A teoria mais conhecida sobre a queda do mítico, gigantesco, santo e sagrado Império Romano é a de que ele teria sido ao longo de séculos primeiro desestruturado e então literalmente, concretamente, fisicamente destruído por invasões militares bárbaras. Este é um desses factóides enciclopélicos freqüentemente “ensinados” em escolas.
Uma teoria um pouco menos conhecida é a de que não teria sido bem isso que aconteceu. Existem fartos e grandes indícios de que 1) a maior parte dos bárbaros não tinha qualquer interesse em destruir o Império Romano e 2) a desintegração do modo “romano” de viver não está perfeitamente sincronizada com a desintegração do império. Elaboremos.
O fato é que o Império Romano exercia *imenso* fascínio sobre os bárbaros, que em geral queriam tão somente *permissão* para migrar pacificamente para dentro das fronteiras do império em busca, por assim dizer, de uma vida melhor. Queriam aprender a língua (e em grande parte o fizeram, tanto quanto foi possível), queriam adotar as religiões, as instituições, o modo de ser romano. Quem de fato não queria isso eram os cidadãos romanos, que achavam os bárbaros, com seus modos selvagens e aparência pouco “sofisticada”, indignos de ingressar no império. Quer dizer, indignos *exceto* para executar tarefas que os romanos mesmos não queriam mais executar, via pela qual – por exemplo como soldados mercenários – hordas inteiras de bárbaros foram eventualmente assimiladas. Então criou-se uma situação na qual mais e mais bárbaros foram fazendo na prática parte do império romano, até chegar um momento em que simplesmente assumiram o poder de fato. E o que fizeram com isso, resolveram denunciar todos os valores romanos? Não! De forma alguma. Os bárbaros buscaram na maior extensão possível dos seus esforços preservar toda a estrutura política, administrativa e cultural do império, muito depois do último imperador ter sido deposto. Mas não foram bem sucedidos em fazê-lo, e a decadência paulatina de todos esses aspectos se deu irreversivelmente ao longo de grandes períódos de tempo.
Qualquer semelhança com o mundo atual é mera identidade.
Para reforçar o ponto, vamos a uma teoria ainda menos conhecida sobre o que de fato ocorreu. O império romano passou por uma cisão espontânea em dois e o império do oriente durou ainda mais um bom tempo. Qualquer explicação do colapso do império do ocidente tem que levar isso em conta, isto é : o que deu errado no ocidente que fez com que a queda viesse tão antes e fosse tão mais dramática? Bem, uma força que alguns historiadores consideram que se deveria levar em conta é que os árabes, repentinamente inspirados e unidos pela doce mensagem de paz e amor do corão, decidiram partir da Arábia, invadir o Iraque e então conquistar militarmente todo mundo ao seu redor. Ironicamente, em termos de religião e teologia, os árabes eram bem mais tolerantes que os papólicos, e achavam que cristãos e judeus cultuavam uma forma imperfeita de islamismo que mesmo sendo errada tinha valor suficiente para ser respeitável (ao contrário de todo o resto, que tinha mesmo era que se converter ou morrer; e aliás tentar converter alguém do islamismo para o cristianismo por exemplo seguiu sendo crime passível de pena de morte). Então em um dado momento, após conquistarem um dos maiores impérios da historia, resolveram ficar mais calmos e parar com a farra. Mas a essa altura, muito mais de cultura e civilização estava crescentemente sendo preservado no império árabe do que na Europa. Por que? Uma possivel explicação é que a riqueza do império romano em geral e da Europa em particular era enormemente dependente de impostos e de comércio. Ao perder acesso às rotas através do Mediterrâneo e dos territórios agora em mãos dos Árabes, os restos moribundos do império romano no centro da Europa, mesmo não tendo sido completamente subordinados aos árabes, perderam completamente sua viabilidade econômica, enquanto o império do oriente ainda persistiria por séculos. O problema não seria então basicamente militar, ou cultural, mas econômico.
Recapitulemos então as idéias que levantamos até agora sobre a desintegração do império romano.
A) O império romano teria se desintegrado diante de derrotas militares
B) O império romano teria se desintegrado diante de decadência e descaraterização cultural
C) O império romano teria se desintegrado diante de se ter tornado economicamente inviável
Vamos agora à piéce de résistance : as teorias mais modernas sobre o colapso do império romano.
