irreverência
[Do lat. irreverentia.]
Substantivo feminino.
“Desobedecendo e revoltando-se com uma irreverência heróica, funda [Lutero] a liberdade do pensamento” (Ramalho Ortigão, Figuras e Questões Literárias, I, p. 127).
Pedro publicou como mensagem de natal este texto aqui (agora aqui).
No texto, ele diz entre outras coisas que o máximo que se pode esperar razoavelmente dos homens é que tenham boa vontade, não caridade. Que se tivessem caridade, seriam santos, e que não é um papel apropriado para a maior parte de nós se arrogar acusar os outros de não serem santos, dada tanto a dificuldade em sê-lo quanto o fato de que poucos entre nós o somos. E adiciona a isso que a motivação para apontar falhas em outros seria primordialmente a auto-afirmação, e que estarmos corretos em nossas acusações não contradiz ou desmente esse motivo.
Parece em princípio uma mensagem que pretende ser de tolerância e paz e supostamente em defesa da humildade, mas vamos examinar um pouco mais detidamente.
Para começar, como é que alguém que está defendendo precisamente a “boa vontade” em não julgar os outros constrói um argumento para justificar que a paz na terra seja dada apenas àqueles… que têm a tal “boa vontade”? Essa é a essência da eterna contradição do pensamento católico : vamos todos ser fraternos, e humildes, e amigos… exceto claro com quem não concordar conosco, esses julgaremos severissimamente e enviaremos neste e no próximo mundo para as chamas da reprovação. Dizer que é “deus” quem está julgando, ou que é a própria pessoa que escolhe se afastar de deus, são apenas formas convolutas de projetar seu próprio julgamento em uma conveniente entidade externa “para não sujar as próprias mãos de sangue”. Daí um dos motivos mais importantes para se afirmar existência dessa imaginária entidade : lavar das mãos o sangue dos seus próprios julgamentos.
Aliás, a tal “abstenção do linchamento em todas as suas formas” é tudo o que a religião católica (e religiões em sua maior parte) não fazem. Em total constraste com seu discurso de “tolerância” e “paz”, sua prática cotidiana e rotineira é saírem de seu caminho para discursar, transbordando de reprovação e virulência, contra aqueles que ousam ir contra seus “valores” – na verdade uma coleção de regras dogmáticas consideravelmente arbitrárias e temporalmente mutáveis decretadas por Roma.
Que tal mandar as pessoas para o inferno por comerem
carne como demonstração de “tolerância”?
Então se a igreja católica tivesse a tal “boa vontade” de não sair julgando todo mundo da qual fala o Pedro, não se apressaria em mandar pessoas para o inferno por exemplo por suas práticas sexuais, ou por negarem a existência de deus. Ah, mas que ingenuidade a minha – não é a igreja católica que manda ninguém para o inferno, é deus. Mas vejam, regras como esta e muitas, muitas outras – assim como suas exceções – foram efetivamente e na prática promulgadas por Roma como “interpretações” do que seria teologicamente correto. Que conveniente! Posso julgar a todos e nem ao menos sou eu que estou julgando. Eu posso esfregar minhas mãos limpas de sangue e dizer “foi você quem escolheu se afastar de deus”.
Mas a parte mais incrível do argumento – sobre “abster-se de linchamento em todas as suas formas” – é que aparentemente ele não parece se aplicar quando quem está sendo julgado… é quem se arvora na pecaminosa e terrível prerrogativa de julgar os outros. O texto não só julga tais pessoas severamente, como ainda “explica” que qualquer discurso acusatório só pode mesmo ser motivado por auto-afirmação, ser obra do diabo (!), e que estas pessoas, ao contrário dos pecadores normais, que são apenas humanos, não merecem sequer o benefício da dúvida de estarem demonstrando “boa vontade” e são portanto justamente imerecedoras da “paz na terra”. Pois então cumpro a profecia do texto e dirijo a seu autor a acusação semelhante de se colocar, contra seus próprios argumentos, na posição de “anjo vingador” que sim, julga severissimamente aqueles que ousam julgar os outros.
