Dale Carnegie foi um dos precursores do gênero atual de livros de auto-ajuda e similares. Como vários autores desse tipo, uma grande parte de seu impacto e de sua influência se derivou de sua popularidade em meios corporativos, nos quais gerenciar e extrair algo convincentemente parecido com “resultados” de pessoas absurdamente incompetentes e obtusas e/ou induzir e manipular todo tipo de pessoas a agirem contra sua felicidade pessoal, contra sua consciência e contra seus interesses é uma questão sempre presente (a isso usualmente se chama “liderança”).
Seu livro mais popular, um grande best-seller publicado em 1937 e vendido até hoje, se chama Como Fazer Amigos e Influenciar as Pessoas.
No primeiro capítulo do livro, ele diz logo de saída algo nas seguintes linhas :
Se você for tirar apenas uma lição deste livro, apenas uma única, e for se lembrar de apenas uma recomendação prática para empregar no seu trato cotidiano com os outros e que maior impacto terá em auxiliá-lo a fazer amigos e influenciar as pessoas, é esta : NUNCA CRITIQUE NINGUÉM. Não interessa se você estiver coberto de razão, não interessa se você estiver numa posição de autoridade, não interessa se você souber ensinar à pessoa criticada como fazer o certo, não interessa se você puder consertar o problema (conserte sem criticar ninguém, ou não faça nada), não interessa se você tiver a solução para todos os problemas do mundo e os meios para implementá-la e souber exatamente que são os culpados e responsáveis. Nada disso interessa. Se você quiser fazer amigos e influenciar as pessoas, nunca critique ninguém. Nunca condene, nunca reclame, e nunca, nunca, nunca critique ninguém, por nenhum motivo, em nenhuma circunstância. [Talvez a essa altura o leitor que me conhece esteja se peguntando : Sergio, tem certeza de que você leu este livro? :-) ]
Existe toda uma coleção de motivos para ele dar esse conselho, e sem querer simplesmente atirar no mensageiro e descartar a relevância do que está sendo dito, eu diria que o que mais profundamente me irrita nesse conselho não é Dale Carnegie tê-lo enunciado, e sim o fato de que do ponto de vista estritamente pragmático existem excelentes motivos para ele dar esse conselho. Note-se, dizer que Maquiavel descreve estratégias moralmente questionabilíssimas para gerir um estado não é em si argumento para dizer que elas não funcionem (no sentido de atingir os objetivos propostos). Então se o conselho de Dale Carnegie causa extrema repulsa (e deveria, a meu ver) em pessoas com uma espinha dorsal moral (algo, admito, exageradamente raro), o problema não está exatamente com Dale Carnegie, porque ele não está delirando. O problema está com uma sociedade na qual existem fortíssimos motivos para isso ser oferecido como conselho.
Uma parte do problema é que a absoluta maioria das pessoas, apesar de todos os seus patéticos esforços para parecerem e convencerem como socialmente relevantes, é na verdade portadora de egos feitos de isopor pintado e chafurdam na mais infantil fragilidade emocional. Então se você as critica, ou aponta seus erros, imediatamente se desestruturam e têm reações aleatórias, entre as quais comumente e previsivelmente estarão atacá-lo usando recursos ao seu dispor. Então evidentemente já daí não é do seu interesse criticar ninguém.
Adicionalmente, do ponto de vista intelectual, a absoluta maioria das pessoas também navega na mais obscura confusão mental, e não tem qualquer critério minimamente coerente de verdade ou necessidade lógica. Nesse paradigma, qualquer um afirmar qualquer coisa é igualmente válido, e opiniões refletem apenas ideologias, sentimentos, preconceitos ou interesses e nada mais. Uma boa parte da humanidade efetivamente toma decisões dentro desse paradigma. Então evidentemente se você critica alguém, isso será percebido não como uma possível observação de um fato, os quais afinal de contas não existem, e sim como um ataque pessoal, movido por intenções desconhecidas mas especulativamente perversas.
Num nível um pouco mais sofisticado, existe adicionalmente a questão de que do ponto de vista moral a maioria absoluta das pessoas simplesmente nem sequer está lá. Ou melhor, para ser mais preciso – do ponto de vista ético, a maioria absoluta das pessoas nem sequer está lá. Do ponto de vista moral está lá até demais – para a quase totalidade das pessoas, importa imensamente o que os outros pensam, inclusive importa infinitamente mais – diria eu quase sempre exclusivamente – o que os outros vão pensar, e só isso. Já o que de fato é “certo” ou “errado” é menos do que irrelevante; não é sequer considerado como uma categoria. Entre os mais modernosos, pruridos de consciência chegam a ser explicitamente tratados como uma deficiência a ser expurgada em nome de mais perfeitamente verem atendidos seus interesses “práticos”.
