What is “real”? How do you define “real”?
–Morpheus
Eu me lembro de quando estava tendo exatamente esta conversa com um cristão amigo meu e ele em algum momento disse : “Ok, mas afinal de contas, o que há de tão especial assim com a verdade?” E foi excelente ele ter sido capaz de colocar a questão de forma tão clara, porque se levada a sério, essa não é uma pergunta lá muito fácil de responder. Eu pessoalmente acho que abrir mão do critério de verdade como requisito fundamental para adotar um sistema de crenças leva a todo tipo de distorções e absurdos, tanto intelectuais quanto éticos, mas de fato é perfeitamente possível tomar – e diria eu, tomar *racionalmente* – essa decisão a partir do momento em que olhamos para a existência humana como algo que absolutamente não (nem de longe!) se resume à racionalidade.
You’ve felt it your entire life, that there’s something wrong with the world. You don’t know what it is, but it’s there, like a splinter in your mind, driving you mad.
–Morpheus
Inclusive eu acho muito mais saudável a posição de adotar sistemas de crenças religiosas com a plena consciência de que não se está com isso em busca da verdade do que a posição mais comum de defender fanaticamente que as crenças religiosas corresponderiam, sim à realidade concreta das coisas. Quanto mais se vai por esse caminho (de querer justificar crenças religiosas como *verdadeiras* ao invés de como confortáveis, convenientes ou úteis) mais bobagens se seguem. Agora, a autocrítica dual a essa é igualmente dolorosa e igualmente incomum : assim como é uma ilusão total querer justificar as crenças religiosas como *verdadeiras*, é uma ilusão total querer justificar não adotá-las apenas com base na “racionalidade”. Note-se, se alguém vem dizer que “é preciso acreditar apenas no que é lógico” e quando questionado sobre “mas afinal de contas por que mesmo?” responde “ora, porque é a única coisa lógica a fazer!”, é duro admitir, mas essa pessoa está sendo tão circular quanto alguém que diz “é preciso acreditar na Bíblia!” e quando questionado sobre “mas por que?” responde “ora, porque está na Bíblia”.
I’m trying to free your mind, Neo. But I can only show you the door. You’re the one that has to walk through it.
–Morpheus
Claro, uma resposta um pouco menos circular seria “Porque assim temos mais chances de acreditar no que é concretamente verdade”. E é precisamente neste ponto que surge o comentário do meu amigo : “Ok, mas afinal de contas, o que há de tão especial assim com a verdade?” E de fato, embora a lógica seja o caminho mais garantido para chegar ao que é verdade, escolher diante disso só acreditar no que é lógico continua dependendo da premissa de estamos de fato tentando chegar à verdade custe o que custar. Só que nossas necessidades mais importante e profundas são completamente ilógicas e injustificáveis para começar; esse fato só não é mais berrantemente óbvio porque existe um onipresente consenso social em aceitá-las como naturais e obviamente dispensadas de explicação, mas a rigor não há qualquer motivo racional ou lógico para viver e não morrer, para crescer e multiplicar, para interagir com outros seres humanos, para proteger sua própria integridade física, ou em resumo para fazer qualquer coisa. Quem não percebe isso, que não se dá conta disso, que não consegue aceitar isso está se auto-enganando em grande escala, sendo ou não religioso.
I didn’t say it would be easy, Neo. I just said it would be the truth.
–Morpheus
A questão toda é piorada pelo fato de que nossos irracionais, ilógicos e em última análise injustificáveis (e por vezes inconstantes, incompreensíveis, contraditórios e por vezes mesmo insondáveis e inacessíveis) instintos, sentimentos e impulsos são apesar disso tudo insufocavelmente e sufocantemente REAIS. Podemos diante disso aceitar que nossas motivações são completamente arbitrárias e abrir mão da ilusão de que sequer faça sentido falar em agir apenas racionalmente (isso seria buscar… o quê?) … ou podemos construir uma fantasia totalmente irracional (religiosa ou não) sobre por que nossos queridos preconceitos e fantasias são na verdade maravilhosamente bem fundamentados… e então agir “racionalmente” dentro do paradigma dessa fantasia. Em qualquer caso, a lógica permanece o melhor guia em termos de estimar o que é real. A questão é que “o que é real” absolutamente não é a única coisa que importa, aliás longe disso. O mundo real é árido e vazio de significado, e profundamente insatisfatório como residência de nossa psique.
Welcome to the desert of the real.
