Amor e Medo

May 21st, 2010 by Sergio de Biasi

No dia seguinte ao natal de 1862, mais de 40 mil soldados americanos receberam ordens de avançar,  em direção a uma formação de aproximadamente outros 40 mil soldados… também americanos, que estavam na cidade de Murfreesboro, Tennessee. Foi um dos momentos mais importantes da guerra civil americana, e a ordem pouco usual de iniciar uma ofensiva durante o inverno partira diretamente de Abraham Lincoln, que estava profundamente frustrado com a hesitação de seus generais em avançarem decisivamente contra as forças confederadas e desejava resultados concretos para uma campanha que a seu ver já havia se alongado muito mais do que seria estrategicamente apropriado.


Yankee Doodle

As forças confederadas estavam plenamente cientes do avanço do exército inimigo e, não tendo qualquer intenção de ceder terreno, tomaram posições defensivas para a batalha. Os dois exércitos se encontraram em 30 de dezembro de 1862, quando as forças do norte, estacionadas em alguns pontos a menos de um quilômetro do exército confederado, cessaram seu avanço e iniciaram os preparativos para uma grande ofensiva no dia que se seguiria.


I Wish I Was In Dixie

Todos os soldados ali presentes sabiam precisamente o que se seguiria. Ou melhor, sabiam que haveria uma batalha; absolutamente não sabiam qual seria o resultado, quem venceria, se ainda estariam vivos ao fim do próximo dia ou se jamais veriam novamente seus lares, suas esposas, seus filhos, seus pais, se jamais retornariam à cidade onde haviam nascido. Tanto quanto sabiam, sua vida poderia acabar ali, seus corpos pisoteados, abandonados, esquecidos  e enterrados numa vala.

Caiu a noite e como muitas vezes ocorria em situações similares, ambos os lados começaram a se preparar não apenas logisticamente mas também psicologicamente para a batalha. As bandas de cada exército começaram a tocar hinos e marchas exaltando o patriotismo e o caráter regional de cada exército. Eles estavam tão próximos, porém, que as bandas podiam ouvir claramente umas às outras, e começaram a competir entre si. Uma banda do exército do norte, por exemplo, tocaria Yankee Doodle, ao que uma banda do sul responderia em seguida com Dixie. Isso se prolongou por vários turnos, até que em um dado momento, uma das bandas começou a tocar Home, Sweet Home.


Home, Sweet Home

Agora vejam, esta música era popular em ambos os exércitos e não exaltava nenhum dos dois lados. Ao invés disso, falava do significado do lar, da terra natal, e de estar entre  as pessoas que você ama :

Mid Pleasures and palaces though I may roam,
Be it ever so humble, there’s no place like home;
A charm from the sky seems to hallow us there,
Which, seek through the world, is never met with elsewhere. Home.

Diante disso, as bandas do lado oposto começaram a se juntar à mesma canção, e os soldados de ambos os exércitos, prestes a se assassinarem mutuamente, começaram todos a emocionadamente cantar juntos. Em pouco tempo, estavam unidos pelos exatos mesmos sentimentos de saudade, fraternidade e humanidade, pelos mesmos sentimentos de amor por tudo o que prezavam e de medo diante de tudo o que estava por vir. Uma união insustentável, numa situação insustentável, um momento surreal de encontro no qual todas as profundas raízes, crenças e desejos comuns entre ambos os lados nesta luta fratricida foram trazidos à tona. Cantando juntos no meio da noite quase puderam esquecer que o tempo passava inexoravelmente e que ao amanhecer tudo seria diferente. Ao longo da noite, pouco a pouco as bandas foram parando até reinar o silêncio.


Home, Sweet Home

No dia seguinte, milhares de soldados morreram numa que foi uma das batalhas mais sangrentas de uma guerra que ainda se prolongou por mais dois longos anos.

9 Responses to “Amor e Medo”

  1. Osias says:

    Mas então não adiantou nada ?

    • Se não adiantou nada esse momento de encontro?

      No sentido prático do que aconteceu imediatamente depois, não, não adiantou nada. A batalha seguiu exatamente como planejado.

      Que lição tirar disso, bem, aí é material para pensar muito.

      Saudações,
      Sergio

  2. Osias says:

    Não foi uma dessas histórias tipo “então os soldados se comoveram e a questão foi decidida de forma pacífica”, né?

    Teria sido possível pra Lincoln resolver a questão sem guerra? Eu teria que estudar mais essa parte da história até pra começar a especular…

    • Não foi. Raramente é. Aliás, um tema recorrente em todo tipo de situação é as pessoas até se comoverem e então continuarem agindo exatamente, precisamente, rigorosamente como antes.

      Sobre se teria sido possivel Lincoln resolver a questão sem guerra, bem, acho que não. Lincoln era extremamente diplomático e tentou de todas as formas chegar a compromissos viáveis com os estados do sul. Estes, porém, tinham a atitude básica de que só servia exatamente o que eles querem na hora que eles querem, do jeito que eles querem. Lincoln foi eleito presidente com a plataforma de impedir a expansão da escravidão para novos territórios incorporados aos Estados Unidos (isso mesmo – não era nem a de aboli-la no sul) e até mesmo isso os estados do sul acharam tão inaceitável que decidiram se separar dos EUA antes mesmo do Lincoln ser empossado. Mesmo assim Lincoln declarou claramente que embora ele não reconhecesse a independência do sul, ele não daria o primeiro passo em uma confrontação militar. Eventualmente o sul simplesmente atacou uma fortificação militar dos EUA sob o argumento de que em estando ela localizada num estado do sul na verdade pertencia a eles, e que deveria ser entregue a eles, o que Lincoln se recusou a fazer. Começou então a guerra.

