáveis.

    “Note, durante grande parte da minha vida encarei religião como algo delirante mas basicamente inofensivo, como acreditar em papai noel ou fazer mapa astral. Porém aos poucos e depois de um grande acúmulo de evidências, fui percebendo o quão danosa e perversa a religião institucionalizada e dogmática é para a psique das pessoas e para a harmonia da sociedade. A religião produz sistematicamente pessoas raivosas como você, que não conseguem conviver pacificamente com outros sistemas de crenças e valores. E sobre isso, sim vale a pena tomar uma atitude.”

    - Quem é raivoso? Quem não consegue “conviver pacificamente com outros sistemas de crenças e valores”? Basta ler o seu comentário sobre a paciência do Pedro. A maior besteira que um ateu faz ao discutir com um crente é acusá-lo de não ser perfeito. Ao contrário do que foi dito no trecho acima, a religião trata, exatamente, de oferecer uma forma de convívio do homem com sua imperfeição. Nesse sentido, os crentes são muito mais abertos a possibilidades do que os ateus, que só aceitam o que é “certo e claro” à razão, como se houvesse algo que satisfizesse essa exigência. Os ateus, sim, discriminam por definição. Em geral, as religiões pregam a tolerância e o amor ao próximo, inclusive aos inimigos. Quer algo mais irracional que isso? Um crente é capaz de aceitar esse preceito, ainda que não seja capaz de realizá-lo. Um ateu, por sua vez, nunca conseguirá justificar uma regra dessas. Se os crentes não atendem de forma aceitável o que a religião prega, é por culpa deles próprios. Agora, criticar a religião pelas faltas de seus seguidores imperfeitos, imperfeitos tanto quanto qualquer ateu, é, no mínimo, dar provas de, aí sim, perseguição.

    O resto não vou comentar porque já se tornou claro quem é a parte intolerante. Ah… o Dawkins é burrão, viu?

  10. lr3n4t007 says:

    “Uma boa parte dos ateus não está nem aí para essa questão e considera ela tão irrelevante quanto se Zeus existe ou não – ou seja, não chega nem a ser uma dúvida.”
    Se você conhece um cara como esse que você descreve, por favor, me apresenta. Pra mim, é como gaúcha feia ou homem bonito: nunca vi, acho que nem existe.

  11. João Augusto says:

    Oitenta por cento dos posts do Sérgio, por baixo, têm Deus como preocupação, e ele ainda é capaz de negar que os ateus se preocupam obsessivamente com Deus. Certamente há ateus que não são assim – eles são ateus porque não acreditam que Deus existe e não, como uns e outros, porque acreditam píamente que Deus não existe – mas os que se dispõem a escrever na internet, por alguma estranha razão psicológica que eu gostaria de entender, preocupam-se muito mais com Deus do que qualquer crente jamais sonhado. É engraçado que esses ateus adoram dizer que a religião produz pessoas raivosas, mas que religioso se dedica a encher a paciência dos ateus com a obsessiva pertinácia com que os ateus se dedidcam a encher a dele? Vocês têm Richard Dawkins e raivosos somos nós, dude? Ah, vá… O sujeito religioso tem, de modo geral, a religião como subentendida, mas parece que o ateu preica andar com uma placa colada na testa: “EU SOU ATEU E QUEM NÃO É É BURRO”. Não é meramente uma crença ou descrença, é uma identidade e, como toda identidade, precisa ser reafirmada o tempo inteiro, daí a obsessão. Os ateus que não precisam colar o aviso na testa – um Paulo Francis, por exemplo – é que isso, para eles, é questão de fé, não de identidade. Além do Sérgio, outro exemplo notório, na internet, é Janer Cristaldo, que periodicamente precisa reafirmar a própria identidade. (Aliás, o que é mais ridículo: refutar o argumento de Santo Anselmo ou dizer que o papa não entende nada de cristianismo? Your choice. Os quinze anos são mesmo uma época difícil…)

    Mata uma curiosidade, Sérgio: você não se sentiu, quando acabou de escrever esse texto, um desses meninotes que lê num almanaque, sei lá, que Aristóteles achava que a mulher tinha menos dentes que o homem, e que sai por aí, rindo, a dizer: “Nossa, mas esse Aristóteles era muito burro!”? Sérgio, você acha mesmo que alguém acredita ou deixa de acreditar em Deus por causa do argumento de Santo Anselmo? Você acha mesmo que quem é capaz de entendê-lo e entender a refutação dele já não conhece essa refutação? Será, ó biased Biasi, que você acha que essa sua refutação vai fazer diferença na fé de alguém, ou que ela é mais relevante ou original e que fazê-la tem mais propósito do que refutar escritos chineses do século 13 sobre fogos de artifício? É claro que não. Mas você precisa escrever na testa: “EU SOU ATEU E QUEM NÃO É É BURRO”.

  12. eliane says:

    …Jesus, como deixam abundantemente claro os evangelhos, promovia e aplicava consistentemente uma forma muito particular de intolerância religiosa: a intolerância contra os religiosos.
    Jesus, que comia com estelionatários, bebia com agiotas e era amigão de prostitutas, tolerava aparentemente tudo em todos. “Eu não condeno você”, ele ousou blasfemar aos ouvidos da mulher adúltera. O rabi puxava conversa com divorciadas promíscuas, tocava leprosos de que todos desviavam o olhar e dormia nas camas rendadas de inimigos do povo. O sujeito conseguiu o feito inédito de sustentar a fama de homem de Deus ao mesmo tempo em que abraçava os puxadores de fumo, traficantes, travestis e aidéticos do seu tempo.
    Mas havia um limite para a sacanagem que ele podia engolir. A única classe de pessoas que fazia Jesus perder a paciência e a compostura era, formidavelmente, a dos religiosos. Aquele que mostrou-se disposto a acolher sem qualquer transição um criminoso no seu paraíso não tinha uma única palavra de tolerância para os devotos, os carolas, os piedosos, os santinhos. Esses despertavam a sua ira, e para ser como Jesus é necessário – por difícil que possa parecer – que despertem também a sua.

    Paulo Brabo em Bacia das Almas

  13. Legal. Concordo contigo, Sérgio.

  14. Ricardo Avillez says:

    Pessoal,

    para quem se interessar em aprofundar a discussão a respeito do argumento ontológico para a existência de Deus, o professor Peter Suber, do Earlham College, levanta algumas questões pertinentes aqui http://www.earlham.edu/~peters/courses/re/onto-arg.htm . Neste argumento ele faz uso não apenas da lógica tradicional, mas também da lógica modal. Se vocês são como eu e não fazem a menor idéia do que é lógica modal, então a página da Wiki pode servir de introdução
    http://en.wikipedia.org/wiki/Modal_logic .

