O Indivíduo » Religião ../../../. Porque só o indivíduo tem consciência Tue, 02 Aug 2011 04:56:23 +0000 en hourly 1 http://wordpress.org/?v=3.1.3 Bem Vindo ao Deserto do Real ../../.././2010/10/23/bem-vindo-ao-deserto-do-real/ ../../.././2010/10/23/bem-vindo-ao-deserto-do-real/#comments Sat, 23 Oct 2010 15:51:32 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=2295

Escolhendo a pílula vermelha

What is “real”? How do you define “real”?
–Morpheus

Eu me lembro de quando estava tendo exatamente esta conversa com um cristão amigo meu e ele em algum momento disse : “Ok, mas afinal de contas, o que há de tão especial assim com a verdade?” E foi excelente ele ter sido capaz de colocar a questão de forma tão clara, porque se levada a sério, essa não é uma pergunta lá muito fácil de responder. Eu pessoalmente acho que abrir mão do critério de verdade como requisito fundamental para adotar um sistema de crenças leva a todo tipo de distorções e absurdos, tanto intelectuais quanto éticos, mas de fato é perfeitamente possível tomar – e diria eu, tomar *racionalmente* – essa decisão a partir do momento em que olhamos para a existência humana como algo que absolutamente não (nem de longe!) se resume à racionalidade.

You’ve felt it your entire life, that there’s something wrong with the world. You don’t know what it is, but it’s there, like a splinter in your mind, driving you mad.
–Morpheus

Inclusive eu acho muito mais saudável a posição de adotar sistemas de crenças religiosas com a plena consciência de que não se está com isso em busca da verdade do que a posição mais comum de defender fanaticamente que as crenças religiosas corresponderiam, sim à realidade concreta das coisas. Quanto mais se vai por esse caminho (de querer justificar crenças religiosas como *verdadeiras* ao invés de como confortáveis, convenientes ou úteis) mais bobagens se seguem. Agora, a autocrítica dual a essa é igualmente dolorosa e igualmente incomum : assim como é uma ilusão total querer justificar as crenças religiosas como *verdadeiras*, é uma ilusão total querer justificar não adotá-las apenas com base na “racionalidade”. Note-se, se alguém vem dizer que “é preciso acreditar apenas no que é lógico” e quando questionado sobre “mas afinal de contas por que mesmo?” responde “ora, porque é a única coisa lógica a fazer!”, é duro admitir, mas essa pessoa está sendo tão circular quanto alguém que diz “é preciso acreditar na Bíblia!” e quando questionado sobre “mas por que?” responde “ora, porque está na Bíblia”.

I’m trying to free your mind, Neo. But I can only show you the door. You’re the one that has to walk through it.
–Morpheus

Claro, uma resposta um pouco menos circular seria “Porque assim temos mais chances de acreditar no que é concretamente verdade”. E é precisamente neste ponto que surge o comentário do meu amigo : “Ok, mas afinal de contas, o que há de tão especial assim com a verdade?” E de fato, embora a lógica seja o caminho mais garantido para chegar ao que é verdade, escolher diante disso só acreditar no que é lógico continua dependendo da premissa de estamos de fato tentando chegar à verdade custe o que custar. Só que nossas necessidades mais importante e profundas são completamente ilógicas e injustificáveis para começar; esse fato só não é mais berrantemente óbvio porque existe um onipresente consenso social em aceitá-las como naturais e obviamente dispensadas de explicação, mas a rigor não há qualquer motivo racional ou lógico para viver e não morrer, para crescer e multiplicar, para interagir com outros seres humanos, para proteger sua própria integridade física, ou em resumo para fazer qualquer coisa. Quem não percebe isso, que não se dá conta disso, que não consegue aceitar isso está se auto-enganando em grande escala, sendo ou não religioso.

I didn’t say it would be easy, Neo. I just said it would be the truth.
–Morpheus

A questão toda é piorada pelo fato de que nossos irracionais, ilógicos e em última análise injustificáveis (e por vezes inconstantes, incompreensíveis, contraditórios e por vezes mesmo insondáveis e inacessíveis) instintos, sentimentos e impulsos são apesar disso tudo insufocavelmente e sufocantemente REAIS. Podemos diante disso aceitar que nossas motivações são completamente arbitrárias e abrir mão da ilusão de que sequer faça sentido falar em agir apenas racionalmente (isso seria buscar… o quê?) … ou podemos construir uma fantasia totalmente irracional (religiosa ou não) sobre por que nossos queridos preconceitos e fantasias são na verdade maravilhosamente bem fundamentados… e então agir “racionalmente” dentro do paradigma dessa fantasia. Em qualquer caso, a lógica permanece o melhor guia em termos de estimar o que é real. A questão é que “o que é real” absolutamente não é a única coisa que importa, aliás longe disso. O mundo real é árido e vazio de significado, e profundamente insatisfatório como residência de nossa psique.

Welcome to the desert of the real.
–Morpheus

Então vivemos todos uma escolha fundamental em nossas vidas (muito bem ilustrada na questão red pill versus blue pill) que é a seguinte : vamos escolher aceitar a verdade de que universo funciona como nossa mente racional implacavelmente nos informa que seja mais provável (ou mesmo certo) que seja de fato a realidade das coisas, ou vamos ao invés disso deliberadamente escolher defender crenças e valores que psicologicamente nos tragam conforto, paz e segurança mas que a rigor nosso julgamento racional indica que provavelmente (ou certamente) não correspondam à verdade?

***************

Mas talvez eu esteja já começando longe demais no argumento. A rigor temos também a opção de não questionar coisa alguma e simplesmente acreditarmos em paradas aleatórias. Inclusive me parece que essa seja a opção da maior parte da humanidade. Mas veja, quando você escolhe acreditar em uma idéia que você ouviu por aí, essa idéia não brotou do chão espontaneamente. Ela foi criada por alguém, e com grandes chances não foi criada por acaso. Existiria a possibilidade de que essa idéia tenha sido criada para te manipular? Mas que grande surpresa! Claro que existe. Pessoas dispostas a acreditar fortemente em idéias sem saberem muito claramente por que estão escolhendo acreditar naquilo são trivialmente, facilmente manipuláveis.

Seja como for, a maior parte das pessoas simplesmente escolhe a pílula azul por default, não porque tenha consciente e deliberadamente refletido sobre o assunto, mas porque nunca sequer chegou a perceber que existe uma escolha. O ser humano médio morre sem ter nunca ter enxergado a prisão cultural e intelectual na qual nasce, sem nunca ter percebido o quanto várias de suas crenças mais arraigadas são completamente arbitrárias e não têm qualquer relação com a verdade, o quanto querer ardentemente que uma coisa seja verdade e ela de fato ser são duas proposições completamente desconectadas.

Like everyone else you were born into bondage. Into a prison that you cannot taste or see or touch. A prison for your mind.
–Morpheus

Infelizmente os mecanismos sociais de controle que buscam manter o ser humano médio nessa prisão são enormes, onipresentes e fortíssimos. Experimente defender opiniões pouco usuais de qualquer tipo em praticamente qualquer grupo social e isso fica instantaneametne óbvio.