–Morpheus
Então vivemos todos uma escolha fundamental em nossas vidas (muito bem ilustrada na questão red pill versus blue pill) que é a seguinte : vamos escolher aceitar a verdade de que universo funciona como nossa mente racional implacavelmente nos informa que seja mais provável (ou mesmo certo) que seja de fato a realidade das coisas, ou vamos ao invés disso deliberadamente escolher defender crenças e valores que psicologicamente nos tragam conforto, paz e segurança mas que a rigor nosso julgamento racional indica que provavelmente (ou certamente) não correspondam à verdade?
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Mas talvez eu esteja já começando longe demais no argumento. A rigor temos também a opção de não questionar coisa alguma e simplesmente acreditarmos em paradas aleatórias. Inclusive me parece que essa seja a opção da maior parte da humanidade. Mas veja, quando você escolhe acreditar em uma idéia que você ouviu por aí, essa idéia não brotou do chão espontaneamente. Ela foi criada por alguém, e com grandes chances não foi criada por acaso. Existiria a possibilidade de que essa idéia tenha sido criada para te manipular? Mas que grande surpresa! Claro que existe. Pessoas dispostas a acreditar fortemente em idéias sem saberem muito claramente por que estão escolhendo acreditar naquilo são trivialmente, facilmente manipuláveis.
Seja como for, a maior parte das pessoas simplesmente escolhe a pílula azul por default, não porque tenha consciente e deliberadamente refletido sobre o assunto, mas porque nunca sequer chegou a perceber que existe uma escolha. O ser humano médio morre sem ter nunca ter enxergado a prisão cultural e intelectual na qual nasce, sem nunca ter percebido o quanto várias de suas crenças mais arraigadas são completamente arbitrárias e não têm qualquer relação com a verdade, o quanto querer ardentemente que uma coisa seja verdade e ela de fato ser são duas proposições completamente desconectadas.
Like everyone else you were born into bondage. Into a prison that you cannot taste or see or touch. A prison for your mind.
–Morpheus
Infelizmente os mecanismos sociais de controle que buscam manter o ser humano médio nessa prisão são enormes, onipresentes e fortíssimos. Experimente defender opiniões pouco usuais de qualquer tipo em praticamente qualquer grupo social e isso fica instantaneametne óbvio.
Mas existem mecanismos de controle mais deliberados e mais organizados do que a necessidade atávica de impor (e buscar) conformidade manifestada a nível de interações sociais espontâneas. Um deles é o sistema educacional, que da forma como modernamente constituído na maior parte das vezes, parece ter como diretiva mais importante punir, sufocar, destruir, impedir o pensamento criativo crítico independente.
Mas por mais que seja opressivo, o sistema educacional é algo de que a maior parte das pessoas se liberta (pelo menos materialmente) em algum momento. Um outro exemplo muitíssimo mais invasivo e que de fato pretende explicitamente fazer parte de todas as esferas da existência humana é religião. A religião como usualmente organizada é um sistema de impor conformidade que é particularmente perverso e danoso à psique. Sua malignidade deriva precisamente de sua determinação explícita e deliberada em exigir que o ser humano individual abra mão de seu julgamento independente, e mais ainda do que isso, em seu combate vociferante e cáustico a quem tem a audácia de não fazê-lo. O pior pecado imaginável em quase qualquer religião é não se submeter. A principal função e propósito da religião institucionalizada não está em nenhum lugar fora de si mesma, e sim em parasiticamente se auto-perpetuar, usando seres humanos como incautos hospedeiros.
Não que religião seja o único sistema de controle social; diversas ideologias ao redor do mundo cumprem a mesma função, criando sistemas que quanto mais totalitários vão ficando, mais vão se intrometendo em cada mínimo detalhe de nossas vidas. E quanto mais alguém mergulha numa dessas ideologias, em geral mais dependente delas vai ficando, e mais complexo fica dizer que aquilo é tudo um grande delírio, porque é precisamente a natureza dessas ideologias incentivar o ser humano não a ser forte e independente e íntegro e sim fraco e submisso e dependente. E isso não é por acaso – o sucesso dessas ideologias se deve em grande parte precisamente a isso.
But when you’re inside, you look around, what do you see? Businessmen, teachers, lawyers, carpenters. The very minds of the people we are trying to save. But until we do, these people are still a part of that system and that makes them our enemy. You have to understand, most of these people are not ready to be unplugged. And many of them are so inured, so hopelessly dependent on the system, that they will fight to protect it.
