O Indivíduo » Filosofia ../../../. Porque só o indivíduo tem consciência Tue, 02 Aug 2011 04:56:23 +0000 en hourly 1 http://wordpress.org/?v=3.1.3 Verdades Absolutas ../../.././2010/12/01/verdades-absolutas/ ../../.././2010/12/01/verdades-absolutas/#comments Wed, 01 Dec 2010 05:30:52 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=2321 The truth is out there.
Mulder

Para qualquer pessoa que já tenha pensado seriamente sobre o assunto por mais de 30 segundos, espero que esteja abundantemente claro que a afirmação de que “não existem verdades absolutas” é completamente ridícula e indefensável e deveria provocar risos constrangidos ao acabar de ser pronunciada. Para quem não pensou sobre isso por mais de 30 segundos, aponto que essa afirmação claramente se autodestrói diante da pergunta “Ok, e essa afirmação é uma verdade absoluta ou relativa?”. Então ou existem verdades absolutas ou não existem; se elas não existem, então isso seria em si mesmo uma (inconcebível) verdade absoluta, e portanto a única alternativa logicamente viável é a de que elas existem, e com um exemplo de brinde : “Existem verdades absolutas.”

Mas ok, talvez essa verdade seja um pouco excessivamente auto-referencial e o leitor não esteja plenamente convencido de sua relevância. Precisamos de critérios e exemplos melhores para o que vamos chamar de verdade.

Com o risco de ser tautológico, eu diria que a verdade é precisamente aquilo que não varia dependendo de em quê a gente acredita.

Paremos agora para observar mais cuidadosamente por que essa afirmação, ao invés de o que pode parecer superficialmente um truísmo, contém na verdade as sementes de um conceito filosófico fundamental. Uma tautologia é, na linguagem popular (que segue a acepção usada em retórica), uma afirmação na qual reescrevemos uma outra afirmação usando diferentes palavras com o mesmo significado. Então por exemplo “o elefante preto” e “o paquiderme negro” significam a mesma coisa. (Suponhamos para efeito deste argumento que não exista ambigüidade quanto à interpretação dessas sentenças.) Então se eu digo que “existe um paquiderme negro se e somente se existe um elefante preto” eu estou dizendo algo que é patentemente verdadeiro, de fato absolutamente verdadeiro, mas por outro lado permanece de certa forma completamente vazio de conteúdo, no sentido em que não me diz nada sobre o mundo, dado que a rigor isso é apenas uma reafirmação de que “existe um elefante preto se e somente se existe um elefante preto”. Note-se que sem recorrer a nenhum conceito muito misterioso já esbarramos aqui na existência de mais afirmações sobre cuja verdade podemos ter certeza absoluta. Isso pode ser transformado em algo perfeitamente rigoroso usando lógica matemática, e se as tautologias tecnicamente não levam automaticamente a novas afirmações sobre propriedades do mundo que antes desconhecíamos, elas nos levam a novas formulações dessas propriedades. Mas talvez o leitor ainda esteja insatisfeito – se esse é o único tipo (ainda auto-referencial) de verdade absoluta que conseguimos demonstrar, será difícil ir muito longe.

Então chegamos aqui a um ponto menos óbvio que eu quero levantar. Digo acima “na linguagem popular” porque em lógica matemática uma tautologia é algo sutilmente diferente. Em lógica matemática, uma tautologia é algo que é sempre verdade não interessa de quais hipóteses você parta. Então é claro que as equivalências lógicas como descrita acima são todas exemplos de tautologias. Se eu consigo mostrar que a afirmação X é apenas uma forma de reescrever a afirmação Y, então é claro que “a afirmação X é verdade se e somente se Y é verdade” será uma (trivial) verdade absoluta.  Porém, esse não é o único tipo de tautologia possível. Se eu afirmo por exemplo que “ou existe um elefante preto ou não existe um elefante preto” isso também é uma tautologia, e uma verdade absoluta, mas não é a afirmação de uma equivalência lógica. E da mesma forma, se eu digo “se existe um elefante preto então existe um elefante” temos aqui uma implicação lógica um pouco mais sofisticada, que é também uma tautologia e uma verdade absoluta. Em outras palavras, podemos não saber absolutamente nada sobre se X é verdade ou sobre se Y é verdade mas mesmo assim sabermos que X implica Y é uma verdade absoluta.

Agora notemos que em nenhum desses casos conseguimos escapar de algum tipo de auto-referência. Coloco então que isso é mais ou menos inevitável; a não ser que assumamos algo como axioma, como verdadeiro por princípio, tudo o que seremos capaz de provar será sobre a verdade absoluta de implicações lógicas obrigatórias dadas certas suposições – às quais teremos que nos referir quando tirando conclusões. E de fato, isso é tudo o que podemos esperar provar com certeza absoluta. Então a auto-referência, ou recursão, está no centro da verdade ou mais precisamente no centro de tudo o que podemos esperar realmente conhecer com certeza. Esse é um conceito absolutamente fundamental em lógica matemática, em teoria da computação, e em filosofia : o de que as verdades que nos são objetivamente acessíveis são precisa e exatamente as que podem ser descritas recursivamente.

Mas voltemos ao conceito original. Quando eu afirmo que a conjectura X é de fato verdade, eu estou precisamente dizendo que X não depende de quais hipóteses você está partindo. Já concluímos que tais proposições de fato existem. A questão é, como identificá-las, e serão todas elas triviais? (no sentido em que sejam todas óbvias ou pelo menos demonstráveis). E meio supreendentemente, quando tentamos aprofundar formalmente este conceito, e aplicá-lo de forma mais geral a todo tipo de proposição que poderíamos fazer sobre o mundo, concluímos que há verdades que, apesar de serem absolutas – isto é, verdadeiras não interessa de quais hipóteses você parta – não é possível demonstrar que tais proposições sejam verdadeiras! E este fato pode ser formalmente demonstrado como sendo uma verdade absoluta!

Isso e outras considerações nos levam à necessidade de uma nova palavra para descrever conclusões logicamente corretas – e portanto obrigatórias, verdadeiras, e que não dependem da opinião de ninguém. Estas não são no caso geral exatamente as mesmas conclusões que podem ser obtidas apenas (“tautologicamente”, no sentido retórico) reescrevendo afirmações para obter outras, um fato que veio como enorme surpresa para lógicos e matemáticos quando primeiro demonstrado. Claro que quando podemos de fato reescrever uma afirmação para obter outra, então a necessidade de implicação lógica fica patente. Mas repito, existem casos em que a implicação lógica inexoravelmente existe mas não pode ser obtida através de dizer a mesma coisa com outras palavras! Ou seja, existem verdade que apesar de absolutas, nos são inacessíveis (no sentido em que apesar de serem verdades absolutas não podermos ter certeza absoluta de que de fato sejam verdade absoluta). Damos então a tais afirmações (i.e. que efetivamente correpondem à realidade dos fatos quer saibamos provar ou não) o nome de “válidas“.
É exatamente nesse ponto em que a força da afirmação “a verdade é precisamente aquilo que não varia dependendo de em quê a gente acredita” brilha com força total. Em primeiro lugar, isso já seria uma observação interessante mesmo que todas as verdades fossem tautológicas – afinal, nem sempre é imediatamente óbvio quando Y pode ser obtido através de reescrever X com outras palavras. Mas vai muito mais longe do que isso. O fato é que mesmo dentro de modelos perfeitamente bem determinados e explicitamente conhecidos, é impossível determinar tudo o que deveria ser necessariamente verdade dado aquilo em que acreditamos.

Uma outra forma de colocar a afirmação acima é : já que a verdade não pode depender daquilo em que acreditamos, “a verdade é aquilo em que somos logicamente forçados a acreditar quando não acreditamos em nada a priori”. Poderíamos concluir apressadamente disso que nenhuma conclusão pode ser tirada do nada, mas dessa objeção já demos conta logo no começo, isso é claramente falso. Poderíamos então concluir um pouco menos apressadamente que somente conclusões triviais podem ser tiradas do nada, tornando a frase acima bem menos interessante apesar de verdadeira, mas o fato é que isso também não é verdade. O que de fato ocorre é que existem verdades absolutas que não dependem da opinião de ninguém mas ao mesmo tempo comprovadamente não existe nenhuma forma de enumerar todas elas ou sequer de determinar com certeza, no caso geral, se uma determinada afirmação é uma delas.

Por um lado, isso pode parecer meio desanimador. Por outro lado, no final das contas, como seres humanos, nós nunca temos acesso direto ao que “realmente é” e ao invés disso temos somente acesso àquilo em que acreditamos. Então talvez o fato de que a verdade não dependa do que acreditamos seja precisamente o que nos dá alguma esperança da possibilidade de conhecermos qualquer coisa. Mais do que isso, a verdade é o que nos une a todos, em todas as nossas diferentes crenças, sentimentos, histórias e acidentes de percurso. A verdade, não a fé, a revelação, a tradição ou o instinto é o que há realmente em comum entre todos nós, entre todas as nossas consciências, entre todas as nossas individualidades. Infelizmente, determinar o que é de fato verdade é algo extraordinariamente complexo, e na maior parte dos casos, literalmente impossível. Então toda essa profunda identidade existencial subjacente que une todos os seres do universo permanece apenas latente e apenas esporadicamente pressentida enquanto nos reduzimos a brigar até a morte para defendermos nossos preconceitos preferidos. E e aí que é preciso dar dois passos para trás e transcender o que sabemos ou pensamos saber e olhar para tudo aquilo que é verdade mas nunca conseguiremos demonstrar ou conhecer. Segue sendo verdade assim mesmo, e agir como se só o que entendemos existisse é uma atitude que está segura, demonstravelmente, universalmente, garantidamente equivocada.