Mas existem mecanismos de controle mais deliberados e mais organizados do que a necessidade atávica de impor (e buscar) conformidade manifestada a nível de interações sociais espontâneas. Um deles é o sistema educacional, que da forma como modernamente constituído na maior parte das vezes, parece ter como diretiva mais importante punir, sufocar, destruir, impedir o pensamento criativo crítico independente.

Mas por mais que seja opressivo, o sistema educacional é algo de que a maior parte das pessoas se liberta (pelo menos materialmente) em algum momento. Um outro exemplo muitíssimo mais invasivo e que de fato pretende explicitamente fazer parte de todas as esferas da existência humana é religião. A religião como usualmente organizada é um sistema de impor conformidade que é particularmente perverso e danoso à psique. Sua malignidade deriva precisamente de sua determinação explícita e deliberada em exigir que o ser humano individual abra mão de seu julgamento independente, e mais ainda do que isso, em seu combate vociferante e cáustico a quem tem a audácia de não fazê-lo. O pior pecado imaginável em quase qualquer religião é não se submeter. A principal função e propósito da religião institucionalizada não está em nenhum lugar fora de si mesma, e sim em parasiticamente se auto-perpetuar, usando seres humanos como incautos hospedeiros.

Não que religião seja o único sistema de controle social; diversas ideologias ao redor do mundo cumprem a mesma função, criando sistemas que quanto mais totalitários vão ficando, mais vão se intrometendo em cada mínimo detalhe de nossas vidas. E quanto mais alguém mergulha numa dessas ideologias, em geral mais dependente delas vai ficando, e mais complexo fica dizer que aquilo é tudo um grande delírio, porque é precisamente a natureza dessas ideologias incentivar o ser humano não a ser forte e independente e íntegro e sim fraco e submisso e dependente. E isso não é por acaso – o sucesso dessas ideologias se deve em grande parte precisamente a isso.

But when you’re inside, you look around, what do you see? Businessmen, teachers, lawyers, carpenters. The very minds of the people we are trying to save. But until we do, these people are still a part of that system and that makes them our enemy. You have to understand, most of these people are not ready to be unplugged. And many of them are so inured, so hopelessly dependent on the system, that they will fight to protect it.
–Morpheus

Mas como eu disse no começo, nenhum desses sistemas explícitos porém é realmente necessário para aprisionar pessoas dentro de suas próprias mentes. Aliás, eu diria até que ao se tornarem explícitos, esses sistemas de controle tornam imediatamente claro que existiria uma escolha – desafiar o sistema – mesmo que se tente a todo custo fazer tal escolha soar impensável por repetido condicionamento. E na verdade no final das contas todos esses sistemas – explícitos ou não – dependem crucialmente de que introjetemos seus mecanismos de controle para funcionarem. Esses sistemas todos estimulam os nossos preconceitos e a nossa ignorância como forma de mais facilmente nos manipularem. Mas preconceitos e ignorância – ora, isso é algo que não precisamos de nenhum sistema externo de controle para cultivarmos nós mesmos. E de fato o fazemos em grande escala e espontaneamente, aprisionando a nós mesmos como reféns da nossa burrice, da nossa ignorância, do nosso medo, das nossas neuroses, sem a necessidade de qualquer sistema opressivo externo para ajudar.

Então ao final quem realmente realmente se aprisiona é você mesmo. Não que não haja limitações objetivas para o que podemos atingir e fazer e pensar e realizar, mas as limitações que a realidade física e a sociedade ao redor *concretamente* impõem em geral empalicedem diante das limitações que (muitas vezes incentivados por perversos sistemas externos de controle, mas ainda assim nós) impomos a nós mesmos.

What are you waiting for? You’re faster than this. Don’t think you are, know you are. Come on. Stop trying to hit me and hit me.
–Morpheus

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Ainda Ateísmo ../../.././2010/05/27/ainda-ateismo/ ../../.././2010/05/27/ainda-ateismo/#comments Thu, 27 May 2010 07:45:19 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1985

“Religion is based … mainly upon fear … fear of the mysterious, fear of defeat, fear of death. Fear is the parent of cruelty, and therefore it is no wonder if cruelty and religion have gone hand in hand … My own view on religion is that of Lucretius. I regard it as a disease born of fear and as a source of untold misery to the human race.”
-Bertrand Russell

Com o risco de chover no molhado e voltar a um tema requentado e excessivamente debulhado a ponto de ficar chato, voltemos ao tema do ateísmo. Ao escrever esse tipo de texto considero que estou (espero estar) prestando um serviço de utilidade pública ao me dar ao trabalho de explicar o que deveria ser abundantemente óbvio. Mas se não é óbvio para certas pessoas intelectualmente honestas e que buscam a verdade, então de fato é muito importante que alguém escreva sobre o assunto, nem que seja para dar apoio moral a quem olha para certas coisas e pensa “mas peraí, isso não faz nenhum sentido” e no entanto acaba por questionar o próprio julgamento diante da ausência de pensamento divergente e idéias discordantes no universo social no qual habita.

Enfim, a motivação desta vez é a seguinte. Volta e meia recebo mensagens de leitores afirmando que tal ou qual resposta a um de meus textos sobre ateísmo merece comentários, que apresenta argumentos sólidos, que desconstrói completamente o que eu falei e coisa e tal. Em geral eu já conheço as tais respostas, e não comentei nada porque são muito fraquinhas e não acrescentariam absolutamente nada ao debate. No entanto, como eu coloquei, talvez o que seja absolutamente óbvio para mim não o seja para alguns leitores, e existe uma pequena chance de que nem todos eles tenham se fechado hermeticamente a argumentos e a pensar criticamente sobre o assunto. Então, assim sendo, lá vai.

A primeira resposta que vou comentar está publicada aqui  : Refutando um ateu

Essa resposta já começa muitíssimo mal ao anunciar que vai usar um fomato inspirado no disputatio medieval. Repito aqui o que já disse diversas vezes. Existe uma diferença brutal e grotesca entre reverenciar o intelecto de pessoas brilhantes do passado que foram capazes de ver muito adiante de seu tempo versus citá-las literalmente ou achar acriticamente que os métodos e idéias que eram revolucionariamente geniais há séculos atrás ainda o sejam pelos padrões de hoje.

Enfim, a resposta em questão se refere ao meu texto Ateísmo Para Principiantes.

A resposta começa por fazer a seguinte afirmação sobre o meu texto :

1) É possível fazer uma analogia entre Deus e o Papai Noel. São duas crenças, e de mesmo grau.

Já nesta primeira frase, a desonestidade (ou alternativamente a obtusidade) do autor fica clara. Absolutamente não afirmei isto colocado acima, e muito pelo contrário, escolhi Papai Noel ao invés de Zeus ou Horus como exemplo especificamente porque é razoavelmente incontroverso (exceto para quem é maluco ou não tem absolutamente nada melhor para fazer) que Papai Noel não exista de fato. Apesar disso, caso fosse contra a lei não acreditar em Papai Noel ou caso eu fosse regularmente atacado por questionar essa crença, discutir a existência de Papai Noel cresceria muito em relevância, e é esse tipo de reação e posição que caracteriza os ateus, não em geral um arcabouço filosófico maior em comum. Eu estou nesta parte do texto discutindo a falta de unidade ideológica entre ateus, não se a crença em deus é filosoficamente equivalente à crença em Papai Noel.