–Morpheus
Mas como eu disse no começo, nenhum desses sistemas explícitos porém é realmente necessário para aprisionar pessoas dentro de suas próprias mentes. Aliás, eu diria até que ao se tornarem explícitos, esses sistemas de controle tornam imediatamente claro que existiria uma escolha – desafiar o sistema – mesmo que se tente a todo custo fazer tal escolha soar impensável por repetido condicionamento. E na verdade no final das contas todos esses sistemas – explícitos ou não – dependem crucialmente de que introjetemos seus mecanismos de controle para funcionarem. Esses sistemas todos estimulam os nossos preconceitos e a nossa ignorância como forma de mais facilmente nos manipularem. Mas preconceitos e ignorância – ora, isso é algo que não precisamos de nenhum sistema externo de controle para cultivarmos nós mesmos. E de fato o fazemos em grande escala e espontaneamente, aprisionando a nós mesmos como reféns da nossa burrice, da nossa ignorância, do nosso medo, das nossas neuroses, sem a necessidade de qualquer sistema opressivo externo para ajudar.
Então ao final quem realmente realmente se aprisiona é você mesmo. Não que não haja limitações objetivas para o que podemos atingir e fazer e pensar e realizar, mas as limitações que a realidade física e a sociedade ao redor *concretamente* impõem em geral empalicedem diante das limitações que (muitas vezes incentivados por perversos sistemas externos de controle, mas ainda assim nós) impomos a nós mesmos.
What are you waiting for? You’re faster than this. Don’t think you are, know you are. Come on. Stop trying to hit me and hit me.
–Morpheus
Matrix é ideológico, por um lado. E mitológico. Entra em uma longa tradição da igreja dos individualistas rebeldes, que tem Nietszche, Rousseau, etc. Usar linguagem médica para descrever as ações dos outros com termos como parasitas e hospedeiros também.
Muito bem escrito Sérgio. Parabéns.
Saudades também.
Abraço,
Ricardo Cunha – Big//
Valeu!!
Abraços,
Sergio
Olá. Concordo com a orientação geral do texto. Quando assisti Matrix, a primeira noção que me veio a mente (e creio que para muitos) foi a do aprisionamento fundamentalista religioso ao qual tentam nos submenter. Lendo sua exposição, ela remete-me particularmente ao novo livro do dr. Eduardo Gianetti, Ilusão da Alma. Resta saber o que faremos a mais (ou necessariamente melhor) que as gerações passadas, agora que temos o ‘velocino de ouro’ nas mãos.
Um forte abraço, parabéns pelo seu trabalho.
Luciano
Oi Sergio,
Pois é, o Baudrillard deu umas entrevistas implicando com o filme, mas foi esnobismo dele, Matrix é muito rico e as referências a que ele alude não estão de forma alguma distorcidas ou banalizadas.
Sobre o mundo real ser árido e vazio de significado é mesmo desalentador, mas mesmo se não acreditarmos em algo que dê sentido a tudo, podemos ver isso como um convite para construirmos nós mesmos um sentido.
Beijos,
Ana Beatriz
Oi Ana,
Pois é, o fato de o Matrix nem sempre ser sutil o suficiente para certos gostos estéticos não significa que não esteja levantando as questões certas. :-D
Sobre a realidade ser desprovida de significado a priori, com certeza sua reflexão é altamente relevante, dado que apesar de isso ser num primeiro exame deprimente, a opção seria a vida *ter* um significado a priori, caso em quê não teríamos qualquer liberdade para ter uma personalidade divergente sem sermos automaticamente malévolos. Ou como colocou Sartre, deus evidentemente não existe, mas se exististisse, seria preciso combatê-lo. :-D
Beijos
Sergio
Tentar “construir um sentido” para nós mesmos é, a um só tempo, o que todos fazem – inclusive aqueles que acreditam num sentido a priori – e uma manifestação do “nonsense” da realidade, na medida em que, ao “criarmos um sentido” apenas atualizamos uma possibilidade no plano dos valores (com suas possíveis repercussões no mundo real) com base nas mesmas tendências “irracionais/ desprovidas de sentido” que caracterizam a realidade cujo nonsense se pretende superar; e do qual os nossos desejos (orientadores do “sentido” artificial) são, precisamente, uma amostra. De resto, a ausência de sentido não nos faz objetivamente “mais livres”; apenas troca a ilusão da obediência opcional a um itinerário ético que, uma vez seguido, nos conduziria rumo à felicidade perpétua, por uma sensação de liberdade (proporcionada pela inexistência de um itinerário ético obrigatório a priori) que, no entanto, pressupõe, por um lado, uma obediência irresistível a pré-condições que modulam nossas