The blessed will not care what angle they are regarded from,
Having nothing to hide.
W.H. Auden (1948), “In Praise of Limestone“
(O texto completo pode ser encontrado aqui.)
Eu não me recordo quem disse uma vez que maturidade moral é na verdade algo muito simples, e se resume ao seguinte – sua vida, suas escolhas e sua perpepção de você mesmo devem ser tais que você não teria problemas em contar o que você fez hoje de tarde ao jantar à noite com a sua família.
Simples que pareça quando colocado desse jeito, isso é dificílimo de atingir, por uma coleção de motivos.
Um dos motivos mais fortes é que existe uma pressão social absurda, opressiva e freqüentemente beirando ou mesmo atingindo o coercitivo para que nos submetamos ao usual, ao banal, ao mediano sem supresas, enfim, para agirmos de forma que não surpreenda ninguém nem os tire de suas zonas de conforto. Para grande parte das pessoas que encontramos diariamente, moralidade é não fazer nada que as deixe desconfortáveis, e se você fizer – mesmo que seja descobrir a cura do câncer – a reação será na direção genérica de “temos que fazer uma lei para proibir isso”. Infelizmente, porém, o status quo é vezes demais injusto, desumano, indesejável ou inequivocamente errado aos olhos de sua própria consciência. Então daí surge uma escolha moral fundamental – devo fazer o que eu sinto que é certo, ou devo fazer o que os outros esperam que eu faça comprando (espera-se) com isso reconfortante anuência e aceitação, mas traindo minha própria consciência?
Note-se, esse dilema não surge apenas na direção de você ser impedido de fazer o que quer. Ele não surge apenas na reacão negativa que busca reprimi-lo confontacionalmente. Ele surge também, não raro de forma muito mais poderosa e eficaz – justamente porque mais sutil – no constante reforço positivo de comportamentos desprezíveis. Afinal, o que poderia estar errado com uma atitude que gera aplausos e contentamento em todos ao seu redor, certo? A resposta é : absolutamente tudo. Assim como a verdade não é decidida por democracia, integridade ética está subordinada a ser coerente com o que VOCÊ sente que seja o correto. Fazer subservientemente o que mandaram sem questionar não o torna uma fortaleza de integridade, e sim uma ferramenta eficiente – que pode estar a serviço tanto do mais sublime progresso da humanidade quanto da mais destrutiva psicopatia. Um ser humano se torna moralmente (e, diria eu, também intelectualmente) maduro quando percebe que é possivel ele estar certo quando todo mundo acha que ele está errado mas também – e isso é muito mais difícil – quando percebe que e possivel ele estar errado quando todo mundo acha que ele está certo.
Só que se por um lado ter a humildade e o realismo autocrítico de perceber que mesmo nossas certezas mais absolutas podem estar completamente erradas é saudável e coisa e tal, , por outro isso não deve ser usado como desculpa conveniente para não termos posições nem atitudes sobre coisa alguma.
O que nos leva à seguinte frustrante dificuldade sobre o caráter das pessoas.
Aqueles que são mais destemidamente “corajosos” em irem contra as normais sociais, em desafiar o saber comum, em confrontar as regras, aqueles que são mais assertivos e proativos e não esperam pela aprovação dos outros antes de agirem, todas qualidades que no contexto certo são inestimáveis e admiráveis, estas pessoas freqüentemente o fazem por todos os motivos errados, e ou são psicopatas totais que não se importam em buscar aprovacão porque não estão nem remotamente preocupados com os outros em qualquer nível ponto, ou são psicopatas na prática – no sentido em que causam imenso mal e destruição – ao elevarem delirantemente sua consciência moral ao nível de holofote infalível e inerrante de verdade ética que precisa ser imposto a todo custo a todos mais. Inclusive eu diria que historicamente muito mais mal já foi feito em nome do bem do que em nome do mal. O psicopata que não está tentando trazer o bem a ninguém senão a si mesmo em geral se concentra em cuidar da sua vida e o mal que faz vem como efeito colateral acidental de buscar o próprio bem. Já o psicopata que acha que vai salvar a humanidade quer ela queira quer não, por quaisquer meios que se façam necessários – este é muito mais perigoso. É pouco realista coordenar um movimento político popular com a plataforma “vamos prender e torturar pessoas aleatórias porque isso me faz sentir poderoso”. Já com “vamos prender e torturar pessoas aleatórias porque essa é a única forma de impedir o colapso da civilização ocidental”, o sucesso é bem mais acessível. Ironicamente, institucionalizar a tortura de pessoas aleatórias é um risco muito maior para a civilização ocidental do que um bando de malucos tentando destruir a civilização ocidental. Se não é precisamente esse tipo de garantia e liberdade que estamos tentando garantir e proteger dos malucos, é o quê então?