Aliás, essa posição não é nem um pouco surpreendente, pois para a teologia católica, este é o verdadeiro e maior pecado, efetivamente o pecado original que colocou o homem em estado natural de eterna impureza. Não foi genocídio, não foi crueldade, não foi preguiça ou omissão. Não, não. Foi ousar comer do fruto da árvore do bem e do mal e ousar ter um julgamento próprio sobre o que é certo e errado. Foi ousar usar sua própria consciência para tomar decisões. O pecado original e mais grave de todos é o de demonstrar independência de julgamento ético ao invés de submissão subserviente e temerosa à vontade de “deus”, leia-se seus “representantes” na terra. Você pode ser um assassino torturador psicopata estuprador e mutilador de crianças que se 5 minutos antes de morrer declarar sinceramente sua submissão a deus, tudo estara bem e você ira para o céu. Mas se você for uma pessoa bondosa e caridosa e tolerante mas seguir seus próprios critérios e sua própria consciência para isso e morrer negando a existência de deus… irá queimar para sempre no inferno.
A religião dogmática (e a maioria absoluta é) alimenta-se de (e explora, e incentiva) várias fraquezas humanas, entre elas de uma distorção de caráter muito humana que é o desejo de ter as mãos limpas do sangue de julgar os outros, de ter a consciência limpa da terrível carga de decidir por si mesmo o é certo, o que é bom, o que é verdadeiro, de não querer assumir a responsabilidade pelo que jogadas fora todas as racionalizações, desculpas e explicações são suas próprias e inalienáveis escolhas, decisões e julgamentos. Então a religião institucionalizadamente dogmática não apenas tira essa carga de suas mãos como em troca exige explicitamente que você não use seu próprio julgamento. Ela exige nada mais nada menos que quando confrontado com um dilema entre o que sua consciência e melhor julgamento dizem serem certo e bom e o que as autoridades religiosas afirmam ser certo e bom, você deve jogar fora seu julgamento e submeter-se à ortodoxia. O resultado é todo tipo de aberração moral e cognitiva.
Uma amostra do cristalino pensamento
de cristãos fundamentalistas
Esse discurso de que “fazer uma acusação, mesmo que seja verdadeira” seria apenas uma demonstração de “falta de boa vontade” e expressão de uma “necessidade de auto-afirmação” vindo de alguém que está fazendo precisamente isso é no mínimo inconsistente. Mas isso se torna ainda pior e mais preocupante quando chega ao extremo de classificar a irreverência como “falta de boa vontade”. Como é que é? Isso me lembra que uma entre as minhas formas favoritas de definir um governo totalitário é assim : um governo se torna totalitário quando perde seu senso de humor. O próprio ato de criticar em si mesmo se torna então suspeito sinal de “falta de boa vontade”. Mesmo através de piadas, mesmo através de irreverência. Pois eu digo que sentir-se importante demais para ser alvo de irreverência, para ver suas características ridículas ou negativas apresentadas em forma destilada, isso sim é se levar a sério demais. Quando se falsifica o que alguém disse, quando se calunia alguém, quando nos agarramos a repetir qualquer afirmação absurda feita sobre quem queremos criticar, isso sim é falta de boa vontade. Mas irreverência? No sentido de recusar-se a deixar de questionar algo por ser supostamente tão sagrado que não pode ser questionado? Ora, vejam a citação escolhida pelo Aurélio para ilustrar o significado desta palavra :
irreverência
[Do lat. irreverentia.]
Substantivo feminino.
“Desobedecendo e revoltando-se com uma irreverência heróica, funda [Lutero] a liberdade do pensamento” (Ramalho Ortigão, Figuras e Questões Literárias, I, p. 127).