ações e desejos segundo parâmetros (genéticos e sócio-ambientais) em última análise aleatórios (isto é, uma ausência de liberdade objetiva), e, por outro, a certeza da aniquilação como coroamento final de qualquer “sentido” que se adote. Em suma, estamos irresistivelmente condenados à servidão, ao nonsense e à alguma parcela (maior ou menor) de auto-ilusão e de engano. Neste cenário “escolher defender crenças e valores que psicologicamente nos tragam conforto, paz e segurança mas que a rigor nosso julgamento racional indica que provavelmente (ou certamente) não correspondam à verdade”, ainda que aceitemos “a verdade de que universo funciona como nossa mente racional implacavelmente nos informa”, torna-se uma necessidade adaptativa, até onde pude verificar, irresistível. A “red pill”, é, portanto, uma “blue pill” pintada de vermelho pelo mesmo capricho arbitrário que pintou a outra de azul – e que outro atrativo não possui além do prazer que uma vaidade “onanística” pode proporcionar a seu consumidor, que surgirá aos próprios olhos (e, com sorte, aos olhos de outros) como uma espécie de “herói da loucura esclarecida”. Haveria ainda que muito dizer – o texto está interessantíssimo – mas detenho-me por aqui.
Parabéns e até mais!
Oi Bruno,
Eu não concordo que a “red pill” seja uma “blue pill” pintada de vermelho. Todos os seus argumentos são ótimos, mas o ponto em que eu paro de concordar é o seguinte – mesmo aceitando tudo isso que você falou, e eu de fato aceito, continuam sendo posições *distintas*. Seus argumentos são excelentes para sustentar que absolutamente não é óbvio – se formos ser implacavelmente honestos – que alguma das duas posições seja “superior”. Superior em termos de quê para começar, se estamos justamente argumentando que não há sentido transcendente a priori? Mas isso é algo que, embora muito frustrante, eu não nego, e que é inclusive um dos temas centrais do próprio texto original.
Agora, para mim de fato existe uma distinção entre “vamos aceitar a nossa essencial irracionalidade” versus “vamos acreditar em qualquer coisa”, e é aí que surge a distinção entre “red pill” e “blue pill”. Não estou pregando que troquemos uma ilusão por outra. Não estou pregando que a nível cognitivo e intelectual finjamos para nós mesmos adotar uma ilusão ou sensação de liberdade ou algum projeto de sentido que seria pretensamente superior por qualquer critério “objetivo”. O que estou propondo é que encaremos de frente a inelutável falta de sentido (assim como de liberdade sobre diversos assuntos essenciais) e partamos conscientemente daí. Alguns querem colocar isso como uma batalha como racionalidade versus irracionalidade, e eu acho que isso leva a bobagens.
Por outro lado, sua colocação parece identificar irracionalidade com loucura, e eu acho que é precisamente essa a distinção que é preciso ter o cuidado de fazer. Por exemplo, querer continuar vivo é (se formos ser totalmente implacáveis) completamente irracional. Não no sentido de que o racional seria não continuar vivo, mas no sentido de que não há qualquer justificativa lógica para decidir por um ou por outro. Apesar disso você de fato existe, de fato está vivo, e de fato pode (e quer) tomar acões concretas para continuar vivo. Então sob este ponto de vista não há nada de louco em querer continuar vivo, é só irracional. Agora, eu não estou pregando que diante disso então elejamos o nosso sentimento de quero ficar vivo a pretensa justificativa lógica para tomarmos ações neste sentido, e sim que aceitemos que não precisamos de justificativa lógica para querê-lo. Aliás, esse seria justamente o ponto em que deixaria de ser irracionalidade para começar a ser loucura : quando vamos perdendo (ou voluntariamente rejeitamos) a capacidade de distinguir entre o que *queríamos* que fosse verdade e o que objetivamente ou necessariamente é. É essencial distinguir entre o que nós irracionalmente queremos e o que nós racionalmente sabemos. A questão é o que fazer diante disso; elevar na marra o que irracionalmente queremos ao nível de “racionalmente justificável” leva a enormes besteiras. Por outro lado rejeitar tudo que não tenha justificativa racional também leva. O que é importante mesmo é saber distinguir.
Minha posição é que precisamos dos dois, e precisamos ter plena consciência de qual é qual. Precisamos não confundir “eu gosto de chocolate” com “chocolate é gostoso, você não está vendo???”. Mas ao mesmo tempo, precisamos perceber que “existe aqui um chocolate” não é uma mera questão de opinião.