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Bem Vindo ao Deserto do Real ../../.././2010/10/23/bem-vindo-ao-deserto-do-real/ ../../.././2010/10/23/bem-vindo-ao-deserto-do-real/#comments Sat, 23 Oct 2010 15:51:32 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=2295

Escolhendo a pílula vermelha

What is “real”? How do you define “real”?
–Morpheus

Eu me lembro de quando estava tendo exatamente esta conversa com um cristão amigo meu e ele em algum momento disse : “Ok, mas afinal de contas, o que há de tão especial assim com a verdade?” E foi excelente ele ter sido capaz de colocar a questão de forma tão clara, porque se levada a sério, essa não é uma pergunta lá muito fácil de responder. Eu pessoalmente acho que abrir mão do critério de verdade como requisito fundamental para adotar um sistema de crenças leva a todo tipo de distorções e absurdos, tanto intelectuais quanto éticos, mas de fato é perfeitamente possível tomar – e diria eu, tomar *racionalmente* – essa decisão a partir do momento em que olhamos para a existência humana como algo que absolutamente não (nem de longe!) se resume à racionalidade.

You’ve felt it your entire life, that there’s something wrong with the world. You don’t know what it is, but it’s there, like a splinter in your mind, driving you mad.
–Morpheus

Inclusive eu acho muito mais saudável a posição de adotar sistemas de crenças religiosas com a plena consciência de que não se está com isso em busca da verdade do que a posição mais comum de defender fanaticamente que as crenças religiosas corresponderiam, sim à realidade concreta das coisas. Quanto mais se vai por esse caminho (de querer justificar crenças religiosas como *verdadeiras* ao invés de como confortáveis, convenientes ou úteis) mais bobagens se seguem. Agora, a autocrítica dual a essa é igualmente dolorosa e igualmente incomum : assim como é uma ilusão total querer justificar as crenças religiosas como *verdadeiras*, é uma ilusão total querer justificar não adotá-las apenas com base na “racionalidade”. Note-se, se alguém vem dizer que “é preciso acreditar apenas no que é lógico” e quando questionado sobre “mas afinal de contas por que mesmo?” responde “ora, porque é a única coisa lógica a fazer!”, é duro admitir, mas essa pessoa está sendo tão circular quanto alguém que diz “é preciso acreditar na Bíblia!” e quando questionado sobre “mas por que?” responde “ora, porque está na Bíblia”.

I’m trying to free your mind, Neo. But I can only show you the door. You’re the one that has to walk through it.
–Morpheus

Claro, uma resposta um pouco menos circular seria “Porque assim temos mais chances de acreditar no que é concretamente verdade”. E é precisamente neste ponto que surge o comentário do meu amigo : “Ok, mas afinal de contas, o que há de tão especial assim com a verdade?” E de fato, embora a lógica seja o caminho mais garantido para chegar ao que é verdade, escolher diante disso só acreditar no que é lógico continua dependendo da premissa de estamos de fato tentando chegar à verdade custe o que custar. Só que nossas necessidades mais importante e profundas são completamente ilógicas e injustificáveis para começar; esse fato só não é mais berrantemente óbvio porque existe um onipresente consenso social em aceitá-las como naturais e obviamente dispensadas de explicação, mas a rigor não há qualquer motivo racional ou lógico para viver e não morrer, para crescer e multiplicar, para interagir com outros seres humanos, para proteger sua própria integridade física, ou em resumo para fazer qualquer coisa. Quem não percebe isso, que não se dá conta disso, que não consegue aceitar isso está se auto-enganando em grande escala, sendo ou não religioso.

I didn’t say it would be easy, Neo. I just said it would be the truth.
–Morpheus

A questão toda é piorada pelo fato de que nossos irracionais, ilógicos e em última análise injustificáveis (e por vezes inconstantes, incompreensíveis, contraditórios e por vezes mesmo insondáveis e inacessíveis) instintos, sentimentos e impulsos são apesar disso tudo insufocavelmente e sufocantemente REAIS. Podemos diante disso aceitar que nossas motivações são completamente arbitrárias e abrir mão da ilusão de que sequer faça sentido falar em agir apenas racionalmente (isso seria buscar… o quê?) … ou podemos construir uma fantasia totalmente irracional (religiosa ou não) sobre por que nossos queridos preconceitos e fantasias são na verdade maravilhosamente bem fundamentados… e então agir “racionalmente” dentro do paradigma dessa fantasia. Em qualquer caso, a lógica permanece o melhor guia em termos de estimar o que é real. A questão é que “o que é real” absolutamente não é a única coisa que importa, aliás longe disso. O mundo real é árido e vazio de significado, e profundamente insatisfatório como residência de nossa psique.

Welcome to the desert of the real.
–Morpheus

Então vivemos todos uma escolha fundamental em nossas vidas (muito bem ilustrada na questão red pill versus blue pill) que é a seguinte : vamos escolher aceitar a verdade de que universo funciona como nossa mente racional implacavelmente nos informa que seja mais provável (ou mesmo certo) que seja de fato a realidade das coisas, ou vamos ao invés disso deliberadamente escolher defender crenças e valores que psicologicamente nos tragam conforto, paz e segurança mas que a rigor nosso julgamento racional indica que provavelmente (ou certamente) não correspondam à verdade?

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Mas talvez eu esteja já começando longe demais no argumento. A rigor temos também a opção de não questionar coisa alguma e simplesmente acreditarmos em paradas aleatórias. Inclusive me parece que essa seja a opção da maior parte da humanidade. Mas veja, quando você escolhe acreditar em uma idéia que você ouviu por aí, essa idéia não brotou do chão espontaneamente. Ela foi criada por alguém, e com grandes chances não foi criada por acaso. Existiria a possibilidade de que essa idéia tenha sido criada para te manipular? Mas que grande surpresa! Claro que existe. Pessoas dispostas a acreditar fortemente em idéias sem saberem muito claramente por que estão escolhendo acreditar naquilo são trivialmente, facilmente manipuláveis.

Seja como for, a maior parte das pessoas simplesmente escolhe a pílula azul por default, não porque tenha consciente e deliberadamente refletido sobre o assunto, mas porque nunca sequer chegou a perceber que existe uma escolha. O ser humano médio morre sem ter nunca ter enxergado a prisão cultural e intelectual na qual nasce, sem nunca ter percebido o quanto várias de suas crenças mais arraigadas são completamente arbitrárias e não têm qualquer relação com a verdade, o quanto querer ardentemente que uma coisa seja verdade e ela de fato ser são duas proposições completamente desconectadas.

Like everyone else you were born into bondage. Into a prison that you cannot taste or see or touch. A prison for your mind.
–Morpheus

Infelizmente os mecanismos sociais de controle que buscam manter o ser humano médio nessa prisão são enormes, onipresentes e fortíssimos. Experimente defender opiniões pouco usuais de qualquer tipo em praticamente qualquer grupo social e isso fica instantaneametne óbvio.

Mas existem mecanismos de controle mais deliberados e mais organizados do que a necessidade atávica de impor (e buscar) conformidade manifestada a nível de interações sociais espontâneas. Um deles é o sistema educacional, que da forma como modernamente constituído na maior parte das vezes, parece ter como diretiva mais importante punir, sufocar, destruir, impedir o pensamento criativo crítico independente.

Mas por mais que seja opressivo, o sistema educacional é algo de que a maior parte das pessoas se liberta (pelo menos materialmente) em algum momento. Um outro exemplo muitíssimo mais invasivo e que de fato pretende explicitamente fazer parte de todas as esferas da existência humana é religião. A religião como usualmente organizada é um sistema de impor conformidade que é particularmente perverso e danoso à psique. Sua malignidade deriva precisamente de sua determinação explícita e deliberada em exigir que o ser humano individual abra mão de seu julgamento independente, e mais ainda do que isso, em seu combate vociferante e cáustico a quem tem a audácia de não fazê-lo. O pior pecado imaginável em quase qualquer religião é não se submeter. A principal função e propósito da religião institucionalizada não está em nenhum lugar fora de si mesma, e sim em parasiticamente se auto-perpetuar, usando seres humanos como incautos hospedeiros.

Não que religião seja o único sistema de controle social; diversas ideologias ao redor do mundo cumprem a mesma função, criando sistemas que quanto mais totalitários vão ficando, mais vão se intrometendo em cada mínimo detalhe de nossas vidas. E quanto mais alguém mergulha numa dessas ideologias, em geral mais dependente delas vai ficando, e mais complexo fica dizer que aquilo é tudo um grande delírio, porque é precisamente a natureza dessas ideologias incentivar o ser humano não a ser forte e independente e íntegro e sim fraco e submisso e dependente. E isso não é por acaso – o sucesso dessas ideologias se deve em grande parte precisamente a isso.

But when you’re inside, you look around, what do you see? Businessmen, teachers, lawyers, carpenters. The very minds of the people we are trying to save. But until we do, these people are still a part of that system and that makes them our enemy. You have to understand, most of these people are not ready to be unplugged. And many of them are so inured, so hopelessly dependent on the system, that they will fight to protect it.
–Morpheus

Mas como eu disse no começo, nenhum desses sistemas explícitos porém é realmente necessário para aprisionar pessoas dentro de suas próprias mentes. Aliás, eu diria até que ao se tornarem explícitos, esses sistemas de controle tornam imediatamente claro que existiria uma escolha – desafiar o sistema – mesmo que se tente a todo custo fazer tal escolha soar impensável por repetido condicionamento. E na verdade no final das contas todos esses sistemas – explícitos ou não – dependem crucialmente de que introjetemos seus mecanismos de controle para funcionarem. Esses sistemas todos estimulam os nossos preconceitos e a nossa ignorância como forma de mais facilmente nos manipularem. Mas preconceitos e ignorância – ora, isso é algo que não precisamos de nenhum sistema externo de controle para cultivarmos nós mesmos. E de fato o fazemos em grande escala e espontaneamente, aprisionando a nós mesmos como reféns da nossa burrice, da nossa ignorância, do nosso medo, das nossas neuroses, sem a necessidade de qualquer sistema opressivo externo para ajudar.

Então ao final quem realmente realmente se aprisiona é você mesmo. Não que não haja limitações objetivas para o que podemos atingir e fazer e pensar e realizar, mas as limitações que a realidade física e a sociedade ao redor *concretamente* impõem em geral empalicedem diante das limitações que (muitas vezes incentivados por perversos sistemas externos de controle, mas ainda assim nós) impomos a nós mesmos.