Mas então, ironicamente ao extremo, a resposta prossegue para afirmar :

NEGAÇÃO: O argüente constrói um “boneco de palha” do Deus cristão. O Deus cristão não é um mito, é o ser infinito e necessário. Não consta que Papai Noel seja um ser infinito, mas sim um ser contingente e ficcional.

Ora, santas ironias. Isso de dizer que eu estou construindo uma equivalência entre deus – e veja só, especificamente o deus cristão, que eu nem sequer menciono, afinal ateus não acreditam em NENHUM deus, não só no cristão – isso sim é um ridículo boneco de palha. Esta parte do meu texto nem sequer discute se deus existe ou não, e sim o fato de que crer ou não crer em deus não são posições sustentadas por grupos com perfis similares de unidade ideológica.

Segue-se então um amontoado de – não há como descrever de outra forma – baboseiras sobre  “o ser infinito já foi demonstrado desde Parmênides” :

o Ser infinito já foi demonstrado desde Parmênides, e aqui demonstramos da nossa forma: ou há algo, ou não há nada. Se nada há, nada se questiona, logo algo há, algo é. A este algo, a esta positividade, a esta estabilidade, a metafísica chama de ser. Ou o ser é finito e contingente ou é infinito e necessário. Se é finito e contingente, houve um tempo em que nada houve. Mas do nada absoluto nada pode provir, porque nada não há, o nada não afirma nada, não tem positividade. Logo, o ser é infinito e necessário. Este ser infinito e necessário é o Deus cristão.

Este parágrafo é um amontoado de palavras em busca de um significado. Metade dos termos não têm qualquer significado minimamente rigoroso ou aplicável de qualquer forma útil, e saltos inacreditáveis são dados mesmo que aceitemos a “lógica” interna do “raciocínio”. Chegamos aqui num ponto em que, sinceramente, nem adianta explicar. Isso aí acima  é um monte de besteiras. São coisas como esta que fizeram a metafísica perder sua credibilidade. Não que eu pessoalmente ache que ela não tenha importância ou lugar na filosofia ou mesmo na ciência moderna, mas isso aí é só uma chutação total sem qualquer rigor.

Vou me concentrar portanto em uma parte do argumento que é a menos delirante, embora ainda respondida de forma equivocada, que é : Como resolver o legítimo e profundo problema metafísico de que existe qualquer coisa? Por que existe algo ou invés de nada? Esse é o problema que de fato precede todos os outros e que está na base de grande parte das tentativas de construir uma teologia que parta de (ou pelo menos respeite) lógica e razão. Só que dessa questão não resolvida, vezes demais se parte então para postular alguma “causa primeira” com todo tipo de propriedades arbitrárias e que magicamente não requer ela mesma uma explicação, geralmente com pseudo-justificativas do tipo “ela sempre existiu”. Ora, se é para postular que algo sempre existiu e que por isso não precisaria de explicação (que já é evidentemente uma enrolação, mas aceitando esse argumento) então nesse caso vamos postular que o universo sempre existiu, ou que as leis da física sempre existiram, e que as leis físicas são logicamente necessárias do jeito que são, embora ainda não tenhamos entendido o motivo. Isso é muito mais metafisicamente satisfatório do que criar entidades com propriedades fantásticas que não temos nem remotamente condições de determinar ou justificar.

Enfim, a resposta parte então para as seguintes afirmações sobre o trecho seguinte do meu texto :

Proposições contidas
1) Religiosos em geral não duvidam de suas posições, acreditam estar certos.
2) Ateus, pelo contrário, são céticos sobre quase tudo. A única certeza deles é a de que Deus não existe.
3) É incontornável o fato de que alguém está certo e alguém está errado.

Mais uma vez, essas afirmações só podem ser explicadas por desonestidade ou obtusidade. Em primeiro lugar, a afirmação (1) não foi originalmente feita por mim, e sim precisamente pelo texto que estou criticando. Mas isso colocado, eu de fato acho que muitos religiosos parecem – não raro anunciam abertamente – assumir uma posição perfeitamente acrítica e dogmática diante de suas crenças. Mas seja como for, e seja quão críticos e ponderados alguns religiosos sejam antes de chegarem às suas conclusões, grande parte deles – e isso depende em parte da religião específica – de fato aceita argumentos baseados em autoridade, tradição ou revelação como perfeitamente válidos.

Então eu cuidadosamente passei a descrever que isso distingue a mim, eu, pessoalmente, do religioso padrão. Note-se, eu *não* acho, nem defendi, que a minha posição pessoal seja representativa de todos os ateus ou mesmo dos ateus em geral. Mutíssimo pelo contrário; eu repetidamente argumento que não existe posição filosófica ou ideológica unificada entre os ateus, e que essencialmente a única coisa que os *une* numa categoria – absolutamente não a única coisa em que acreditam – é não acreditarem em deus. Então descrever o que eu disse como sendo o enunciado em (2) é uma falsificação total; não só não é o que eu disse como é oposto ao que eu disse em vários aspectos. Se o autor realmente depreendeu honestamente algo como o que está em (2) do meu texto isso é algo que beira o analfabetismo funcional e é risível (ou conversamente altamente apropriado) que vá querer então construir um debate escolástico (entre si mesmo e um exército de bonecos de palha). No texto original, eu sublinho veementemente a questão de que nem todos os ateus rejeitam a idéia de deus pelos mesmos motivos, e que variam enormemente em suas crenças e ideologias. Esse é um dos principais temas do texto inteiro. Eu não acho nem afirmei que a maior parte dos ateus seja “cetico sobre quase tudo”, e aliás nem que *eu mesmo* seja cético sobre quase tudo – o que eu afirmei foi o que o tipo de argumento que eu aceito como legítimo exclui vários dos tipos de argumento que o religioso médio aceita como legítimo. Mas eu de fato aceito muitos argumentos concretos como legítimos e em muitos fatos como solidamente estabelecidos (o que não quer dizer que não possam ser legitimamente questionados, apenas que é preciso que sejam apresentados contra-argumentos de força suficiente). Apenas não aceito que crença em fatos deva ser decidida com base em tradição, revelação ou autoridade, como ostensivamente grande parte dos religiosos abertamente faz.