    Para aqueles que querem se deter no argumento ontológico tal como foi formulado inicialmente por Santo Anselmo, este texto no JSTOR parece interessante http://www.jstor.org/pss/2184310 . Infelizmente, o acesso ao texto na íntegra não é gratuito.

    Abraços,

    Ricardo Avillez

  15. [...] discussão no post do Sérgio de Biasi (amigo de Pedro Sette Câmara) toca em alguns pontos discutidos neste post. Já a refutação [...]

  16. Fabiano Costa says:

    Uma pequena curiosidade: Você já ouviu falar do Aurélio Moraes? Se sim, o que acha dele? Se não, saiba que é um dos ateus militantes mais famosos da internet no Brasil e detrator consumado de seu ex-professor Olavo de Carvalho.

  17. Pelo seu comentário eu tenho a impressão de que você está dizendo que Gödel buscou refutar o argumento de Santo Anselmo. Se é isso que você está dizendo, bem, pelo contrário, Gödel tentou achar uma formulação na qual ele funcionasse. Ele achou que tinha encontrado, mas ninguém na comunidade de matemáticos e lógicos concordou que ele tivesse conseguido. Não há qualquer dificuldade – para um matemático – em compreender o argumento de Gödel. Não é nada particularmente misterioso para quem já conhece o instrumental lógico que ele utiliza.

    Quando à lógica de Gödel ser “demasiadamente matemática”, ora, é precisamente isso que torna possível discuti-la em termos bem mais objetivos e formais do que um debate escolástico do século 13. Debater argumentos lógicos hoje em dia usando o mesmo arcabouço teórico que os gregos antigos ou que os monges medievais é como buscar entender como funciona um avião a jato citando escritos chineses do século 13 sobre fogos de artifício. Não faz nenhum sentido e o resultado é embaraçoso. Infelizmente existe modernamente (ironicamente) uma tendência em certos meios a ignorar completamente a ciência ao se tentar fazer filosofia.

    Saudações,
    Sergio

  18. Eu nunca afirmei que eu fui pioneiro em refutar esse argumento. Aliás, ele foi repetidamente refutado ao longo da história mas apesar disso permanece ainda hoje inexplicavelmente sendo citado por alguns como tendo alguma credibilidade. Eu apenas o coloquei em termos de lógica moderna, que possui uma notação padrão para expressar esse tipo de raciocínio. E evidentemente não fui também o primeiro a fazer isso. Estou tão “atrasado” quanto alguém que enuncie o teorema de Pitágoras. “Oh, mas isso não é novidade, já se sabe disso desde a antigüidade!” Certo, nem por isso todos o sabem. Ou o entendem.

  19. Me explica uma coisa: por que todo ateu vive tão preocupado com Deus e com quem Nele crê?

    Bem, isso simplesmente não é verdade. Uma boa parte dos ateus não está nem aí para essa questão e considera ela tão irrelevante quanto se Zeus existe ou não – ou seja, não chega nem a ser uma dúvida.

    Eu em particular nunca tive qualquer “preocupação” sobre se deus existe. Sempre foi para mim absolutamente claro que não há qualquer motivo remotamente razoável para acreditar que ele exista, e nunca perdi o sono ou tive dúvidas existenciais por causa disso.

    Por outro lado, os religiosos de fato saem repetidamente do seu caminho para tentar convencer a todos de que deus existe, e são historicamente obcecados em demonizar e perseguir aqueles que nele não crêem. E não raramente tentam impor coercitivamente seus valores e seu sistema alucinado de crenças a todo o resto da sociedade. Aí realmente a coisa vira meu problema.

    Note, durante grande parte da minha vida encarei religião como algo delirante mas basicamente inofensivo, como acreditar em papai noel ou fazer mapa astral. Porém aos poucos e depois de um grande acúmulo de evidências, fui percebendo o quão danosa e perversa a religião institucionalizada e dogmática é para a psique das pessoas e para a harmonia da sociedade. A religião produz sistematicamente pessoas raivosas como você, que não conseguem conviver pacificamente com outros sistemas de crenças e valores. E sobre isso, sim vale a pena tomar uma atitude.

    Se Deus existe, há motivos de sobra para que seus crentes tentem alertar os ateus, vistos pelos crentes como cegos ou ignorantes.

    Naturalmente que sim, da mesma forma como há motivos de sobra para alguém que acha que corremos o risco iminente de uma guerra nuclear para avisar diligentemente e insistentemente a todos os seus amigos que estoquem comida em casa. A principal diferença entre isso e, digamos, a religião católica é o grau de aceitabilidade social.

    Se Deus não existe, tal como crêem os ateus, os crentes são todos completamente loucos e iludidos.

    Não necessariamente loucos, afinal não é preciso ser louco para estar enganado. Mas sim, certamente iludidos.

    Não acha que tentar convercer os loucos de que sua loucura é grande através de argumentos lógico-matemáticos é uma atividade por demais idiota?

    Idiota é tentar provar que deus existe com o tipo de argumento que Santo Anselmo usou e que não fui eu que inventei. Eu não estava apresentando qualquer prova de que deus não existe e sim comentando sobre como uma determinada “prova” de que deus existe é completamente falha (e *nesse* caso específico até os teólogos em geral tendem a concordar comigo). Além disso, eu não acho que todo mundo que acredita em deus seja imune à lógica e à razão.

    o Pedro Sette caridosamente ature o teu ateismo na esperança de que um dia você abra os olhos

    Er, eu não consigo determinar em que sentido o Pedro “atura” as minhas opiniões mais do que eu “aturo” as dele. Ele acredita no que acha que deve acreditar e eu idem. Não existe absolutamente nada de “caridoso” nisso de nenhum dos dois lados.

    Por outro lado, que você ature a completa insanidade do Pedro Sette (que insiste em crer em Deus) mantendo com ele um diálogo, como se fosse possível manter um diálogo racional com um doido, isso eu não consigo compreender.

    Não consegue? Bem, você está escrevendo esta mensagem para mim, não está?

    um crente nunca fundamenta sua crença em argumentos lógicos ou filosóficos.

    Certo. Fantasticamente, porém, existiu através dos tempos um esforço continuado de religiosos para fazer exatamente isso. Meio incoerente, se me for perguntado.

    Isso significa que de nada adiantaria refutar toda a filosofia cristã do universo, pois isso não diminuiria a fé de quem crê.

    Exato. Este é precisamente o problema central com o sistema de crenças cristão.