Por outro lado, aqueles por “temperança” parecem ser mais conciliadores, gentis e prudentes, aqueles que em princípio aceitam o saber comum, que seguem nominalmente as regras, que são aparentemente passivos e preocupados em ficar esperando pela aprovação dos outros antes de agirem, todas características que no contexto certo são qualidades inestimáveis e admiráveis, estas pessoas também freqüentemente o fazem por todos os motivos errados, e na hora em que é preciso que tomem uma atitude, revela-se que sua prévia inação, muito mais do que derivada de qualquer idealismo ou empatia, fundamentava-se sim em inércia, conveniência e acima de tudo medo e hipocrisia. Tais personalidades podem por vezes ser até mais perigosas do que as abertamente confrontacionais, pois muito mais facilmente passam abaixo do radar do nosso julgamento como essencialmente bem intencionadas, quando na verdade sua pretensa mansidão é apenas uma máscara para uma natureza essencialmente covarde e manipulativa, como brilhantemente ilustrado no personagem Tom em Dogville.
Então ao final nos vemos navegando entre dois pólos extremos e patológicos – de um lado, aqueles que não têm certeza de nada, do outro, aqueles que têm certeza de tudo. E é difícil resistirmos nós mesmos ao apelo de nos juntarmos a um dos lados e ao invés disso convivermos com a responsabilidade duplamente herética de termos apesar das incertezas e das incompletudes uma opinião e uma personalidade. E então os melhores entre nós ficam na superfície muito parecidos com os piores, pois destes herdam tanto a audácia de pensarem por si e em si mesmos quanto o sentimento de responsabilidade inalienável em considerar seriamente as conseqüências de suas escolhas sobre os outros. O que os distingue é essa profunda sinceridade de propósito que à primeira vista pode parecer sutil e arredia a nível puramente retórico mas que fará enorme diferença nas escolhas que serão efetivamente feitas. Não se trata de coragem por coragem ou de mansidão por mansidão. O que distingue um louco destrutivo de um sujeito que mereça ser chamado de corajoso e forte, o que distingue um puxa-saco subserviente de um sujeito que mereça ser chamado de generoso e equilibrado em geral não é primordialmente o seu discurso sobre seus alegados valores e motivos mas sim as conseqüências não ditas mas muito concretas das ações reais que estão efetivamente sendo tomadas. E olhada deste ângulo, a retórica mais linda e espetacular do mundo pode rapidamente se transfigurar numa impostura insustentável.
Diante disso, uma decisão fundamental que cada um de nós precisa tomar em algum momento é, antes mesmo de se vamos ser honestos com os outros, a de se vamos ser honestos com nós mesmos quanto às consequências de nossas próprias ações. Para podermos tomar qualquer decisão moral real ao invés de sobre fantasias delirantes precisamos antes de mais nada sermos honestos com nós mesmos, quem somos, o que queremos, o que estamos buscando, o que estamos dispostos a fazer. E talvez ainda mais problemático do que quebrar publicamente essa “suspension of disbelief” sobre nossa historinha fantástica acerca de quem nós mesmos somos, muito pior que isso na maior parte dos casos pode ser ver essa impostura ser tornada insustentável para nós mesmos. E em algum ponto nessa corda bamba de buscar sustentar uma auto-imagem reconfortante mas basicamente desonesta podemos concluir que não queremos mais nada disso. E para se libertar dessa farsa, é preciso conseguir olhar para a própria fraqueza e impotência e incerteza de frente, aceitá-las sem escamoteações, e decidir o que fazer com isso. Não que isso seja fácil, muito pelo contrário. Mas a partir do momento em que escolhemos encarar de frente quem realmente somos, e a partir do momento em que escolhemos tomar decisões coerentes com isso, e a partir do momento em que abrimos mão da muleta de buscar criar em nós mesmos ou nos outros uma percepção de nós mesmos que não corresponda à realidade de como as coisas de fato são, estaremos então libertos de temer de qual ângulo seremos enxergados.