Em resumo, é simplesmente ridícula a afirmação de que eu teria dito, seja sobre “os ateus”, seja sobre mim mesmo, que “a única certeza deles é de que deus não existe”. Isso não tem absolutamente nada a ver com qualquer coisa que eu tenha dito. Muitos ateus inclusive são ridiculamente pouco críticos, e divergem dos religiosos apenas por acreditarem em autoridades (ou fantasias) diferentes. O autor da resposta segue porém não só partindo dessas premissas absolutamente absurdas sobre o que eu teria dito como procede mais uma vez a construir argumentos tão completamente delirantes que não há nem o que comentar. Eu posso me munir de paciência e me aventurar a refutar afirmaçoes como “o Sol gira em torno da Terra”, que estão completamente erradas, mas que pelo menos fazem sentido e nas quais há concebivelmente motivos para acreditar. Mas não há paciência que se justifique para afirmações do tipo “já que o Sol gira em torno da Terra seu magnetismo animal aquece a aura da atmosfera terreste e provoca permutações astrais”. É esse o nível do discurso com o qual nos defrontamos aqui. Não existe sequer o que refutar. São Tomás de Aquino provavelmente teria vergonha de se ver citado num contexto como esse, e *certamente* retiraria grandes partes das coisas que escreveu se pudesse ter acesso à lógica, à filosofia e a ciencia modernas. Argumentar no século 21 com base nas categorias metafísicas e na estrutura lógica que prevaleciam na escolástica medieval é RIDÍCULO.

Sobre a proposição (3), eu *de fato* a coloco – é incontornável o fato de que alguém está certo e alguém está errado. E tanto quanto é possível decodificar do festival de confusão mental no trecho da resposta que se segue, o autor afirma exatamente o mesmo que eu, embora por vias altamente tortuosas – que é inescapável que exista uma verdade necessária, e que se discordamos sobre características irrenconciliáveis da sua natureza última, um dos dois lados está inescapavalmente errado. Agora, repetidamente dizer “e essa verdade necessária é o deus cristão” é simplesmente patético, dado que “o deus cristão” envolve um grande conjunto de características que de forma alguma decorrem automaticamente do simples princípio metafísico de que é preciso haver no fundamento de tudo uma verdade necessária. Essa “verdade necessária” poderia envolver um deus, três deuses, infinitos deuses, ou zero deuses. Minha posição pessoal é que tudo indica que envolva zero deuses, não que eu negue o princípio metafísico de que a verdade, em algum nível de abstração, é necessária.

Do mesmo trecho do meu texto são “extraídas” as seguintes proposições :

4) Ateus em geral fundamentam seus argumentos; religiosos em geral não.
5) Religiosos em geral aceitam argumentos de autoridade, tradição e revelação, enquanto um ateu os rechaça.
6) A fé não é uma boa base para um sistema de crenças.

Novamente, o autor da reposta confunde completamente em (4) o que eu afirmo sobre *mim* como sendo algo que eu estaria afirmando sobre todos os ateus, algo que eu digo com todas as palavras que não é o caso. Mas mesmo tomando como descrição do que teria dito sobre mim, é completamente absurda. Eu não disse que os religiosos não fundamentam seus argumentos, apenas que quase a totalidade deles aceita como argumentos válidos categorias de argumentos que eu absolutamente não aceito como tal.

E sim, a primeira parte de (5) é não só ontensivamente e admitidamente verdadeira como em grande parte das religiões, uma exigência formal. Quando a isso ser diferente para os ateus em geral, mais uma vez – eu *não* acho que todos os ateus pensem igual a mim, e isso é um dos principais pontos do meu texto. Inúmeros ateus estão perfeitamente felizes em aceitar autoridade, tradição ou mesmo revelação, apenas divergem dos religiosos sobre quais autoridades, tradições ou revelações consideram legítimas.

Sobre (6), o único ponto sobre o qual o autor realmente diz algo novo, finalmente – embora mais uma vez de forma convoluta – se coloca algo que parece com um argumento que vale a pena considerar, que é o seguinte : a fé é um elemento indispensável em qualquer sistema de crenças. Esta não é uma afirmação absurda, mas sobre ela eu tenho duas observações.

A primeira observação é que apesar de não ser absurda, ela é falsa. É perfeitamente possível produzir todos tipo de afirmações cuja verdade é logicamente necessária sem que isso envolva qualquer tipo de fé. É perfeitamente possível ter crenças que não dependam de qualquer suposição arbitrária. Certo, é verdade que derivações lógicas partem de conjuntos de axiomas. Porém não há nada de errado com o conjunto vazio como ponto de partida, e é simplesmente errado concluir que dele nada podemos derivar. É verdade que deste ponto de partida somente poderemos construir teorias tautologicamente equivalentes ao conjunto vazio, mas se vamos argumentar que nosso universo está fundamentado em última análise em verdades logicamente necessárias, nosso objetivo último deveria ser precisamente explicar como é possível derivar o universo inteiro do conjunto vazio – um projeto altamente ambicioso que talvez nunca seja possível realizar completamente. Mas não, a fé não é necessária para “qualquer” sistema de crenças.

A segunda observação é que mesmo que aceitemos que nem todo sistema de crenças requeira fé, algúem poderia observar que quando lidando com conhecimento incompleto e limitado, como é a condição humana, talvez necessitemos de dar alguns saltos de fé para podermos tomar decisões úteis. A fé seria então necessária para uma grande parte dos sistemas de crenças com aplicabilidade prática. Agora veja, o fato de que é preciso por vezes supor como verdade algo que não conseguimos estabelecer como logicamente necessário não significa então que vamos sair acreditando em qualquer coisa, ou que todos os sistemas para escolher crenças sejam equivalentes. Certo, é claro que é possível que todas as nossas percepções sejam falsas, que seja tudo um sonho, uma simulação de computador, um delírio. Do ponto de vista *estritamente* lógico, o fato de que o sol nasceu rigorosamente todos os dias desde que nascemos não torna sequer mais provável que ele vá nascer amanhã. Mas para ter uma vida que faça sentido, e tomar alguma decisão ao invés de ficar atolado num pântano metafísico, você tem que escolher acreditar em alguma coisa – por exemplo que o Sol vai de fato nascer de novo amanhã. Eu aceito este argumento. Mas não decorre daí que “então o sistema de crenças X está certo”, aliás muito pelo contrário – o que se está argumentando é precisamente que nenhum sistema de crenças desse tipo – que exija saltos de fé – é logicamente justificável.

A questão é precisamente como escolher entre sistemas de crenças que, a rigor,  não podemos justificar logicamente, pelo menos não de forma necessária. E é aí que entra o princípio científico da navalha de Occam – não vamos sair fazendo suposições a não ser que elas acrescentem poder explicativo ao modelo que estamos construindo para buscar explicar os fatos que estamos admitindo como verdadeiros. Os modelos científicos, porém, são de fato admitidamente provisórios e injustificáveis como logicamente necessários. Isso não significa porém que sejam arbitrários. Tomar decisões lógicas com informações incompletas não garante acertos mas não é equivalente a escolher aleatoriamente. Agora, de um ponto de vista mais prático, a principal justificativa para a ciência é que ela FUNCIONA. Como já dizia Einstein, a coisa mais impressionante, maravilhosa e surpreendente sobre o universo é que é possivel entendê-lo. Enquanto a ciência nos deu reatores nucleares, naves espaciais e computadores, os modelos de como a realidade funciona baseados em teologia e similares não foram capazes de concretamente explicar, prever ou esclarecer absolutamente NADA, em nenhum nível, físico, metafísico, psicológico ou de nenhuma outra ordem. A realidade simplesmente NÃO FUNCIONA do jeito que as investigações teológicas prescrevem, descrevem ou prevêem e isso ao longo da história é repetidamente e facilmente observável. A principal função cumprida pelas crenças religiosas é criar um falso, ilusório e pernicioso conforto diante das questões para as quais se formos honestos não temos resposta satisfatória.

