A repercussão da distribuição de “O Indivíduo” na PUC em 1997 não pode ser entendida ou explicada diretamente a partir do conteúdo da publicação original. Muito pelo contrário, para quem conhece a repercussão mas não o seu pretenso agente causador, o sentimento mais provável ao ter acesso ao material original é de incompreensão e estarrecimento. A reação foi absolutamente desproporcional e grande parte do tempo até mesmo desconectada da ação a que pretensamente se opunha. Uma análise coerente do episódio requer dar alguns passos para trás e perceber as forças culturais, intelectuais e sociais que se apropriaram do incidente para então usá-lo como veículo para suas agendas, no processo dando ao jornal dimensões, relevância e significado que absolutamente não tinha (não em si mesmo, pelo menos).
Ironicamente, essa reação, muito mais do que o texto ou mesmo o incidente original na PUC, acabou de fato tornando o episódio genuinamente relevante, pois para começar criou questões reais, entre elas de liberdade de expressão. Mas o impacto se estendeu muito além mesmo disso. O jornal serviu como elemento polarizador e focalizador de grupos sociais em conflito ideológico, contribuindo para que tais grupos se colocassem publicamente e assumissem sua identidade de uma forma mais explícita do que até então. Dessa forma, o jornal acabou sendo veículo para uma catarse de tensões latentes que preexistiam e que o jornal original, em termos objetivos, absolutamente não tinha relevância suficiente para causar. E cumpriu esse papel ao servir como ponto de referência em torno do qual construir uma identidade e um argumento. O jornal inspirou alguns a assumirem publicamente suas posições, algo sempre mais fácil de realizar quando tais opiniões ganham uma face pública, que malgrado simbólica e imperfeita, seja reconhecível como sendo “umas das opções disponíveis”. Da mesma forma, inspirou outros a tomá-lo como exemplo a ser combatido, como bode expiatório para toda uma série de posições e comportamentos que se pretendia tornar socialmente inaceitável.
Para quem não estava no Rio de Janeiro à época, é difícil relatar a dimensão do episódio. Eu queria ter mais registros do que tenho. Não foi apenas “um assunto”. Foi “o” assunto durante algumas semanas. Todos os dias havia novas notícias, cartas, editoriais e colunas de opinião na grande imprensa, na televisão, no rádio referenciando “O Indivíduo”. E não estou falando de “notinhas”. Estou falando de primeira página. Estou falando de páginas inteiras em jornais de grande circulação. Literalmente ligava-se o rádio numa estação qualquer e pessoas estavam sendo entrevistadas na rua para que dessem sua opinião sobre o jornal. A maioria absoluta das quais, evidentemente, não o havia lido, e não fazia a menor idéia do que nele efetivamente havia, mas que estava ciente de seu multifacetado significado (ou pelo menos de sua percebida relevância) no imaginário comum O jornal estava servindo como coringa simbólico para uma discussão coletiva sobre certos valores. E isso tem pouco a ver com a relevância do texto original, que se por um lado apresenta idéias que podem ser consideradas controversas, por outro lado não são idéias particularmente originais ou revolucionárias, e que não foram veiculadas de forma nem remotamente ameaçadora, violenta, ou perigosa. Literalmente quatro estudantes da PUC se juntaram, colocaram suas idéias no papel, e distribuíram o resultado no campus. Considerando o evento em si, não há qualquer justificativa objetiva para a magnitude da reação que isso acabou por desencadear. Mas fica bem mais fácil de explicar se observarmos que juntar-se a um debate público que já existe e capturou a atenção coletiva é bem menos complexo do que conseguir com sucesso iniciar um para começar.
Mas para que a surrealidade do que estou dizendo não acabe por levar o leitor à conclusão de que eu só posso estar exagerando, aqui está um link para uma tese de doutorado defendida em 2001 que discute o assunto. Aliás, discute de forma surpreendentemente livre de distorções e desinformacão, especialmente considerando que nunca fomos contactados ou diretamente entrevistados pela autora. O título da tese é “O Desafio Multiculturalista no Brasil: a economia política das percepções raciais“. Divirtam-se. :-)
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Eu me penalizo muito por naquele tempo não ter acompanhado esta belíssima e estranha saga. Tinha apenas 16 anos e também não poderia estar muito por dentro por ser de Guarujá, mas é dos fatos que eu com certeza teria guardado recortes de jornal ( Mania que cultivava até bem pouco tempo atrás )
Este jornal não desencadeou o “Imbecil Coletivo II- Os filhos da PUC” do Olavo de Carvalho?…Ou ele é persona non grata e por isso não foi citado no texto.
Bem, eu não diria que o jornal sozinho desencadeou o Imbecil Coletivo II, mas no final das contas acabou ocupando uma grande parte dele. O Olavo já tinha algumas coisas para dizer e o episódio todo ilustrou claramente algumas coisas que ele de fato vinha defendendo mas as quais ficam muito mais fortes quando ocorrem de forma tão concreta. Eu mesmo fiquei surpresíssimo com o quanto a nossa liberdade de expressão foi tão facilmente descartada como irrelevante por diversos grupos, desde alunos até jornalistas e ativistas políticos, passando pela reitora da PUC.
Alias, o grau de pura e simples DESONESTIDADE com que o caso foi tratado por uma parte dessas pessoas também me impressionou. Uma coisa é ter uma reação histérica – é ruim mas não é intrinsecamente desonesto. Outra é em querendo estrategicamente limitar tanto quanto possível a aceitação de certas idéias e sabendo plenamente quais elas realmente são, escolher (ao invés de apresentar uma crítica sincera e aberta) apresentar uma descrição absurda e caricatural para buscar desincentivar ao máximo que sejam sequer conhecidas.
Mas voltando ao Olavo, ele de fato foi um dos que mais vocalmente saiu em nossa defesa, PORÉM parecendo achar que nosso dever era largarmos tudo para sermos mártires da causa de salvar o país da revolução gramsciana. Isso (e eventualmente um número crescente de outras atitudes e posições) acabou criando uma situação de conflito na qual ficou impossível para mim pessoalmente me sentir realmente lutando pelas mesmas coisas que o Olavo, mesmo concordando com várias das idéias que ele defende (embora cada vez menos com como).
Saudações,
Sergio