Agora, se a tal “boa vontade” é um misto de verdadeira humildade com o desejo de ver o bem e pressupor o bem, a atitude da igreja católica demonstra extrema falta de boa vontade. Acreditar-se capaz de comunicação direta com deus, seu único legítimo representante no universo, e a única entidade capaz de não só interpretar a vontade divina para decidir o que é um ato “mau” como para intermediar o “perdão” por tais atos… isso não soa muito bom em termos de humildade! Então talvez a boa vontade esteja em pressupor o bem. Mas o fato é que a religião católica enxerga o mal em cada fresta e canto da existência. Ela é tão avessa a pressupor o bem que considera que todos os seres humanos desde a concepção já estão errados mesmo que absolutamente nada tenham feito. Então talvez ela seja boa em reconhecer o bem onde quer que esteja. Mas não; qualquer um que não prometa nominalmente subserviência a seus preconceitos ritualmente dogmatizados, mesmo que calhe de estar fazendo enorme bem, é automaticamente considerado tentado pelo demônio e pelo mal. Então por qualquer critério a igreja católica definitivamente não passa nos critérios apresentados para “boa vontade”.
Então são citados rapidamente os ateus. Ora, os ateus. Aqueles seres incapazes de transcendência que querem reduzir tudo a um componente antropológico. Ou será que querem? As descrições de ateus feitas por religiosos são com freqüência para criticar posições que a maioria dos ateus absolutamente não defende. Eu não “quero” reduzir tudo a um componente antropológico, e na verdade fico freqüentemente frustrado com esse componente vezes demais ir contra o que eu acho que seria certo e bom. Agora, negar a existência e a importância desse componente é simplesmente fugir da realidade.
Por que os ateus não calam a boca?
Theocracy Watch : Dominion Theology
Termino com uma discussão do episódio da mulher adúltera, que eu concordo ilustra muito bem toda essa questão. Em primeiro lugar, não concordo que o argumento para não apedrejar a mulher adúltera tenha qualquer coisa a ver com o fato de ela ser inocente. Analisemos a passagem inteira :
Early in the morning he came again to the temple. All the people came to him, and he sat down and taught them. The scribes and the Pharisees brought a woman who had been caught in adultery, and placing her in the midst they said to him, “Teacher, this woman has been caught in the act of adultery. Now in the Law Moses commanded us to stone such women. So what do you say?” This they said to test him, that they might have some charge to bring against him. Jesus bent down and wrote with his finger on the ground. And as they continued to ask him, he stood up and said to them, “Let him who is without sin among you be the first to throw a stone at her.” And once more he bent down and wrote on the ground. But when they heard it, they went away one by one, beginning with the older ones, and Jesus was left alone with the woman standing before him. Jesus stood up and said to her, “Woman, where are they? Has no one condemned you?” She said, “No one, Lord.” And Jesus said, Neither do I condemn you; go, and from now on sin no more.”
Ou seja, em nenhum momento é questionado que embora em posição essencialmente indefesa e vulnerável, a mulher de fato era culpada da acusação que lhe faziam, e inclusive Jesus a manda embora com a recomendacão de que “de agora em diante não peque mais”. Além disso, a mulher nem sequer tentou se justificar, ou demonstrou qualquer arrependimento. Portanto a mensagem é sim de tolerância, mas não como precaução contra falsas e equivocadas acusações, mas sim de tolerância para com quem de fato errou, e Jesus não exigiu dela promessas de retidão ou ortodoxia moral antes de não condená-la. E nem ao menos faz qualquer sermão exceto recomendar que não peque mais. Então se alguém teve boa vontade nessa história toda foi Jesus, que pressupôs a capacidade para o bem na mulher que não condenou apesar de ela ter de fato errado, que enxergou a capacidade para o bem na multidão que convenceu a não apedreja-la, e que no final foi humilde o suficiente para também não condená-la ou exigir demonstrações de subserviência apesar de estar numa posição de superioridade moral e de tê-la salvo da multidão. Já a multidão, apesar de ter sido instada com sucesso à tolerância, não demonstrou realmente boa vontade; apenas se sentiram vexados pela observação de Jesus que os convidava a examinar sua própria autoridade moral para julgá-la.
Agora, devemos daí concluir que se não somos perfeitos não temos autoridade para julgar ninguém, e que conversamente, se somos, temos autoridade para condenar a todos implacavelmente?
A segunda parte é respondida pela própria história e pela atitude de Jesus, acredito. Nenhuma quantidade de superioridade moral do mundo, verdadeira ou (muito mais provavelmente) suposta nos autoriza a sermos implacáveis, algo de que a igreja católica parece se esquecer completamente. Ele também não a condenou.