“What men really want is not knowledge but certainty.”
-Bertrand Russell

Agora, novamente, eu admito que do ponto de vista estritamente lógico é perfeitamente possível que, digamos, quem esteja certo mesmo seja a Igreja da Cientologia e Xenu tenha explodido bilhões de pessoas com bombas atômicas. Mas isso para mim é tão realista e verossímil quanto Jesus ressuscitando pessoas ou nossa” alma” voltando encarnada num sapo. Não existe absolutamente qualquer evidência a favor de nenhuma dessas coisas, e entre algo que repetidamente faz previsões extraordinariamente confiáveis, mesmo que essa previsões tenham em parte sido obtidas por tentativa e erro e não por deducão rigorosa, versus um outro sistema de crenças que faz todo tipo de afirmações delirantes sobre a realidade que nunca se observam em lugar algum, eu sinto muito, eu fico com o primeiro. Inclusive diante da impossibilidade de deduzir logicamente como o universo funciona, a grande força da ciência é justamente ter a humildade de admiti-lo e estar disposta a constantemente mudar de idéia quando suas previsões falham – que é muitíssimo mais do que se pode dizer da quase totalidade das crenças religiosas. Então pode ser o caso de que talvez amanhã toda a ciência como atualmente consta dos jornais acadêmicos pare completamente de funcionar, e comece a chover sapos e anjos desçam do céu, mas nesse caso os cientistas serão metodologicamente obrigados a reverem seus conceitos sobre como o universo funciona. Novamente, ao contrário de grande parte dos religiosos, que mesmo diante de montanhas de evidências, aferram-se a crenças imutáveis e inamomíveis usando (quando se dispõem a tanto) de argumentos como esse de que “a fé é um elemento incortornável de qualquer sistema de crenças”. Bolas, mesmo quando é, não significa então que seja igualmente razoável sair acreditando em qualquer coisa.

“The trouble with the world is that the stupid are cocksure and the intelligent are full of doubt.”
-Bertrand Russell

O que nos leva finalmente de volta à minha afirmação original : a fé nao é uma boa base para um sistema de crenças. Se formos chamar de fé qualquer crença que não pudermos estabelecer como verdade logicamente necessária, então de fato em várias circunstâncias teremos que sustentar crenças deste tipo se não quisermos ficar paralisados num atoleiro existencial. Mas isso não significa que a fé seja necessariamente a *base* do meu sistema de crenças, não no sentido de que seja o fator preponderante ou mais significativo. Se alguém for argumentar que é a fé que torna meu sistema de crenças possível, e por isso é sim a base dele, eu observo que não, ela *não* torna meu sistema de crenças logicamente justificável; de fato, nada pode fazê-lo, não no atual estágio em que estamos no entendimento da realidade. A fé é apenas um quebra-galho, um tapa-buracos para o fato de que eu não sei tudo. Mas certas suposições se revelam mais úteis e mais esclarecedoras e com maior poder preditivo do que outras, e eu acho desejável preferir essas suposições às outras. Então, nesse sentido, as suposições são completamente arbitrárias enquanto as conclusões não são, e é pelas conclusões que eu julgo a qualidade das suposições. Os religiosos tendem a inverter isso completamente e insistir em suposições engessadas e imutáveis, tomando portanto a fé como base de seus sistemas de crenças, ao invés de fazerem exatamente o oposto – escolher as suposições não justificáveis que vão fazer com base no quanto as suas conseqüências parecem ser compatíveis com a realidade de fato observada.

Finalmente, o autor “extrai” do mesmo trecho do meu texto as seguinte afirmações :

7) Acreditar em Deus é uma posição circunstancial, não metodológica ou a priori.
8 ) Para a crença em Deus se justificar, é necessária:a) a comprovação empírica de sua existência.b) uma definição que faça sentido e que apresente evidências
9) Tudo o que não possui comprovação empírica é dotado de um aspeco mitológico.

Quanto a (7), isso não é algo “refutável”; eu estou descrevendo a minha posição pessoal.

Quanto a (8), sim, é claro que é preciso haver uma definição que faça sentido. Não dá para debater se deus existe ou não sem que se apresente uma descrição minimamente consistente sobre de quê estamos falando, algo que a maior parte dos religiosos falha completamente em fazer. Note que se formos levar a sério o fato de que o autor afirma ter “refutado” (8), ele quer então que aceitemos a existência de deus sem qualquer evidência empírica (“comprovação empírica” é uma besteira) e também sem uma definição rigorosa seguida de argumentos sólidos. E a rigor, ele está certo – a mera crença em deus não requer qualquer uma dessas coisas, assim como não o requer a crença em gnomos habitando o centro da Terra. A crença em coisas aleatórias requer apenas a vontade de acreditar.

“I wish to propose for the reader’s favourable consideration a doctrine which may, I fear, appear wildly paradoxical and subversive. The doctrine in question is this: that it is undesirable to believe a proposition when there is no ground whatever for supposing it true.”
-Bertrand Russell

Quanto a (9), isso (como inúmeras outras afirmações) não tem absolutamente nada a ver com qualquer coisa que eu tenha dito.

Enfim, eu poderia prosseguir discutindo ponto por ponto o resto do texto, mas ele é completamente desprovido de conteúdo, de mérito, ou mesmo de evidências de ter sido capaz de sequer entender o que eu disse no meu texto original. Está encharcado de confusão mental e de erros de lógica básica, e é uma perda total do meu tempo ficar “refutando” essa extensa besteirada. Inclusive estou cogitando seriamente parar de fazê-lo até mesmo parcialmente no futuro; qualquer ponto que eu poderia querer ilustrar ao dar corda para esse tipo de coisa já foi extensamente exemplificado no passado, e quem não quiser ver continuará mesmo cego. Infelizmente não tenho qualquer dúvida de que isso será interpretado como “oh, se você não está respondendo é porque ficou sem tem o que dizer / não tem resposta / foram apresentados argumentos irrefutáveis”. Longe disso, longe disso. É apenas que esse tipo de texto longe de serem “refutações muito bem estruturadas”, é só um festival de sandices.

Entre outros exemplos que eu poderia citar : eu escrevo que “se a ciência universal fosse atingida, ela nos diria se deus existe ou não” e o sujeito escreve que eu teria dito que “sem a ciência universal, é impossivel afirmar se deus existe ou não”. Eu digo A => B e o sujeito afirma que eu estou dizendo que ~A => ~B, um erro absolutamente básico de lógica que não se admitiria num estudante iniciante. E essa pessoa quer escrever uma refutação nos moldes de um debate escolástico!