What are you waiting for? You’re faster than this. Don’t think you are, know you are. Come on. Stop trying to hit me and hit me.
–Morpheus

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Ainda Aristóteles ../../.././2010/08/01/ainda-aristoteles/ ../../.././2010/08/01/ainda-aristoteles/#comments Sun, 01 Aug 2010 09:03:38 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=2041 Aristóteles dizia que tudo no universo seria composto de combinações de cinco elementos :

  • Fogo, que é quente e seco;
  • Terra, que é fria e seca;
  • Ar, que que quente e úmido;
  • Água, que é fria e úmida;
  • Éter, que está numa categoria à parte.

Cada um dos quatro elementos teria seu “lugar natural”. Todos seriam em princípio ordenados em torno do centro do universo, mas com diferentes prioridades. Em primeiro lugar viria a terra, em seguida a água, então o ar, e finalmente o fogo. Quando um elemento é colocado fora do seu lugar natural, ele tenderia a apresentar um movimento espontâneo, sem a necessidade de qualquer causa externa, em direção a este lugar. Assim sendo, objetos sólidos (feitos primordialmente de terra) afudam na água (em direção ao que seria o centro do universo). Da mesma forma, bolhas de ar (imersas em água) sobem, a chuva (imersa em ar) cai, enquanto que chamas (imersas em ar) sobem. O éter seria uma substância à parte da qual seriam compostos os corpos celestes, e que apresentaria perpetuamente movimento circular espontâneo.

Consideremos agora as seguintes questões. Podemos chamar a teoria de Aristóteles de científica? Ela faz algum sentido? Ela é uma besteirada delirante ou é intelectualmente respeitável? Ela ainda é intelectualmente relevante hoje em dia? Ela ainda é relevante para fazer ciência hoje em dia?

Alguém com educação e treinamento científico modernos, especialmente em ciências exatas, poderia facilmente argumentar que tudo isso é uma besteirada total, que está não só completamente superado como não faz qualquer sentido. Poderia afirmar que “fogo, ar, terra, água e éter” não descrevem absolutamente a realidade física de como o universo funciona, que esse tipo de explicação é uma sandice mística que não só não explica nada como entulhou o progresso da ciência por mil anos e ainda bem que foi finalmente reconhecida como tal e enterrada entusiasticamente na lata de lixo da história.  Sim, alguém educação e treinamenteo científico modernos poderia facilmente, triunfalmente dizer tudo isso.

Enquanto isso, um sujeito sem qualquer educação ou treinamento científico (ou que os rejeitasse), poderia por uma enorme coleção de motivos facilmente aceitar literalmente as teorias de Aristóteles como intelectualmente respeitáveis ainda hoje, e diante disso buscar de fato entender o universo literalmente em termos de fogo, terra, ar, água e éter, e achar que entenderá melhor como o universo funciona lendo não um livro texto de física moderna mas sim um tratado de filosofia natural escrito há dois mil anos. Ao que o sujeito com educação e treinamento científico moderno poderia facilmente, trivialmente comentar : “Que perda de tempo!”.

Qual dos dois está certo?

Quero colocar aqui a resposta de que ambos estão completamente errados. Não apenas um pouco, ou ligeiramente errados, mas muito, profundamente enganados.

Comecemos pelo que (para muitos, especialmente para quem de fato trabalha com pesquisa científica) talvez seja o mais óbvio, que é o segundo caso – do sujeito que insiste em ainda hoje citar Aristóteles como se fosse referência para entender como o universo de fato funciona. Isso é similar a querer estudar em detalhes como uma carroça funciona para melhor entender um carro de fórmula um. Não que carroças sejam inúteis ou irrelevantes. O uso de carroças foi de fato uma enorme revolução tecnológica, uma que ainda hoje tem grande relevância prática ao redor do mundo. Carroças – ao contrário de orar para os deuses ou rogar pragas – de fato funcionam, e podem efetivamente ser usadas como meio eficaz de transporte. E de fato é possível pensar num carro de fórmula um como sendo de alguma forma um descendente distante da carroça. Mas muito, muito, muito se passou desde que carroças eram a vanguarda da técnica humana, e muito pouca compreensão se conseguirá obter sobre um carro moderno estudando uma carroça, mesmo a mais brilhante carroça jamais concebida na história da humanidade. Da mesma forma, o pensamento literal de Aristóteles sobre ciência – em particular sobre fisica, como citado no exemplo acima – é totalmente obsoleto no sentido mais pleno da palavra. Nem ao menos é o caso de que a ciência moderna se fundamente (senão historicamente, e de uma forma distante e vaga, e quando o faz é freqüentemente para contradizê-lo) sobre o pensamento de Aristóteles.

Devemos então descartar Aristóteles como um pateta, um irrelevante?

De forma alguma.

Para começar, ele tem enorme importância histórica, e isso em si mesmo já seria suficiente para torná-lo intelectualmente relevante. Mas ele poderia ter importância histórica e mesmo assim ser um estulto ou completamente delirante (exemplos disso não faltam). Seria o caso?

Novamente, não, absolutamente não.

Voltemos aos aspectos da física de Aristóteles discutidos no começo deste texto. Tomá-los como um modelo literal do universo é risível dado o conhecimento atual. Porém, é preciso ter em conta que Aristóteles não tinha o benefício de séculos de ciência moderna para criar a sua física. Adicionalmente, é preciso tomar *muito* cuidado para não interpretar de forma excessivamente literal o que ele disse (e isso se aplica em geral a textos antigos retirados de seu tempo, seu lugar, e sua cultura), ou teremos um entendimento de suas teorias que o próprio Aristóteles classificaria de ridículo. Mais concretamente, pensemos sobre que tipo de interpretação não absurda poderíamos dar às tentativas de Aristóteles de descrever a realidade.

Para começar, Aristóteles buscava com este modelo descrever sistematicamente e idealmente explicar fatos concretos da realidade cotidiana. Não “fatos” mitológicos como anjos e duendes e fadas, mas fatos concretos como movimento e estrutura objetivamente observáveis e observados. Adicionalmente, para explicá-los, ele postula leis preditivas e universais cuja validade ou falsidade podem ser em princípio ser objetivamente verificadas por qualquer um e que abundantemente admitem logicamente observações que as contradigam (por exemplo, uma pedra que espontaneamente suba ao invés de descer). Isso é muito, radicalmente diferente de apresentar explicações místicas, teológicas ou cheias de exceções arbitrárias. Por esses dois critérios (discursar sobre a realidade observável e apresentar explicações preditivas universais objetivamente falseáveis), o modelo de Aristóteles descrito acima é, sim, perfeitamente científico.

Mas mais do que isso, a física de Aristóteles de fato forma um sistema razoavelmente coerente e integra (mesmo que apenas parcialmente) aspectos importantes de vários dos fenômenos mais visíveis e importantes na realidade da física cotidiana. Entre eles, a atração gravitacional do planeta Terra sobre todos nós, e como isso causa movimento “espontâneo” de matéria sem qualquer interação direta, algo que longe de ser falso, perturbava até Newton, que afirmou algo nas linhas de que “reconhecia as limitações de seu modelo que mesmo propondo uma lei pragmaticamente útil para descrever os efeitos da gravitacão, não fornecia nenhuma teoria ou explicação minimamente razoável para explicar sua origem ou justificar sua forma”, um problema que só veio a ser um pouco mais satisfatoriamente tratado por Einstein, e mesmo assim só em sua teoria da relatividade geral, e mesmo assim até hoje ainda de forma incompleta.

O modelo de Aristótles também inclui alguns aspectos de mecânica clássica que eu não descrevi completamente, como por exemplo a afirmação de que com exceção do movimento “espontâneo” descrito acima, todo movimento requer uma “força” constantemente aplicada ou cessará, algo que parece superficialmente contradizer Newton mas que ne verdade está essencialmente correto num mundo realista com atrito ao invés de no mundo idealizado dos livros de física básica.

Adicionalmente, em sua física Aristóteles propôs (como descrito acima) uma teoria sobre diferentes formas nas quais a matéria poderia existir. Para quem não sabe nada de ciência e resolve ter uma interpretação mística e fundamentalista do modelo acima, o resultado será algo que deixaria o próprio Aristóteles constrangido. Mas talvez surpreendentemente para quem nunca tenha pensado sobre isso, se entendermos a física de Aristóteles como uma teoria científica ao invés de como um oráculo, e buscarmos entender quais fenômenos ele estava descrevendo mesmo sem saber explicá-los, a classificacão de Aristóteles, embora desprovida de uma nomenclatura moderna e de um arcabouço teórico apropriado, é *precisamente igual* à que hoje usamos. Ele descreve cinco possibilidades, em ordem de “afinidade” com o centro do universo : terra, água, ar, fogo e éter. Ora, hoje em dia nós de fato fazemos a mesma classificação, apenas com o nome de “estados” da matéria : sólido, líquido, gás, plasma e vácuo. E sim, hoje em dia estranhamente se acredita que o vácuo não seja exatamente vazio; não é exatamente preenchido de “matéria” no sentido em que estamos acostumados, mas também não é desprovido de propriedades físicas ou de partículas. E os motivos que levaram Aristóteles a fazer essa classificação são, a grosso modo, exatamente os mesmos que nós : claramente uma pedra é diferente de uma poça d’água, que é diferente de um sopro, que é diferente de uma chama, que é diferente do que existe quando olhamos para o céu. O que exatamente são esses estados Aristóteles não foi capaz de compreender, e ele não chegou nem perto de algo parecido de uma compreensão moderna sobre por quê esses estados da matéria existem. Mas ele viu que havia algo ali, e construiu um modelo para capturar essas propriedades.

