Uma das respostas mais convenientes para a omissão diante do mal, geralmente pronunciada com incontida satisfação com a própria argúcia, é : NÃO É MINHA CULPA, NÃO É MEU PROBLEMA.
Aqueles que acham este raciocínio uma fortaleza de lógica e um respeitabilíssimo princípio moral parecem (seja genuína ou hipocritamente) não perceber quão ridiculamente mal disfarçada esta é, despida de sofismas e maquiagens, simplesmente uma afirmação de que NÃO ME AFETA, NÃO É MEU PROBLEMA.
Por esse raciocínio, se você está passeando sozinho na praia e então observa um bebê abandonado na areia, você pode perfeitamente pensar “eu não causei isso, eu não tenho nada a ver com isso, vou continuar caminhando, não é minha culpa, não é meu problema”. Se você trabalha varrendo o chão para uma companhia que produz antibióticos e descobre por acaso que por um erro de administração um lote inteiro estragou mas eles vão vendê-lo assim mesmo para não perder milhões, você pode perfeitamente pensar “eu não causei isso, eu não tenho nada a ver com isso, não é minha culpa, não é meu problema”. Se você vê está dirigindo numa estrada à noite, observa um atropelamento com fuga do motorista deixando uma vítima agonizante no asfalto, você pode perfeitamente pensar “eu não causei isso, eu não tenho nada a ver com isso, não quero me envolver com isso, vou continuar dirigindo, nao é minha culpa, não é meu problema”. Se você trabalha numa concessionária servindo café e nota que está sendo apresentado a um cliente um orçamento de serviços para seu carro que são flagrantemente desnecessários e desonestamente superfaturados para substituir peças que estão funcionando perfeitamente além de qualquer dúvida, você pode perfeitamente pensar “eu não causei isso, eu não tenho nada a ver com isso, não é minha culpa, não é meu problema”.
Ou você pode escolher fazer alguma coisa sobre o assunto.
Percebam, escolher não fazer nada é também uma escolha, é também uma ação, é também uma iniciativa com significado ético. Mesmo que você possa argumentar que não foi o causador original de um certo resultado, e que talvez nem sequer o desejasse, isentar-se diante da injustiça, da maldade, do que você sabe que está errado e incorreto, calar-se diante da mentira, omitir-se diante da opressão, assumir calado seu papel no que você sabe que é uma farsa e uma impostura, tudo isso é sim transbordante e pleno de implicações éticas. E não fazer nada certamente afeta o outro, especialmente quando você está numa posição privilegiada para mudar o curso dos eventos. Então sim, mesmo que não seja sua “culpa”, suas ações – ou omissões – continuam tendo conseqüências e significado.
Muitas vezes somos confrontados com situações que não criamos mas sobre as quais no entanto temos poder de agir, de interferir. Não interessa de quem é a “culpa” de aquela situação existir, ela está ali e requer que você faça uma escolha sobre como vai reagir diante dela. Se você acha realmente que não ter causado a situação o isenta de qualquer responsabilidade ética, então você perdeu completamente o ponto e o espírito do que significa ética. Se sua única preocupação é “Será que alguém poderá vir a me culpar por isso?”, então transparentemente você está preocupado apenas com você mesmo. Ética não é levar em conta que se você fizer algo errado isso poderá ter conseqüências para você. Até um psicopata convicto se preocupa com isso. Ética é se preocupar com como o resultado das suas ações e escolhas vão afetar o OUTRO.
Claro, você pode aí observar : tá, ok, o fato de não ser minha “culpa” não resolve automaticamente a questão. Mas seja por ação direta ou por omissão, dirá talvez você, continua não sendo “seu problema”, no sentido em que você não aceita como responsabilidade sua zelar pelo bem estar dos outros. Você pode honestamente perguntar : por que eu deveria me preocupar com a consequência das minhas ações sobre os outros, seja ou não por omissão? Por que eu deveria me preocupar se ao buscar ativamente um benefício para mim mesmo e ao cuidar dos meus próprios interesses causo diretamente a desgraça do outro se isso não me afetar diretamente e se não houver pragmaticamente a expectativa de quaisquer represálias ou conseqüências para mim? Chegamos então ao verdadeiro fundamento da questão, que é que para alguns (muitos, possivelmente a maioria) o bem estar dos outros não é realmente seu “problema”. Mas note, esta é justamente a questão central da ética. O que você está realmente perguntando, nesse caso, é : por que deveria eu me importar com os outros, ou com agir eticamente, ou com o fato de que minhas escolhas afetam a felicidade dos seres humanos à minha volta? Por que o bem estar dos outros seria “meu problema”?