      Infelizmente, por mais transbordantes de bom senso, diplomacia, boa vontade e capacidade de ceder que estejamos, com certas pessoas é simplesmente impossível negociar. Sua teimosia e miopia faz com que sejam incapazes de ceder honestamente em certas questões em nome de criar condições para preservar outros interesses maiores. O sul acabou sendo completamente devastado e perdeu não só a escravidão como muito mais. E tudo isso também representou um grande custo para o norte.

      Saudações,
      Sergio

  3. Osias says:

    Não lembro onde li o argumento de que democracias não levanta guerras contra democracias… está certo que o velho sul não era um país, mas… não era bem uma democracia se tinha escravidão, certo? O que acha desse argumento de modo geral? (de que democracias são a chave para a paz mundial)

    • Bem, por esse aspecto o norte também não era uma “democracia”, afinal de contas, no começo da guerra, a escravidão era reconhecida, e mesmo ao fim da guerra, as mulheres não votavam, etc.

      Sobre os méritos da democracia em geral, eu acho o seguinte. A democracia no sentido moderno (todo mundo vota e aí os eleitos fazem o que quiserem) é um sistema político fajuto que transforma tudo numa grande operação de marketing, num concurso de popularidade que não tem nada a ver com conscientização política, mérito ou representatividade. Além disso, se interpretada ao pé da letra e sem garantias constitucionais sérias, a democracia facilmente se torna um sistema no qual as maiorias eventuais (ou mesmo quem gritar mais alto) oprimem continuamente as minorias de todas as ordens sempre presentes. Existem problemas fundamentais com a idéia literal de que “o que a maioria quiser vira lei”. Como já dizia Paulo Francis, estou mais preocupado em poder escrever o que quiser sem ser preso do que em votar para presidente. Mas talvez as duas coisas estejam conectadas, talvez ter influência sobre o processo político ajude a garantir certas prerrogativas fundamentais. Um dos argumentos a favor dessa farsa ridícula seria portanto de que ela tende a mais ou menos ficar no caminho de que abusos excessivamente grandes de poder sejam cometidos. Ou pelo menos essa é a idéia. Não nos esqueçamos de que Hitler não chegou ao poder através de uma revolução e sim seguindo o processo democrático da Alemanha da época. A democracia é alem de tudo sujeita a cometer suicídio.

      Apesar de tudo, o que existe de mais forte a favor a democracia é a inexistência de um sistema melhor. Como disse Churchill, é o pior dos sistema políticos, excetuando todos os outros. Como eu digo repetidamente, não há sistema que conserte as pessoas serem todas horríveis, e a democracia tem o mérito de assegurar um certo nível de mediocridade ao tomar uma multidão de absurdidades, chachoalhar bem, misturar, e deixar as coisas mais grotescas de neutralizarem umas às outras de forma mais ou menos pacífica.

      Especificamente sobre a democracia evitar guerras, bem, não sei. Historicamente falando a democracia nos moldes modernos é ainda um experimento relativamente recente, é difícil dizer ao certo. Não me parece completamente claro que isso seja realmente verdade, mas não acho absurdo argumentar que haja algo aí. Note que no mínimo claramente não evita que democracias iniciem guerras contra não-democracias. :-)

      Saudações,
      Sergio

      • Osias says:

        Não, mas isso é consequência do fato que as não democracias atacam as democraicas constantemente e as democracias não querem só ficar levando porrada mas as vezes revidam ou dão ataquem preemptivos (horríveis e tals, mas ainda assim só contra não democracias)

        Outro ponto: esse lance de Hitler chegar ao poder via meios democráticos me parece forçado, o nazismo fez lá das suas pra parecer que estava na via da democracia… mas enfim… está certo que a democracia é falha e potencialmente suicida

        • O partido nazista ascendeu ao poder em grande parte através do voto alemão. :-) Claro que após chegar ao governo de fato melou completamente o processo democrático, mas ele chegou lá em grande parte através do voto. :-)

          Adicionalmente, no meio da guerra civil americana, terminou o primeiro mandato de Lincoln e os soldados votaram para presidente a partir de seus acampamentos militares (algo inédito), e não eram poucos, a ajudaram a decidir a eleição. Poderiam ter votado no partido oposto, o democrata, que em grande parte era contra a emancipação dos escravos e contra a guerra com o sul (isso mesmo, os republicanos emanciparam os escravos, para quem não sabe :-) ). Ao invés disso votaram maciçamente (80%) em Lincoln e por continuar a guerra.

          Saudações,
          Sergio

  4. Ricardo says:

    Só para te complementar Sérgio, segundo a Wikipedia.org o Partido Republicano na época de Lincoln poderia ser considerado o que hoje chamaríamos de “liberal” e o Partido Democrata o “conservador”, daí a posição de Lincoln de libertar os escravos.

    Segundo a própria Wikipedia, essa mudança entre os partidos teria ocorrido no começo do século XX, ok!

    Valeu!

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