E de fato, sob um campo gravitacional, a grosso modo esses estados da matéria se comportam como descrito. Inclusive a natureza do campo gravitacional é de atração radial em direção a um centro – algo que permanece a grosso modo verdadeiro nas teorias mais modernas. E de fato a atração gravitacional produz um movimento aproximadamente circular nos corpos celestes mais facilmente observáveis. E ao contrário dos estados da matéria, ainda hoje não temos realmente uma compreensão perfeitamente satisfatória de por quê gravidade exista; apenas sabemos descrever muito melhor como ela funciona. Inclusive, muitos séculos depois de Aristóteles, havia uma quantidade considerável de motivos que não apenas preconceito ou tradição para questionar o abandono da ideia de que a Terra seria o centro do universo  (por outro lado isso absolutamente não torna aceitável sair queimando quem ousar questionar a ortodoxia). Sem uma teoria alternativa para interações gravitacionais, muito da física baseada nas idéias de Aristóteles simplesmente para de funcionar.

Então sim, a teoria física de Aristóteles faz total sentido, inclusive pelos padrões mais modernos. E sim, ela é uma teoria científica no sentido de que tenta seriamente fazer previsões concretas sobre como o universo de fato funciona, e tenta criar um modelo teórico que se conforme ao que de fato é observado. As teorias mais modernas sobre o universo, que falam por exemplo sobre matéria escura e energia escura, estão no mesmo estágio especulativo em que Aristóteles estava. Percebe-se que existe algo ali, só nao se sabe exatamente o quê. E portanto não, Aristóteles absolutamente não foi um paspalho, ele conseguiu ordenar numa teoria razoavelmente coerente muitas observações pertinents sobre fatos cuja causa e fundamento só foram ser desvendados muitos séculos depois.

Voltemos agora ao reverso da questão. Isso contradiz a afirmação de que a física de Aristóteles está completamente obsoleta?

Absolutamente não.

A física de Aristóteles é extremamente incompleta, excessivamente vaga, desprovida (pelos padrões modernos) de rigor e de profundidade teórica e em vários pontos factualmente errada. Seu sistema está tão ultrapassado que não tem mais qualquer papel em descrições modernas de como o universo de fato funciona. Sim, ele corretamente identificou e tentou descrever certos fenômenos que hoje em dia compreendemos, como os estados da matéria. Mas o nível de entendimento que ele foi capaz de atingir é tão infinitamente inferior ao atual que seria uma falsificação da verdade decrever suas idéias como algo menos que obsoletas. Não faz qualquer sentido hoje em dia tentar explicar o universo em termos de – literalmente – terra, água, fogo, ar e éter.

E é nesse ponto que aparentemente surge a maior parte da confusão sobre o assunto. Sim, uma criança aprender a falar é algo incrível que requer um nível impressionante de habilidade e inteligência. Isso não quer dizer que agora nós vamos colocar crianças para dar aula de pós-graduação em lingüística. Os primeiros grupos de macacos que começaram a falar eram brilhantes, mas hoje em dia isso não é mais novidade, e linguagem é uma tecnologia que desde então evoluiu muito. Não iríamos pedir a eles por lições de oratória, assim como não iríamos pedir a Isaac Newton conselhos sobre satélites de posicionamento global. Pelo menos não antes de ele fazer um curso de física moderna.

Então se eu critico referências acríticas à relevância de Aristóteles – e ele falou sobre muito mais do que física – é nesse sentido. É preciso entender do que se está falando, é preciso conhecer o que se falou de novo sobre o assunto desde a antigüidade. Mas principalmente e acima de tudo é preciso citar Aristóteles não como um argumento, ou como uma prova, ou como um oráculo. Nada se torna verdadeiro ou falso porque Aristóteles – ou Einstein, ou Newton, ou o Papolino – o disseram. A fundamentação última tem que ser na realidade independentemente verificável. E é na verdade principalmente aí que, me parece, repousa a revolta e a ira dos que se sentem pessoalmente ultrajados com o questionamento da relevância moderna de Aristóteles. Eles não querem verificar independentemente coisa alguma, afinal isso é trabalhoso e – pior ainda – incerto. Eles anseiam ao invés disso por viverem imersos no conforto das certezas absolutas, e dadas as constrangedoras limitações intrínsecas à condição humana para compreender qualquer coisa com qualquer grau de profundidade, precisam postular essa infalibidade oracular fora de si mesmos, em figuras que – grande sorte! – sabem exatamente identificar e às quais têm acesso. Em outras palavras, eles querem viver num mundo em que alguém lhes diga o que pensar e em que acreditar e escolhem como referência quem consigam aliviados enxergarem como suficientemente messiânicos para cumprir esse papel (para o qual naturalmente não faltam pretendentes ou candidatos). Em suma, preferem – nos casos mais sofisticados, deliberada e explicitamente – a segurança emocional das certezas absolutas escandalosamente fajutas à angústia e impotência diante da imensidão do que desconhecemos. Em outras palavras, ficam com a pílula azul.

. . . I have not been able to discover the cause of those properties of gravity from phenomena, and I frame no hypothesis . . .” ” . . . it is enough that gravity does really exist, and act according to the laws which we have explained . . .”
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Breve Bibliografia em Filosofia da Ciência ../../.././2010/05/30/breve-bibliografia-em-filosofia-da-ciencia/ ../../.././2010/05/30/breve-bibliografia-em-filosofia-da-ciencia/#comments Sun, 30 May 2010 19:06:29 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=2033 Infelizmente quando me mudei para cá deixei quase a totalidade dos meus livros para trás e à época não os tinha no meu computador, então reconstruir uma bibliografia partindo do que eu li e posso recomendar pessoalmente fica mais complexo dado que primeiro preciso me lembrar do que eu li. :-)

Seja como for, periodicamente recebo pedidos de recomendações sobre o que deve ser lido em filosofia da ciência. Bem, embora eu tenha decidido dedicar minha vida profissional à academia, não é com filosofia da ciência que eu gasto a maior parte dos meus esforços, então qualquer lista que eu proponha terá provavelmente grandes e importantes lacunas. Me reconforto um pouco em saber que isso provavelmente é verdade de qualquer lista desse tipo, dada a vastidão do tema. Enfim, essas são algumas das recomendações bibliográficas pessoais minhas sobre o assunto.

Para começar, eu gostaria de apontar que alguns dos grandes cientistas ao longo da história – aqueles que propuseram idéias tão importantes e revolucionárias que alteraram a própria forma de fazer ciência – se viram forçados eles mesmos a considerarem as implicações filosófica e metafísicas do que estavam dizendo, assim como a olharem para o próprio processo científico e questionarem sua natureza e validade. Então tendo eu sempre sido interessado em ciência, antes mesmo de consumir qualquer literatura exclusivamente sobre filosofia da ciência, já havia lido diversas discussões do assunto por acadêmicos hoje reconhecidos por vezes primordialmente por seu trabalho científico e não por suas discussões de filosofia. Entre eles estão notavalmente Galileu Galilei, René Descartes, Isaac Newton, Ernst Mach, Henri Poincaré, Albert Einstein, Bertrand RussellWerner Heisenberg. Digo notavelmente não apenas em termos de sua relevência intrínseca mas também em termos da influência que tiveram sobre minha opinião sobre filosofia da ciência como sendo um assunto importante. Poucos textos li no original da maior parte deles; na maior parte das vezes li *sobre* o que eles pensavem ao invés de diretamente o que escreveram, tanto pela inacessibilidade das fontes primárias quanto pela sua inescrutabilidade quando lidas contemporaneamente. Mas digo já de saída que é um equívoco gigantesco imaginar que os grandes cientistas desconheçam, não considerem, ou não discutam as implicações filosóficas do que estão fazendo assim como o que os autorizaria no final das contas a afirmar o que quer que seja sobre a realidade objetiva. Inclusive, repito, nas obras científicas mais revolucionárias e relevantes, a ciência esbarra diretamente com filosofia, e na expansão das fronteiras mais avançadas da ciência é necessários discutir explicitamente questões filosóficas. Isso fica claríssimo ao examinarmos o que todos os cientistas acima de fato disseram sobre filosofia da ciência. Infelizmente hoje em dia existe – possivelmente domina – o conceito do cientista não como vocação intelectual mas como “somente um emprego”, caso em que o sujeito está em geral muitíssimo pouco preocupado em questionar paragidmas ou revolucionar qualquer coisa e sim, muito pelo contrário, interessado em investir seus esforços nas direções menos controversas que for possível, receber seu salário e ser deixado em paz.

Uma exceção na lista acima quanto a eu ter consumido primordialmente fontes secundárias é no caso de Einstein. Não que eu não tenha lido muito do que se escreveu tanto sobre ele quanto sobre sua obra científica e seu significado (além de quando estudante de engenharia ter sido submetido à versão-para-universitários da teoria da relatividade especial presente em livros texto de física moderna), mas além disso também li diversos textos escritos pelo próprio, como a coletânea The World As I See it (que na verdade não tem muito sobre filosofia da ciência) e Relativity. Este último de fato fala sobre filosofia da ciência, interessantemente não como um tópico em si, mas como uma necessidade para fazer a ciência da qual o livro trata. Uma parte substancial do livro é gasta discutindo conceitos, como justificá-los, e seu significado.

Outra grande exceção na lista acima quanto a eu ter consumido primordialmente fontes secundárias é no caso de Russell. Autor extremamente prolífico, várias de suas obras permanecem não apenas legíveis como relevantes ainda hoje. O primeiro livro que li dele foi Introduction to Mathematical Philosophy, um clássico absoluto que se por um lado hoje em dia está academicamente um pouco datado, por outro lado permanece perfeitamente acessível e retrata um momento de transição de importância fundamental tanto para filósofos quanto para matemáticos – e de forma mais ampla para cientistas em geral. A única contra-indicação que eu talvez possa ter a esse livro é que possivelmente seja difícil gostar dele para quem por algum motivo se convenceu de que odeia matemática.

