O Indivíduo » Aborto ../../../../. Porque só o indivíduo tem consciência Tue, 02 Aug 2011 04:56:23 +0000 en hourly 1 http://wordpress.org/?v=3.1.3 Aborto Livre, Sim, Por Favor ../../../.././2008/05/25/aborto-livre-sim-por-favor/ ../../../.././2008/05/25/aborto-livre-sim-por-favor/#comments Sun, 25 May 2008 14:19:00 +0000 Sergio de Biasi http://oindividuo.com/?p=623

“Não basta ser contra o aborto. É preciso defender que as mulheres que fazem aborto sejam processadas e penalizadas criminalmente.”

Certo, essa citação passou de todos os limites. Eu vou ter que falar alguma coisa.

Culpar a mãe por uma gravidez indesejada, e colocá-la contra a parede sob a pretensa responsabilidade de arcar com as conseqüências de seus atos é uma falácia tão absurda quanto citar a Bíblia para provar que Deus existe. Não existe atualmente qualquer necessidade do ato sexual resultar em reprodução, mesmo com a ocorrência de gravidez. Em uma sociedade moderna essa conexão é absolutamente artificial e criada de fato em maior ou menos grau justamente pelos movimentos abortofóbicos. Agora, não é logicamente justificável acusar mães perfeitamente dispostas a abortarem de irresponsabilidade enquanto simultaneamente as proibimos de abortarem. Ao contrário, a maior parte delas está exatamente sendo extremamente responsável e lutando contra alguns de seus instintos mais profundos justamente porque prevê as consequências para si e para os outros, inclusive o feto, de não fazê-lo.

Culpar a mãe por uma gravidez indesejada é como culpar a estuprada por usar roupas provocantes, é como culpar o assaltado por usar um caixa eletrônico de madrugada. É por um dedo em riste no nariz dela e pontificar “quem mandou expressar sua sexualidade?”. Poderão tais pessoas porventura terem sido imprudentes ou pouco sábias? Possivelmente. E daí? Esse linha de raciocínio que busca proteger as pessoas de si mesmas é precisamente a que leva à proibição das drogas e outros absurdos totalitários cuja maior conseqüência prática é a opressão psicológica e a restrição das liberdade individuais. Oficializa-se a infantilização geral de todos sem ao menos sequer atingir (ainda bem!) os objetivos pretendidos de reformar a sociedade segundo alguma visão particular de moralidade imposta de cima para baixo. Como isso ultrapassa o limite do que grande parte das pessoas está disposta a aceitar passivamente, é necessário então buscar justificativas para tal impostura, a mais forte delas vindo sob a acusação de homicídio.

A criminalização do aborto consegue ser simultaneamente retrógrada, hipócrita, uma violência contra a dignidade humana, a liberdade individual, a família, o bom senso e a realidade prática.