Colocada desse jeito, pelo menos é uma questão um pouco mais honesta. E eu não tenho nenhuma resposta irresistível para ela. Eu não tenho absolutamente nenhum argumento filosófico, lógico, científico ou de nenhuma outra ordem que realmente demonstre que a única posição razoável, aceitável, coerente ou justificável seja a de considerar sim o bem estar dos outros. Eu gostaria de ter, e muitas grandes mentes ao longo da história dedicaram imenso esforço para articular um motivo, mas a verdade mesmo é que não há. É essencialmente uma escolha, uma escolha com profundas implicações sobre quem somos e como viveremos nossas vidas, mas ainda assim basicamente uma escolha. Eu poderia dizer que você será infeliz com essa escolha, ou que será eventualmente punido, ou que não está sendo fiel ao seu coração, ou dar um monte de outros argumentos que, bem, refletem muito mais o meu sistema de valores do que a estrutura da realidade. Em geral, nenhuma dessas conseqüências é necessariamente verdade, especialmente se você conhecer a si mesmo e agir de forma minimamente inteligente. Ou seja, é perfeitamente possível e realista ser um patife desprezível e viver uma vida muito feliz. Inclusive, se isso não fosse verdade, não haveria qualquer dilema ou escolha a fazer.
Claro, existem milhões de motivos para escolher não aceitar essa responsabilidade, mesmo quando você a percebe como sendo de alguma forma justificada. Fazer a coisa certa pode ser custoso, inconveniente, desagradável. Agora, vejam – fazer a coisa certa quando ela coincide com os seus interesses é fácil. Difícil é fazê-lo quando ela os prejudica. Escolher fazer a coisa que você percebe como certa em casos nos quais isso vai contra os seus interesses é penoso e complexo, mas isso sim é agir eticamente.
Note, não estou dizendo aqui que devemos ser todos mártires no sentido de colocar o valor do bem estar dos outros acima do nosso e nos autodestrurimos no altar da “etica”. Eu tenho uma prerrogativa tão legítima de valorizar meu próprio bem estar quanto os outros, e eu acho muito natural e correto que em havendo conflito direto de interesses, eu valorize meu próprio bem estar mais do que o de o de um sujeito aleatório. Mas existe uma diferença enorme, gigantesca entre eu TAMBÉM considerar o meu bem estar como importante e eu considerar APENAS o meu bem estar como importante. É preciso buscar um equilíbrio aí. Mas se ao invés disso você considera o seu bem estar tão mais acachapantemente valioso do que o de todos mais que um pequeno e fútil benefício para si mesmo valha a extrema miséria e infelicidade alheia e você está perfeitamente feliz e satisfeito com isso, então meus parabéns, você é um sociopata.
Sim, você tem nas suas mãos a escolha de ser ou não o protetor de seu irmão e não apenas de si mesmo. Você é perfeitamente livre para optar. E isso só faz com que por mais forte razão ainda escolher não o ser, não enxergar como imperativa a responsabilidade e o dever de o ser, que isso seja uma posição estalante de significado.
“Mas se ao invés disso você considera o seu bem estar tão mais acachapantemente valioso do que o de todos mais que um pequeno e fútil benefício para si mesmo valha a extrema miséria e infelicidade alheia e você está perfeitamente feliz e satisfeito com isso, então meus parabéns, você é um sociopata.”
Então, por definição, o sociopata é o único que entendeu e consegue viver com a verdadeira natureza da nossa existência que é a total falta de sentido na vida. Ele consegue anular os efeitos que os sentimentos causam nas nossas decisões e maximizar a SUA felicidade. Se considerarmos que um sistema ético é arbitrário, o sociopata é, além de tudo, um campeão da liberdade individual pois não se submete a um sistema de valores imposto de cima para baixo.
Oi Claudio,
Vamos por partes. Em primeiro lugar, eu gostaria de colocar que possivelmente “sociopata” não é o termo que descreve mais precisamente o que eu queria colocar, pois uma pessoa inteligente e que pense nos seus interesses perceberá que se não levar (ou fingir convincentemente levar) os interesses dos outros em conta, rapidamente começará a sofrer certos tipos de conseqüências e reações da sociedade. Então embora de fato um boa parte da humanidade incorra na sociopatia, provavelmente o termo mais preciso para o que eu queria colocar é mesmo psicopata.
