Desconstruindo Adesivos

April 1st, 2010 by Sergio de Biasi

Adesivos observados na traseira de um carro em New Jersey
(Clique na imagem para ter acesso a uma versão maior)

Estava eu dirigindo quando observei no carro da frente a imagem reproduzida acima. Fiquei então pensando sobre se todos os adesivos teriam sido colados pela mesma pessoa ou se se trataria de uma amálgama de várias personalidades.

Particularmente constrastante me parecem os dois da coluna da esquerda. Aliás, uma análise semiótica do peixe com pernas em particular é especialmente interessante, mas acho que os leitores que concordam com isso são capazes de fazê-la eles mesmos. :-) A questão é : como que debaixo dele aparece então um adesivo com o texto “I Believe In Magic”? Entre as várias interpretações possíveis, podemos ter a que eu já mencionei : foram ali colocados por pessoas diferentes. Uma outra possível interpretação, porém, é que ele deva ser entendido no sentido metafórico; se foram colados pela mesma pessoa, me parece o mais provável.

Note-se na extrema direita a repetição de um adesivo com um texto que eu já tinha visto antes, gostado, e até mencionado aqui. De fato, a linha comum entre todos esses adesivos, exceto o da esquerda embaixo, parece ser a da defesa do pensamento crítico independente. Mas nesse caso, novamente, como interpretar o adesivo na extrema esquerda embaixo?

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Um comentário adicional : existe alguma forma decente de se referir em português a “bumper stickers”? “Adesivos” me parece genérico demais, “decalques” me parece coloquial de menos. Eu não consegui pensar em nada que me deixasse realmente satisfeito. Isso me levou a uma reflexão adicional : a desnecessidade de uma palavra para se referir a um certo conceito é provavelmente indicativa da (falta de) importância do conceito numa certa cultura; pensei então se bumper stickers são uma tradição americana muito mais do que uma tradição brasileira, e de fato me parece que são. O que isso significaria? Seria uma das causas disso que o americano médio faça questão de afirmar sua individualidade mais do que o brasileiro médio? Isso em si dá todo um outro tema. Eu diria que de fato muitos americanos parecem fazer questão absoluta de esfregar sua individualidade na cara dos outros, mesmo quando não estão se defendendo de nenhuma ameaça externa. Os americanos muitas vezes parecem passar do ponto em que se sentem confortáveis em terem uma personalidade para ingressar numa região em que a ostentam quase agressivamente.

14 Responses to “Desconstruindo Adesivos”

  1. Leonardo says:

    Olá, Sergio.

    Primeiro uso o espaço dos comentários pra prevenir a minha ignorância: tem alguma sutileza na imagem do peixe com pernas que eu não tenha entendido e que “uma análise semiótica (…) em particular [seja] especialmente interessante”? rs.

    Sobre o “I believe in magic”, pode ser o caso de um “crente sincrético”, que sintetize esse sincretismo com a imagem do evangelho perfeitamente conciliada com a referência a Darwin, e ao mesmo tempo registre a sua abertura à espiritualidade com uma menção genérica a “magic”. Talvez o “magic”, com certa ingenuidade, diga até respeito a “milagres” de um ponto de vista “não-doutrinário”. Ou seja, um cara que não se importa em agregar muitas coisas na sua crença, independente das barreiras que essas crenças estabeleçam com as suas doutrinas.

    Os outros são adesivos conservadores, e o da direita eu até gostaria de tentar entender melhor com você: primeiro, “outraged” pode ser tanto “revoltado” quanto, no seu cognato em português, “ultrajado”, que vai manter o mesmo sentido da frase? É que vejo que é uma frase que, por um lado, pode indicar que todas as pessoas pertencem a alguma minoria possivelmente estigmatizada e facilmente ressentida, e que não tem jeito. E por outro que o politicamente correto é o grau de implicância (“atenção”) que você resolve ter com qualquer discurso. Em ambos os casos é uma crítica ao politicamente-correto, e não uma defesa, né? Bom, pode também estar se referindo à paranóia anti-disléxica de enxergar a sutileza das coisas que são ditas, ou ainda bem mais simplesmente a uma intransponibilidade de identificação com o que o outro está falando…

    E acho que “adesivo” é uma boa tradução pra esses casos!

    Abraço!