Estudos arqueológicos recentes mostraram um fenômeno estranho ocorrendo ao longo de um grande período de tempo : despopulação espontânea. A cidade de Roma em seu auge pré-medieval chegou a possuir da ordem de um milhão de habitantes. Então progressivamente, o que se observou foi uma queda da população, um descréscimo contínuo. Quinhentos mil, cem mil, etc. Isso não ocorreu somente em Roma; ocorreu em grande escala. Um grande número de construções romanas foram encontradas desertas, desocupadas, sem que isso tenha sido o resultado de algum grande cataclisma ou invasão. Poder-se-ia pensar que isso teria sido o resultado de algum tipo de migração para o campo, mas existem várias evidências de que não seja o caso. Como grupo biológico, os romanos simplesmente pararam de se reproduzir. Um dos motivos por que isso passou despercebido como idéia por tanto tempo ao se pensar sobre o assunto é o quão contraintuitivo soa que uma das civilizações aparentemente mais bem sucedidas do mundo tenha resolvido voluntariamente entrar em apoptose. Então mesmo quando as pistas estavam lá o tempo todo, elas freqüentemente foram interpretadas como conseqüência e não como causa. Mas um acúmulo cada vez maior de fatos leva a crer que a despopulação não seria então uma *conseqüência* da decadência, e sim sua causa. Então não seria o caso de que os bárbaros, ou os árabes, ou os vikings ou ninguém mais teria destruído a cultura romana de fora para dentro ou expulsado geograficamente os romanos de onde se encontravam. Tais grupos apenas ocuparam o vácuo deixado por uma civilização que desapareceu por crescente falta de gente.
O mais irônico, ou assustador, ou informativo (dependendo do ponto de vista que assumirmos) é que esse é precisamente o fenômeno que observamos *hoje* nas nações mais “desenvolvidas” do mundo. Ao atingirem o auge da “sofisticação”… tornam-se biologicamente estéreis, inférteis, cometem suicídio filogenético. Seus representantes simplesmente param de se reproduzir e o vácuo resultante é entao ocupado por populações nas quais ainda queima a chama primitiva, selvagem e renovadora de “eu quero produzir mais indivíduos da minha espécie”. E sem isso, sem esse fogo biológico primordial, sem essa vontade irracional de se conectar genuinamente a outros seres humanos e com isso produzir novas vidas e cuidar delas ao invés de se preocupar primordialmente apenas com o próprio nariz e com joguinhos estúpidos de apostar a própria sobrevivência e felicidade na impostura de querer se fingir sofisticado demais para ser um primata, sem isso nenhuma civilização do mundo, por mais culturamente avançada, por mais intelectual, tecnologicamente, economicamente pujante que seja, por mais militarmente poderosa que tenha se tornado, pode sobreviver.
O grande, sagrado, santo, mitológico império romano não morreu por falta de poder militar, decadência cultural, ou mesmo colapso econômico. Todos esses fenômenos de fato ocorreram, mas foram conseqüências, não causas. Não, o império romano morreu por falta de gente. O império romano morreu de solidão.
Não vi (ou pelo menos não achei, já que não cliquei em todas) referências sólidas para embasar seu argumento mas gostei muito do texto. Mesmo que seja fictícia, é uma provocação muito interessante do que aconteceu com o Império Romano e se repete agora na Europa e nos EUA.
Oi Ricardo,
As teorias que descrevo, apesar de não serem (até onde eu tenha conhecimento) discutidas direito em livros escolares, não são (como descobri para minha própria surpresa e em parte por isso decidi escrever sobre o assunto) obscuras nem secundárias entre historiadores; a importância exata do papel da despopulação é objeto de debate mas essa questão tem sido cada vez mais seriamente considerada modernamente. Algumas referências e dados adicionais podem ser encontrados aqui :
http://en.wikipedia.org/wiki/Decline_of_the_Roman_Empire
Saudações,
Sergio
Juro que li seu texto achando que era um crente dizendo que eles não se reproduziram por causa do homossexualismo e as nações ricas de hoje estavam indo pro mesmo caminho.
Depois que ví o título do feed.
Mas vem cá… tinha anticoncepcional??!?!