Isso posto, de onde você tirou que “a verdadeira natureza da nossa existência é a total falta de sentido da vida”? Embora isso seja um aspecto inegável (pelo menos para mim) da nossa existência, absolutamente não a esgota. Um outro aspecto que igualmente faz parte da natureza da nossa existência é que nós não SENTIMOS como se nossa vida não tivesse sentido, ou pelo menos em geral não nos conformamos com isso. Cada pessoa lida com essa tensão de um jeito diferente, freqüentemente se auto-iludindo em inventar historinhas mitológicas delirantes para explicar por que é que, contra todas as evidências intelectuais e racionais, a vida faria, sim, “sentido”. Só que assim como eu não preciso de um motivo lógico para me apaixonar por alguém ou de uma explicacão racional para querer ir ao cinema ver um filme hoje, eu não necessito de um motivo lógico ou racional para não querer sair matando pessoas na rua. Esses motivos até existem, mas supondo que eles fossem retirados, eu continuaria fortemente não querendo sair por aí matando pessoas na rua. Por que isso seria mais ou menos “verdadeiro” do que qualquer outro aspecto? A questão é precisamente essa : não existe “verdadeira” natureza da nossa existência quanto entendida no nível filosófico e transcendente. Existe o que nós sentimos sobre o assunto, que além de ser bastante arbitrário, é muitas vezes não só inconstante e mutável como imprevisível e insondável. Mas é o que há, e é isso que em última instância determina o caráter de uma pessoa, associado às decisões que ela escolhe tomar diante disso. Existe uma diferença muito grande entre perceber que não existe um sentido para nossas vidas que nos seja entregue numa bandeja versus concluir que então eu não me importo se minha vida faz sentido. Eu me importo, e precisamente porque eu me importo e não há nenhum sentido predeterminado, cabe e mim a tarefa e a responsabilidade de construir um sentido. Toda a beleza, justiça, verdade e bondade no mundo vêm dos nossos atos deliberados em produzi-las.
Sobre um psicopata “ter conseguido eliminar os efeitos que os sentimentos causam nas nossas decisões e maximixar a SUA felicidade”, essa frase é profundamente contraditória. A felicidade é tambem um sentimento. Sentimentos de egoísmo são também sentimentos. Querer se autopreservar é também um sentimento. Querer fazer qualquer coisa com sua própria vida é um sentimento. O que você quis talvez dizer foi que o psicopata anulou (ou nunca teve) os efeitos que os sentimentos de fraternidade e consideração pelos OUTROS causam nas nossas decisões. Ou que eliminou todos os sentimentos que não contribuam para a sua felicidade. Mas aí a frase vai de oxímoro para pleonasmo e estamos simplesmente reafirmando sua condição de psicopata. Ele não se tornou com isso um ser sumamente racional ou “realista”, apenas um psicopata.
Finalmente, o sociopata absolutamente NÃO é um campeão da liberdade individual, não é um defensor do princípio geral da liberdade indiviual para todos. Muitos sociopatas certamente se enxergam como tal, e o sistema de valores americano tem pendido absurdamente nessa direção. Porém, o que um sociopata é mesmo é campeão implacável e sem compromissos unicamente da SUA própria liberdade individual, dane-se a dos outros. Algo que, adicionalmente (no meu julgamento) além de desprezível e lamentável, me parece que muito evidentemente leva a uma situação extremamente subótima em termos de felicidade geral.
Saudações,
Sergio
Quanto questionado pelo Eterno, sobre onde estava seu irmão, Caim respondeu “Sou eu, por acaso, guardador do meu irmão?”
Mas ele havia acabado de assassina-lo. Considerando que ele disse isso a Deus, suponho que a resposta pareceu-lhe sensata e aceitável. Uma narrativa carregada de simbolismo. Quando a inveja, o rancor, o auto-vitimismo, a auto-indulgência e a violência vão invadindo o coração dos homens, eles passam a acreditar que o bem dos outros não é seu problema.
Pois é, precisamento o meu ponto ao usar essa citação neste texto aqui.
Seu blog é muito bom, reflexo de uma boa mente. Por favor não pare de escrever pois aprendo bastante o lendo.
Sempre bom saber que há leitores encontrando proveito no que escrevo.
Saudações,
Sergio
Ok, mas… aonde desenhamos a linha? Qual a diferença REAL entre ver um bebê abandonado na rua e saber que existem milhares de bebês sofrendo na África? Se temos a obrigação de salvar o bebê da rua, não temos também a obrigação de salvar os da África?