Com relação a definição inicial de maturidade moral, eu conheço uma versão um pouco diferente, mas um pouco mais adequada, trocando contar no jantar à noite com sendo publicada no jornal no dia seguinte. Fazer sexo com a esposa não é algo que se conte no jantar (ou fazer necessidades no banheiro, ou qualquer outro fato que o costume indique como sendo “comentável”), mas se um jornal publicar no dia seguinte não terei vergonha de ter feito.
No entanto, concordo contigo, se o compreendi corretamente, que esta metáfora ainda assim sofre de um problema central, pois fatalmente teremos problemas em admitir publicamente ações que são puníveis socialmente apesar de acreditarmos que elas sejam moralmente corretas. Não há nada moralmente errado em ser ateu em um país católico (e vice-versa) mas não é algo que se admite sem um custo social grande.
Mas isto não inviabiliza completamente a história. Se você faz algo que não quer que seja publicado no dia seguinte no jornal que seu pai lê, há grandes chances que o que você está fazendo seja errado, portanto deve ser repensado e verificado se o que você está fazendo é realmente correto ou se é apenas racionalização.
Na maior parte das vezes é racionailização… duro é admitir…
Oi Albaney,
Seus exemplos são todos apropriados, mas eu diria que se formos ser fiéis à metáfora eles apenas reforçam o ponto principal : the blessed will not care what angle they are regarded from. Por que deveríamos ter vergonha de ir ao banheiro? Isso é muito mais um handicap psicológico do que um medo legítimo. E se por um lado de fato existem problemas práticos em proclamar ser ateu num país católico, esses problemas são em princípio todos externos e pragmáticos; quem sente ou não vergonha disso é exclusivamente o próprio sujeito em questão. Então o meu ponto no “não teria problemas” não é exatamente “não teria problemas práticos” e sim “não se sentiria envergonhado em contar”. Talvez (dependendo da família) o sujeito até escolhesse não contar porque não compreenderiam, mas se o sujeito estiver bem resolvido, *ele* não teria qualquer problema em contar.
Saudações,
Sergio
Curti muito!
Legal! Valeu!
Muitas vezes, fico em cima do muro por absoluta convicção de que ali é o meu lugar. Não tenho partido político, não torço para time de futebol, não sei se Deus é bom, não sei se a morte é o descanso eterno ou uma
outra trapalhada da alma. Mas, felizmente, tenho liberdade para tudo isso e acho justo não me meter em coisas que não entendo, ou que não tenho como provar. Em compensação, defendo muito bem o meu não-saber, já que ninguém me apresenta bons argumentos.
Oi Ana,
Bem, eu acho que defender seriamente que nada se possa afirmar com suficiente rigor (pelo menos não para tomar uma posição) sobre todos esses assuntos é um si mesmo uma coleção considerável de convicções. :-) Isso é diferente de nunca ter pensado sobre essas questões, ou de não ter o que responder quando suas opiniões são questionadas, ou de ter como opinião que “todos os pontos de vista são igualmente válidos”. Aliás, muito pelo contrário – o que você esta dizendo é que todos os pontos de vista que você conhece sobre esses assuntos não parecem lá muito convincentes.
Por outro lado, dizer que “ninguém me apresenta bons argumentos” corre o risco de soar excessivamente passivo. As pessoas dificilmente conhecem, entendem ou sabem explicar bons argumentos. Então ficar esperando que os outros apresentem bons argumentos com grande probabilidade resultará é mesmo na incerteza total. Se queremos conhecer alguma coisa mais profundamente, em geral só mesmo tomando a iniciativa de irmos cavar ativamente pistas sobre o que já se descobriu sobre a verdade, e na maioria absoluta das vezes não será possível “provar” nada. Não devemos por isso cair na falácia de achar que nada pode ser conhecido. O fato de que não temos certeza lógica não nos impede de fazer julgamentos úteis sobre o que parece mais verossímil dadas as informacões disponíveis.
Saudações,
Sergio