Então essa “construção de sentido” é, sim, fundamentalmente arbitrária, e o essencial é que não percamos isso de vista. No momento em que levamos nosso projeto pessoal de sentido a sério demais, este é o ponto em que embarcamos na loucura (esclarecida que seja) e escolhemos a “blue pill”, mesmo que não estejamos sendo iludidos por ninguém a não ser nós mesmos. A “red pill” está em escolher olhar para a realidade de frente e resistir à tentação de acreditar em maluquices porque elas soam psicologicamente confortáveis, escolher resistir a projetar nossos sonhos e desejos na realidade externa. O desafio está em ter um projeto de sentido sem no entanto confundi-lo com a realidade objetiva das coisas.
Aliás, um outro comentário que recebi sobre este texto que vale a pena citar foi que esse tema do deserto do real e da construção de sentido (de fato) são centrais em “La Nausée“.
Saudações,
Sergio
Primeiramente, espero não estar me tornar pedante a partir desta minha segunda intervenção, mas é que é o diálogo com um bom debatedor sempre me instiga… No entanto, permita-me apontar algumas observações quanto a sua “réplica”:
1.Parece que estamos de acordo quanto ao fato de que não há nenhum parâmetro racional para definir a postura “red pill” como superior à postura “blue pill”.
2.Que existe uma distinção objetiva entre “vamos aceitar a nossa essencial irracionalidade” versus “vamos acreditar em qualquer coisa” é óbvio, mas a distinção digamos, “de valor”, seria – admitida a conclusão anterior – impossível em termos objetivos.
3.O que se quer dizer então quando se afirma que “é essencial distinguir entre o que nós irracionalmente queremos e o que nós racionalmente sabemos”, ou que “precisamos não confundir “eu gosto de chocolate” com “chocolate é gostoso, você não está vendo??? ”. A questão é: “Precisamos” porquê? É “essencial” para quê? Não seriam este “precisamos” (um “preciso” universalizado pelo plural) e este “essencial” elementos retóricos tentando atribuir algum “sentido” a um valor essencialmente arbitrário? Em suma, este “precisamos” e este “essencial” não seriam um sintoma, precisamente, de uma indistinção entre “o que queremos” e o que “necessariamente é” que, segundo você mesmo, caracterizaria a loucura?
4.O próprio “desafio de ter um projeto de sentido sem, no entanto, confundi-lo com a realidade objetiva das coisas”de certa forma é, ele próprio, na medida em que se supõe um “desafio real”, ou de alguma relevância objetiva, uma confusão entre projeto de sentido e realidade objetiva.
5.En passant : Praticamente qualquer coisa/atitude tem o potencial de conduzir a grandes “besteiras” – Que, aliás, é uma noção das mais arbitrárias.
6.Este então é o ponto (acredito central) subjacente ao meu comentário anterior, e que, talvez, não tenha ficado claro: O fato de que, necessariamente (em maior ou menor grau – o que, obviamente, não implica na existência de uma “virtu” nem “in médio” nem “in extremis”), travestimos nossos valores arbitrários (expressão de nossas pulsões irracionais) com alguma “objetividade ilusória” como forma de sedimentar a construção da “identidade” que irá viabilizar nossa interação (orientada para a satisfação das mesmas pulsões) com o mundo, sobretudo social.
7.Tal idéia, basicamente, nos caracteriza como um feixe de desejos arbitrários, pendendo – sobre uma base de irracionalidade fundamental -para uma maior ou menor consciência da realidade, cuja presença ou ausência, deliberada ou não, sempre será posta, no final das contas, a serviço dos desejos irracionais fundamentais (que ela pode modular mas nunca “racionalizar”) que, por sua vez, fatalmente tentarão impor a si próprios, mediante tentativas de “objetivação”, frente a expectativas concorrentes.
8.Em resumo: A loucura, adotando sua definição, estaria menos no fato do desejo de viver ser irracional que na presunção do “fato” de que ele não seja louco.
9.Essa visão, de fato, não é muito inspiradora e não muda em nada nossa forma de agir, mas, feliz ou infelizmente,é a que tem me convencido.
Escrevi rápido, e espero que não tenha saído confuso…
Até mais!