Pessoalmente, não conheço ninguém que ache que “um pequeno e fútil benefício para si mesmo valha a extrema miséria e infelicidade alheia”. Esse argumento me parece um “straw man” para incutir um sentimento de culpa nas pessoas – a verdade é que as questões em que temos que pesar o nosso benefício contra o dos outros são, em sua grande maioria, bem mais complexas. Como o caso da África que citei acima.
E vemos, na verdade, que a imensa maioria das pessoas é sim honrada e digna – basta ver a imensa quantidade de doações que qualquer tragédia faz acontecer.
Também não entendi o que você quis dizer com “uma posição estalante de significado”. Você admite que não existe posição “certa” ou “errada”, logo como atribuir um significado “estalante”?
Não existe nenhum critério “científico” ou “racional” para onde vamos desenhar a linha. É uma escolha completamente pessoal e arbitrária.
Sobre a diferença entre um bebê na África e o bebê abandonado na rua, é prerrogativa de cada um determinar o quanto se sente moralmente obrigado a salvar os bebês africanos, mas existe sim uma diferença objetiva e concreta entre as duas situações : o bebê que você encontrou abandonado está ali na sua frente e você especificamente – não outro ser humano que não está ali nem encontrou bebê algum – tem o poder imediato e palpável de tomar providências altamente relevantes sobre o assunto. Por força das circunstâncias você está numa posiçao especial e privilegiada para fazer ou não fazer alguma coisa. Começar a falar sobre bebês africanos num caso desses é enrolação. Argumentar que “ah, eu não fiz nada sobre o bebê que achei na rua mas dá tudo no mesmo porque afinal de contas você também não está fazendo nada sobre os bebês africanos” é completamente ridículo.
Aliás, é incrível como as pessoas que vêm falar em “straw man” com freqüência ironicamente surreal concomitantemente levantam algum tipo de straw man completamente absurdo. Esse negócio de bebês africanos, isso sim é um straw man total. Eu estou falando de salvar um bebê que você encontrou pessoalmente no meio da rua e que seria suficiente retirar da rua e colocar em mãos minimamente seguras e você vem comparar isso com salvar bebês em outro continente de ameaças desconhecidas usando meios desconhecidos? Esse é precisamente o problema com grande parte das pessoas que vêm falar de “ética” em termos abstratos. Eu estou falando de ajudar e fazer bem diretamente a pessoas reais e concretas que de passam na sua vida, não de argumentar que “ah, mas eu ajudo a humanidade defendendo grandes idéias”.
Sobre a existência de pessoas dispostas a trocar um pequeno benefício para si mesmo pela desgraça alheia, eu não sei a qual realidade alternativa você está se referindo, mas isso não só não é raro como é comuníssimo. Existem hordas de pessoas com esse comportamento, afirmaria eu a maioria esmagadora. O que as freia em geral não é sua consciência e senso moral e sim a reação da sociedade.
E fazer doações em tragédias é fácil, é moleza, é quase ridículo, requer comprometimento pessoal que beira o zero. Pagar alguém para ir lá sujar as mãos é ótimo, não é? Difícil é efetivamente ajudar alguém. Difícil é tomar as decisões que você considera que seriam as corretas e certas e justas na sua vida profissional, pessoal e familiar. Difícil é fazer realmente bem às pessoas que de fato o rodeiam e que você, unicamente você, está em posição de ajudar.
Finalmente, gostaria de observar que dizer que eu “admito” que não existe objetivamente certo ou errado é tão forçado quanto dizer que eu “admito” que a Terra gira em torno do Sol ou que meia dúzia é igual a 6; isso para mim é um fato abundantamente óbvio e que ao contrário de enfraquecer meu argumento só o reforça : as escolhas éticas que cada pessoa faz expressam muitíssimo sobre sua personalidade, e isso se torna MAIS e, não menos significativo, dada a arbitrariedade de tais escolhas. Precisamente porque é tão fácil, tão conveniente, tão confortável dizer “oh, mas no final de contas não existe mesmo certo ou errado”, precisamente por esse motivo escolher não fazê-lo é uma posição profundamente, extremamente, superlativamente significativa. Precisamente porque o que temos mesmo em última análise é apenas a nossa consciência e os nossos sentimentos pessoais para ancorar qualquer julgamento ético, precisamente por isso ter a coragem, a dignidade, a persistência e a obstinação de fazê-lo, precisamento por isso as escolhas éticas que um ser humano efetivamente faz falam tão profundamente sobre o seu caráter e a sua personalidade.