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Uma outra resposta um pouco menos primária pode ser encontrada aqui : O empirismo ateísta na corda bamba

Digo um pouco, mas não muito. Em primeiro lugar, o autor parte já de saída do equivocado princípio de que eu só aceitaria argumentos baseados em observacões sensíveis, e não em princípios lógicos ou necessidades metafísicas. Ora, não é que eu não aceite tais argumentos em princípio – apenas eles não existem. E não me venham com São Tomás de Aquino, Santo Anselmo e outras coisas desse tipo porque o que eles nos dão em termos de argumentos ontológicos é simplesmente ridículo e absolutamente não estabelece necessidade lógica alguma de um deus nos moldes cristãos. Existe uma distância brutal entre argumentar pela necessidade de uma “causa primeira” e dizer “então taí, é o deus cristão”. Chamar as verdades que são logicamente necessárias de “deus cristão” não lhes atribui magicamente nenhuma das inúmeras outras características sustentadas pela teologia cristã, nem exime o autor de justificar tais características. Mas ok, pinçando como pinçou o autor uma afirmação completamente fora de contexto, não é supreendente que sua interpretação esteja facilmente sujeita a distorções.

Mas daí ele passa então a fazer outras afirmações mais genéricas que não têm diretamente a ver comigo, como por exemplo de que “Hoje, o grande inimigo do ateísmo é a ciência mais atual.” Er, não, não é, e no caminho para buscar afirmá-lo o autor faz várias afirmações altamente impróprias. Para começar, a ciencia clássica em si mesma absolutamente não é universalmente baseada no “empirismo”. Muito antes de se falar em teoria da relatividade ou em mecânica quântica, a posição filosófica de positivistas e assemelhados, popular que tenha ficado em um dado momento, sempre foi apenas uma facção entre outras e absolutamente não a posição unânime na comunidade científica.

Adicionalmente, o ateísmo absolutamente também não tem como fundamento filosófico essencial nenhuma reverência ao empirismo. Grande parte – diria eu todos os sérios – pensadores ateus aceitariam prontamente argumentos lógicos ou metafísicos a favor da existência de deus caso lhes fosse apresentado um que considerassem válido. Evidentemente diante disso a atitude científica seria verificar que as conseqüências necessárias desses argumentos de fato se observam (e se não fossem observadas seria razoável concluir que existe um equívoco em algum lugar), mas tais argumentos não seriam rejeitados por princípio, só por não serem “evidências empíricas”. Apenas eles não existem. Claro, se apesar de não haver um argumento lógico sólido desde primeiros princípios alguma observação prática revolucionária fosse feita – e aí entra a parte do meu texto que foi citada – então mesmo assim isso seria um motivo forte para rever a posição ateísta. Mas absolutamente não é o caso de que tais observações sejam necessárias como pré-requisito para a idéia ser considerada seriamente.

Além disso, o ateísmo também não está filosoficamente fundado ou associado nenhuma forma à mecânica clássica como quer fazer crer o autor do texto. Para começar, se quisermos construir o argumento de que a ciência avançada caminha no sentido de desvendar um mundo real que está vastamente distante dos sentidos e que absolutamente não é acessível, mesmo com muito boa vontade, diretamente através de observações “empíricas”, eu não só *concordo* com isso, como não é preciso chegar à mecânica quântica para encontrar exemplos. A presença de hélio no sol, a existência de átomos com núcleos e elétrons, a verdadeira natureza das estrelas como objetos concretos brilhantes a grandes distâncias, a evolução das espécies, a gravitação universal, a verdadeira natureza da luz como oscilação de campos elétricos e magnéticos, tudo isso foi atingido pela mecânica clássica e está muito, muito distante do que se pode chamar exatamente de “empírico”. Claro, observações empíricas foram necessárias para se chegar às teorias correspondentes, mas as teorias vastamente superam as observações e falam sobre a estrutura do real de formas que transcendem imensamente o que é diretamente observável. O que possivelmente a mecânica quântica traz de filosoficamente novo é embaralhar significativamente o conceito de nexo causal, mas isso de forma alguma é impeditivo seja para o empirismo seja para o ateísmo.

Enfim, é simplesmente falso que “um dos principais argumentos do ateísmo” seja o empirismo, ou que a transição de ciência clássica para ciência moderna tenha causado (ou sido forçada por) um abandono do empirisimo, ou que a mecânica quântica ou a ciência moderna de modo geral apresente qualquer problema para o ateísmo. Inclusive é muito irônico e até constrangedor que o autor venha acusar os ATEUS de antropocentrismo enquanto a maior parte das religiões é que defende que o ser humano seja filosoficamente, cosmicamente, metafisicamente algo de profunda relevância para o universo, quiçá o propósito mesmo da sua existência.

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Para recompensar os leitores que tiveram a paciência de chegar até aqui, alguns links divertidos :

Things Atheist Didn’t Do

Still More Things Atheists Didn’t Do

Things Atheists Didn’t Do In 2009 (Part 1)

Things Atheists Didn’t Do In 2009 (Part 2)

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Ateísmo Para Principiantes ../../.././2009/09/12/ateismo-para-principiantes/ ../../.././2009/09/12/ateismo-para-principiantes/#comments Sat, 12 Sep 2009 06:18:42 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1101 Há algumas semanas Pedro escreveu um texto entitulado “A diferença entre crentes e ateus” (agora disponível aqui) no qual em princípio pretende buscar compreender ou pelo menos descrever, num exercício de empatia, a posição dos ateus não como vistos pelos crentes, mas desde o ponto de vista dos próprios ateus. O texto demonstra uma incompreensão embaraçosa da posição de quem não é crente. Diante disso, achei que seria didático e esclarecedor fazer o exercício de descrever “a nível de ateu” o que de fato penso sobre certos assuntos, inclusive o que eu de fato penso sobre o que os crentes pensam.

Para começar, observo que já de saída o Pedro supõe que haja muito mais unidade ideológica e de crenças entre os ateus do que realmente há. Com poucas exceções, que em geral surgem como subconjuntos de sistemas mais amplos de pensamento, o ateísmo raramente surge como uma instituição organizada com dogmas ou qualquer tipo de ortodoxia. Quem não acredita em deus em geral não acredita e pronto, individualmente. As pessoas que acreditam em digamos Papai Noel talvez tenham alguma coisa em comum. As que não acreditam costumam simplesmente não pensar nisso, assim como os católicos não ficam em geral gastando seu tempo se reunindo para refutar a existência de Shiva. Evidentemente caso fosse contra a lei não acreditar em Papai Noel ou se pessoas começassem a me insultar por eu não acreditar em Papai Noel talvez eu gastasse mais tempo discutindo Papai Noel. Mas mesmo nesse caso Papai Noel em si mesmo permanece rigorosamente inexistente e irrelevante; são as pessoas falando de Papai Noel que se tornaram um assunto.

Mas voltemos às afirmações específicas que Pedro faz. Ele começa por afirmar :

Ambos dirão que apenas se submetem à verdade; ambos dirão que seguem suas consciências; ambos dirão, mais ainda, que o que os diferencia do outro lado é o estar certo, o ter razão.