Até o momento, porém, venho citando os contatos que tive com filosofia da ciência como efeito colateral de estar interessado em ciência. O primeiro contato que tive com pensadores que se dedicaram mais extensamente a abordar filosofia da ciência como um assunto em si mesmo foi através do curso obrigatório de filosofia da ciência que fiz na PUC-Rio. Um parêntesis aqui para que não sabe – a PUC tem como um de seus princípios a idéia de que todos os seus alunos devem ter uma formação não apenas técnica mas também minimamente humanística e moral, e para satisfazer esse requisito o aluno tem que escolher uma certa quantidade de cursos em filosofia, religião e ética para cursar de forma a poder se graduar. Entre esses cursos, eu fiz o de filosofia da ciência, e isso acabou sendo razoavelmente interessante, por vários motivos. Um deles é que eu parecia ser praticamente o único ser humano na sala de aula remotissimamente interessado nos tópicos sendo discutidos, então as aulas viraram por vezes um diálogo entre mim e o professor com a classe presente assistindo. Outro motivo é que por total coincidência revelou-se que o professor morava exatamente no mesmo prédio que eu, e não tinha carro, e ia para a PUC de ônibus, algo que levava da ordem de 40 minutos. Assim sendo, eu passei a dar carona para ele regularmente, e no caminho já íamos falando de filosofia da ciência, com o resultado de que quando a aula começava a turma estava de fato meio que se juntando a um diálogo pré-existente. Finalmente, como mencionei, foi a primeira vez em que de fato fui apresentado de forma minimamente organizada à literatura da filosofia da ciência como um assunto em si mesmo.

O professor adotou como referência recomendada o autor Alan Chalmers, especificamente o livro What Is This Thing Called Science, que eu concordo que é uma boa introdução ao assunto. Um outro livro do Chalmers que pode valer a pena é Science and Its Fabrication.

Bem, só que a partir daí se abre todo um universo do estudo da filosofia da ciência não da parte dos cientistas mesmos e como parte do processo científico, mas sim partindo de filósofos, e como um assunto em si mesmo ao invés de aplicado ao desvendamento de uma determinada questão científica. É completamente impossivel sequer começar a resumir aqui todas as posições e questões envolvidas, mas posso citar alguns dos autores e livros que considero mais essenciais – ou pelo menos que eu pessoalmente acho que vale a pena examinar. Entre eles (forçosamente incompleta esta lista) : Charles Sanders Peirce, Karl Popper, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend, Willard Van Orman Quine, Daniel Dennett. Ressalva : nem todos eles têm igual relevância ou importância e essa lista expressa fortes preferências pessoais. Naturalmente que em qualquer lista deste tipo temos que incluir também Platão e Aristóteles, mas isso além de óbvio eu considero como pré-requisito fundamental para qualquer um que queria falar seriamente seja de ciência, seja de filosofia. E como dizer que “ah, e para discutir filosofia você precisa saber ler e escrever”. Isso sendo dito, não é discutindo Platão e Aristóteles que vamos compreender o que ocorre modernamente seja em ciência seja em filosofia da ciência.

Peirce em particular teve uma vida infernal e é na minha opinião um pensador que se não tivesse sido assolado por circunstâncias adversas teria hoje muito mais relevância do que lhe é concedida. Karl Popper é figura obrigatória em qualquer lista, e seu livro The Logic of Scientific Discovery é um clássico. A obra correspondente de Kuhn é The Structure of Scientific Revolutions, e para quem gostar deste, a continuação obrigatória é Feyerabend, com Against Method. Quine figura nesta lista em grande parte por minha simpatia pessoal :-). Ele nunca realmente escreveu um grande clássico sobre filosofia da ciência. Mas isso não quer dizer que não tenha escrito nem tido influência sobre o assunto, e uma possível sugestão seria From a Logical Point of View.

Finalmente, temos Daniel Dennet, um prolífico e ativo filósofo contemporâneo que se ocupa entre outros assunto com filosofia da ciência, e que acrescento a esta lista em parte porque ele de fato escreve sobre o assunto de forma geral mas mais especificamente porque ele tem a coragem de discutir abertamente religião de forma crítica como não estando de forma alguma à parte do processo científico. A idéia de que a religião possa querer por vezes se colocar como uma “forma de conhecimento” separada da ciência e imune à lógica ou a todas as considerações que (por vezes os próprio religiosos!) fazem ao processo científico é completamente insustentavel. Ou a religião está de fato dizendo algo sobre a realidade, algo com pretensões a ser objetivamente verdadeiro, e nesse caso a filosofia da ciência é relevante e precisa ser levada em conta, ou não está, e nesse caso, importantes que as idéias religiosas sejam, pertencem ao reino da mitologia, arte, literatura ou fantasia, mas não são uma investigação coerente da realidade objetiva. Para quem gostou dessa descrição, eu recomendo o livro Breaking the Spell.

Outros livros que eu aleatoriamente gostaria de mencionar que de alguma forma discutem criticamente como a ciência de fato funciona assim como os fundamentos filosóficos da nossa própria capacidade de compreender qualquer coisa são : Beyond The Hoax (Alan Sokal), Godel, Escher, Bach (Douglas Hofstadter) e Are Quanta Real?.

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Citando Aristóteles ../../.././2010/01/11/citando-aristoteles/ ../../.././2010/01/11/citando-aristoteles/#comments Mon, 11 Jan 2010 22:38:19 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1574 Se é pra citar Aristóteles então
citemos logo esse sujeito aí em cima :
Só sei que nada sei.”

Eu gostaria de propor aqui uma lei empírica sobre debates filosóficos labirínticos : a qualidade da argumentação de um cidadão é inversamente proporcional à quantidade de vezes em que o sujeito cita Aristóteles.

Agora note o leitor, nada tenho eu diretamente contra Aristóteles. Ele era um gênio e coisa e tal. Enxergou muito à frente de seu tempo, como Kepler, ou Copérnico, ou Galileu, ou Newton. Aliás, mesmo quando estava citando ou desenvolvendo pensamentos originais de seus predecessores (aliás exatamente como Kepler, ou Copérnico, ou Galileu, ou Newton) ele provavelmente viu mais à frente do seu tempo do que todos esses aí somados.

Porém, para começar, permanece o fato de que muito, muito, muito ocorreu depois de Aristóteles. É absolutamente ridículo falar por exemplo de lógica modernamente num nível mais do que introdutório referindo-se apenas a Aristóteles, assim como é ridículo falar de física modernamente num nível mais do que introdutório referindo-se apenas a Newton. E em assuntos como física e biologia, embora Aristóteles tenha sido um pioneiro que lançou antes e acima de tudo projetos revolucionários sobre como pensar ciência, quase tudo que ele falou está hoje em dia completamente obsoleto e tem interesse meramente histórico.


Also sprach Aristóteles

Mas esse não é o maior problema em citar Aristóteles. O maior problema não é o contexto, e sim a forma como ele é freqüentemente citado, que é com o seguinte subtexto : “Veja bem, Aristóteles dizia isso, então deve ser verdade.”

Esse é um recurso absolutamente tolo à autoridade e não cabe num argumento sério. Não é problema mencionar que Aristóteles dizia algo, mas apresentar isso como argumento mais do que circunstancial (do tipo “olhe só, vale a pena pensar sobre isso”) para tentar estabelecer que algo seja verdade significa sair do reino da ciência, da lógica e da razão e entrar no reino do obscurantismo dogmófilo. Se algo é verdade, é verdade independentemente de Aristóteles ter percebido, e deve ser estabelecido por argumentos que se refiram à realidade, não com base em ele tê-lo enunciado. Afinal, Aristóteles também falava bobagens, como todos nós.

No entanto, isso parece escapar aos citantes em grande parte das vezes em que Aristóteles é mencionado. Ele parece ser um magneto para esse tipo de menção acrítica. Não que Einstein, Darwin e Newton não tenham também revolucionado as ciências e suas idéias servido de fundamento para grande parte do pensamento moderno. Mas parece mais amplamente percebido no caso destes últimos que suas idéias têm mérito não por serem oraculares ou misticamente inspiradas (mesmo que o tenham sido) e sim por corresponderem de alguma forma à realidade de como o universo de fato funciona. Eles não foram profetas e sim cientistas e pensadores. Assim como Aristóteles, e ele provavelmente seria o primeiro a concordar. A verdade, para ser digna deste nome, permanece verdade mesmo quando ninguém a enxerga, e não se torna ou deixa de sê-lo como efeito colateral de quantas ou quão ilustres são as pessoas que foram capazes de fazê-lo.

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Transcendência (versus?) Imanência ../../.././2009/09/12/transcendencia-versus-imanencia/ ../../.././2009/09/12/transcendencia-versus-imanencia/#comments Sat, 12 Sep 2009 16:11:35 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1179 Um camponês olha para uma montanha e, sem qualquer pretensão filosófica ou espiritual, observa, como desde a sua infância, ao olhar naquela direção, o que lhe parece simplesmente óbvio :

“Eis ali uma montanha.”

Um dia, porém, passa por ali uma missão enviada pela universidade da capital para medir e estudar as riquezas naturais do país, e um prestigioso geólogo ouve o camponês, e exclama :

“Quanta ingenuidade. Isto não é uma montanha. Veja bem, a forma como o planalto se dobra para alcançar a plataforma oceânica, quando vista deste ângulo, dá essa impressão, mas uma formação desse tipo não pode ser adequadamente chamada de montanha. Inclusive para mim isso não passa de um acidental depósito de rochas sedimentares que ficou para trás quando o oceano recedeu nesta região há cem milhões de anos atrás.”

Ao que se junta o físico da equipe e diz :

“Eu iria ainda mais longe e diria que tudo o que vejo ali é um aglomerado de átomos que se mistura sem nenhuma fronteira logicamente defensável com o ambiente ao redor, inclusive a atmosfera; é um sistema que dinamicamente se modifica e renova e ao qual é injustificável sequer darmos uma identidade una e independente.”

E neste momento o biólogo que fazia levantamento de biodiversidade para a equipe diz :

“Pois o que eu vejo ali é um ecossistema de alta complexidade. Inclusive alguns dos pássaros ali presentes são migratórios sazonais e se integram com as populações ao norte do país, o que como efeito colateral promove a troca de pólen e sementes de espéceis vegetais entre as duas regiões, que não têm portanto como serem compreendidas separadamente.”

Ao que se junta o engenheiro da equipe e diz :

“Para mim a questão é que este local é excelente para passarmos uma estrada, pois veja bem, o declive na encosta leste é moderado e termina em solo compacto e com excelente drenagem em caso de chuvas.”