Continuo achando que a maioria das pessoas ajuda aqueles que dependem única e exclusivamente delas. O “bicho pega” justamente nas situações em que as coisas não são tão claras e a responsabilidade é difusa (como na Africa).
Gostaria de um exemplo do que você considera “um pequeno benefício” para uma pessoa que causa “desgraça” para outras, porque sinceramente não acho que as escolhas que fazemos são tão “preto no branco” assim. Pelo contrário, acho que a maioria das pessoas abriria mão de um benefício pouco representativo se soubesse que uma multidão seria diretamente beneficiada.
Note que eu não discordo do fato que temos responsabilidade por agir nos casos em que nossa ação direta traz benefícios reais aos outros – meu ponto é que as escolhas com as quais nos deparamos *geralmente* não são dependentes de nossa ação direta, mas sim questões complexas onde agir ou deixar de agir não tem uma correlação direta com o caráter ou a personalidade das pessoas.
Também não concordo que fazer doações seja “ridículo.” Seria se não houvesse voluntários dispostos a, como você diz, “sujar as mãos.” Mas não me lembro de nenhuma tragédia onde tenha havido falta de voluntários. Os dois lados da equação são igualmente importantes.
Sobre as pessoas efetivamente “ajudarem” aqueles que dependem única e exclusivamente delas, veja, isso é parcialmente verdade, mas se desenrola basicamente como uma grande farsa. Existe aqui uma questão muito importante que é a seguinte. A pressão social tem uma importância absolutamente fundamental nesse processo todo. Se você simplesmente não dá de comer ao seu filho, você vai preso. Então existe uma pressão para que isso não ocorra, pelo menos não ostensivamente. Eu sustento que ocorreria muito, muito, MUITO mais se não houvesse intensa pressão social contrária. Agora mesmo com essa pressão, isso efetivamente ocorre em grande escala – absoluto abandono e descaso literalmente criminoso com relação o bem estar dos próprios filhos – mesmo com todos os mecanismo de repressão que há. Imagine se não houvesse.
No caso em que é socialmente aceitável o descaso, então, ele é generalizado. Eu não acho que seja realmente aceitável criar seu filho como um bicho de estimação, pagar alguém para dar comida para ele e deixá-lo na mão de uma empregada doméstica semiretardada, analfabeta e com a profundidade existencial de um saco de pipocas e então ir jogar tênis. No entanto é isso que a maior parte das famílias que podem pagar por uma babá fazem. Isso é uma violência em tantos níveis que eu não vou nem tentar listar, a começar pelo afetivo.
Sobre exemplos do que seja um pequeno benefício para si mesmo causando a desgraça absoluta de outros, ora, isso é onipresente e comuníssimo. Se você quer um específico, pessoas concretamente assassinadas com um tiro na cara porque se recusaram a dar sua carteira com 30 reais dentro abundam. Não desconte o quão significativa é a parcela da sociedade disposta a esse tipo de ato; não dá para dizer “oh, esses não contam”. Eu estou justamente sustentando que esses aí são a maioria. Só que desconsiderar os interesses dos outros de forma tão ostensiva e confrontacional não é uma boa ESTRATÉGIA, então as pessoas, apesar de em princípio não terem qualquer grande freio ético em causar a degraça alheia, tendem a pragmaticamente agir de forma a se acomodarem (ou fingirem farsescamente se acomodarem) às expectativas da sociedade. Comportamentos equivalentes a esse em outros níveis mais socialmente aceitáveis são comuníssimos, onipresentes, abundantes.
Abrir mão de um real ou mesmo cem, mil, dez mil reais em nome de “ajudar” uma multidão difusa e sem identidade é fácil, facílimo, confortável e cômodo. Note, não estou dizendo que fazer doações seja inútil ou irrelevante do ponto de vista prático, mas difícil mesmo é de fato ser honesto, correto e idealista ao exercer sua profissão, ao lidar com sua família, ao fazer negócios, ao lidar com pessoas REAIS sobre as quais suas ações terão um impacto DIRETO. Existe essa fantasia coletiva de que vamos pagar a alguém para se importar e aí não precisaremos nós mesmos efetivamente fazer nada. De que vamos consertar a sociedade mudando o sistema ao invés de mudando o nosso comportamento. De que vamos promover idéias lindas enquanto nós mesmos vamos agir em nossas relações pessoais e profissionais exatamente como todo mundo porque sabe como é, “sejamos realistas”, agir diferente não vai consertar nada, é remar contra a maré, etc. E observo que ser voluntário em uma “tragédia”, embora tenha mérito, é de certa forma similar a uma doação, é uma suspensão temporária muito bem demarcada das relações usuais, e não dá para construir uma sociedade com base nisso. Nós não vivemos nas exceções trágicas, nós vivemos é no dia-a-dia das decisões cotidianas.