    • Oi Leonardo,

      Bem, sobre o peixe, a questão é a quantidade de idéias e símbolos concentrados em um único lugar. Não que a interpretação seja particularmente misteriosa, mas se formos traçar a história de cada componente e de como eles acabaram juntas pregadas na traseira de um carro e especialmente se forma considerar como essa combinação consegue sinteticamente transmitir toda uma (provável) atitude sobre uma série de questões sem que tenhamos sido previamente expostos a ela, me parece que isso começa a ficar interessante.

      Saudações,
      Sergio

    • Tiago says:

      O peixe deve ser uma zoação com adesivos religiosos, que têm formato igual mas com a palavra Jesus dentro. Peixes são freqüentemente associados a Jesus.

      O que me leva a supor que o adesivo debaixo é uma ironia com pessoas que acreditam em deuses/religiões, dizendo que é a mesma coisa que acreditar em mágica.

      • Oi Tiago,

        Sim, evidentemente o peixe é uma modificação de um tradicional símbolo cristão, o qual em si mesmo tem uma história transbordante de simbolismo. História a qual, aliás, muito não é simplesmente “ah, os primeiros cristãos eram pescadores”. Jesus é uma figura mítica associada ao sol seguindo a tradição de grande parte das religiões que precederam o cristianismo. Existe aqui então um fortíssimo significado astrológico de Jesus ter vindo para marcar definitivamente o fim da era de Áries e o começo da era de Peixes; a transição do sol de uma constelação para a outra ocorreu por volta da época em que a mitologia cristã situa o nascimento de Jesus.

        O simples ato de colocar pernas nele coloca toda uma outra camada de séculos de símbolismo moderno. Talvez fosse até mais interessante se não tivesse o “Darwin” escrito; o texto é tipo o narrador que entra para explicar o que aconteceu. :-)

        Sobre o adesivo sobre mágica, pois é, pode ser, entre outros 1) ironia 2) outra pessoa da mesma família 3) metafórico 4) maluquice incoerente mesmo :-)

        Saudacões,
        Sergio

        • Leonardo says:

          Sei lá, essa conversa de fim da era de Áries e começo da era de Peixes é muito “Zeitgeist”, um vislumbramento matuto diante das religiões comparadas… O fato do peixe ser um acróstico de “Jesus Cristo Filho de Deus Salvador” em grego já é motivo mais direto.

          • Um motivo absolutamente não elimina o outro. Além disso é nitidamente possível construir acrósticos sob demanda para se adaptar a qualquer palavra. Não se deve subestimar a importância que astrologia tinha na antigüidade, muito mais ainda num contexto místico / religioso.

            Saudações,
            Sergio

  2. Leonardo says:

    Ou ainda, mostrando minha super-interpretação do adesivo da direita, ele também pode simplesmente querer dizer que a realidade atentamente contemplada só pode gerar a reação ao absurdo!

    Que adesivo mais rico, hahah.

    Abraços!

    • Leonardo,

      Pois é, se começamos a prestar atenção de verdade rapidamente fica claro como grande parte da estrutura da realidade em que navegamos cotidianamente é incoerente, arbitrária, mentirosa, revoltante, ou todos acima.

      Saudações,
      Sergio

  3. Carla Teixeira says:

    Quando você mostra ter ficado curioso com o fato de haver peixes em cima e mágica em baixo, por exemplo, acho que esquece a possibilidade de haver seres múltiplos, contraditórios etc. :-)
    Aproveito para felicitá-lo pelo texto anterior, muito bom mesmo. :-)

    • Oi Carla,

      Bem, nisso você tem total razão, certamente é possível acreditar em alguns tipo de mágica e não em outros. :-) Aliás, inclusive, eu diria que é comuníssimo.

      Às vezes estamos conversando com alguém e o sujeito está vociferando contra, sei lá, superstições e crendices, falando muito mal de quem acredita em simpatias ou pais de santo ou astrologia ou etc, e aí nós começamos a concordar, e então acabamos por dizer algo do tipo “pois é, tem também aqueles sujeitos que acham que a Terra é oca e no centro dela tem uma base alienígena” e então o sujeito olha para você e retruca algo na linha de “peraí, mas ISSO AÍ claramente é verdade”. Então de fato, é quase impossível, raríssimo mesmo encontrar alguém que não tenha alguma crença alucinada, mesmo que não seja exatamente mística. Eu sinto uma certa solidão nesse aspecto. :-) Quase a totalidade das pessoas tem algum tipo de crença desse tipo; conheço uma meia dúzia de exceções.