Ok, novamente, concordo com suas observações mas acho que elas se aplicariam a uma leitura do que eu escrevi que não é a que eu pretendia. Quando eu digo “precisamos distinguir” estou falando num nível retórico externo à discussão em si mesma, isto é, estou argumentando que A e B na discussão objetivamente, concretamente não são a mesma coisa. Agora, se nós “precisamos” em nossas vidas distinguir que não são, essa é outra questão, e é aí que por mais frustrante que seja eu tenda a concordar com você. Se o sujeito é mais feliz bêbado e imaginando que a Terra gira em torno de Saturno, quem somos nós para dizer “não, não, não, você tem que encarar a verdade de frente”? Eu pessoalmente até tomo a atitude de que SIM temos que encarar a verdade de frente, mas essa posição é bem menos justificável (ou talvez até injustificável) do que argumentar que estejamos dispostos ou não a aceitar ou descobrir, existe de fato uma realidade objetiva que não depende da nossa vontade.
Em resumo, menos convolutamente :-) : quando digo “precisamos distinguir” estou falando implicitamente “caso estejamos discutindo o que é objetivamente verdade”. Ou seja, não é um “precisamos” deôntico e sim lógico mesmo. :-)
O problema no final das contas é que é impossível não só sobre este assunto mas sobre qualquer assunto estabelecer e justificar distinções de valor em termos objetivos. Todos os sistemas de valores se remetem em última análise às nossas emoções e à nossa consciência; no final das contas por mais que queiramos retroracionalizar ou explicar em termos pragmáticos, o motivo pelo qual a maior parte das pessoas tende a achar por exemplo matar os outros errado é porque o conceito em geral lhes é visceralmente desagradável. A verdade mesmo é que não existe certo ou errado fora da consciência humana, e quanto mais tentamos axiomatizar ou institucionalizar valores, mais óbvio isso fica. Isso quer dizer que certo e errado “não importam”? Absolutamente não, para um ser humano importam imensamente, mas tentar justificá-los apenas com base na lógica não funciona. E (para mim muito obviamente) apelar para entidade externas é esquizofrênico e delirante, o universo não está nem aí para o “significado” das nossas ações.
Sobre coisas darem em besteiras, eu pretendia um significado mais objetivo do que o que você leu. Quando eu digo dar em besteiras, quis dizer dar em coisas que não as pretendidas – o que obviamente depende do que se está tentando obter. Se estamos tentando descobrir a verdade, e um certo método leva a contradições, então deu em besteiras. Se estamos tentando atingir o bem e um certo método deu em fazer o mal, então deu em besteiras. Então não era tão vago ou arbitrário assim. :-)
Novamente, em *concordo* com seu ponto de que 1. é um projeto falido tentar justificar objetivamente nossos desejos irracionais 2. nem sequer é possível justificar objetivamente a busca da “objetividade” para começar. As minhas observações não são no sentido de desmentir isso e sim de apontar que apesar disso, continua existindo uma diferença entre ser objetivo e não ser.
E novamente, sobre a loucura – não, eu não acho que o negócio seja perceber que somos loucos, pelo menos não no sentido que estou dando à palavra. Eu estou estabelecendo uma distinção entre ser irracional e ser louco. Para mim, ser irracional é agir (ou pensar ou sentir) sem ser com base na razão. Já ser louco é não ter a capacidade perceber ou admitir que é isso que você está fazendo. Então parafraseando o que você disse, a loucura, pela minha definição, está estaria menos no desejo de viver ser irracional do que na presunção de que ele não seja **irracional**. Novamente, eu estou aqui explicitamente distinguindo loucura de irracionalidade.
Em outras palavras : minha posição é que querer fazer coisas irracionais e ter plena consciência de que são irracionais é irracional mas não é louco. Querer fazer coisas irracionais e estar convictamente convencido de que elas são totalmente racionais – isso sim é louco.
Aliás, isso apresenta um problema sério para a psicologia ao buscar classificar os psicopatas que não têm outras questões associadas (i.e. não são psicóticos, esquizofrênicos, etc), porque eles têm completa noção do que é objetivamente real e no entanto divergem do resto de nós apenas em partes irracionais (sentimentos, empatia, etc), então pode ficar complexo chamar isso de “loucura” (não que um psicólogo fosse ficar muito feliz com esse termo) sem descambar um conceito medieval atávico de doença mental que só muito modernamente vem sendo abandonado : loucura é pensar qualquer coisa muito diferente do que todo mundo está pensando.
Saudações,
Sergio
Sérgio,
A verdade e a realidade é uma só, o maior problema é que ninguem a conhece. A cada dia a verdade muda, o que era bom fica ruim, o que era verdade absoluta se transforma em dúvida e logo em seguida em alguma coisa ridicula que se acreditou no passado.