E eu defendo que nossas escolhas cotidianas têm sim impacto direto e profundo na vida dos outros. Talvez não no destino do mundo, ou na fome na África, ou no derretimento da calota polar. Mas têm sim nas pessoas ao seu redor, e é para estas que você é mais imprescindivelmente insubstituível e relevante. Se você é um professor, um empresário, um médico, um advogado, um engenheiro, um pai, um filho, um amigo, um marido, em todos esses casos você toma constantemente decisões que impactam diretamente e profundamente a vida de várias pessoas ao seu redor, e que tipo de escolha você vai fazer tem sim significado ético e correlação direta com o seu caráter e a sua personalidade.
Saudações,
Sergio
“Eu não acho que seja realmente aceitável criar seu filho como um bicho de estimação, pagar alguém para dar comida para ele e deixá-lo na mão de uma empregada doméstica semiretardada, analfabeta e com a profundidade existencial de um saco de pipocas e então ir jogar tênis. No entanto é isso que a maior parte das famílias que podem pagar por uma babá fazem. Isso é uma violência em tantos níveis que eu não vou nem tentar listar, a começar pelo afetivo.”
No Brasil, onde pagar empregadas e babás é relativamente fácil, já podemos ver o fruto de toda uma geração que foi criada assim: um verdadeiro exército de sociopatas.
“Se você quer um específico, pessoas concretamente assassinadas com um tiro na cara porque se recusaram a dar sua carteira com 30 reais dentro abundam.”
Nem precisa radicalizar. Quantas pessoas não impõem às suas empregadas uma carga horária de trabalho desumana, privando-as do contato com os filhos e maridos? Isso é um clássico caso de “exploro porque posso.”
Excelente ensaio. O problema é que são poucas as pessoas que realmente seguem o ensinamento biblíco e evangélico de amar o próximo COMO A SI MESMO. E, aparentemente, a psicopatia atinge cerca de 4% da população mundial(segundo os psiquiatras), portanto uma parte pequena da humanidade.
Bem, eu não acho 4% pouco. Se formos tomar esses números como confiáveis, isso significa que uma em cada 25 pessoas que você encontrar será oficialmente, literalmente um psicopata de carteirinha. Não metaforicamente ou hiperbolicamente, mas genuinamente um psicopata com atestado psiquiátrico.
Isso significa por exemplo que em geral há pelo menos um psicopata completamente fora de controle em cada turma de escola, o que na minha experiência é absolutamente verdadeiro. E sendo a escola obrigatória para todos, e em sendo o caso de que os psicopatas raramente são expulsos, seus filhos são então forçados a conviver com psicopatas. Ah, mas então alguém pode dizer : aprender a lidar com psicopatas é uma habilidade importante de se desenvolver. Bem, talvez seja, assim como talvez aprender o que fazer quando atacado por assaltantes armados. Isso não significa que seja uma boa idéia forçar nossas crianças a lidarem com isso diariamente, especialmente num ambiente como o escolar em que a falta de lei impera absurdamente (experimente estapear alguém aleatório no meio da rua em sendo adulto).
Agora veja, esses 4% representam casos patológicos em que a psicopatia é ululantemente óbvia. Os psicopatas socialmente funcionais, por outro lado, são perfeitamente capazes de compreenderem que em grande partes das situações precisam ter ou aparentarem ter freios para seu comportamento ou sofrerão represálias. Se forem minimamente inteligentes e tiverem um mínimo de autocontrole, não deixarão sua psicopatia impedir que sejam bem sucedidos, muitas vezes muito bem sucedidos, sem serem genericamente percebidos ou diagnosticados como obviamente psicopatas. Isso não significa que tenham deixado de sê-lo. Claro, pessoas diferentes terão graus variados de psicopatia, mas no meu julgamento a esmagadora maioria das pessoas absolutamente não desvia um milímetro do seu caminho para pensar em ninguém mais quando isso de fato começa a ser inconveniente ou prejudicar os seus interesses. E se literalmente caminhar pelos corpos carbonizados dos outros for socialmente aceitável, agirão assim sem qualquer hesitação ou remorso. Seus freios morais são uma expressão de autointeresse diante da reação da sociedade, não de qualquer noção pessoal de ética sobre o que seja certo ou errado.