A acusação de “retrógrada”, clichê hiper-usado e abusado merece explicações. Existe um apelo emocional barato no novo, em querer mudar algo somente por ser tradição, em proclamar que qualquer mudança seja um “progresso”, e simultaneamente partir do princípio que qualquer “progresso” em direção a uma suposta “modernidade” seja bom. Não é a isso que me refiro. Por outro lado, é claríssimo que uma das motivações mais comuns para a defesa da criminalização do aborto provêm de histeria religiosa baseada em ditames dogmáticos retro-racionalizados a posteriori e cobertos generosamente com molho de chantagem emocional e lavagem cerebral. São parte de toda uma visão de mundo completamente em dessintonia com tudo que se descobriu, pensou e viveu nos últimos dois séculos. Claro que imediatamente, como já observado, se pode colocar – quem disse que os últimos dois séculos de pensamento humano sirvam de modelo para qualquer coisa? E certamente existe aí um bom argumento. Mas existe um aspecto que não se pode negar sem descambar para o obscurantismo, que é a realidade dos avanços técnicos e científicos que nos permitem hoje compreender e interagir com a realidade de formas absolutamente revolucionárias. Tais avanços, ao contrário do que muitos querem defender, conflitam sim diretamente com vários valores tradicionais, e embora esse choque deva ser objeto de muita reflexão ao invés de precipitado abandono de tudo em que acreditávamos, é completamente absurdo enfiar a cabeça num buraco e fingir que não existem. Lidar por exemplo com princípios científicos abundantemente estabelecidos como a evolução das espécies como “meras teorias” basicamente porque levam a conclusões que ferem suscetibilidades teológicas é fechar-se em si mesmo e bradar “eu vou acreditar no que eu quero acreditar seja lá qual for a realidade”. O que, novamente, não é novidade e não deixa de ser tentador quando a realidade nos desagrada, e certamente é privilégio pessoal de cada um, mas que termina no limite de sua consciência e não deveria ser imposto – muito menos por força de lei, pelo menos a esse ponto parecíamos ter chegado – a ninguém. Mas naturalmente, a pecha de “retrógrada” não é em si mesma um argumento contra nenhuma posição específica. É apenas um sintoma. Prossigamos.

Vamos ao hipócrita. Essa é quase uma covardia. Basta analisar as estatísticas, por exemplo num país pretensamente católico como o Brasil, das pessoas que se dizem contra o aborto e da quantidade de abortos que são de fato realizados. Essa é de goleada, então não vejo motivo para insistir no ponto. Mas novamente, isso em si mesmo não é um argumento sólido, é apenas mais um sintoma da inconsistência dessa posição; estabelecer que existe abundante hipocrisia não resolve o assunto.

Passemos portanto ao ponto central da questão : o argumento de que um aborto seria comparável ou equivalente a um homicídio. Minha opinião pessoal, que não é nem um pouco incomum, é que num aborto realizado suficientemente cedo, não existe nenhuma relação entre os dois. Um ser humano não é definido ou estabelecido por um monte de células. Ninguém será preso por agressão por espancar um cadáver. Experimente porém fazê-lo minutos antes da morte e o significado será completamente diferente. É disso que estamos falando. Da preservação da integridade física de um ser humano, não do corpo sem vida de um ser humano, de fios de cabelo de um ser humano, ou de células humanas. Então resta a questão : a quais entidades vamos nós agora atribuir esse estado especial de existência chamado “ser humano” cuja integridade merece ser protegida?

Essa não é uma questão muito simples de se responder. Claro, sempre podemos arbitrariamente escolher um momento no tempo para dizer “aqui surgiu um novo ser humano” (tradicionalmente e universalmente, aliás, o momento do parto), mas o fato é que é um longo processo. Creio que podemos em geral concordar que antes da concepção não existe ser humano novo, e depois do parto existe. Mas note-se que isso não é uma “verdade” a ser “descoberta”, porque estamos exatamente tentando *definir* onde começa essa humanidade.

Existe aqui um problema similar ao de determinar a idade para a maioridade civil. Parece razoável concordar que não faz sentido enviar um bebê de dois anos de idade para a cadeia por ter sido descoberto carregando um brinquedo de uma loja sem pagar. Da mesma forma, parece razoável concordar que um cidadão com 21 anos de idade em posse de suas faculdades mentais não deve gozar do mesmo grau de boa vontade. Onde, porém, ocorre essa transição entre “cidadão em treinamento” para “cidadão responsável por suas ações”? A resposta é que evidentemente não ocorre em nenhum momento específico, é um longo e gradual processo e que além disso difere de um ser humano para outro. Claro, poderíamos “pelo sim ou pelo não” tornar a todos criminalmente responsáveis desde o momento do parto, afinal de contas quem sabe quais bebês superdotados não estão na verdade imbuídos de perversas intenções conscientes e se aproveitando da nossa ingenuidade para burlar o sistema judicial? Da mesma forma, em nome de “proteger os inocentes” poderíamos dar imunidade plena a todos até uma certa idade escolhida arbitrariamente. Nesse caso, o que fazer com um indivíduo de 12 anos de idade que por livre escolha cometeu um homicídio durante um assalto? Soltá-lo na rua e dizer “boa sorte”? Mesmo que aceitemos o (para mim duvidoso) argumento de sua “inocência infantil”, suas vítimas não são também “inocentes” a serem protegidos? A conclusão a que se chega é que existem aqui “inocentes” a serem protegidos de ambos os lados. Assim como não é fácil chegar a uma resposta satisfatória para a questão da responsabilidade civil, não é fácil chegar a uma conclusão satisfatória para a questão de onde um ser humano começar a existir, e em ambos os casos os extremos tender a levar a bobagens. Apesar disso, existem aqueles que por considerarem apenas um dos lados, enxergam um dos extremos como a única solução aceitável.