Já a primeira parte é precisamente o objeto do texto que comento. Se somos imperfeitos, estaremos então em errados em julgar os outros? Essa é uma pergunta complexa, mas como lindamente construído, desenvolvido e apocalipticocatarticamente resolvido em Dogville, olhar para si mesmo e dizer “eu não me orgulho de agir desse jeito mas que posso fazer, sou humano” é uma desculpa muito pobre. Combinar com aqueles ao nosso redor “eu não te julgarei e você também não me julga, abdiquemos todos entre nós de nossa consciência ética, sejamos todos cúmplices desde que estejamos entre nós ” não é nem a resolução sugerida pela histórica bíblica nem uma solução “tolerante” ou cheia de “boa vontade”, muito pelo contrário; na melhor das hipóteses ela supõe o mal não só como onipresente mas também insuperável. Agora, existe uma grande diferença desde não ser implacável e intolerante até abrir mão de ter uma consciência. Inclusive o filme vai mais longe e considera também a segunda parte, e conclui por apontar que acreditar-se tão superior aos outros que não se pode aplicar a eles os mesmos padrões éticos que aplicamos a nós mesmos é simples e pura arrogância.
Oi Sérgio,
em relação ao artigo do Pedro, o que tenho a dizer é que Cristo disse que “com a mesma medida que julgardes sereis julgados”, entendo isso uma advertência para que não julguemos com mais dureza os outros que a nós próprios, porque não julgar de forma alguma me parece impossível. E não são só os católicos que falam em não julgar; também vejo pessoas moderninhas que dizem não julgar ninguém pois não são moralistas. É bem irritante.
Agora, o vídeo que você postou relacionando religiosidade a baixo Qi é hilariante, mas você só pode estar mesmo brincando, pois a Igreja Católica já teve muitos pensadores como Pascal e São Tomás de Aquino, sem falar nos compositores e pintores que se inspiravam em temas religiosos. É bem verdade que agora nenhum artista se inspira em tais temas, vide as canções cafonérrimas em missas da Renovação Carismática [risos].
Outra grande contribuição para a cultura foi o desenvolvimento de uma consciência individual. Na antiguidade Clássica, creio que não havia distinção entre “reputação” e “honra”. Mas para os Cristãos, o que importava era sua consciência diante de Deus e não sua reputação diante dos outros homens e isso foi se desenvolvendo de forma que hoje em dia, quando a maioria das pessoas não dá muita bola bola para a religião, o que importa é estar com a consciência limpa. Sei que a Igreja também foi responsável por coisas ruins, inquisição, etc. mas também não se pode demonizá-la, acho que sempre fez parte da cultura dos povos e contribuiu para o desenvolvimento da sensibilidade e da ética.
Em relação às pessoas irem para o inferno por não acreditarem em Deus, espero que nem o Papa acredite mais nisso. Já li um texo do Jacques Maritain que dizia que se uma pessoa não acredita em Deus mas acredita na Justiça, ela na verdade cultua Deus de algum modo.
Acho que as pessoas podem seguir uma religião sem serem fundamentalistas e muitas o fazem, mas infelizmente noto o surgimento de alguns grupos mais radicais dentro das religiões.
Aqueles cristãos do vídeo são horripilantes.
É bom que haja pessoas religiosas e também ateus, pois assim o mundo fica um lugar mais variado e interessante.
Feliz ano novo.
Ana Beatriz.
Oi Ana,
Sim, sim; concordo. Agora, isso é muito diferente de dizer “somos todos pecadores então julgar os outros é errado” ou “se você tiver qualquer falha não tem autoridade moral para julgar ninguém”.
Além disso existe uma diferença essencial entre julgar no sentido de ter uma opinião e/ou reprovar o comportamento alheio versus transformar esse julgamento em um ato de punição ou agressão ao outro. É muito mais contra essa implacabilibade com as falhas dos outros, contra essa intolerância com o erro que me parece que o discurso original de Cristo vai. Ele não questionou a capacidade da multidão de discernir que a mulher era de fato adúltera, nem a corretude do julgamento moral da multidão sobre o fato da mulher ser adúltera consistir em uma falha e um pecado. O que ele questionou foi a autoridade moral e a propriedade da multidão para diante disso apedrejá-la.