Neste ponto, o camponês, muito impressionado com a quantidade de conhecimento de todos esses doutores, e envergonhado de sua ignorância, retira-se para seus simples afazeres.

Porém, as vozes de todas aquelas autoridades sobre o que ele conheceu a vida inteira permanecem ressoando em sua mente, e perturbado com sua incapacidade de conciliar as profundas revelações que ouvira com sua experiência cotidiana, ele procura um grande sábio que habita na região e provê auxílio espiritual aos que necessitam.

“Meu pai, eu o procuro porque repentinamente aquilo que eu percebia com meu coração não parece mais ser verdade, mas ao mesmo tempo eu não consigo conciliar o que eu sinto com tudo aquilo que me disseram. Eu conheço aquele local desde criança, eu brinquei nas suas matas, eu bebi dos seus rios, eu lá busquei madeira para me aquecer no inverno, e pedras para calçar o pátio da minha fazenda na estação de chuvas. Como é possivel que aquilo que eu pensei que conhecia tão intimamente seja na verdade tão estranho e insuperavelmente incompreensível para mim?”

O sábio ouviu a pergunta e respondeu :

“Meu filho, tudo o que eles disseram é verdade, assim como tudo o que você disse também é. E no entanto nada disso chega perto de arranhar a superfície de tudo o que há para ser sabido sobre aquele local. Há ali muito mais do que qualquer humano jamais poderá saber, ou dizer. Mas não há qualquer contradição nisso. São diferentes aspectos da mesma realidade infinitamente rica. O nome que se dá para a totalidade do fenômeno que cada um de nós foi capaz de apreender apenas de forma parcial, incompleta e limitada é aquele que você já sabia desde o princípio : Eis ali uma montanha.”

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O Fantástico Argumento de Santo Anselmo ../../.././2009/07/12/o-fantastico-argumento-de-santo-anselmo/ ../../.././2009/07/12/o-fantastico-argumento-de-santo-anselmo/#comments Sun, 12 Jul 2009 20:50:02 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1080 Para quem desconhece, o “argumento” de Santo Anselmo, é um argumento ontológico visando supostamente “provar” a existência de deus, apresentado (entre outros) por, bem, Santo Anselmo. (Existem outros argumentos ontológicos.)

O “argumento” de Santo Anselmo é essencialmente o seguinte :

1. Deus é a entidade mais completa / perfeita / maior / superior a todas as outras entidades concebíveis.
2. É mais completo / perfeito / maior / superior necessariamente existir do que não existir.
3. Portanto deus deve necessariamente existir.
4. Portanto deus existe.

Tem tantas coisas erradas com este argumento que é até difícil criticá-lo. É similar a criticar “Se todos os morangos que voam têm um PhD em lingüistica então eu sou um limão.” Com a diferença de que este argumento, ao contrário do argumento de Santo Anselmo, está perfeitamente correto do ponto de vista de lógica.

Usarei abaixo “A” para o quantificador lógico “para todos” e E para o quantificador lógicos “existe pelo menos um”.

O problema já começa quando tentamos atribuir significado lógico a essas idéias. Essa relação de “maior” está absolutamente mal definida, por exemplo. Mas digamos que formalmente exista uma relação binária M(x,y) definida sobre “todas as entidades concebíveis”, seja M qual for. E chamemos a propriedade de “ser deus” de D(x). Temos então :

1. A(x) [ D(x) <--> A(y)M(x,y) ] (definição)

Então chegamos ao passo 2, no qual é dito que é “mais perfeito” ser necessário do que não ser. O que se está dizendo então é que se x e y são entidades concebíveis e x existe mas y não existe, então x é “mais perfeito” do que y (implicitamente, sejam quais forem todas as outras propriedades de x e y). Aliás, note-se portanto que “existir” não é uma propriedade necessária das entidades concebíveis. Então chamemos essa propriedade de existir na realidade (e não apenas como “entidade concebível”) de R(x). Temos então :

2. A(x)A(y) [R(x)^~R(y) --> M(x,y)] (premissa)

A partir daí, chega-se (usando 1 e 2) ao centro do argumento, que é a conclusão de que algo que seja deus tem necessariamente que existir. Este passo está perfeitamente correto logicamente. Temos então :

3. A(x) [ D(x) --> R(x) ] (de 1 e 2)

O problema é no último passo, quando se conclui então que necessariamente existe uma entidade tal que ela satisfaz a definição de deus e ela é real (em oposição a meramente concebível).

4. E(x) [ D(x) ^ R(x) ] (errado, injustificável logicamente!)

O que efetivamente nós podemos concluir com base nas premissas apresentadas é que *se* deus como definido acima existe como entidade concebível, então existe como entidade real. Isso de forma alguma estabelece a necessidade lógica de que exista algo, mesmo no mundo das entidades concebíveis, que de fato satisfaça à definição de deus – *caso em que* teria que existir. Essa definição da propriedade “algo maior do que todos os outros” não é necessariamente instanciável para qualquer relação, ainda mais no caso de conjuntos infinitos, e isso não é nenhuma novidade. Isto é, claro, a não ser que estejamos dispostos a aceitar contradições, mas nesse caso automagicamente tudo é verdadeiro sem precisar de prova e não estamos mais falando de coisa alguma.

Portanto, o argumento não faz sentido nem mesmo em termos de lógica abstrata. Note-se que mesmo que ele *fizesse* sentido em termos puramente lógicos, as definições dadas são completamente arbitrárias, e não apresentam qualquer justificativa ou explicação sobre o que exatamente é ser “mais perfeito” ou por que seria “mais perfeito” existir do que não existir. Para o argumento ter qualquer relevância prática seria necessário estabelecer conexões entre tais afirmações e definições e o mundo real, porque senão estamos falando somente sobre um mundo imaginário no qual relações com essa estrutura formal são válidas.

Uma parte do problema de historicamente descontruir o argumento de Santo Anselmo é que um entendimento mais profundo da relação entre lógica e linguagem não apareceu até muito recentemente. Noções mais claras do que seja uma prova e da relação entre sintaxe e semântica em lógica formal só apareceram quase comtemporaneamente. Os gregos de fato iniciaram uma tentativa heróica de estudar o assunto mas chegaram a resultados bastante incompletos e depois disso houve um gigantesco hiato em que o progresso foi muito lento.

Em tempos mais recentes porém houve grande progresso na área, e um entendimento bem mais rigoroso do que constitui uma prova formal, e um dos grandes expoentes nisso foi Gödel.

Muito ironicamente, Gödel foi uma das pessoas que buscou de alguma forma atualizar ou “consertar” o argumento ontológico. Ele escreveu uma versão da mesma idéia usando lógica modal. A versão de Gödel nunca foi realmente considerada prova de coisa alguma pela comunidade matemática em geral, e sofre de problemas similares, embora menos primários.

Note-se que Gödel, apesar de ser um gênio, não era exatamente um modelo de equilíbrio psicológico e no final de sua vida tinha um grande temor de ser envenenado, comendo somente a comida preparada por sua mulher. Ocorreu então de sua mulher ficar doente e ter que ser hospitalizada por um longo período, e como resultado Gödel parou de comer, eventualmente falecendo (!) devido a subnutrição extrema.

O que isso prova sobre seus teoremas? Absolutamente nada! Teoremas não são verdadeiros dependendo de quem os publicou, e sim por causa de sua estrutura. A verdade é verdade independentemente de quem a diga e “fulano disse x” é no máximo evidência circunstancial, seja contra seja a favor. Elevar a autoridade a critério de verdade é subverter completamente a possibilidade de honestidade intelectual. Os maiores gênios da humanidade por vezes (aliás quase sempre) também dizem enormes bobagens e sua genialidade está muitíssimo mais na sua capacidade de enxergar coisas que ninguém mais viu do que na de serem infalíveis. Distinguir o joio do trigo, distinguir a verdade que corresponde objetivamente à realidade dos fatos de historinhas e devaneios é tarefa crítica inalienável do ouvinte sem a qual passa-se simplesmente a acreditar em “coisas”. O que, infelizmente, é a estratégia intelectual de grande parte da população mundial.

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A Voz De Um Indivíduo ../../.././1998/01/15/a-voz-de-um-individuo/ ../../.././1998/01/15/a-voz-de-um-individuo/#comments Thu, 15 Jan 1998 22:00:01 +0000 Sergio de Biasi http://oindividuo2.wordpress.com/?p=107 Indivíduo – um ser humano isolado, considerado separadamente de um grupo.

Qual a importância das idéias de um indivíduo ? Qual a relevância do que um indivíduo, sozinho, tem a dizer ? Por que deveríamos proteger o pensamento individual ?
Para melhor refletir sobre essa questão, invertamos a pergunta : Existe algum outro tipo de origem para idéias e pensamentos ? Ou será que, na verdade, tudo o que surgiu de original e belo e, inclusive, atualmente compartilhado como comunitário e coletivo em nossa cultura teve que primeiro ser criado por algum indivíduo em algum momento no espaço e no tempo, incluindo nossa língua, nosso país, nossos valores ? Mesmo que cada pequeno passo adiante tenho sido pensado mais de uma vez por indivíduos diferentes, e que cada um tenha apenas acrescentado sua pequena contribuição, o ato original, inovador, criativo é definitivamente um privilégio do indivíduo. Um dos fatores que mais nos torna humanos e especiais é justamente a nossa enorme capacidade para o pensamento divergente. Sem dúvida, é possível construir uma coletividade sem individualidade – basta examinar um formigueiro. Porém, isso seria abrir mão de tudo o que temos de melhor. Acredito que a humanidade, com toda a abrangência do termo, sustenta-se na existência e em um profundo respeito à individualidade.

Essa constituía provavelmente a principal idéia com cuja divulgação eu pretendia colaborar ao participar da criação e da distribuição do jornal “O Indivíduo”. Infelizmente, no tumulto acalorado que se seguiu, muito pouco da atenção pública resultante se voltou para essa questão, e penetramos todos em um labirinto de equívocos. Escrevo o presente texto para tentar cooperar com os interessados na construção de um mapa desse labirinto.