Então a meu ver os psicopatas socialmente funcionais representam muito, muito, muito mais do que esses 4%. Eles apenas pragmaticamente escolhem atuar de forma pseudo-civilizada porque isso melhor promove seus interesses na maior parte dos contextos. Mas quando é socialmente aceito ou até incentivado agir de forma psicopática, a maior parte das pessoas não apresenta qualquer hesitação em fazê-lo.
Finalmente, gostaria de observar que eu absolutamente não acho que devamos nos importar com os outros por causa da bíblia ou por causa do que qualquer autoridade disse, e sim com base no que nossa consciência e nossos sentimentos dizem. E além disso, não acho que seja razoável esperar que “amemos o próximo como a nós mesmos” quando se trata de um proximo genérico. Eu acho perfeitamente legítimo que eu me importe mais comigo mesmo do que com um sujeito aleatório no meio da rua. O que eu não acho razoável é desconsiderar completamente o bem estar do sujeito aleatório, considerar meus interesses tão mais importantes que os do sujeito aleatório não importem.
Saudações,
Sergio
“Eu não acho que seja realmente aceitável criar seu filho como um bicho de estimação, pagar alguém para dar comida para ele e deixá-lo na mão de uma empregada doméstica semiretardada, analfabeta e com a profundidade existencial de um saco de pipocas e então ir jogar tênis. No entanto é isso que a maior parte das famílias que podem pagar por uma babá fazem. Isso é uma violência em tantos níveis que eu não vou nem tentar listar, a começar pelo afetivo.”
Você tem toda razão, é um abandono afetivo sem proporções. E eu também gostaria de acrescentar que talvez venha daí a deterioração do senso estético que já ocorre na nossa geração, com as pessoas gostando de funk e pagode.
Claro, isso sem dúvida é uma das causas de que mesmo pessoas que tiveram acesso a “educação” supostamente de primeira qualidade sejam na verdade e de fato absolutamente ignorantes sobre os fatos mais toscamente básicos sobre virtualmente tudo, e tenham a sofisticação de um babuíno no meio da selva. O desenvolvimento afetivo, psicológico, intelectual, moral, estético e sob todos os outros aspectos de um ser humano é evidentemente afetado – determinado! – profundamente pelas pessoas com as quais ele convive enquanto cresce, e é um crime inacreditável abandoná-lo aos cuidados de criaturas indigentemente retardadas em todas essas áreas. Criaturas as quais, apresso-me em observar, não são substancialmente melhores numa “escola”, a qual adicionalmente ainda retira a liberdade – diria eu pune as iniciativas! – do sujeito em formação de explorar a realidade por si mesmo. É da família e dos pais em especial que existe alguma chance de vir algo melhor. Estes porém quase universalmente se eximem de exercer esse papel e criam seus filhos – literalmente, sem metáforas aqui! – como um bicho de estimação precisamente quando ele está na fase mais crucial do seu desenvolvimento, quando está sendo formada a espinha dorsal do que ele será pelo resto da vida.
Beijos,
Sergio
Sérgio,
leia por favor o livro de Ana Beatriz Silva(psiquiatra) intitulado “Mentes perigosas- o psicopata mora ao lado”. Nessa obra, a autora afirma que esse 4% que eu citei inclui os chamados “psicopatas sociais” ou “leves”, que não matam, mas não tem escrúpulos para conseguir o que quer. Na verdade, parece que menos de 1% dos psicopatas chega a matar alguém e só um entre 20 mi(não me lembro exatamente se a estatística era essa)l se torna assassino em série.
Saudações.