Finalmente, existe um aspecto mais insidioso (bem, não sei se mais insidioso – certamente é particularmente decepcionante para mim) disso tudo que é o seguinte. Existem pessoas que olham pra isso tudo e com variável grau de intensidade são capazes de perceber que é o que está acontecendo, e sentem visceralmente que isso não é bom. O que elas fazem então, quase universalmente? Bem, decidem que pensar no assunto é doloroso demais e buscam polianicamente a todo custo não pensar nisso. Note, não é que busquem não se desanimar com isso, ou ter uma atitude construtiva diante disso. Buscam literalmente não pensar nisso.
E para isso, claro, não faltam argumentos para se auto-enganar : Não vai adiantar nada. Nada pode ser feito. Deixe de ser chato, o que você está tentando provar. Para com isso. Não seja intolerante. A vida é assim mesmo. Etc, etc. Em outras palavras VAMOS TODOS COMBINAR NÃO PENSAR NO ASSUNTO. Vamos todos fingir que habitamos num mundo encantado diferente do real. Ninguém critica ninguém e ufa, todos podemos confortavelmente seguir razoavelmente em paz não fazendo nada sobre o que sabemos que está errado.
Só que a vida NÃO é “assim mesmo”. A vida é o que nós escolhemos fazer dela. Eu diria que a enorme, gigantesca pressão no sentido de “deixa disso” é em grande parte motivada não apenas pela pretensa defesa da “tolerância” ou “humildade”, mas sim (sombriamente) pelo muito menos nobre motivo de que quem é capaz de ver que tem tantas coisas erradas com o mundo se reconforta ENORMEMENTE no raciocínio de que nada pode ser feito sobre o assunto. E se nada pode ser feito, é aceitável respirar aliviado em sua complacência. Sendo esse o contexto quase universalmente vigente, não é surpreendente que quando alguém se mete a dizer que o imperador está nu, ou pior ainda, a DE FATO tomar uma atitude, isso seja profundamente incômodo, porque desmonta o argumento de que seja impossível / irreal / ineficaz fazer alguma coisa. E se torna ainda mais importante e urgente qualificar o imprudente desviante que se recusa a aderir ao tácito acordo de “vamos combinar que ninguém vai fazer nada e todos dormem tranqüilos” como ingênuo / delirante / maluco / impostor.
Sim, criticar os outros nem sempre é do nosso “interesse”. Aliás, muito freqüentemente não é. O meu ponto é que NEM SEMPRE FAZER O QUE É DO SEU “INTERESSE” É A COISA CERTA.
Alguns dos maiores líderes e maiores inspirações que temos ao longo da história da humanidade o foram justamente por serem grandes, enormes críticos, e foram considerados heróicos justamente por terem tido a coragem de continuar criticando diante de ameaças, e hostilidade, e de ondas maremóticas de “deixa disso”, e desconsiderando o que seria num escopo mais míope e egocêntrico “do seu interesse”. E grande parte das vezes eles pagaram por isso um preço enorme e se tornaram mártires no sentido mais literal da palavra de que terminaram sendo concretamente assassinados. São então retroativamente louvados e endeusados e elevados a irreal status sobre-humano, talvez em grande parte porque isso ajuda a coletividade a se libertar da responsabilidade de tomar ela mesmo uma atitude. Afinal de contas, você não é o Gandhi, né? E esse cara aí reclamando, por acaso acha que é? Como se Gandhi tivesse sido contratado para ser herói, como se ele tivesse ficado sentado esperando por instruções ou aprovação dos outros. Como se ele não fosse antes de tudo um ser humano imperfeito que se auto-escolheu para ser chatíssimo e reclamão e não se calar diante do que percebia como errado.
Gostaria de terminar dizendo – inclusive tendo em mente este último exemplo – que por termos opiniões forte não precisamos nos tornar fanáticos e querer mandar todo mundo para a fogueira, para a cadeia ou para o inferno, nem eu – que fique claríssimo – estou defendendo isso. Mas não ter opinião sobre nada e dizer que tudo é relativo e eu não me comprometo com qualquer julgamento é simplesmente covarde. É um grande, enorme alívio conversar com quem é capaz de assumir posições claras e firmes quando lhe parecem justificadas, e que tenha a decência de se indignar com injustiças e perfídias quando as encontram, ao invés de cinicamente exclamar “ah, é assim mesmo”, ou convenientemente desresponder “quem sou eu para falar qualquer coisa” ou alienadamente conceder “talvez isso seja revolvante, mas essa conclusão é muito desagradável, então eu escolho enfiar os dedos nos ouvidos e gritar LA LA LA LA”.
Pena que tais pessoas sejam tão raras.