O lugar próprio para fundamentar um discurso de tolerância se dá a meu ver não no nível de dizer em sendo todos imperfeitos, ninguém tem autoridade moral para julgar ninguém, ou (alternativamente) que todos os valores são relativos e arbitrários então cada um faz o que quer ou (ainda alternativamente) que é impossível ter certeza de qualquer coisa então por via das dúvidas não devemos ter opinião sobre nada. Para mim esses são os lugares errados para fundamentar o discurso de tolerância. Para mim, a importância e o significado da história de mulher adúltera estão justamente no fato de que em nenhum momento se questiona que ela de fato pecou, e errou, e a multidão está certa sobre isso. O fundamento próprio para a tolerância vem então do pensamento revolucionário – e é essa provavelmente a mensagem mais revolucionária do novo testamento – de que punir e perseguir implacavelmente quem você acredita que errou é desumano e indesejável, mesmo que você tenha razão.
O Pedro meio que toca essas questões, mas então ele confunde (a meu ver) a questão de ser moderado e prudente em sua reação com a idéia de que sequer expressar qualquer julgamento seria intrinsecamente problematico. O que é fantástico vindo de uma posição católica, os arqui-mestres de expressar julgamento severos sobre tudo. E ainda mais incoerente a partir do momento em que ele mesmo está expressando um julgamento severo sobre quem expressa julgamentos!
Extremamente irritante! Como você observa, uma interpretação completamente absurda para essa história que vai ainda mais longe é justamente essa mais moderninha de que como é tudo relativo mesmo então o negócio e ninguém julgar ninguém. Essa é freqüentemente uma visão cínica e utilitária usada apenas como mais uma forma das pessoas buscarem de se eximir de sua responsabilidade como agentes morais. E se acham então iluminadíssimos ao dizerem que “não julgam ninguém”. Ora, não é preciso nem adequado sair por aí apedrejando todas pessoas que estão fazendo coisas que você não aprova, mas o extremo oposto é fechar-se em si mesmo, é calar-se e omitir-se diantes de grandes injustiças, da crueldade, do sofrimento alheio que estaria em seu poder contribuir para evitar. Claro que é prerrogativa e direito de todos pensar só em si mesmo e ser abjetamente egoísta tanto quanto lhes for permitido pela sociedade, mas então se coloque como tal ao invés de achar que está sendo muito generoso ao “não julgar ninguém”. Isso é apenas conveniente, não sinal de nenhuma grandeza espiritual.
Novamente, julgar mas ser ponderado em sua reação, isso pode ser meritório. Não se apressar demais em tirar conclusões demais sobre o caráter de alguém diante da pessoa ter cometido um erro, isso pode ser meritório. Mas usar o discurso de “eu não julgo ninguém” como desculpa para inação diante de grande injustiça e sofrimento alheios… aí já não tem nada a ver com tolerância e sim com cinismo, egoísmo ou covardia.
É muito engraçado. :-)
Não, os dados são reais!
Isso é inegável, e eu conheço pessoalmente muitas pessoas de inteligência indiscutível que são católicas. Mas estamos falando aqui das grandes massas, da média, do que é mais provável de você escolher um representante ao acaso, não dos melhores. Alem disso estamos falando de religião em geral; a religião católica de fato me parece ter um QI médio mais alto do que a religião em geral ou mesmo do que a cristandade em geral. Os protestantes fundamentalistas americanos são grotescos.
Além disso, observo que a respeitabilidade intelectual das crenças religiosas caiu MUITO desde São Tomás de Aquino. Avanços revolucionários tanto nas ciências experimentais como física e biologia quanto nas mais teóricas como matemática e lógica tornaram grande parte da teologia, em particular a católica, absolutamente ridicula e insustentável. Eles tiveram que mudar de posição sobre vários assuntos, tiveram que colocar cada vez menos questões como assunto de teologia ou de fé, e se refugiarem em dogmas cada vez mais abstratos e desprovidos de sentido para poderem tentar apagar o incêndio. Alguns mais fundamentalistas e cegos não fizeram nem isso. Já houve uma época em que dizer por exemplo “a Terra tem 6 mil anos de idade” poderia ser perfeitamente defensável. Hoje em dia é só cego e patético.