  20. Eu gostaria de saber onde é que existe qualquer insinuação de “originalidade” em demonstrar que o argumento de Santo Anselmo não funciona. Certamente eu não disse que haja. Talvez você já esteja cansado de conhecer tanto o argumento quanto o fato de que ele não funciona. Parabéns. Porém este não é necessariamente o caso de todos os leitores, alguns dos quais possivelmente acharão interessante ler sobre o assunto.

    Agora, não sei por que dar tanta relevância ao que São Tomás de Aquino escreveu sobre isso. Sim, de fato, ele recusou este argumento como válido, mas também o fizeram inúmeros outros religiosos e teólogos desde que o argumento foi originalmente colocado. Este argumento nunca foi considerado particularmente forte, e entre filósofos modernos é em geral citado mais como uma curiosidade linguística.

  21. Oi Pedro,

    Veja bem, você coloca que “deus deve necessariamente existir” seria melhor expresso por “E x : D(x)^R(x)”

    Eu entendo perfeitamente por que motivo você estaria afirmando isso. O problema é linguístico, e é um dos que continuamente confunde a análise deste argumento. Você está misturando dois níveis de discurso : o lógico e o metalógico. Estamos aqui discutindo “existir” em dois níveis : “existir” como elemento x que satisfaz a um certo número de predicados em lógica de primera ordem; e “existir” como elemento x que satisfazer ao predicado “existir no mundo real” que eu chamei de R(x).

    Então veja, se eu digo “A(x) [ D(x) --> R(x) ] “, como eu disse, estou dizendo que “qualquer que seja x entre todas as entidades concebíveis, se x é uma entidade concebível que satisfaz ao predicado D(x) definido acima (ou seja, se x é deus), então x satisfaz ao predicado R(x) (ou seja, x existe no mundo real e não apenas como entidade concebível)”. Que é exatamente o que eu queria dizer. É que é exatamente o centro do argumento de Santo Anselmo.

    Por outro lado, dizer “E x : D(x)^R(x)” significa dizer que *de fato* existe um x que seja deus e que exista no mundo real. Note, estamos exatamente tentando provar isso. As duas primeiras premissas provam apenas que SE algo é deus ENTÃO existe. Elas não provam que seja possível conceber algo que tenha as propriedades de deus, mesmo no universo das coisas concebíveis.

    Então sim, o meu 3 é precisamente a formulação de Santo Anselmo, apenas é preciso ter cuidado com os dois níveis de significado de “existir” neste argumento.

    Sobre 2 “precisar ser provada”, bem, 2 é uma premissa, premissas não precisam ser provadas. Como todo raciocínio lógico, estamos apenas dizendo que a conclusão é válida *desde que* as premissão sejam válidas. Claro que se pretendermos que esta dedução diga algo sobre o mundo real, teríamos que justificar a premissa 2 com argumentos metalógicos, mas dentro da lógica, 2 não precisa ser provada (a não ser que decidamos modelar algo “ser mais perfeito” de forma mais detalhada usando lógica de forma que 2 seja dedutível a partir de outras premissas). A questão central porém é que o argumento não funciona mesmo que aceitemos a premissa 2 como válida.

    Saudações,
    Sergio

  22. Oi Carlos,

    Bem, eu, como você, poderia dizer várias outras coisas, mas concordo que nem todas as coisas são igualmente oportunas ou relevantes, e você certamente sabe muito melhor do que eu qual a atitude que o animava ao escrever.

    Gostaria de ressaltar algo que talvez eu devesse ter deixado mais claro – eu não acho que Santo Anselmo fosse um idiota. O argumento ontológico que ele propôs é falho, e pelos padrões modernos, patético. Mas nós temos todo o aparato da lógica, da lingüística, da filosofia e da matemática moderna em que nos apoiarmos. Então *ele* não era patético, e pelo contrário, não fossem pessoas como ele buscando sistematizar o pensamento em termos de lógica, não teríamos chegado onde chegamos. Agora, patético por outro lado é alguém considerar válidos argumentos do século 12 sem considerar tudo o que veio depois. Felizmente isso não ocorre muito com relação ao argumento ontológico de Santo Anselmo. Mas infelizmente ocorre com outros argumentos de outros autores.

    Da mesma forma, o que Aristóteles disse sobre física está hoje completamente ultrapassado. Mas para a época a mera tentativa de explicar os fenômenos físicos através de princípios e leis gerais era revolucionária e extremamente frutífera. Porém, evidentemente, qualquer um que hoje em dia comece a tentar escrever livros de física baseados em água, ar, terra e fogo está completamente fora da realidade.

    Sobre os motivos genéricos em eu escrever sobre religião, eu já comentei na minha resposta anterior. Sobre os motivos para escrever especificamente sobre o argumento de Santo Anselmo, é simples. Foi deixado um comentário ao meu post anterior sobre Dawkins no qual um sujeito diz o seguinte :

    A única referência filosófica à questão de Deus [que encontrei nos seus posts] é um patético comentário sobre o argumento ontológico de Anselmo, o que me faz perceber quão deficiente foi seu entendimento do argumento: sinceramente, não me parece ser plausível que diversos filósofos o tenham analisado – seja positivamente, seja negativamente – se este fosse um argumento patétito e anti-lógico.

    Note, eis aqui um sujeito que em pleno século 21 ainda acha que existe possibilidade de mérito no argumento de Santo Anselmo, e que acha que eu não posso simplesmente descartá-lo sem maiores justificativas. Isso me fez pensar que talvez esse sujeito não estivesse sozinho e que talvez haja outras pessoas por aí na mesma situação. Então OK, didaticamente tomemos o argumento de Santo Anselmo e vamos dissecá-lo, que foi o que fiz. Com isso fora do caminho talvez possamos então passar a discutir argumentos que realmente tenham alguma relevência.

    Espero que isso explique melhor por que eu resolvi escrever sobre o argumento de Santo Anselmo. :-)

    Saudações,
    Sergio

  23. Oi Paulo,

    Olhe só, eu também tenho originalmente formação em engenharia, e também me agradam muito mais argumentos dos quais eu possa tirar conclusões sólidas do que meramente especulativos. Quando você diz “brincar de verdade” existem várias direções nas quais você poderia estar querendo seguir – teologia católica/cristã? história das religiões? história do ateísmo? lógica? filososofia?. Não está claro para mim a qual direção você está se referindo, e eu não me sinto igualmente autorizado a dar conselhos sobre todas elas. :-)

    Saudações,
    Sergio

  24. Leonardo T. Oliveira says:

    Comentei este post lá mesmo.

  25. Oi Leonardo,

    Com sua permissão (espero :-) ) reproduzo abaixo seu comentário.