Excelente texto! Quando emerge um sentimento igualitário tal na sociedade que a ampla maioria dos indivíduos começa a achar absurdo e injusto que pessoas se elevem por sua estatura moral ou intelectual, o comportamento prático generalizado só pode ser mesmo a covardia, em suas duas faces: a omissão e a agressão pura e simples contra quem sai dos trilhos.
Abraços,
Gonçalves
Oi Gonçalves,
Essa questão do “sentimento igualitário” é mesmo insidiosa, e se insinua das formas mais sutis. A revolucionária e positiva noção de que a todos seres humanos devem ser garantidas certas proteções e prerrogativas fundamentas foi deturpada e violentada em significar que todo mundo é exatamente igual – um sentimento que é absolutamente reconfortante para os medíocres e pequenos de alma que não conseguem suportar sua própria infantilidade de caráter mas não estão dispostos nem inclinados a fazer qualquer esforço para superá-la.
Buscar a excelência é então tomado por esses como uma afronta pessoal – quem você pensa que é para achar que consegue ou sequer está autorizado a tentar fazer melhor que os outros? Ideologias superficialmente completamente disparatadas insistem nesse mesmo tema fundamental. Ninguém é melhor que ninguém, somos todos pecadores, somos todos um lixo, etc.
E nestes tempos gotejantes de cinismo, a maioria das pessoas, acostumada e adestrada a encenar engajadamente seu papel nesta imensa farsa, nem sequer acredita quando você vem dizer que está sendo idealista. Não, não. Claro que não. Isso obviamente não pode ser o caso. Tem que ser algo diferente. Arrogância, maluquice, manipulação. Algo. Projetam nos outros a sua própria falta de autenticidade. HA, eu sei o que eu estaria pensando se estivesse dizendo isso que você está dizendo! Você não me engana.” Triste, muito triste.
Saudações,
Sergio
Não critique, não julgue e, de brinde, tampouco tenha auto-crítica ou qualquer sentimento de culpa. Eis o mantra dos nossos dias. As categorias “certo” e “errado”, “verdadeiro” ou “falso” parecem ter sido subtituidas definitivamente por “funciona” ou “não funciona”.Não conheço esse livro, mas não é difícil advinhar que ele também aconselha a só falar sobre amenidades, evitando assuntos profundos ou tristes. Vivemos agora sob a ditadura do alto astral.
O negócio é andar na contramão disso tudo e torcer para encontrar outras pessoas seguindo a mesma direção.
beijos,
Ana
Oi Ana,
Pois é, a combinação geral é de que ninguém critica ninguém e assim todos podem ser deixados em paz para serem uns totais patifes sem ninguém ficar enchendo o saco.
E sim, bem observado – absolutamente crucial só falar sobre amenidades e platitudes, evitando a todo custo assuntos profundos ou tristes. Todos têm que fingir que tudo está perfeito e maravilhoso. Aliás, observo que nos EUA isso de manter as aparências é particularmente levado às raias da insanidade.
Beijos,
Sergio
Não está exagerando um pouquinho, não? Afinal de contas, não foi o meio corporativo que inventou as “pessoas absurdamente incompetentes e obtusas”, ele só usa a matéria-prima que nós, a Sociedade, lhe damos. Ainda bem que existem meios de “extrair algo convincentemente parecido com ‘resultados’ ” dessas pessoas; sem isso, uma complexa sociedade industrial seria simplesmente impossível. Também acho exagerado dizer que o que usualmente se chama de liderança consiste em “induzir e manipular todo tipo de pessoas a agirem contra sua felicidade pessoal, contra sua consciência e contra seus interesses”. É uma visão caricatural de nossa sociedade e dos meios que ela usa para satisfazer a suas necessidades materiais.
Caro Augusto,
Note, não é que eu ache que o meio corporativo seja assim tão desproporcionalmente pior do que a sociedade ao redor. Eu não acho realmente que ele seja. Não que o que eu apontei sobre o mundo corporativo seja falso, mas sim que fora dele estão as mesmas pessoas absurdamente incompetentes e obtusas, etc. Eu poderia fazer críticas igualmente contundentes às outras forma como as pessoas se organizam, como as famílias, o meio acadêmico, etc. O problema mesmo não está com o sistema, e sim com as pessoas. Isso colocado, no ambiente corporativo algumas facetas da horribilidade humana têm oportunidade de se manifestar em toda a sua glória, enquanto que numa família ou numa universidade são outras.
Sobre dizer que uma complexa sociedade industrial seria impossível se a felicidade das pessoas fosse seriamente levada em consideração, eu não acho isso nada claro. O problema mesmo é que as nações, grupos e sociedade estão em competição uns com os outros, então quem é que pode se dar ao luxo de organizar a sociedade de forma a proteger seriamente o bem estar individual? Existe um ponto além do qual a pressão para produzir o máximo possível inevitavelmente conflita seriamente com a preservação do bem-estar individual.
Queria eu que o que eu descrevi fosse uma caricatura.