O homem constrói a verdade de acordo com sua conveniência, para viver melhor ou controlar os outros.
A vida, se presa a realidade nua e crua, baseada somente no que é palpavel materialmente é sim um nada, sem o mínimo sentido. Mas creio que esta realidade justifica ainda mais a auto preservação, pois na medida em que o individuo creia somente neste deserto árido da realidade, ele tem e deve buscar viver o maior tempo possível e da melhor maneira possível, já que será a unica vida.
Mas a vida é bem mais que isto, e esta longe de estar restrita somente a matéria e a realidade visível, um grande exemplo disso é o magnetismo e sua influência inclusive no comportamente humano. Ja conheci pessoas ligeiramente instáveis, em que seu grau de instabilidade coincidiam com as fazes da lua, e isto com certeza não é palpável, explicável mas não palpápel.
o homem deve ser racional e se preocupar com todo sistema de crenças e tentativas de imposição de verdades. Isto não se dá somente com religião, o inverso tambem é verdadeiro, por exemplo um dos maiores defensores do ateísmo(esqueçi o nome) é um geneticista que tenta provar que o caráter do homem está gravado nos seus genes, ou seja, ele tem todo interesse do mundo que Deus não exista, pois todo o trabalho da vida dele esta ligado a não existencia de Deus.
O homem livre vive de acordo com sua consciência e busca ser feliz na medida do possível, pode aceitar a realidade dos outros como item a ser analisado, incorporado ou descartado.
A vida tem um sentido, que é ser feliz. é isto que o homem busca independentemente de viver no deserto arido da vida real, ou fugindo de vez em quanto para se aconchegar no colo de Deus buscando na crença “imaginária” a força para atravessar os desertos do dia seguinte.
Parabens!!!
Oi Edson,
Pois é, exatamente, a verdade é uma só, e é idêntica à realidade objetiva das coisas. Isso automaticamente já leva a um monte de conclusões sobre o que pode ou não ser real. Este é um ponto que dá até um desânimo quando as pessoas falham em apreendê-lo.
Evidentemente que o conceito humano do que é verdade a um dado momento é incompleto, falho e historicamente construído. Esse é outro ponto que dá até um desânimo quando as pessoas falham em apreendê-lo.
Agora, quando se fala de valores – então aí mesmo é que é tão abundamente, ululantemente óbvio que não estamos falando de verdade objetiva que fica complexo até começar a argumentar quando as pessoas querem a todo custo partir do princípio de que seja. Eu até acho perfeitamente compreensível e até saudável que cada um se sinta emocionalmente compelido a agir *COMO SE FOSSE*, mas isso é muito diferente de querer afirmar que objetivamente seja.
Ao final do seu comentário, você quase com certeza está falando do Richard Dawkins, e preciso fazer algumas correções. Uma é que ele não é geneticista, e sim etologista. Outra é que ele NÃO tenta provar que o caráter do homem está gravado nos seus genes. Eu apontaria vários erros nesta afirmação. Uma é que ele não está em princípio tentando provar nada específico – como cientista ele está tentando descobrir a verdade, e diante de novas evidências seria forçado a mudar de idéia. E mesmo que alguém venha dizer que os cientistas são humanos etc, a longo prazo não dá para defender uma teoria em ciência sem fatos para apoiá-la. Em segundo lugar, eu diria que quando ele fala em “gene egoísta” isso é uma *metáfora* e ele não está realmente falando de valores, e sim descrevendo um certo tipo de comportamento que é favorecido pela evolução. Além disso, as conseqüências disso sobre o caráter do homem não são determinantes e sim em termos de instintos, e podem ser altamente moduladas e alteradas pela cultura e por decisões individuais. Finalmente, eu diria que Richard Dawkins é um dos primeiros a afirmar que essa visão de mundo na qual somos todos máquinas de replicar, apesar de realista e objetivamente verdadeira, é insatisfatória e desagradável, e que agora que chegamos a um nível de consciência suficientemente elevado para percebermos que é isso que concretamente somos, devemos tentar transcender essa condição. Mas absolutamente não é fugindo da realidade dos fatos que vamos conseguir fazê-lo.
Sobre ele não acreditar em deus, ora, absolutamente não é o caso de que a posição dele decorra de que a existência de deus de alguma forma de alguma forma estragaria sua pesquisa científica. Para começar, existem vários exemplos de cientistas famosos em áreas como essa, inclusive em genética (o exemplo mais famoso é Francis Collins) que acreditam em deus sem que isso os impeça de prosseguir com suas carreiras científicas.