    Saudações,
    Sergio

    Desculpa, Carlos, não é por nada, mas se o seu comentário não foi “raivoso”, então no mínimo não conseguiu esconder a intolerância simplesmente por pensar que o Sergio precisava ser aturado ou simplesmente por pensar que o Sergio não poderia mapear logicamente o argumento de Santo Anselmo sem ser considerado inútil por você. Houve na sua mensagem qualquer premissa de que o cristão é imune à lógica que conflita a discussão em um nível que eu considero sem propósito e, se há propósito, certamente é um propósito rivalista, quase raivoso sim. A sua nova mensagem foi mais educada, se esclareceu, etc., mas o que me incomodou foi você ver o Sergio fazendo um trabalho intelectual honesto de lógica e contestar a utilidade desse trabalho imaginando que ele queria “converter” crentes e por isso era inútil. Só pra isso serve falar sobre lógica na teologia? As coisas não merecem e não tem valor quando são abordadas por elas mesmas?

    Um abraço,
    Leonardo.

  26. Pedro says:

    Está correto. Na próxima, vou esperar duas horas entre meu despertar e a discussão de problemas envolvendo lógica de predicados (ainda mais estando em tão enferrujado nisso). :)

    Sobre a questão da premissa, estou ciente do fato. Mas já estava discutindo mesmo a validade concreta do teorema, caso ele pudesse ser provado.

    Ainda, as afirmações 1 e 2 são particularmente problemáticas (na definição original de Santo Anselmo). A primeira não basta para definir Deus na concepção cristã e a segunda me parece muito duvidosa.

    Particularmente, tenho o palpite (e é só isso mesmo) de que a existência de Deus é uma afirmação que não pode ser provada nem verdadeira, nem falsa (vide Teorema da Incompletude).

  27. Então não há uma necessidade de uma causa primeira?

    Eu até tenderia a dizer que há, mas a não ser que você esteja simplesmente dizendo que “deus” é só um nome para “a causa primeira que tem que existir mas cuja natureza desconhecemos completamente”, daí não decorre qualquer necessidade de acreditar em deus. Não há qualquer encadeamento lógico partindo de “tem que existir uma causa primeira” que termine em deus como conceituado pela maioria das religiões. Então mesmo que concordemos, para efeito de argumento, que “tem que haver uma causa primeira”, isso não diz nada sobre a existência de deus. A “causa primeira” pode ser uma necessidade matemática ou lógica por exemplo. Pode ser que este seja o único universo logicamente possível, que as coisas sejam como são porque seria logicamente impossível não serem. Mas isso é especulação. O fato é que ninguém apresentou até hoje qualquer argumento logicamente sólido sobre qual seria a natureza da “causa primeira”. Chamá-la de “deus” não resolve absolutamente nada – é apenas dar um outro nome para algo que desconhecemos. E certamente não implica de nenhuma forma em todas as supostas características de deus protestadas pelas religiões.

    Mesmo que você não tenha percebido qualquer motivo para a existência de Deus, então por que tantas pessoas crêem em algo?

    Esse argumento é péssimo. A verdade não é determinada por votação. Houve uma época em que a maior parte das pessoas do mundo acreditavam que o Sol giraria em torno da Terra. E daí? Continua sendo falso.

    Essa crença de um monte de gente não é um “motivo remotamente razoável”?

    Você está dizendo seriamente que um monte de pessoas acreditarem em algo é um motivo razoável para acreditar em algo? Nesse caso que tal considerar seriamente o hinduísmo? Existem quase um bilhão deles. Se eles superarem os cristãos em número você vai se converter para o hinduísmo? Imagine que estivéssemos falando de física ou química ou matemática e eu dissesse que “a solução da equação tal é x” e você respondesse “Ah, mas eu perguntei pra dez pessoa na rua e nove delas disseram que é y”. Isso lá é critério de verdade?

    Ou talvez você esteja dizendo algo um pouco menos radical, que é : peraí, se tanta gente acredita nisso, deve haver algum motivo que pareça razoável, mesmo que falso, para acreditar nisso, não? E a resposta é que infelizmente não. Seu comentário contém as sementes de uma explicação sociológica para isso. As pessoas facilmente demais pensam “se todo mundo está acreditando nisso então deve ser razoável”. E além desse existem muitos outros motivos *não* razoáveis para querer acreditar em certos modelos de como o universo funcionaria.

    Esse tipo de crença criacionista era mais intelectualmente respeitável quando o funcionamento do universo e a estrutura da realidade eram menos bem compreendidos. Mesmo assim continuava sendo um tremendo (literalmente) “deus ex machina” dado que para explicar algo cuja origem é desconhecida se postula uma entidade superpoderosa adicional completamente inexplicável. Mas modernamente, em havendo um entendimento muito claro de como sistemas sofisticados podem surgir espontaneamente a partir de regras simples sem a necessidade de nenhuma poderosa inteligência organizadora por trás disso, o argumento de “de onde veio toda essa complexidade” fica mais e mais fraco.

    Claro que mesmo que não ficasse, seria preciso explicar a origem e a natureza da inteligência organizadora, algo que convenientemente é em geral muito pouco discutido quando se apresenta uma como explicação. Ou então se recorre a dizer teatralmente “é um mistério”. Bem, se vamos nos satisfazer com respostas desse tipo, nesse caso poderíamos ter ficado com “é um mistério” para explicar a origem do universo.

    Ainda que se trate de uma loucura ou burrice generalizadas, por que haveria essa anomalia de comportamento em pessoas que compartilham do mesmo momento histórico “esclarecido”?

    Porque as pessoas têm necessidades emocionais que não podem ser satisfeitas pelo vazio asséptico da pura racionalidade.

    Culpa da Igreja?

    Em parte. Por diversos motivos, grande parte das religiões é intensamente evangelizadora.

    Mas os homens que formam a Igreja também naõ acreditam em algo? Você nega a existência da fé?

    Ué, sim, muitas pessoas de fato acreditam ou tentam acreditar por exemplo nos dogmas católicos. Eu acho profundamente nocivo buscar acreditar em algo incondicionalmente por escolha e não porque seu melhor julgamento diz que aquilo tem que ser ou deve ser verdade.

    Trata-se de puro preconceito e, para utilizar um termo já citado, “raiva”. Digo “raiva” porque a única justificativa mais ou menos sensata para o trecho acima é comparar a pregação religiosa dos crentes a uma saída “do seu caminho para tentar convencer a todos de que deus existe, e são historicamente obcecados em demonizar e perseguir aqueles que nele não crêem”. Isso simplesmente não é verdade,

    Sim, é, e de forma abundantemente documentada historicamente, e extensamente verdadeira ainda hoje.