Saudações,
Sergio
“… manipular todo tipo de pessoas a agirem contra sua felicidade pessoal, contra sua consciência e contra seus interesses é uma questão sempre presente (a isso usualmente se chama ‘liderança’).”
Agir contra a consciência, eu entendo. Não creio que seja uma constante no ambiente corporativo, mas provavelmente acontece mesmo. Quanto a agir contra seus interesses e sua felicidade pessoal, quando isso acontece?
Quando acontece agir contra seus interesses e sua felicidade pessoal? Ora, constantemente. Muito mais freqüentemente do que não, o ambiente corporativo vai na direção do maravilhoso mundo de Dilbert. O conforto e bem estar das pessoas é em geral rigorosamente ignorado, e delas se espera que não tenham vida pessoal, personalidade, individualidade ou consciência enquanto seguem acriticamente ordens absurdas para perseguir objetivos bizarros ou simplesmente malévolos. Não é apenas que se espere delas que “trabalhem muito”. É muito, muito, muito pior do que isso. Mas o Scott Adams levanta todas as críticas que eu tenho em mente muito mais eloqüentemente do que eu poderia aqui neste comentário.
Saudações,
Sergio
Tristemente verdade.
Já leu “The Peter Princple”? (http://www.amazon.com/Peter-Principle-Things-Always-Wrong/dp/B002QGSWGA/ref=sr_1_1?ie=UTF8&s=books&qid=1274278637&sr=8-1)
Aliás, uma das grandes falácias que inventaram é que o ambiente corporativo é cheio de pessoas empreendedoras, dinâmicas e dispostas a correr riscos. Algumas empresas privadas que eu conheço são quase impossíveis de distinguir de empresas estatais.
Oi Claudio,
Sim li! De fato, altamente recomendado. :-) Para quem não sabe, o princípio colocado neste livro é de que em toda organização nas quais os cargos estão estruturados de forma hierárquica e as promoções ou contratações ocorrem por “mérito” existe a tendência de isso resultar em todos serem promovidos enquanto estão executando seu trabalho a contento e então pararem de ser promovidos, o que perversamente causa a longo prazo que todos os cargos sejam preenchidos por pessoas que não têm competência para exercê-lo (pois se tivesse, seria promovido, ou procuraria posição melhor). Em outras palavras cada um é promovido até o nível da sua incompetência. Este é o chamado “Princípio de Peter“.
Sim, é uma TOTAL falácia que o ambiente corporativo esteja cheio de pessoas “empreendedoras”. A maioria dos “empreendedores” é uma mistura de insanamente despreparado com paranoicamente convervador e míope em seus investimentos. Uma coisa acaba compensando parcialmente a outra e eles acabam correndo riscos enormes e/ou permitindo que inovações ocorram de forma quase sempre completamente involuntária. Mas o maior inimigo da inovação é o “empreendedor”, especialmente o bem sucedido. O maior inimigo disparado do livre mercado é o grande capitalista. Ele quer, clama, urge e chora continuamente por patentes e copyrights e trademarks e monopólios e subsídios e cotas.
A meu ver o principal motivo pelo qual a maioria ABSOLUTA das empresas não vai à falência em uma semana é porque seus clientes são tão pateticamente alienados, despreparados, passivos, obtusos e incompetentes quanto as empresas que os servem.
Saudações,
Sergio
“A meu ver o principal motivo pelo qual a maioria ABSOLUTA das empresas não vai à falência em uma semana é porque seus clientes são tão pateticamente alienados, despreparados, passivos, obtusos e incompetentes quanto as empresas que os servem.”
Exato: isso mantém a roda girando. E Scott Adams retrata esta comédia como ninguém.
Muito bom, Sérgio. Já estava ficando sem esperanças de encontrar alguém capaz de tocar na ferida do corrente mundo empresarial. Não seria um exagero imperdoável indicar tanto a ideologia do materialismo dialético quanto o novo discurso corporativo como dois dos grandes inimigos da individualidade já engendrados pelo ocidente. O pior disso tudo é que mesmo as pessoas mais talentosas são forçadas à carreira do funcionarismo, a qual, se não promove o desenvolvimento das virtudes mais sofisticadas, ao menos concede a essas pessoas um pouco mais de liberdade e, sobretudo, de tempo. Os jovens ´´aprendizes´´ encarnam o sentido máximo daquilo que Max Webber, na Ética Protestante, chama de ´´ascetismo intramundano´´, ou seja, não trata-se mais do exílio do mundo dentro de um mosteiro ou de um sistema hermético de normas religiosas, mas estamos falando agora de um exílio do mundo dentro do próprio mundo. Enfim, haja ´´resiliência´´…..
Pois é! Ambos reduzem o homem à sua dimensão econômica e no processo ficam parecidíssimos.
Saudações,
Sergio