A resposta ao número zero

Através das conversas que tenho tido e dos e-mails que foram enviados para o site do jornal na internet, cheguei à grata conclusão de que, para a grande maioria das pessoas que efetivamente leram o que foi publicado no número zero, conseguimos comunicar pacificamente e com razoável clareza a maior parte nossas idéias e reflexões. Analogamente, a maioria dos leitores – inclusive os discordantes – manifestou sua posição de modo civilizado e construtivo.

No entanto, paralelamente a esse debate, normal e desejável em uma sociedade livre, houve algumas manifestações (por vezes fisicamente) violentas e muito pouco civilizadas de desagrado, geralmente associadas a acusações ou à “justificativa” de que estaríamos promovendo essa ou aquela ideologia anti-social. Mais do que isso, observamos que tal tipo de reação destrutiva geralmente não veio acompanhada de argumentos, refutações ou do desejo de dialogar, mas, exatamente ao contrário, da defesa ou da exigência de que o jornal fosse banido, proibido ou de alguma forma censurado. Isso, é claro, levanta uma série de importantes questões relacionadas com o direito à liberdade de expressão, se deve mesmo ser permitido dizer publicamente o que quer que seja, etc…

Um redemoinho de mal-entendidos

Porém, curioso mesmo é que as acusações mais sérias se referem a posições que jamais defendemos, ou que até mesmo foram atacadas no próprio jornal.

Como isso é possível ?

Em primeiro lugar, percebo que muita gente simplesmente não leu o jornal mas manifestou (e manifesta) opinião formada sobre seu conteúdo. Incluo nesse grupo aqueles que leram os títulos e algumas frases de dois ou três artigos e consideraram isso suficiente para emitir um julgamento sobre o todo.

Em segundo lugar, vejo muita gente que não entendeu o que pretendíamos dizer. Talvez não tenhamos sido “suficientemente” claros (o que seria isso, afinal ?); o fato é que muitos parecem, em vários momentos, extrair de nossas palavras sentidos completamente diferentes daqueles que visávamos transmitir com elas. Alguns chegam a concluir que se interpretaram de um certo modo o que escrevemos então necessariamente era aquilo mesmo que queríamos dizer. Por outro lado, é bom verificar que a maioria da sociedade ainda tem o devido senso de proporção e sabe distinguir o que publicamos das estranhas interpretações que certos grupos vêm veiculando. O artigo que mais tem causado polêmica, por exemplo, não só não é racista como é profundamente anti-racista, tão anti-racista que considera perigoso que a raça seja usada como critério para qualquer coisa. Se ele está equivocado ou não em suas observações é uma discussão importante e válida, mas ele evidentemente não promove a discriminação racial
ou o racismo como comportamentos desejáveis.

Em terceiro lugar, vejo os que leram e compreenderam, mas que ao invés de questionar o conteúdo explícito dos textos apresentados, combatem o que “denunciam” como significados e propósitos “ocultos” nos textos – significados, os quais, é claro, subentende-se que nós jamais iríamos “confessar” abertamente. Esse argumento é particularmente irrespondível, pois é impossível demonstrar que não há uma conspiração ocorrendo. Ao contrário, quanto mais evidências se apontam para demonstrar que não há absolutamente nenhuma “intenção oculta” associada a seja lá o que for, mais perfeita e sofisticada a “conspiração” parecerá aos olhos de quem “já sabe” que “só pode” se tratar de uma. O fato concreto é que somos quatro estudantes universitários que se reuniram espontaneamente e por iniciativa própria para fazer um jornal contendo exclusivamente artigos de nossa autoria e que distribuímos o resultado de nossa iniciativa no campus da universidade onde estudamos com o único propósito de que as pessoas que participam daquela comunidade pudessem pacificamente lê-lo.

Será isso algo assim tão inusitado ?

Contribuíram para os ânimos acalorados alguns fatores externos ao jornal. Por exemplo, a PUC-Rio havia acabado de passar por uma das eleições para o DCE mais movimentadas dos últimos anos, e a nova chapa eleita tomava posse justamente enquanto distribuíamos “O Indivíduo”.

Talvez a maior coincidência, ou sincronicidade, como queiram, tenha sido o fato, extensamente apontado, de que a impressão do jornal tenha ficado pronta às vesperas do dia de Zumbi e da comemoração do dia da consciência negra. Isso contribuiu para que grande parte dos leitores não percebesse que o artigo “A Negra Noite da Consciência” se refere a uma semana de eventos e palestras promovida na PUC há algum tempo atrás, e não ao dia da consciência negra, promovido na época da distribuição do jornal. Não estou argumentando aqui que isso faria ou não muita diferença no conteúdo do artigo – isso deve ser perguntado a seu autor. A questão é que essa proximidade foi usada como argumento em acusações de que “o que o jornal visava mesmo era criar tumulto”. Ora, novamente, é impossível provar a inexistência de intenções conspiratórias, mas o fato objetivo é que já pretendíamos – e até preferíamos – distribuir “O Indivíduo” semanas antes, quando estaríamos em aulas e mais alunos teriam acesso ao jornal. Contudo, estávamos em provas, houve vários atrasos, e o jornal impresso acabou só chegando a nossas mãos na véspera do dia em que foi distribuído. Isso foi exatamente o que aconteceu – nunca planejamos lançar o jornal em nenhum dia específico.

Individualidade versus Individualismo

Apesar do editorial publicado no número zero, que pretendia esclarecer o significado do título do jornal, houve quem nos criticasse pela defesa do “individualismo” no sentido egoísta da palavra. Retorno, portanto, ao tema.

Examinemos a definição de indivíduo :

Indivíduo – um ser humano isolado, considerado separadamente de um grupo.

Antes de formarmos qualquer grupo ou coletividade, somos todos indivíduos. Somos as células da coletividade, sua unidade estrutural indivisível. Quando um grupo de pessoas “decide” fazer alguma coisa, não surge uma “consciência grupal” autônoma que passa a deliberar independentemente. Dizer que uma coletividade “decidiu” alguma coisa é apenas uma imagem que simplifica a criação de um modelo para os fatos sem descrevê-los completamente. Para que essa “decisão” se efetive, é preciso que cada indivíduo, separadamente, decida por si mesmo colaborar com a “decisão” do grupo. Essa pode ser uma decisão emocional ou até mesmo inconsciente, mas permanece uma decisão individidual. Os indivíduos são os únicos com a capacidade de decidir o que quer que seja; um monte de indivíduos juntos decidindo mais ou menos a mesma coisa não é o mesmo que uma suposta entidade metaindividual tomando uma única decisão.

Por que isso é tão importante ? Porque é perigoso imaginar que “o grupo” tenha uma consciência moral – ele não tem. Quem dispõe da consciência moral é o indivíduo, e do ponto de vista prático só a pode exercer individualmente ou encontrando outros indivíduos dispostos – por seu julgamento individual – a colaborar com ele. A maturidade moral só é atingida quando um indivíduo percebe que pode estar errando apesar de todos à sua volta o apoiarem e que pode estar acertando apesar de todos à sua volta o condenarem. A verdade não surge do consenso ou da vontade da maioria, e sim da obervação e da reflexão cuidadosas.

Há uma história que diz que há muito tempo a China era governada por um imperador que nunca aparecia em público. Depois de algum tempo, os súditos começaram a se perguntar sobre a seguinte questão : “Qual será o comprimento do nariz do imperador da China ?”. Como era impossível verificar diretamente, um “sábio” resolveu então usar o seguinte método : reuniu vários camponeses e instruiu-os a percorrer a China perguntando, a todos os que encontrassem, qual eles acreditavam que era o comprimento do nariz do imperador. Com certeza, imaginou o “sábio”, quanto mais pessoas fossem consultadas, mais próximo ele estaria da resposta correta, bastando para isso obter a média das respostas colhidas. Pois é exatamente dessa forma que eu vejo muitas pessoas executando seus julgamentos éticos e morais. E o que eu tenho a dizer é : cuidado, isso é perigosíssimo.

Portanto, o título “O Indivíduo” pretende ressaltar o fato de que é preciso que cada indivíduo, isoladamente, exerça sua consciência ética, sua inteligência, sua criatividade, seus sentimentos, sua humanidade para que possamos então, juntos, formar uma sociedade ética, inteligente, criativa, sensível e humana. O sentido de nossas reflexões, portanto, não se encontra de forma alguma no individualismo egocêntrico mas sim na individualidade característica de todo e cada ser humano. Somos todos diferentes e especiais e misteriosos uns para os outros, e portanto cada ser humano é insubstituível e deve ser respeitado em sua singularidade.

Liberdade de pensamento e de expressão

Em nosso Brasil atual tenho visto algumas pessoas clamando pela repressão aos “abusos do direito à liberdade de expressão”. Ora, o próprio conceito de liberdade de expressão existe justamente porque há idéias que nos provocam repulsa, idéias que consideramos “perigosas” ou “erradas”. Ou seja, a liberdade de expressão não foi imaginada tendo em mente quem diz algo que ouvimos com prazer, e sim para proteger aqueles que têm a nos dizer coisas de alguma forma incômodas que não queremos que sejam ditas. Portanto, me parece muito estranho e perigoso falar em “abuso da liberdade de expressão” com base no fato de que alguem sentiu-se ofendido com o que foi dito. Ou é um direito fundamental ou não é. E o princípio é que não é desejável que as pessoas sejam punidas por comunicarem aquilo em que realmente acreditam. Mesmo crimes como perjúrio ou falsidade ideológica fundamentam-se justamente no fato de que o que foi manifestado não representava a expressão do pensamento do autor da manifestação! Claro, há o caso de incitações explícitas ao crime, que é mais complicado. A fronteira entre o crime, a incitação ao crime, e opiniões sobre o crime pode por vezes ser tênue mas é fundamental que a procuremos. Se não o fizermos, daqui a pouco estaremos prendendo médicos por escreverem artigos científicos dizendo que a maconha não faz tão mal assim. Estamos atravessando tempos difíceis, tempos em que uma parte da sociedade, rapidamente esquecida dos terrores do patrulhamento ideológico e da censura, novamente se deixa inebriar pela tentação de reinstaurar em nosso país o delito de opinião. Quando isso ocorrer, teremos mais uma vez perdido nossa duramente conquistada democracia. É preciso que a maioria silenciosa que enxerga e teme essa terrível ameaça se manifeste. Lembremo-nos do seguinte diálogo, se não me engano imaginado por Thomas More em uma de suas obras, e que aqui recrio de memória :

- Quer dizer que você passaria por cima da lei se enxergasse o demônio do outro lado?
- Certamente que sim! Eu abriria um grande buraco na lei para poder atingir o demônio!
- Meu caro amigo, se você assim perseguir o demônio, e derrubar lei após lei, quando finalmente houver derrubado a última lei da Inglaterra e o demônio se voltar, sorridente, contra você, onde você se esconderá?