    Ainda hoje, em boa parte do mundo dizer que deus não existe é crime. Felizmente em menos lugares do que há alguns séculos, onde era crime na maior parte do mundo. E sim, é uma parte integral de grande parte das religiões, inclusive as cristãs, a idéia de enviar missionários para converter os não crentes, a idéia de evangelização, a idéia de pregação. Então, sim, abundantemente os religiosos “saem do seu caminho”, como em “ir para a África fundar uma missão”, para converter os não religiosos. E sim, eles constantemente demonizam e perseguem os não religiosos com variados graus de agressividade e violência.

    Isso simplesmente não é verdade, e flerta com a limitação da liberdade religiosa, coisa que iremos notar em um trecho mais à frente.

    “Flerta com a limitação de…” como é que é? Os religiosos têm o direito de pregarem o que quiserem para quem quiserem. Só não venha me dizer que não o fazem.

    De qualquer modo, mesmo se fosse verdade, os ateus, hoje, fazem isso com muito mais destaque do que os crentes.

    Isso é patentemente falso. Os religiosos tem canais inteiros de televisão dedicados a pregar continuamente as crenças de suas diversas congregações. Eles saem por aí batendo na porta das pessoas e tentando apresentá-las à sua fé. Eles pregam nas praças, nas esquinas, nos ônibus, nos táxis. E com grande freqüência eles são repetidamente encorajados e fazê-lo pelos grupos e instituições aos quais pertencem. Bolas, eles conseguiram colocar besteiras como “DEUS SEJA LOUVADO” e “IN GOD WE TRUST” impressas no dinheiro de seus países. E você vai me dizer que os ateus são mais evangelizantes que os crentes? Por favor.

    Finalmente, se você se refere, como perseguição, a momentos históricos em que a Igreja tomou ações que, hoje, são julgadas injustificadas,

    AH, CLARO, porque na época eram, né?

    basta dizer que a ideologia comunista é ateísta.

    Esse é um argumento absolutamente tolo e eu já o discuti extensamente em outros textos. Se os psicopatas do mundo decidirem todos comer macarronada isso não quer dizer que quem come macarronada é psicopata. As causas de repetidos e inúmeros atos de violência praticada por religiosos por outro lado vêm diretamente e declaradamente de suas crenças religiosas.

    Ou, ainda, não existem assassinos ateus? Logo, a religião não é a causa de fatos moralmente condenáveis.

    Isso não chega nem sequer a ser um argumento. No máximo você poderia concluir que a religião não é a ÚNICA causa de fatos moralmente condenáveis, ou a causa de TODOS os fatos moralmente condenáveis. Algo que aliás é óbvio e que nem está em discussão. Mas visivelmente lógica não está sendo o forte da sua argumentação.

    Quem é raivoso? Quem não consegue “conviver pacificamente com outros sistemas de crenças e valores”?

    Por exemplo, quem decide que não acreditar nas mesmas coisas é crime, como ocorre em várias teocracias ao redor do mundo.

    Basta ler o seu comentário sobre a paciência do Pedro.

    Não existe qualquer “paciência” da parte do Pedro. E nem precisa haver. Eu tenho o direito de dizer o que eu quiser, e ele idem.

    Nesse sentido, os crentes são muito mais abertos a possibilidades do que os ateus, que só aceitam o que é “certo e claro” à razão, como se houvesse algo que satisfizesse essa exigência.

    Isso sim é um preconceito completamente sem fundamento. Não existe qualquer motivo para achar que alguém que não seja religioso acredite nisso aí que você disse. Aliás, eu diria que é precisamente o oposto. Nitidamente muitas coisas, aliás coisas demais são verdade mesmo quando não são justificáveis, explicáveis, ou claras à razão. Os religiosos não conseguem aceitar isso e tiram da cartola uma cartilha de “explicações” para elas ao invés de simplesmente aceitar que NÃO SABEMOS a resposta para certas coisas e que NÃO COMPREENDEMOS um monte de coisas com as quais temos que lidar assim mesmo. Mas isso é muito assustador, né?

    Em geral, as religiões pregam a tolerância e o amor ao próximo, inclusive aos inimigos.

    Oh, claro. Pregar é fácil. Difícil é fazer. E não me venha com “todos somos imperfeitos”. Uma coisa é estar tentando. Outra é dizer “vamos ser tolerantes” e então sair a queimar hereges. E não por acidente, mas de propósito. Os erros da religião que estou criticando não são os acidentais derivados da imperfeição humana. São os essenciais, são aqueles que são a conclusão lógica de suas crenças. São aqueles que fazem parte essencial da religião como quase universalmente praticada, seja qual for o seu discurso formal.

    Um ateu, por sua vez, nunca conseguirá justificar uma regra dessas.

    Este é precisamente o ponto : um ateu que escolhe fazer o bem ao próximo não o faz porque Jesus disse, ou porque o papa mandou, ou por causa do sermão do domingo, ou para impressionar os membros da sua congregação, ou para evitar o inferno. Um ateu faz o bem ao próximo porque assim manda a sua consciência e o seu melhor julgamento. E dependendo do caráter moral de quem estivermos considerando, isso ocorrerá sem a necessidade de qualquer “justificativa”, sem a necessidade de um motivo racional, sem precisar de alguém lhe dizendo o que fazer. Eu não preciso de “justificativa” para não sair por aí matando pessoas.

    Alguém que dependa de “justificativas” para não ser um patife não é de forma alguma moralmente superior a quem faz isso por livre escolha seguindo sua consciência e seus sentimentos.

    O resto não vou comentar porque já se tornou claro quem é a parte intolerante. Ah… o Dawkins é burrão, viu?

    Er, essas duas frases justapostas dizem mais do que eu poderia acrescentar com comentários adicionais.

  28. Está correto. Na próxima, vou esperar duas horas entre meu despertar e a discussão de problemas envolvendo lógica de predicados (ainda mais estando em tão enferrujado nisso). :)

    Sem problemas. É um equívoco no qual é bastante fácil de esbarrar ao tentar traduzir este argumento em termos de lógica formal.

    Sobre a questão da premissa, estou ciente do fato. Mas já estava discutindo mesmo a validade concreta do teorema, caso ele pudesse ser provado. As afirmações 1 e 2 são particularmente problemáticas (na definição original de Santo Anselmo). A primeira não basta para definir Deus na concepção cristã e a segunda me parece muito duvidosa.

    Sim, concordo, as afirmações em si mesmas são altamente discutíveis.

    Particularmente, tenho o palpite (e é só isso mesmo) de que a existência de Deus é uma afirmação que não pode ser provada nem verdadeira, nem falsa (vide Teorema da Incompletude).