De fato, os religiosos parecem em geral dizer e acreditar exatamente nisso (que o que os diferencia do outro lado é estar com a razão). Mas claramente uma grande parte dos ateus – especialmente os que têm uma posição mais científica – dificilmente concordariam que os que os distingue dos religiosos seria “o estar certo, o ter razão”. Afinal, “estar certo” é algo a que não temos acesso direto, e repetidamente descobrimos que estávamos errados quando tudo parecia indicar que estávamos certos. Os próprios ateus discordam de todas as formas possíveis sobre qual o significado, origem e propósito da existência humana e do universo. Alguns por incontornável necessidade lógica estarão certos enquanto outros errados. (Aliás, assim como os religiosos.) Discordam inclusive sobre a possibilidade de responder certas perguntas.

Então eu diria que o que distingue a mim pessoalmente de um religioso padrão não é tanto o “estar certo” quanto POR QUE eu acho que estou certo. Eu não aceito argumentos de autoridade, tradição ou revelação como “provas” do que seja verdadeiro. E não acho que a fé seja uma boa base para um sistema de crenças. Portanto para mim o que me distingue de um crente padrão não é eu “estar certo” tanto quanto o que eu considero um argumento aceitável para alguém defender que está certo. Eu não acreditar em deus é uma posição circunstancial, não metodológica ou a priori. Caso ele descesse do céu e fizesse milagres na minha frente eu teria que repensar a idéia. Caso alguém definisse deus de uma forma que fizesse sentido e apresentasse evidências de que ele existe eu teria que repensar a idéia. Agora, enquanto isso não acontece, sugiro que é bem mais acreditável que ele seja um personagem mitológico.

não se deve esquecer que uns considerarão os outros a praga da humanidade

Isso está comicamente longe de descrever a posição seja do religioso médio, seja do ateu médio. Se formos seguir a tradição de algumas religiões, elas *de fato* oficialmente instam seus fiéis a considerarem todos os pagãos como pecadores, indignos e merecedores de punição eterna, mas felizmente grandes massas de religiosos não levam isso a sério. E uma grande massa entre os ateus acham religião equivalente a acreditar em Papai Noel : delirante mas inofensivo ou até mesmo positivo por fazer as pessoas mais felizes.

Mas qual será o fundamento subjetivo de sua diferença? Haverá uma atitude fundamental que distinga um grupo do outro?

Para *mim*, pessoalmente, a questão já está colocada da forma errada. Como eu disse antes, há muito mais unidade ideológica entre crentes do que entre não crentes. Se eu tivesse que buscar algo para distinguir os dois grupos, eu sinto vontade de dizer (porque é isso que *eu* pessoalmente sinto que me distingue) que para mim seria o que é aceito como critério de verdade, como eu disse acima. Mas que se note, isso é uma descrição caricatural, porque evidentemente há entre os ateus aqueles que apesar de não serem “crentes” no sentido proposto pelo Pedro, acreditam em todo tipo de disparates alucinados como astrologia, mágica ou espíritos. E até mesmo para não acreditar em deus há todos os tipos de motivos, desde “o governo mandou” até “isso é chique”. Não existe realmente unidade de atitude fundamental entre os ateus. Então não há como responder seriamente a esta pergunta.

Talvez pudéssemos recolocar a pergunta como : “Qual é a atitude fundamental que caracteriza os crentes?”. E mesmo essa, dada a diversidade do grupo, seria difícil de responder de forma não caricatural. Eu pessoalmente tendo a responder que é o triunfo da intensa necessidade instintiva de que a vida faça sentido e tenha um propósito sobre a percepção racional de que ela não faz e não tem. Mas isso sou eu. E além disso o complemento não é verdade; muitos não crentes sucumbem à mesma necessidade instintiva, apenas projetam sua necessidade psicológica de serem cosmicamente relevantes em outros tipos de fantasias.

diante da complexidade do mundo, o crente pressente a existência de uma inteligência transcendental, ao passo que, para o ateu, esse pressentimento é um passo indevido, uma projeção de quem observa o mundo.

Até aí, concordo plenamente. “Pressentir” coisas sem ir lá testá-las não é base para um sistema de crenças sobre como o universo funciona. Mas até mesmo sobre isso não é claro para mim que haja concordância generalizada entre os ateus.

O crente, ao perceber algo mais vasto que sua própria inteligência, julga tratar-se da obra de outra inteligência; o ateu, ao perceber algo mais vasto que sua própria inteligência, julga que o domínio dessa vastidão virá com o tempo. Parece que as duas atitudes refletem duas posições a respeito de uma possível ciência universal.

Discordo absolutamente. Tanto pessoalmente, quanto que isso remotamente descreva a posição da massa dos ateus, que freqüentemente dizem algo nas linhas de “Eu não sei, desconfio que você também não sabe, e sei lá se algum dia saberemos.” Certamente não descreve a *minha* posição.

Aliás, achar que o “domínio dessa vastidão virá com o tempo” é uma posição que não só não é representativa dos ateus como nem ao menos está com sintonia com o sentimento atual da comunidade científica. Algumas das descobertas mais importantes do século 20 tiveram a ver com se determinar a impossibilidade de conhecer certas coisas. Note, não digo nem a impossibilidade prática; digo a impossibilidade mesmo. Isso foi um grande golpe para muitos cientistas que acreditavam que a ciência poderia um dia saber ou explicar tudo. O próprio Einstein por exemplo nunca ficou muito feliz com o indeterminismo embutido na mecânica quântica e sempre considerou que isso não poderia representar como o universo realmente funciona, e tinha que ser sim um artefato da nossa ignorância sobre a realidade. O entendimento moderno é que ele estava equivocado sobre isso. Existem vários outros exemplos de importantíssimos resultados científicos obtidos modernamente sobre os limites – mesmo em tese – do conhecimento humano.

De um lado, o crente pergunta ao ateu: “E quando ficar evidente que a ciência universal é impossível, você passará a crer?”

Curiosamente, nunca nenhum crente colocou essa questão para mim, e duvido que a maior parte dos crentes se identificaria com essa pergunta. Alem disso, o fato de que a ciência universal é impossível já ficou – ironicamente e para grande surpresa da maior parte dos cientistas – cientificamente claro ao longo do século 20. Em particular para mim, é perfeitamente evidente que a ciência universal é impossivel e eu sigo não vendo qualquer motivo para diante disso acreditar em deus. Além disso, eu acho que *se* por hipótese houvesse uma ciência universal e se ela deixasse claro que a vida não faz qualquer sentido (como na minha opinião a nossa ciência parcial já indica fortemente), isso só aumentaria a necessidade emocional de irracionalmente acreditar em algo que dê magicamente sentido à vida. Acreditar em deus não é um ato de razão, é uma forma capenga de lidar com o desconhecido e com a falta de sentido. Como, aliás, essa própria pergunta parece indicar de forma embaraçosamente reveladora.

E o ateu pergunta: “E se a ciência universal acontecer, você deixará de crer?”

Ora bolas, se a ciência universal fosse atingida, ela nos informaria se deus existe ou não. Colocar qualquer possibilidade que não seja “eu acreditaria no que ela dissesse” demonstra precisamente a diferença de atitude entre crentes e ateus. Ou pelo menos entre mim e as pessoas que acreditam em coisas com base nas suas necessidades emocionais e não no que tudo indica que seja verdade.