Olha, não tinha anticoncepcional como tem hoje, mas além do fato de que existem outras formas de evitar filhos, isso não era necessário. Entre os romanos era considerado absolutamente normal o patriarca decidir sobre se qualquer novo bebê nascido em sua residência seria ou não aceito. Se não fosse aceito, era simplesmente abandonado. Confira por exemplo http://www.afn.org/~afn32612/Contraception.htm e http://en.wikipedia.org/wiki/Infanticide
Novamente, essa questão da despopulação é hoje considerada muito seriamente como uma possível causa – defendem alguns *a* causa – da decadência do império.
Saudações,
Sergio
Oi Sergio,
você tocou num tema muito interessante. Sempre tive a vaga impressão de viver em uma época de decadência, em que mesmo as pessoas mais inteligentes são apáticas (pois ser blasé é apenas uma forma sofisticada de apatia). Agora fiquei com vontade de ler e pensar mais sobre isso.
Não me lembro com exatidão do que ele dizia, pois isso foi quando eu era adolescente, mas já cheguei a ler alguma coisa de Toynbee. Ele também aborda esse tema de ascenção e decadência de civilizações e diz que a nossa civilização ocidental já estava em declínio. Lembro que ele dizia que as civilizações decaíam mais por razões internas do que por fatores externos como invasões. É, agora só me resta correr para a Leonardo da Vinci para comprar uns livros legais :-)
Beijos,
Ana
Oi Ana,
Pois é, é meio impressionante como um dos traços de personalidade mais valorizados socialmente hoje em dia é a habilidade de ser criogenicamente cínico, de manter uma atitude ostensivamente permanente de “whatever”.
Aqui nos EUA, que já estão BEM mais avançados neste processo, chegou-se num ponto em que demonstrar qualquer tipo de sentimento de genuína generosidade é encarado automaticamente como uma tentativa patética de manipular os outros.
Pois é, eu devia ler Toynbee! O que queria mesmo era poder apertar “pausa”, ler uns 100 livros, e então prosseguir no ponto em que estava.
Beijos,
Sergio
Sérgio, mais um texto excelente! Não conhecia essas teorias para o declínio romano. Obrigado mesmo!
Agora, se me permite um comentário menos elogiativo, acho que seu estilo é meio áspero, disperso… Sugeriria que trabalhasse o estilo da prosa, não só no conteúdo, que já é excelente.
De resto, parabéns! Seu blog é ótimo.
Até!
Oi Adam,
Obrigado pelos elogios, e obrigado pelas críticas também!
Uma parte da questão – não estou dizendo que seja só isso – é que se escrever um texto decente gasta x horas, escrever um excelente gasta 10x horas. :-) Infelizmente quase sempre eu tenho que fazer escolhas entre publicar um texto que eu mesmo acho que poderia – deveria – estar melhor estruturado versus não publicar nada. Infelizmente escrever sobre assuntos como esses é algo que tenho que fazer quando dá e roubando tempo de outras coisas urgentes, então acaba por vezes ficando do jeito que você descreveu. Várias vezes eu penso explicitamente comigo mesmo – argh, vou clicar “publicar” antes que sucumba à tentação de passar a tarde inteira revendo esse texto com calma e gastar um tempo que eu não tenho. :-)
Por outro lado, eu de fato tenho a tendência de abrir 500 parênteses no meio de um argumento e no final ao invés de algo com começo, meio e fim temos uma árvore com vários galhos incompletos. :-) Novamente, se eu fosse preencher todas as lacunas daria um texto com um tamanho 10 vezes maior, ou 10 textos, e aí eu não ia fazer mais nada. Em resumo eu preciso de ganhar na loteria. :-)
Saudacões,
Sergio
Há também quem culpe o cristianismo pelo fim do Império Romano Ocidental.
De fato há, mas eu acho difícil argumentar seriamente que essa seja uma causa muito determinante quando por exemplo o império romano do oriente, não menos cristão, demorou tão mais a cair.