Meu argumento sobre um fração das pessoas muito maior do que a óbvia ser essencialmente constituída de psicopatas continua válido. A questão é que na maior parte das vezes dada a estrutura da sociedade não é do interesse do próprio sujeito matar ninguém; ele tem muito mais a perder do que a ganhar com isso. Surpreendente que esta frase possa soar, ele é psicopata, não maluco. Deixe-me ser mais específico que essa palavra é usada de várias formas :
Aliás, a psicopatia no sentido específico em que estou usando a palavra é um dos fenômenos mais difíceis de explicar ou justificar como sendo uma perturbação psiquiátrica. Ao contrário de problemas como psicose, esquizofrenia, epilepsia, depressão, etc, nos quais existe uma clara inabilidade do indivíduo de funcionar adequadamente, nos quais existe uma visão alterada da realidade, nos quais muitas vezes existem claros distúrbios e sintomas clínicos e metabólicos, o psicopata em si mesmo e considerado como condição definida pelos parâmetros acima tem em princípio uma visão perfeitamente realista e equilibrada da realidade (ou pelo menos tão realista e equilibrada quanto as pessoas consideradas não psicopatas), pode ser perfeitamente capaz de funcionar socialmente, e não tem necessariamente qualquer problema em cuidar de si mesmo e viver sua vida muito satisfeito com suas decisões. Claro, muitas vezes a psicopatia vem associada a outros problemas e então ela se torna óbvia. Mas não é por ser psicopata que você automaticamente quer sair matando pessoas. É mais sutil. Ser psicopata significa não se *importar* em causar o sofrimento ou com promover o bem dos outros. Significa uma falta patológica de empatia. Se além disso o sujeito é sádico, ou simplesmente acha um desafio matar pessoas, e tem tal compulsão em fazê-lo que está disposto a correr o risco, ou é simplesmente desequilibrado a ponto de não ter qualquer autocontrole, ou fantasia ameaças ou ordens delirantes no sentido de fazê-lo, bem, claro, aí fica óbvio que ele é um psicopata. Mas uma boa parte das pessoas, mesmo tendo em grande medida internamente uma personalidade psicopática, isto é, quando existem interesses reais em jogo são essencialmente indiferentes ao sofrimento alheio, mesmo sendo essa sua verdadeira natureza, elas percebem claramente que é preciso manter um discurso e uma fachada que divirjam disso, ou no mínimo evitar o assunto. E pragmaticamente evitar comportamentos que sabem que resultarão em desaprovação social. Mas se não for gerar desaprovação social ou conseqüências negativas? Ah, a maioria das pessoas está disposta a cozinhas bebês no microondas e jogar os indigentes na câmara de gás sem pensar meia vez e até ficarem irritadas se seu comportamento for questionado.
É meio surpreendente quando percebemos que este é o caso, mas olhe para a história da humanidade, veja as sociedades do passado e as atuais, veja uma turma de escola, veja seu círculo social. A pessoa média aceitará absolutamente *qualquer* barbaridade desde que pressinta que haverá consenso social em aprovar aquilo. E quem se levantar para dizer qualquer coisa é chato, traidor, terrorista, maluco, anarquista, perigoso.
Saudações,
Sergio
Entendi sua visão. Mas nem sempre uma pessoa considerada ou que é realmente má nasce má. Fernandinho Beira-Mar, por exemplo, foi um aluno aplicado e bem comportado no Colégio, segundo retratado atualmente em reportagem de O Globo. Talvez a maldade humana seja mais complexa do que imagina a psiquiatria.
Oi Fabiano,
Bem, sobre *por que* as pessoas são assim, é outra questão. Agora, o fato é que existem motivos genéticos / evolutivos fortíssimos para ninguém ser altruísta de graça, então não é surpreendente que isso (inexistência de empatia genuína) seja uma tendência universal. FINGIR que nos importamos com os outros (ou melhor, conseguir com sucesso convencer os outros disso) é de fato uma adaptação evolutiva utilíssima especialmente em espécies altamente sociais como os humanos. Mas importar-se genuinamente e de fato com o bem dos outros só por uma questão de princípio é suicida e não cumpre nenhum propósito evolutivo; é uma mutação prejudicial que se autodestrói. Note, eu não estou com isso argumentando que é portanto o *certo*; muito pelo contrário, eu fico extremamente incomodado ao observar as concretíssimas conseqüências do que estou dizendo. Eu detesto que seja assim e não gosto nem um pouco do quão mecanicamente a maior parte das pessoas simplesmente segue seus instintos sem questionar por um segundo as conseqüências do que está fazendo sobre o bem estar alheio.
Sobre a questão da “maldade”, novamente, e esse é um ponto sutilíssimo, ser psicopata não é ser mau; ser psicopata é ser indiferente. É similar ao que ocorre com depressão; depressão profunda não é de forma alguma “estar muito triste”, e sim estar indiferente, apático. Da mesma forma, o psicopata não necessariamente quer fazer mal a ninguém; ele só não está particularmente preocupado em evitá-lo se isso for benéfico aos seus interesses. Não é que ele necessariamente se regozije com o sofrimento alheio; é mais na direção de que ele não se identifica com esse sofrimento.
Saudações,
Sergio
Esse artigo não tem nada a ver com epilepsia.
Beijos
Sandra
De fato não tem. :-) Sua expectativa era de que tivesse? :-)
Saudações,
Sergio
[...] começar, genericamente, acreditar seriamente na idéia de que se não é sua culpa então não é seu problema demonstra sério retardamento [...]