    Bem, primeiro teríamos que encontrar uma forma menos simplista do que a discutida acima de definir deus em termos lógicos…

    Ironicamente, o sonho de todo físico teórico seria encontrar uma forma de explicar o universo em que vivemos em termos de propriedades logicamente necessárias ao invés de em termos de falíveis e incompletas observações…

    Saudações,
    Sergio

  29. Muito prazer : Sergio.

    Meu interesse no assunto é um meta-interesse : o assunto acaba sendo importante por causa de haver tantas pessoas preocupadas com ele. Mas a existência de deus nunca foi uma questão para mim. Não é nem exatamente que eu não me “importe” se ele existe; é que é para mim tão absolutamente óbvio que não que nem chega a ser uma questão. É como papai noel ou o coelhinho da páscoa. Não perco noites de sono imaginando se eles existem. Mas se uma boa parte das pessoas o fizessem e começassem a tomar decisões importantes com base nessa suposição, aí isso em si mesmo se tornaria relevante.

    Saudações!

  30. Marcelo says:

    Bom, você chama alguns dos meus argumentos de tolos, mas analisando bem as suas razões continuo achando-as muito insuficientes e superficiais. Em algumas de suas respostas você advoga para o ateísmo qualidades que eu advogo para a religião. Não posso de maneira alguma aceitar algo do tipo “não me venha falar sobre imperfeição” ou que os crentes têm muito mais acesso à mídia. Ora, qualquer pessoa pode notar o ataque sistemático que qualquer religião sofre na grande mídia e nos meios “intelectualizados”. Quanto à questão moral, não é preciso justificativa para negar, por exemplo, um genocídio como ocorreu na Alemanha? Ao meu ver, a justificativa é necessária justamente para proteger o que é bom. Sem justificativa, não há moral, só vontade e caos. Finalmente, as minhas últimas duas frases foram colocadas apenas com uma intenção de humor, no sentido de acentuar a minha própria, como direi?, “imperfeição”.

  31. Oitenta por cento dos posts do Sérgio, por baixo, têm Deus como preocupação, e ele ainda é capaz de negar que os ateus se preocupam obsessivamente com Deus.

    Deus é completamente irrelevante. Religião não é.

    Adicionalmente, por motivos óbvios, eu não acho que haja nem de longe tanta uniformidade no pensamento “dos ateus” quanto há entre os religiosos.

    Certamente há ateus que não são assim – eles são ateus porque não acreditam que Deus existe e não, como uns e outros, porque acreditam píamente que Deus não existe

    Há ateus de todos os tipos. Acreditar que deus não existe não é um princípio metodológico ou um axioma na minha mente, ao contrário do que acontece na mente de quem segue uma religião fundamentada em dogmas (ou seja, quase qualquer religião), que é formalmente instado a adotar como axioma que deus exista e ignore-se todo o resto. São as religiões que incentivam – aliás, em geral, exigem – a uniformidade de pensamento.

    Sim, eu acho absolutamente, transbordantemente, exageradamente óbvio que deus não existe. Mas eu acho isso com a mesma convicção com a qual eu acho que a Terra gira em torno do Sol : baseado na observação, na lógica, nas evidências. Não por “princípio” e de forma alguma “piamente”.

    mas os que se dispõem a escrever na internet, por alguma estranha razão psicológica que eu gostaria de entender, preocupam-se muito mais com Deus do que qualquer crente jamais sonhado.

    Talvez porque os tais “crentes”, muito longe de serem tão apáticos quanto seu discurso possa sugerir, repetidamente saem do seu caminho para encontrar qualquer um que questione suas crenças para então bombardeá-los não com argumentos, não com ensinamentos, nem mesmo com conselhos, mas com fúria histérica e descontrolada, com intolerância, com raiva, medo e violência. Talvez porque quase invariavelmente quando movimentos religiosos ganham suficiente poder político passem imediatamente a impor coercitivamente sua maneira de pensar. Talvez porque a religião seja uma das maiores causas de sofrimento, discórdia, destruição e infelicidade no mundo. Talvez porque os tais “crentes”, esses sim não estejam nem aí pra deus, tanto quanto para serem socialmente aceitos, quanto para receberem a confirmação externa que precisam para terem a coragem de defender algum sistema de valores, quanto para encontrarem uma forma de removerem de si mesmos o enorme fardo de decidirem o sentido de suas vidas, quanto para entregarem na mão de alguém – qualquer um – a tarefa de decidir questões que cabe a eles e só a eles mesmos responderem.

    É engraçado que esses ateus adoram dizer que a religião produz pessoas raivosas, mas que religioso se dedica a encher a paciência dos ateus com a obsessiva pertinácia com que os ateus se dedidcam a encher a dele?

    Er, é de uma ironia bastante informativa esta frase estar cercada por todos os lados, transbordando para os outros comentários, do que ela afirma não ocorrer.

    Vocês têm Richard Dawkins e raivosos somos nós, dude?

    Dawkins é moderado, calmíssimo, civilizado, apresenta suas idéias usando argumentos. Portanto, sim, é exatamente isso. “Nós” temos Richard Dawkins e vocês são os raivosos, dude.

    Ah, vá… O sujeito religioso tem, de modo geral, a religião como subentendida, mas parece que o ateu preica andar com uma placa colada na testa: “EU SOU ATEU E QUEM NÃO É É BURRO”.

    Novamente, altamente irônico ver isso quando o meu post sobre Dawkins era exatamente criticando a superficialidade do texto do Pedro que consistia essencialmente em chamar o Dawkins de “burrão”.

    Não é meramente uma crença ou descrença, é uma identidade e, como toda identidade, precisa ser reafirmada o tempo inteiro, daí a obsessão.

    Você não pode estar *seriamente* falando que a religião é apenas um hobby na vida dos religiosos e não é de forma alguma definidora de sua identidade como pessoas. Sim, é, e sim, precisa ser reafirmada o tempo inteiro, por exemplo indo à missa todo domingo para encontrar outros sofrendo do mesmo problema.

    Aliás, o que é mais ridículo: refutar o argumento de Santo Anselmo ou dizer que o papa não entende nada de cristianismo?

    Ridículo e embaraçoso mesmo é não ter qualquer remoto vestígio de autocrítica.

    Os quinze anos são mesmo uma época difícil…

    Estou vendo.

    Sérgio, você acha mesmo que alguém acredita ou deixa de acreditar em Deus por causa do argumento de Santo Anselmo?

    Claro que não, os motivos pelos quais as pessoas acreditam em deus não têm absolutamente nada a ver com lógica.