No caso do surgimento da qualidade de “ser humano”, existem aqueles que querem “generosamente” atribuí-la a quase tudo com que consigam desenvolver algum vínculo emocional. (Embora aparentemente tenham uma dificuldade maior em estabelecer tal vínculo com mães, pais e todos os outros seres humanos que objetivamente terão que efetivamente despender tal “generosidade”.) Portanto, tecnicamente parece ser possível ter uma posição abortofóbica baseada meramente em sentimentos antropomorfizantes dirigidos a um glóbulo de células, ou melhor, ao que esse glóbulo “poderia ter sido”.

Não me parece porém que essa simpatia maldirigida seja a força predominante motivando a posição abortofóbica. Pelo contrário, na maior parte das vezes fica claro que a principal agressão percebida em um aborto por seus detratores se dê não no nível objetivo de um ser humano concreto tendo sua vida terminada, mas no nível teológico em que a parte sagrada de um ser humano seria a sua “alma”, e tal “alma” teria os mesmos “direitos” que qualquer outro ser humano pleno. De fato, nesse paradigma, uma “alma” seria a parte mais essencial de um “ser humano pleno” e por motivos teológicos e doutrinários, tal “alma” seria infundida no momento da concepção.

Como conseqüência, nesta visão de mundo, não são ignorados apenas a mãe, o pai, a família e a sociedade ao redor. Perversamente, o bem-estar físico objetivo do ser humano que daí surgirá é considerado irrelevante (ou completamente secundário). Mas isso é plenamente consistente com toda a moral e prática dominante em particular na religião católica e parentes próximos; o bem estar objetivo das pessoas é irrelevante desde que sua “alma imortal” seja “salva”. Daí derivam-se todo o tipo de aberrações, como a preocupação em efetuar uma conversão num leito de hospital preceder a preocupação em efetivamente salvar a vida do paciente (se vocês acham que eu estou inventando pesquisem o que acontece ainda hoje quando a religião católica é levada por falta de freios sociais às suas últimas conseqüências). Ou, por exemplo, a obrigação de prender por homicídio mães solteiras que ousaram tomar pílulas abortivas com duas semanas de gravidez, ou a obrigação moral que alguém teria de dar à luz um filho com síndrome de Down, ou ainda mais absurdamente, de levar a termo uma gravidez de alto risco de um feto inviável, seja por defeitos genéticos, seja por estar o feto aderido à trompa de falópio. Para quem não percebe aonde isso tudo leva (ou não acredita), o material é vasto e abundante, busque reportagens sobre o que aconteceu e está acontecendo nos países que levaram essas idéias a sério. (Exemplo aleatório de outro texto que espero inspire o leitor a pesquisar o assunto mais profundamente.)

Assim sendo, a citação que abre o artigo é perfeitamente coerente. De fato a argumentação de que aborto seria equivalente a homicídio não exige menos do que isso para ser levada a sério. Como ocorre com freqüência, a absurdidade de certas premissas se torna mais óbvia quando as levamos a sério e começamos a delas extrair suas conseqüências lógicas.

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