A igreja católica (e a religião em geral) teve e tem sem dúvida um papel crucial na cultura humana, possivelmente até mesmo para o desenvolvimento da ética, mas a partir do momento em que deixamos de ser um monte de indígenas numa tribo ou camponeses num feudo e a importância da consciência individual se afirma como cada vez mais crucial para uma sociedade ética, o papel da religião tem sido disparadamente em direção a um retrocesso no qual se exige do sujeito submissão da sua consciência à autoridade externa – algo que infelizmente grande parte das pessoas estará ávida e aliviada em fazer, com conseqüências desastrosas. Se o cidadão médio for encarado como um boi acéfalo a ser chicoteado na direção certa, essa visão pode talvez até ter algum mérito e justificativa. Mas isso é cada vez menos razoável em tempos modernos. As pessoas precisam ao invés disso é de serem educadas e que se dê espaço, oportunidade e recursos para que desenvolvam seu próprio julgamento e senso crítico. Isso e não a religião é que modernamente contribui para o desenvolvimento da sensibilidade e da ética. A religião, modernamente, faz exatamente o oposto : ela embota a sensibilidade e a ética, ao dizer ao sujeito que sua própria consciência não é a ferramenta de maior autoridade para decidir o que é bom, que seu próprio julgamento não é a ferramenta de maior autoridade para decidir o que é verdade.
Eu também espero, e na verdade acho quase impossível uma pessoa sã, inteligente e culta achar isso vagamente verossímil ou acreditável em tempos modernos. No entanto ainda é faz parte daquilo em que se requer dogmaticamente que as pessoas “acreditem”. Nos EUA, entre vários grupos protestantes, o inferno é algo muito concretamente relevante e recorrentemente mencionado com descrições terríveis. Crianças crescem traumatizadas pelo medo de que se questionarem a existência de deus, mesmo em pensamento, passarão a eternidade sendo fisicamente torturadas.
Com certeza, mas eu diria que a rigor ser fundamentalista é exatamente levar a sério os dogmas e a teologia da religião que supostamente seguem, e é isso é o que formalmente a quase totalidade das religiões requerem de seus seguidores. E na verdade esse é o maior problema que eu vejo com religiões em geral; não é tanto defenderem crenças bizarras e delirantes, mas sim o fato de exigirem e incentivarem aderência servil e acrítica a essas crenças – incentivando as pessoas a serem, bem, fundamentalistas! Felizmente uma boa parte das pessoas embora nominalmente seguindo diversas religiões não realmente abre mão completamente de sua própria prerrogativa de julgar de acordo com sua própria consciência, então não fazem nenhum grande esforço ou ginástica mental para introjetar como verdade absoluta folclore mitológico da idade do bronze, nem realmente obedecem cegamente aos códigos de comportamento e moral ditados pela autoridade religiosa. Já aqueles que de fato tentam fazê-lo tendem a adquirir sérias distorções cognitivas e de caráter, e em certas comunidades protestantes americanas isso atinge níveis perturbadores – como se vê no, como você colocou, horripilante vídeo que eu postei.
Sobre o mundo ser mais variado e interessante com pessoas de todos os tipos, isso até é verdade, mas isso é mais ou menos o contrário do que quase todas as religiões buscam. :-D
Saudações,
Sergio
Eu quero falar é do diálogo entre pai e filha do Dogville: eu acho que aquele diálogo valeu o filme.