Isso dito, os cristãos (em particular os da Europa) de fato foram ficando cada vez mais histéricos com relação ao sexo, e quanto a ter filhos sem ser casado, e inclusive criando regras cada vez mais malucas sobre com QUEM você poderia se casar, e isso piorou bastante ao entrar a Idade Média. Também encorajaram as pessoas a desprezarem e repudiarem o progresso material e pensarem no “próximo” mundo ao inves de neste e entulharam consideravelmente o surgimento de um sistema financeiro eficiente ao qualificarem a cobrança de juros como moralmente errada. E se por um lado foram responsáveis pela conservação de uma parte da cultura antiga, foram também agentes da destruição da parte que incomodava demasiado suas suscetibilidades. Mesmo assim, até onde eu entenda, não parece haver suficiente força no argumento de que o cristianismo teria sido determinante na queda do império romano do ocidente – que por exemplo o império não teria caído caso houvesse permanecido pagão.
Saudações,
Sergio
Nada como a propaganda disfarçada de história.
Nada como falta de conteúdo disfarçada de comentário crítico.
Mas a Europa cristã que sobrou e se constituiu com o fim do Império Romano não teve esse problema de reprodução. Portanto, parece que por si só o Cristianismo não tem nenhum efeito de decrescimento populacional, ou pelo menos nenhum efeito expressivo. Se a explicação da queda populacional é correta, então as variáveis relevantes dela foram enterradas com a cultura romana ao longo de sua longa dissolução.
Note que eu não afirmei que o cristianismo teria sido o responsável por isso. Agora, não que não haja argumentos a favor do cristianismo ter tido lá o seu papel; as restrições da igreja papólica não só ao concubinato como ao casamento em si mesmo foram ficando cada vez mais histéricas ao progredir a Idade Média. Alem disso, hoje a Europa “cristã” tem novamente enormes problemas de reprodução e de crescimento populacional. Por outro lado, a política oficial da igreja papólica hoje em dia parece ser “todo mundo deveria ter filhos sem parar”, então talvez seja mesmo incorreto ir nessa direção ao procurar a causa. Uma parte da resposta é que não é só a Europa cristã que apresenta esse tipo de questão; praticamente todos os países de primeiro mundo a têm. E talvez haja nisso a repetição de algo que historicamente já ocorreu, isto é – sociedades ricas e avançadas tendo menos e menos filhos. Existe algo extremamente problemático em como sociedades estavelmente ricas se estruturam que de alguma forma acaba levando à decadência como grupo biológico. As pessoas começam a ter somente um ou dois filhos e aí entram em extinção.
Eu vi (na TV) ou li em algum lugar que a população de Roma decaiu tanto e em tão pouco tempo por causa da falta de água que assolou a cidade após uma estratégia dos “de fora”, que destruíam partes dos aquedutos a fim de minar a resistência da cidade.
Será verdade?
Oi Jane,
Não me parece muito provável que essa explicação seja suficiente para dar conta do fenômeno, pois ele ocorreu generalizadamente e não apenas em Roma… mas eu não conheço realmente essa teoria nem as evidências a favor ou contra ela, então não tenho como dar uma opinião mais sólida…
Saudações,
Sergio
http://realidade.org/forum/index.php?topic=11498.0
Os romanos também usavam tubulações que continham chumbo. Existe a teoria que a loucura que atingiu os seus imperadores foi uma consequência desta contaminação.
Se na época já existissem telenovelas, acreditaria na hipótese da falta de sexo.
Pois é, existe essa teoria também. Inclusive era pior do que isso : chumbo chegou a ser usado como adoçante. :-) Mas hoje essa idéia está bastante desacreditada, entre outros motivos porque a mesma tecnologia e a mesma cultura não levou aos mesmos resultados em outras partes do império.
Sobre falta de sexo, e isso é algo para se pensar, não parece ter sido essa a questão, aliás pelo contrário. O que havia era falta de filhos mesmo.
Saudações,
Sergio
Obrigada pela sua contribuição à campanha “vamos ter mais filhos, pessoal!” É bem por aí, mesmo. Vou acrescentar a queda do império romano à lista de coisas que eu tenho que mencionar quando falo com as pessoas sobre isso.
Pois é, no final das contas, não adianta ser sofisticadíssimo e inteligentíssimo e espertíssimo e prudentíssimo e aí não deixar descendentes. Vide Idiocracy. Claro que no final se formos falar sério mesmo nada adianta nada nem nada faz sentido, mas se alguém quer porque quer irracionalmente construir um mundo melhor, essa idéia de “ok, vamos ser responsáveis e não ter filhos” resulta previsivelmente pela lógica mais óbvia em os irresponsáveis dominarem o mundo.
Beijos
Sergio