Um camponês olha para uma montanha e, sem qualquer pretensão filosófica ou espiritual, observa, como desde a sua infância, ao olhar naquela direção, o que lhe parece simplesmente óbvio :
“Eis ali uma montanha.”
Um dia, porém, passa por ali uma missão enviada pela universidade da capital para medir e estudar as riquezas naturais do país, e um prestigioso geólogo ouve o camponês, e exclama :
“Quanta ingenuidade. Isto não é uma montanha. Veja bem, a forma como o planalto se dobra para alcançar a plataforma oceânica, quando vista deste ângulo, dá essa impressão, mas uma formação desse tipo não pode ser adequadamente chamada de montanha. Inclusive para mim isso não passa de um acidental depósito de rochas sedimentares que ficou para trás quando o oceano recedeu nesta região há cem milhões de anos atrás.”
Ao que se junta o físico da equipe e diz :
“Eu iria ainda mais longe e diria que tudo o que vejo ali é um aglomerado de átomos que se mistura sem nenhuma fronteira logicamente defensável com o ambiente ao redor, inclusive a atmosfera; é um sistema que dinamicamente se modifica e renova e ao qual é injustificável sequer darmos uma identidade una e independente.”
E neste momento o biólogo que fazia levantamento de biodiversidade para a equipe diz :
“Pois o que eu vejo ali é um ecossistema de alta complexidade. Inclusive alguns dos pássaros ali presentes são migratórios sazonais e se integram com as populações ao norte do país, o que como efeito colateral promove a troca de pólen e sementes de espéceis vegetais entre as duas regiões, que não têm portanto como serem compreendidas separadamente.”
Ao que se junta o engenheiro da equipe e diz :
“Para mim a questão é que este local é excelente para passarmos uma estrada, pois veja bem, o declive na encosta leste é moderado e termina em solo compacto e com excelente drenagem em caso de chuvas.”
Neste ponto, o camponês, muito impressionado com a quantidade de conhecimento de todos esses doutores, e envergonhado de sua ignorância, retira-se para seus simples afazeres.
Porém, as vozes de todas aquelas autoridades sobre o que ele conheceu a vida inteira permanecem ressoando em sua mente, e perturbado com sua incapacidade de conciliar as profundas revelações que ouvira com sua experiência cotidiana, ele procura um grande sábio que habita na região e provê auxílio espiritual aos que necessitam.
“Meu pai, eu o procuro porque repentinamente aquilo que eu percebia com meu coração não parece mais ser verdade, mas ao mesmo tempo eu não consigo conciliar o que eu sinto com tudo aquilo que me disseram. Eu conheço aquele local desde criança, eu brinquei nas suas matas, eu bebi dos seus rios, eu lá busquei madeira para me aquecer no inverno, e pedras para calçar o pátio da minha fazenda na estação de chuvas. Como é possivel que aquilo que eu pensei que conhecia tão intimamente seja na verdade tão estranho e insuperavelmente incompreensível para mim?”
O sábio ouviu a pergunta e respondeu :
“Meu filho, tudo o que eles disseram é verdade, assim como tudo o que você disse também é. E no entanto nada disso chega perto de arranhar a superfície de tudo o que há para ser sabido sobre aquele local. Há ali muito mais do que qualquer humano jamais poderá saber, ou dizer. Mas não há qualquer contradição nisso. São diferentes aspectos da mesma realidade infinitamente rica. O nome que se dá para a totalidade do fenômeno que cada um de nós foi capaz de apreender apenas de forma parcial, incompleta e limitada é aquele que você já sabia desde o princípio : Eis ali uma montanha.”
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historia do elefantinho?
“história do elefantinho”? :-)
Não captei a referência.
Saudações,
Sergio
É a dos cegos apalpando o elefante.
AH, ok! Tem razão.
Bem, de fato eu nunca pretendi que essa história que contei fosse original – nem em termos de conceito, e aliás nem em termos de realização. Usar a montanha ao invés do elefante e o enfoque científico ao invés de anedótico foi uma das formas como já ouvi a história contada.
Mas a questão aqui não era tanto de originalidade quanto de relevância. Eu mencionei essa história devido ao Pedro, ao buscar distinguir entre “crentes” e “não crentes”, ter levantado essa questão da realizabilidade de uma “ciência universal” como fator central. Ora, se deus é apenas um nome para tudo que não conhecemos e não podemos conhecer, ou para níveis transcendentes de entendimento da realidade, então não estamos realmente falando de nada novo, e sim dando um nome para a montanha. Esse approach mais ou menos panteísta para a questão não estabelece de forma alguma a necessidade – nem lógica, nem metafísica, nem espiritual – de que isso que ele chama de deus tenha precisamente as propriedades a ele atribuídas por um “crente”.
O argumento dele é mais ou menos “tem algo aqui que não sabemos apreender completamente então tem que ser isto aqui que eu estou proclamando que é”.
Saudações,
Sergio
Fernando Pessoa antecipou tudo isso:
“Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?”
E que montes, árvores, flores, luar e sol sirvam de metáfora para qualquer incompreensibilidade da natureza, inclusive as metafísicas.
O problema é quando começamos a querer reificar o que de fato é uma metáfora…
Saudações,
Sergio
Segundo Spinoza, Deus é um “ente superior que se manifesta ora por extensão, ora por pensamento”, Ou seja, é um ser supremo que se comunica conosco através da imanência, seja por extensão fisica da natureza, seja na forma de pensamentos. Toda essa relação de Deus com a humanidade, independente de orientação filosófica específica, ou crença, se converge no único ponto em comum com a ciência e toda crença independente de seu sistema de divindades, anjos etc. O ente supernal, independente do nome é um. Eis ai a possibilidade e unificação de toda a crença, na concepção comum a toda cultura espiritual, a mais simples e básica de todas de que Deus “Pai” é este ser supremo. Neste ponto todas concordam, só muda o nome.
Fred,
É em parte por esse motivo que pessoas como Einstein empregavam por vezes a palavra “deus” num sentido mais ou menos panteísta sem contradição com o fato de ser completamente ateu. Ironicamente, são justamente as religiões institucionalizadas que mais fortemente combatem essa óbvia universalidade da experiência transcendente para se agarrarem a dogmas e miragens.
Eu pessoalmente acho que o significado dado pela quase totalidade das religiões institucionalizadas à palavra “deus” (especialmente esse “deus” que bate o pé para ser escrito com maiúscula e clamar ser o único “verdadeiro”) foi tão desgastado e distorcido que a palavra perdeu não só a sua mensagem de universalidade como até mesmo a de transcendência. O “deus” com maiúscula é um deus tirânico e limitante, um deus que se ocupa obsessivamente com tantas pequenas preocupações medíocres que nos prende e nos acorrenta na imanência ao invés de nos libertar para olhar além dos nossos próprios preconceitos.
Saudações,
Sergio