Sobre a vida ter um sentido, “que é ser feliz”, ora, isso é completamente arbitrário. :-) Ser feliz não é estritamente um “sentido” e sim um impulso. Se eu for feliz estrangulando gatos então o sentido da vida para mim é estrangular gatos? Isso pode até me deixar feliz, mas dificilmente faz “sentido”.
Saudações,
Sergio
http://varzo.blog.uol.com.br/arch2010-11-07_2010-11-13.html#2010_11-11_22_07_28-3576467-0
ABSOLUTO
É a palavra absoluto que cria os fanáticos.Ninguém tem a verdade absoluta.A verdade é tão vasta,Todas asverdades são forçosamente
relativas.
Os cristãos pensam que a verdade absoluta está na Biblia.Os Hindus pensam que a verdade absoluta está no Gita,etc etc.Lembre-se sempre:
tudo o que nós poderemos alguma vez saber é obrigatoriamente relativo…
Oi Edmundo,
“Ninguém” tem a verdade absoluta? E isso, seria uma verdade absoluta? Se for, ora, temos uma verdade absoluta em nossas mãos, contradizendo a premissa.
“Todas” as verdades são forçosamente relativas? Se forem, bem, então temos aqui uma verdade que não é relativa a nada e é sempre válida independentemente do contexto.
Sugiro este texto aqui :
../../../.././12/01/verdades-absolutas/
Não é o mais ou menos óbvio fato de que existem sim verdades absolutas que cria a intolerância; intolerância é uma atitude que independe de quão certos estamos. O que distingue um católico falando de religião de, digamos, um cientista falando de matemática, não é o fato de que ambos buscam verdades absolutas ou professam conhecê-las, e sim sua atitude com relação ao assunto. O que distingue os fanáticos, os delirantes, os intolerantes daqueles que não o são não é a racionalidade, e nem sequer é ter razão ou não. É possível fazer coisas terríveis em nome de “eu tenho razão”, *mesmo* quando estamos de fato cobertos de razão. E naturalmente também é possível fazê-lo em nome de fantasias e mitos tão delirantes a ponto de serem embaraçosos. O problema ao final está muito mais na extensão em que nos permitimos e aceitamos como legitimo o comportamento de buscar IMPOR uma certa visão de mundo aos outros na marra do que em qual é essa visão, ou se ela é racional, ou verdade.
Saudações,
Sergio
Olá, Sérgio
Chego só agora no cálido debate e por ter me identificado com vários comentários em análise, faço questão de me pronunciar!!
Primeiramente, parabéns pela produção do primeiro texto, que não só incita a reflexões interessantes como está bem argumentado e expresso.
Em segundo lugar, é bacana quando existem diversas opiniões em réplicas e tréplicas, aí sim geralmente ficamos observando e lendo com entusiasmo, e vamos concordando, discordando e nos posicionando ‘racionalmente’ nessa ‘realidade louca’!!
Sou psicóloga e uma pesquisadora e indagadora assídua dos temas de ‘humanas’. Falar a respeito de outras dimensões possíveis, mundos quânticos, ‘Waking Life’, escolhas e crenças, prisões culturais (principalmente as doutrinas religiosas), limitações e delírios, é também algo que costumo fazer!
Hoje em dia temos muitos estímulos para isso, não é? Racionalmente, nós entre alguns poucos temos acesso a essas ‘parafernáleas’ do mundo para nos ocupar.
Enfim, será que nós possuímos isso ou isso nos possui? Que tal ambas as coisas?
Achei que as discussões entre você e o Bruno foram muito dicotômicas, típica e sintomática do racionalismo exacerbado, em que se procuram respostas mais coerentes.
Eu desconfio de muita coisa e estou num estágio em que para me posicionar, as informações precisam estar bem assimiladas…por outro lado, nem sempre me preocupo em falar coisa com coisa! e por vezes sou contraditória e confusa.. por isso por enquanto não me arrisco a pontuar a tópica… apenas um pouquinho…
Diria eu que, logicamente, há muito delírio nisso tudo!! Hahhaa…
Prazer em conhecer, voltarei mais vezes.. e estou acompanhando outros de seus textos.
Ah…sou blogueira também.. ! Acesse: HTTP://multiplexunitas.blogspot.com
Oi Sil,
Bem vinda ao clube.
Saudações,
Sergio