    Agora você veja – por outro lado, se o Dawkins diz que as “provas” da existência de deus existentes na Suma Teológica absolutamente não funcionam (e sim, eu estou cansado de saber que São Tomás de Aquino rejeitou a lógica de Santo Anselmo), ooohhh, pessoas como o Pedro escrevem que a análise dele é superficial e desinformada. E que ele é “burrão”. Ora, ou as provas funcionam ou não funcionam. Se funcionam são evidentemente relevantes. Se não funcionam não há porque defendê-las. Agora, dizer simultaneamente que funcionam mas que não são relevantes é nada menos que ridículo.

    Você acha mesmo que quem é capaz de entendê-lo e entender a refutação dele já não conhece essa refutação?

    Bem, por inacreditável que pareça (e isso é inacreditável para mim também) existem pessoas por aí que ainda citam o argumento de Santo Anselmo como digno de séria consideração. É um serviço de utilidade pública informar a essas pessoas que não, não é. Talvez você não precise ser informado disso, mas lamentavelmente outros precisam. Agora, deve ser mesmo bom viver num mundo em que todos ao seu redor conhecem em detalhes pensamento escolástico do século 12. Puxa, e essas são as pessoas que não se obcecam com deus! Eu por outro lado vivo no planeta Terra, então preciso me comunicar de forma menos estratosférica.

    Será, ó biased Biasi, que você acha que essa sua refutação vai fazer diferença na fé de alguém,

    Na fé de alguém? Dificilmente. Um dos pontos de honra da fé é ser imune a argumentos. Jactam-se disso os religiosos. : “HAHA, você acha que vai me convencer argumentando. Quanta ingenuidade!”

    Talvez faça porém diferença na parte das mentes das pessoas que não estiver fossilizada pela fé.

    Naturalmente eu não iria tão longe a ponto de sugerir que isso poderia ocorrer no seu caso.

  32. Não posso de maneira alguma aceitar algo do tipo “não me venha falar sobre imperfeição” ou que os crentes têm muito mais acesso à mídia.

    Os crentes evidentemente, claramente, ululantemente têm muito mais acesso à mídia.

    Ora, qualquer pessoa pode notar o ataque sistemático que qualquer religião sofre na grande mídia e nos meios “intelectualizados”.

    Não dá nem pra começar a descrever a desproporção entre os dois tipos de conteúdo.

    Quanto à questão moral, não é preciso justificativa para negar, por exemplo, um genocídio como ocorreu na Alemanha?

    Eu não preciso. Aliás, sem uma “justificativa” você por acaso ficaria em dúvida?

    Ao meu ver, a justificativa é necessária justamente para proteger o que é bom. Sem justificativa, não há moral, só vontade e caos.

    Você está dizendo que precisa de alguém que lhe diga o que é certo? Ou pior ainda, que se o papa decidir que genocidar pessoas é ótimo, você vai dizer “Opa, ok, aparentemente eu estava enganado sobre isso.”?

    Aliás, se você não consegue decidir sozinho o que é certo, nesse caso como é que vai decidir quem consultar para saber o que é certo?

    Tem certas perguntas que cabe a nós mesmos e a ninguém mais responder.

    O caminho oposto recorrentemente leva a distorções absurdas.

  33. Marcelo says:

    Como você sugere que eu decida o que é certo? Não é preciso decidir com base em alguma justificativa, mesmo que essa justificativa seja o próprio conceito do que é certo?

  34. Marcelo says:

    Uma outra observação: você deturpa minhas palavras me acusando de ser um maria-vai-com-as-outras e que acho necessário alguém me dizer o que é certo. Ora, para alguém que gosta da lógica, você deu um salto meio grande, não? Em nenhum momento afirmei que é preciso ter as mesmas opiniões dos outros, ou que a liberdade de alguém escolher seus próprios princípios deva ser tolhida. Apenas acho prudente, pelo menos, procurar entender as diversas opiniões sobre um determinado assunto para, então, construir seus valores. A decisão de acolhimento ou não de uma idéia sempre será do indivíduo. Agora, se uma grande parte das pessoas tem uma mesma opinião, você não acha que é prudente escutá-la, que esse fato não coloca essa idéia no rol de decisão, principalmente quando se avalia assuntos que a lógica não determina?

  35. Como você sugere que eu decida o que é certo? Não é preciso decidir com base em alguma justificativa, mesmo que essa justificativa seja o próprio conceito do que é certo?

    Importantíssima questão, claro. E sem dúvida, seria extremamente reconfortante encontrar alguma fórmula, alguma teoria, alguma receita, algum jeito seguro para respondê-la. Infelizmente quanto mais rigorosamente tentamos fazer isso, mais o conceito nos escapa por entre os dedos. No final das contas, e acho que com os religiosos concordarão, embora daí tirem conclusões diferentes de mim, não existe justificativa racional para a ética.

    Só que o problema é mais profundo e mais grave do que esse. Não existe justificativa racional não apenas para agir generosamente, ou com justiça, mas para fazer qualquer coisa. Não existe justificativa lógica para levantar de manhã e tomar os passos necessários para permanecer vivo. Não existe motivo racional algum para ter amigos, para se casar, para estudar, para ter filhos, para fazer absolutamente nada. Não existe justificativa racional sequer para ser egoísta. Nossos comportamentos cotidianos (como pagar a conta de luz) parecem até razoavelmente racionais porque damos como axiomas esses objetivos irracionais. Mas eles não têm qualquer justificativa *lógica*. Queremos permanecer vivos, querermos nos alimentar, querermos companhia, querermos sexo – nada disso é baseado em nenhum objetivo racional, em nenhuma lógica, em nenhuma profunda reflexão. Nós simplesmente queremos.

    Infelizmente, isso é uma base muito intelectualmente insatisfatória para fundamentar um sistema de valores. Na verdade, é pior do que só intelectualmente insatisfatória – é existencialmente insatisfatória. Nós ficamos inteligentes demais para nosso próprio bem. Somos capazes de olhar para nós mesmos e perceber que nossos vão desejos – aqueles que nos mantêm prósperos e bem-sucedidos como espécie – não fazem qualquer sentido. Então precisamos de uma justicativa, ansiamos por uma justificativa. Mas a verdade é que ela não existe. Nós queremos intensamente as coisas irracionais que queremos porque, bem – aqueles entre nós que não queriam não proliferaram e desapareceram nas areias do tempo.

    Só que isso é no máximo uma explicação causal. É uma explicação para de onde vieram nossos desejos irracionais. Isso continua ainda não dizendo nada sobre como lidar com o problema de que para nós eles são muito reais e recheados de relevância. Note, eu perceber que não há qualquer motivo lógico para não pular do alto de um prédio não faz com que automaticamente eu queira fazer isso. Apenas me dá a clareza introspectiva de enxergar que os motivos pelos quais eu não pulo do alto de um prédio não são de forma alguma racionais. São baseados em sentimentos. Eu quero permanecer vivo, e não preciso de argumento ou justificativa para isso.