Divergências entre os autores

Já no momento em que apresentei meu artigo “Ciência e Filosofia” aos outros editores do jornal, eu ouvi : “Discordo completamente do que você escreveu.” Da mesma forma, eu não necessariamente concordo com tudo o que está escrito nos outros artigos do jornal. Isso não é nenhuma novidade. Não é algo que tenhamos descoberto agora. Já o sabíamos antes mesmo de imprimir o jornal. Porém, esse é o espírito que precisa prevalecer em uma sociedade que se pretenda “plural” e “multicultural” : o respeito à individualidade de cada um, ao que cada um tem para dizer. Sem individualidade, como se pode falar em pluralidade ?

Divergências editoriais

Infelizmente, o episódio todo acabou resultando em desdobramentos sobre os quais não conseguimos, como um conselho editorial, assumir uma postura coerente que pudéssemos defender todos juntos. É uma ironia, considerando a proposta do jornal; porém, é uma questão eterna com a qual tem de se defrontar todo empreendimento conjunto. Portanto, devido a divegências irreconciliáveis quanto à concepção da postura e da ação concreta a assumir com relação a nossos críticos, defensores, e quanto ao futuro do jornal, decidi deixar voluntariamente o conselho editorial do jornal “O Indivíduo”. É com tristeza que o faço, por considerar que “O Indivíduo” ainda tem, entalada na garganta, uma quantidade enorme de reflexões e idéias cujo debate poderia ser profundamente enriquecedor. Faço votos de que as idéias mais importantes não se percam e de que os editores remanescentes se deixem motivar pela vontade de estimular a reflexão e o pensamento crítico e não pela compreensível mas profundamente destrutiva vontade de agredir aqueles que os agrediram. Ao permanecer como webmaster e diagramador do jornal, é com satisfação que constato que assim tem sido.

Comentário adicional, 10 anos depois

Minha saída do conselho editorial foi devida basicamente a discordâncias quanto à publicação de certos textos de outros que não nós três. Eu definitivamente não aprovei certas escolhas, e achei por bem resolver o impasse retirando-me da posição de decidir textos de quem seriam ou não publicados. Mas passadas as turbulências que se seguiram à distribuição inicial do jornal, e em sua subseqüente existência como site, acabamos na prática por administra-lo conjuntamente. No princípio fui eu a cuidar do site, seguido pelo Álvaro, que por anos foi sua principal força motriz. Após um breve período de abandono, O Individuo foi eventualmente reinventado e revitalizado pelo Pedro, que passou então a ser seu principal arquiteto, autor e mantenedor, comigo fazendo contribuições moderadas e o Álvaro escrevendo cada vez mais raramente. Quando voltei a contribuir com mais freqüência, revelaram-se, coloquemos assim, diferenças de preferências sobre como fazer as coisas, e eventualmente o site se separou em dois, um administrado por mim e outro pelo Pedro.

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Ciência Versus Filosofia ? ../../.././1997/11/19/ciencia-versus-filosofia/ ../../.././1997/11/19/ciencia-versus-filosofia/#comments Wed, 19 Nov 1997 09:55:25 +0000 Sergio de Biasi http://oindividuo.com/?p=7 Iniciamos com este artigo uma coluna cujo assunto será a consideração das relações mútuas entre os desenvolvimentos da ciência e da filosofia.

Vivemos em uma época na qual os filósofos, em sua maioria, estão muito afastados dos cientistas. Historicamente, ciência e filosofia surgiram juntas e durante muito tempo se confundiram; a própria física começou como filosofia natural. À medida em que o tempo passou, e a ciência ganhou uma complexidade cada vez maior, e nossa compreensão do mundo e do universo – pelo menos a nível fenomenológico – se expandiu, porém, uma atividade ficou cada vez mais distinta da outra. À medida em que o território da ciência se expandiu, suas fronteiras – para além das quais está a metafísica e a filosofia – pareceram cada vez mais distantes, para muitos, da quase totalidade da atividade científica. Desse modo, chegamos a uma cisão suspeitíssima na qual acredita-se que é possível produzir ciência de alta qualidade sem nunca gerar qualquer pensamento filosófico novo e que seja possível filosofar sobre a realidade (supondo que exista uma) sem conhecer ou se reportar à ciência.

Ora, em ambos os sentidos estamos cometendo erros crassos, e prejudicando – em certos casos impedindo – tanto o progresso da ciência como o da filosofia. Por um lado, a ciência não pode avançar – ou sequer existir – sem a filosofia. As estruturas filosóficas, conscientes ou não, constituem a ferramenta através da qual tentaremos interpretar a realidade – e isso vale tanto para um bebê recém nascido como para um grupo de pesquisa em física nuclear. Até aí, poderíamos conceber a filosofia como fundamento implícito mas dissociado do objeto da ciência. Só que o conhecimento não consiste apenas em preencher com percepções e experiências uma forma já pronta. Ao contrário, os grandes saltos de compreensão se dão quando reformulamos nossas formas (geralmente ao depararmos com percepções que não sabemos onde encaixar). De fato, o tipo de conhecimento que a ciência pretende obter sobre a realidade está muito mais nas estruturas que descobre serem “adequadas” para interpretá-la do que no acúmulo infinito de percepções. Assim, todo grande avanço na ciência – aquele tipo de avanço que alarga suas fronteiras – não só requer mas consiste em uma mudança nas estruturas filosóficas através das quais pensamos a realidade.

Por outro lado, em particular pelo exposto acima, a filosofia não pode ficar alheia aos avanços da ciência. À medida em que a ciência avança, ela penetra em domínios que antes pertenciam à filosofia. Nossa apreensão da realidade se altera através das eras e, aos poucos, questões que antes pertenciam por excelência ao domínio do debate filosófico puro, e demarcavam até mesmo os limites do cognoscível, passam a poder ser tratadas cientificamente. Dessa forma, questões como “Que são as estrelas ?”, “O que é a luz ?”, “Será o universo infinito ?”, “De onde surgiram os seres humanos ?”, “O tempo passa com a mesma velocidade em todos os lugares ?” que em diferentes épocas já foram – e facilmente esquecemo-nos disso – questões filosóficas, hoje são tratadas pela ciência. Tal mudança de situação não impede incursões da filosofia pura em nenhum desses assuntos – porém é fundamental que quem se disponha a fazê-las considere – e para tanto precisará conhecê-los – os argumentos científicos relevantes. Já outras questões como “O que é o bem ?”, “Por que estamos aqui ?”, “Existe um Deus ?”, “O futuro está predeterminado ?”, ainda hoje são, eminentemente, competência da filosofia. Talvez algum dia se torne possível tratá-las no âmbito da ciência, talvez não; a filosofia é mesmo mais abrangente que a ciência. No entanto, o filósofo deve perceber que as descobertas científicas revolucionárias não apenas apresentam conseqüências filosóficas profundas, mas mais do que isso, consistem em reformulações filosóficas, e muito bem fundamentadas.

A ciência expandiu-se tanto nos últimos séculos que muitas vezes filósofos e cientistas perdem de vista que são atividades com uma fronteira – freqüentemente nebulosa – em comum, e que quanto mais a filosofia fala sobre a realidade concreta, mais próxima ela está da ciência, assim como quanto mais a ciência se universaliza, mais próxima está da filosofia pura. Pretender conhecer a realidade e fazer ciência sem empregar a filosofia é como tentar construir a cobertura de um prédio antes de lançar as fundações. Porém, fazer filosofia ignorando a ciência é como estudar o problema genérico das fundações ignorando os arranha-céus que já estão construídos por aí.

Por mais forte e clara que seja essa ligação, há porém uma forma de sabotá-la, que desfruta de considerável popularidade : negar não só a acessibilidade mas a própria existência de uma realidade objetiva, concreta, suposição básica sem a qual a ciência se torna não só desconectada da filosofia mas completamente inviável. A conseqüência direta dessas concepções subjetivistas e relativistas é um universo no qual todas as opiniões têm o mesmo valor e ninguém está efetivamente “com razão” sobre coisa alguma. Deliciosamente “democrático” ? O que de fato ocorre é que demolida a distinção entre o pensamento/sentimento de cada um e tudo o que está fora de nós, entre o que projetamos nos outros e o que vem de nós mesmos, fica, de fato, impossibilitada a comunicação e compreensão do outro, dado que estamos efetivamente negando seu direito de existir independentemente. E, como nada faz sentido mesmo, estamos isentos de qualquer responsabilidade e só o que pode prevalecer é nossa vontade pessoal. Em uma tal situação, só nos resta submeter (a marretadas) continuamente tudo e todos a nossas ilusões e fantasias (ao invés de, ao contário, adaptar nossas concepções e representações internas ao que vemos),num orgasmo de egocentrismo esquizofrênico.

Felizmente, essa visão de mundo se revela não somente dantesca mas também de pouca consistência. Afastada a possibilidade da unificação de todas as nossas realidades subjetivas em uma única e universal realidade objetiva, qualquer proposta filosófica fica transformada em um fim em si, em um delírio exclusivamente formal. E, de qualquer forma, não adianta espernear e dizer que não é possível fazer o que já está efetivamente sendo feito. A evidência mais contundente da existência de algum tipo de realidade objetiva é justamente o gigantesco e cada vez maior sucesso que a ciência vem obtendo em operar baseada nessa suposição.

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