      Agora, se por um lado acreditar em duendes na maior parte das vezes tem poucas conseqüências práticas, infelizmente esse tipo de incoerência / inconsistência ocorre também em outras áreas menos desconectadas da realidade, como política. Por vezes estamos falando com alguém que se coloca como libertário, e o sujeito está vociferando, sei lá, contra as restrições impostas pelas teocracias muçulmanas às liberdades pessoais, ou contra o totalitarismo comunista na China, e começamos a concordar e a nos identificarmos… até o ponto em que o sujeito começa a falar que concorda que tem mesmo é que proibir as pessoas de usarem burca na França, tem mesmo é que proibir a construção de novos minaretes na Suíça, tem mesmo é que proibir, censurar, apreender livros iconoclastas, revisionistas ou com conteúdo “revolucionário”, e assim por diante. Então o sujeito se coloca na mesma situação de quem ao mesmo tempo prega na traseira de seu carro um peixe com pernas e um adesivo dizendo “eu acredito em mágica”. É raro, raríssimo encontrar pessoas que consigam criticar em si mesmas precisamente os mesmos comportamentos contra os quais ferozmente vociferam em grupos com os quais não simpatizam.

      Beijos,
      Sergio

  4. Daniel says:

    Ao ver os adesivos me veio em mente a figura do
    Penn Jillette, do programa de tv Penn & Teller: Bullshit!, que é mágico, libertário e ateu.

    • Oi Daniel,

      Pois é, mas precisamente por ser mágico ele *não* acredita em mágica. :-)

      A não ser, claro, mais uma vez, que seja uma afirmação que não é para ser levada literalmente, e sim metaforicamente.

      Saudações,
      Sergio

  5. “a desnecessidade de uma palavra para se referir a um certo conceito é provavelmente indicativa da (falta de) importância do conceito numa certa cultura”

    Acho essa reflexão particularmente interessante. É por isso que no Brasil temos tantos indicativos afetivos quanto a um(a) parceiro(a): meu amor, meu bem, meu docinho, minha linda, gata, bebê, môr, gatinha… e por aí vai. É por isso também que na Escandinávia há muitos nomes para o nosso “branco”, e na Alemanha há muitos termos que querem dizer “doença” ou até mesmo “epilepsia”. E aqui no Brasil, herança dos escravos, passado colonial, há tantas palavras para chicote: chibata, açoite, habena… e por aí vai.

    Acredito que as palavras que existem numa língua e não em outra possibilitam e fazem mesmo com que numa língua o campo de reflexão e percepção sobre determinado assunto seja mais largo do que em outras.

    • Oi Léo,

      Interessante você trazer essa discussão à tona exatamente agora, pois esta semana mesmo por coincidência eu tive uma conversa sobre esse assunto quando me perguntaram o que exatamente significaria “gostosa” em português. :-) A conversa era em inlgês, e eu não consegui pensar em nenhuma palavra que transmitisse a idéia certa. Me perguntaram se seria “pretty” ou “beautiful” ou “attractive” mas não é exatamente nenhuma dessas coisas. Então eu tive que explicar várias coisas sobre a cultura brasileira para o termo fazer mais sentido. E aí claro acabou que mais exemplos foram surgindo, entre eles o classiquissimamente intraduzível “saudade”, mas também outros cuja dificuldade de mapear diz *muito* sobre a cultura americana, como “namoro”. A palavra “namoro” muito não corresponde exatamente ao que os americanos chamam de “dating”, que mais parece uma entrevista de emprego com um ano de duração.

      Agora, se formos olhar para esse fenômeno dando mais alguns passos para trás, de fato existe aqui uma reflexão fundamental a ser feita sobre o quanto uma restrição de vocabulário limita nossas possibilidade cognitivas. As palavras muito não são instrumentos apenas de comunicação, mas blocos para construção das idéias mesmas; são digamos “sub-rotinas” que chamamos quando necessárias para que não seja necessário re-explicar um conceito do zero (idéias exploradas extensamente por exemplo por Vygotsky). E como tal, se prestam também à mais deslavada manipulação, como magistralmente imaginado no canônico exemplo da novilíngua de George Orwell…

      Abraços,
      Sergio

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