    Agora, voltando então à questão do certo ou errado, ela é similar. Existe uma solução certa para a equação “2x+2=6″ que é universal e eterna e não depende do que ninguém acha, que absolutamente, simplesmente é. Mas não existe uma solução logicamente “certa” para “devo matar outros seres humanos?”. Existem sentimentos sobre isso, sentimentos que todos compartilhamos em maior ou menos grau, mas que são únicos para cada pessoa. E esses sentimentos são o único fundamento possível para a consciência moral. Porque um grupo não sente, um livro não sente, a lógica não sente. Só quem sente são pessoas. E não querer matar os outros não é questão de lógica, é questão de sentimento. Buscar então projetar justificativas disso fora de nós mesmos leva a todo tipo de aberrações e besteiras.

    Assim sendo, eu sugiro que não existe outra forma legítima de decidir o que é certo senão usar seus sentimentos, que lhe dizem o que lhe soa bom, aliados à sua razão, que lhe permite buscar compreender como o mundo funciona, assim como as conseqüencias de suas ações. Se isso calhar de coincidir com o que outros dizem, ótimo. Há concordância. Mas não *porque* alguém disse que tinha que ser assim.

    E se isso não parece base para um sistema filosófico, não é mesmo. Porque bondade, como os religiosos não se cansam de dizer, NÃO É RACIONAL. Disso eu concluo que devemos fazer as pazes com o fato de que queremos (bem, alguns de nós) ser “bons” apesar de isso ser irracional, e não ser logicamente definível ou justificável. Os religiosos, por outro lado, tendem a concluir JÁ QUE NÃO É RACIONAL, vamos sistematizá-la, axiomatizá-la, dogmatizá-la, uniformizá-la, justificá-la, pasteurizá-la. Como? Isso é precisamente o oposto do que se deve fazer depois que se percebe que ser altruísta não é racional. O que você deve fazer é as pazes com o fato de que quer ser altruísta apesar de isso não ser racional e freqüentemente não no seu melhor interesse sob outros aspectos. E que em sendo irracional, não existe uma resposta “certa”. Existe o que você sente sobre isso. Assim como sobre um montão de outras coisas. Aliás, precisamente as que nos tornam humanos ao invés de robôs.

    Então, sem nenhum sarcasmo, e falando seríssimamente, eu sugiro que você decida o que é certo usando sua consciência.

    Saudações,
    Sergio

    Adendo : Sobre o argumento “Comunistas são ateus, comunistas são maus => ateus são maus” não fazer sentido (que é p->q, p->r |- p->r (errado)), eu fui dar uma olhada sobre quando tinha escrito sobre isto no passado e achei, está aqui. Agora, achei mas não reli, então não me lembro de quão extensamente falo sobre isso.

  36. Uma outra observação: você deturpa minhas palavras me acusando de ser um maria-vai-com-as-outras e que acho necessário alguém me dizer o que é certo. Ora, para alguém que gosta da lógica, você deu um salto meio grande, não?

    Ora, meu raciocínio é simples. Ou as coisas que você diz achar certas vêm da sua consciência (mesmo que seja concordando com alguém cujos argumentos você ouviu e avaliou como corretos), ou então as coisas que você diz que acha certas são repetições de regras e preceitos que você concordou formalmente em achar certos por quais motivos seja. Não dá pra ser os dois ao mesmo tempo.

    Suponhamos por exemplo que o papa decida oficialmente que apedrejar homossexuais é ótimo. Ou você vai repetir por aí que isso é ótimo ou não vai. Se não vai, parabéns pela sua independência moral, mas nesse caso por que você precisa da igreja católica lhe dizendo o que é certo? Por outro lado, se você vai, então de fato, você está abrindo mão de decidir o que é certo. Não é crível que absolutamente tudo que o papa diga, inclusive no futuro, seja algo com que você concorde ou passe a concordar. Então se você segue os preceitos da igreja católica sobre o que é certo e errado, ou você está afirmando ser tão inspirado quanto o papa e em sincronia com ele (caso em que novamente você não precisa da igreja lhe dizendo o que é certo) ou você está abrindo mão de julgar por si mesmo e simplesmente fazendo o que a igreja lhe disse para fazer. Que, aliás, é precisamente o que a igreja lhe pede e espera que você faça. Então sendo esse o caso, sim, você achou necessário delegar a alguém o poder de lhe dizer o que é certo.

    Em nenhum momento afirmei que é preciso ter as mesmas opiniões dos outros, ou que a liberdade de alguém escolher seus próprios princípios deva ser tolhida.

    Quem afirma isso são quase todas as religiões, e explicitamente. Especialmente a primeira parte. A segunda já foi mais forte e está um pouco mais impopular atualmente. Mas ainda impera em grandes partes do mundo.

    Apenas acho prudente, pelo menos, procurar entender as diversas opiniões sobre um determinado assunto para, então, construir seus valores.

    Ué, eu também acho. As religiões em sua maioria por outo lado dizem “Não, não é nada disso. Simplesmente acredite nesta lista de coisas aqui.”

    A decisão de acolhimento ou não de uma idéia sempre será do indivíduo.

    Em última instância, sem dúvida! Mas as religiões buscam que esse acolhimento ocorra acriticamente. E não me venham dizer que os dogmas religiosos são aceitos criticamente, porque isso é um total oxímoro.

    Agora, se uma grande parte das pessoas tem uma mesma opinião, você não acha que é prudente escutá-la, que esse fato não coloca essa idéia no rol de decisão,

    Escutá-la, talvez. É evidência circunstancial, sem dúvida. E em sendo popular acaba se tornando relevante no mínimo torna-se conhecê-la. Mas automaticamente no rol de decisão? De forma alguma.

    principalmente quando se avalia assuntos que a lógica não determina?

    Principalmente se forem assuntos que não são determinados pela lógica?

    Você está seriamente dizendo que se todo mundo resolver virar nazista ou fazer piercing na testa ou amputar uma perna você vai colocar isso no seu rol de decisão?

    O pior é que isso que você está dizendo de fato é rigorosamente verdade da maioria das pessoas, eu apenas não esperava que fosse defendido explicitamente.

    Saudações,
    Sergio

  37. Oi Ricardo,

    Excelentes links!

    Saudações,
    Sergio

  38. Não, não conheço Aurélio Moraes.

    Mas só para constar, ao contrário do Pedro, eu nunca fui aluno de Olavo de Carvalho.

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