Neste assunto de religião e Deus eu não me meto: não sigo nenhuma religião mas também não vejo nenhuma alternativa plausível à questão “de onde viemos?” Então deixo-a quietinha no sótão do meu cérebro para não incomodar as visitas…
Oi Claudio,
Sim, aquele diálogo é mesmo genial. Quando eu vi o filme ele me pegou completamente de surpresa, e me fez pensar MUITO. Manderlay também é bom, mas a “revelação” que ocorre no fim não teve pra mim nem de longe um impacto tão dramático e cheio de significado quanto este diálogo de Dogville. Claro que para ele ter pleno significado é preciso ter todo o contexto meticulosamente construído que o precede, mas é mesmo genial.
Sobre religião, meu principal problema não é sobre as teorias de cada um sobre de onde viemos, e sim com como as defendemos… as religiões tendem a defender suas opiniões de uma forma que incentiva abertamente o dogmatismo e a submissão cega à autoridade, dois traços de personalidade que considero muito negativos e que levam a todo tipo de distorção, sofrimento e tragédia…
Saudacões,
Sergio
Eu vejo a submissão à autoridade o objetivo de qualquer um que queira exercer domínio sobre um grupo. Entendo que os exemplos ligados à religião abundam, mas são inegáveis os casos positivos (quase nunca noticiados com o mesmo destaque). Mas observe, por exemplo, a questão climática: estão usando exatamente dogmas e autoridade, desta vez travestidos de fatos científicos, para impor uma agenda a todo o Planeta. Por mais abundantes que sejam os maus exemplos (perceba que a abundância na verdade depende da nossa percepção e das informações as quais temos acesso), não podemos afirmar que todos os cientistas que estudam o clima são pilantras, ainda mais quando estes não têm a visibilidade que os pilantras têm.
Eu não gosto de discutir muito isso porque não há resposta verificável para a famosa pergunta, logo o que acaba acontecendo é que escolhemos a que mais faz sentido e o resto é trabalho para evitar a dissonância cognitiva. E tudo que se estudou sobre a dissonância cognitiva mostra que, na maioria das vezes, o resultado é briga, bate-boca e etc.
Epa, não acho isso um bom exemplo. Não é que não existam cientistas pilantras, ou dogmáticos, ou que queiram usar a força de sua autoridade social ou prestígio intelectual para impor certas opiniões goela abaixo do resto da comunidade ao invés de fazê-lo através do convencimento e da argumentação. Mas isso é uma distorção do sistema. E antes que alguém diga que o mesmo argumento poderia ser usado com religião, note-se que a situação muito não é a mesma. A religião católica (por exemplo, mas como quase todas as outras) tem de fato uma série de crenças que ela chama textualmente de dogmas e que ela exige oficialmente que as pessoas aceitem. Esse *é* oficialmente o sistema. Muito ao contrário de ciência, onde não existe a idéia de “verdade revelada”, e onde o critério oficial de aceitação das idéias é a lógica, a observação, as evidências acessíveis em princípio a todos. Mesmo quando não verificamos todos os detalhes de uma prova científica, a expectativa é de que poderíamos fazê-lo se nos dispuséssemos a investir tempo e esforço suficiente. O critério último de credibilidade em ciência é verificabilidade, é corresponder à realidade, não autoridade ou tradição. Novamente, não que desvios disso não existam, mas são desvios, e ninguém sonha em dizer “você tem que acreditar nisso porque o Einstein disse”. O mérito do Einstein foi ter visto primeiro coisas que depois foram verificadas e confirmadas por outros, não de ter tido alguma revelação mística que agora repetimos verbatim. Não faz parte da proposta da ciência incentivar as pessoas a abrirem mão do próprio julgamento, ou a jogarem fora seu senso crítico. Já a religião explicitamente o exige.
Sobre não haver resposta verificável para certas perguntas, novamente, não é essa minha maior questão com religião. Eu acho um grande equívoco quando as pessoas começam a colocar a questão de religião como um debate de racionalidade versus irracionalidade. O problema com religião não é defender crenças ou comportamentos bizarros ou irracionais; um monte de outras atividades perfeitamente construtivas ou pelo menos comparativamente inócuas fazem o mesmo. O problema com religião é incentivar (e em não raros casos mesmo intimidar ou exigir coercitivamente, quando tem poder para tanto) que as pessoas abram mão de um julgamento crítico independente.
Saudações,
Sergio