É um tanto irresistível observar que, dita assim, a posição atéia parece se basear não num prometeanismo voluntarista, mas num prometeanismo inevitável: a transcendência não será mais necessária porque conquistá-la é só uma questão de tempo.

Eu não vejo por que motivo a tal inatingível “ciência universal” tornaria a transcendência “desnecessária”; talvez logicamente desnecessária, mas isso ela já é. O fato de que não podemos conhecer certas coisas é algo para ser aceito, não para ser “consertado” com “transcendência”. E a – diga-se de passagem, legítima – necessidade de transcendência espiritual é primordialmente psicológica, não lógica ou racional. Mas buscá-la projetando suas necessidades emocionais na estrutura da realidade e não em sua interpretação e significado é uma acochambração equivocada. A maioria absoluta das pessoas quando se aventura a falar da origem do universo não está realmente preocupada com de onde o universo *de fato* veio, e sim com qual o sentido de suas vidas.

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Deus Em Maiúscula, Problema De Auto-Afirmação ../../.././2009/08/23/deus-em-maiuscula-problema-de-auto-afirmacao/ ../../.././2009/08/23/deus-em-maiuscula-problema-de-auto-afirmacao/#comments Sun, 23 Aug 2009 18:29:33 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1097 Pedro defende neste texto aqui que grafar “deus” sem colocar a primeira letra em maiúscula seria uma tentativa infantil de auto-afirmação. Apresenta para isso argumentos, como direi, péssimos, dizendo que os cristãos (e judeus) usariam a palavra “deus” como nome para seu deus específico, sendo portanto este uso um substantivo próprio, similar a Abraão ou Estados Unidos. Sinto muito, mas este é um truque fajuto de prestidigitação linguística. É como dizer : veja bem, um dos apelidos do meu time de futebol é “Time”, portanto a forma legítima de se referir a ele é “Time”. Então quando for feita uma referência ao *meu* time, a única grafia correta é “Time”, e não “time”. Yeah, right. Como se seu time tivesse algum status especial linguístico para quem não acredita nele. Como se por você resolver que ele tem o apelido “Time” o substantivo comum “time” deixasse de se aplicar. Como se para as outras religiões seu deus não fosse tão pagão quanto os outros são para você.

Aliás, a ironia já começa com a necessidade de fazer a ressalva “e judeus”. Mas mesmo sem ela, “cristão” já é algo por demais amplo. Certo, “deus” com maiúsculas se referiria então a uma certa entidade específica como definida por… católicos? Metodistas? Presbiterianos? Judeus? Espíritas? Existe toda uma infinidade de religiões e teologias em torno de que significado específico dar ao substantivo comum “deus”. Pedro começa a construir seu argumento dizendo que “deus” com maiúscula se referiria a uma delas, mas então esbarra imediatamente com o fato de que diversos grupos com concepções diversas e incompatíveis do objeto ao qual estamos nos referindo reivindicam simultaneamente o uso de maíuscula como se referindo ao *seu* significado particular. Então ele prossegue mesmo assim, não parecendo perceber (ou ignorando solenemente) que um requisito para algo ser substantivo próprio é precisamente a especificidade. Não dá para dizer : ok, o correto e obrigatório é grafar “Time” porque existem aqui duzentos e cinco times de futebol diferentes que acham que são o “Time” e é preciso usar maiúsculas para corretamente indicar que estamos nos referindo a algum deles. Isso não só não faz sentido lingüisticamente, como cria confusão e “ruído comunicativo” ao invés de esclarecer qualquer coisa. Os muçulmanos em geral também usam maiúscula quando usam a palavra “deus” para denotarem especificamente seu deus em português. Eles podem com igual legitimidade dizer que esté é um dos “nomes” do seu deus. Mas se “deus” com maiúscula vai significar o deus de qualquer religião monoteísta, então não vejo qualquer motivo linguístico para usar maiúscula. Mas claro, eu não me surpreendo que para o Pedro faça total sentido que só um certo número de seitas tenha autorização para usar apropriadamente “deus” com maiúsculas (esteja ou não o islamismo entre elas).

Haveria mérito num argumento com essa estrutura caso alguém insistisse em grafar “Alá” ou “Jeová” sem usar maiúsculas. Esses são de fato nomes usados em contextos específicos para dar nomes a interpretações mais restritas e suficientemente específicas da palavra “deus”. Mas “deus” genericamente é um substantivo comum perfeitamente legítimo da língua portuguesa e *mesmo que* se aceite o “argumento” de que um dos “nomes” do deus católico é “deus” com maiúscula, isso não eliminaria o fato de que o substantivo comum continua se aplicando. Note-se que “Abraão” de fato se refere a uma pessoa específica, “Estados Unidos” de fato de refere a um país específico. Não existe confusão sobre o objeto referenciado quando tais palavras são usadas. São casos absolutamente claros e inequívocos de substantivos próprios na língua portuguesa. Já “deus” com maiúscula pode se referir a toda uma ambígua coleção de entidades, e não vejo qualquer motivação linguística ou metodológica para assim grafar. O único motivo para fazê-lo, e para melindrar-se com isso, retroracionalizações à parte, isso sim me parece ironicamente ser essencialmente um problema de auto-afirmação. Do tipo “olha só como meu deus é o único verdadeiro, ele começa com maiúscula!”.

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O Fantástico Argumento de Santo Anselmo ../../.././2009/07/12/o-fantastico-argumento-de-santo-anselmo/ ../../.././2009/07/12/o-fantastico-argumento-de-santo-anselmo/#comments Sun, 12 Jul 2009 20:50:02 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1080 Para quem desconhece, o “argumento” de Santo Anselmo, é um argumento ontológico visando supostamente “provar” a existência de deus, apresentado (entre outros) por, bem, Santo Anselmo. (Existem outros argumentos ontológicos.)

O “argumento” de Santo Anselmo é essencialmente o seguinte :

1. Deus é a entidade mais completa / perfeita / maior / superior a todas as outras entidades concebíveis.
2. É mais completo / perfeito / maior / superior necessariamente existir do que não existir.
3. Portanto deus deve necessariamente existir.
4. Portanto deus existe.

Tem tantas coisas erradas com este argumento que é até difícil criticá-lo. É similar a criticar “Se todos os morangos que voam têm um PhD em lingüistica então eu sou um limão.” Com a diferença de que este argumento, ao contrário do argumento de Santo Anselmo, está perfeitamente correto do ponto de vista de lógica.

Usarei abaixo “A” para o quantificador lógico “para todos” e E para o quantificador lógicos “existe pelo menos um”.

O problema já começa quando tentamos atribuir significado lógico a essas idéias. Essa relação de “maior” está absolutamente mal definida, por exemplo. Mas digamos que formalmente exista uma relação binária M(x,y) definida sobre “todas as entidades concebíveis”, seja M qual for. E chamemos a propriedade de “ser deus” de D(x). Temos então :

1. A(x) [ D(x) <--> A(y)M(x,y) ] (definição)

Então chegamos ao passo 2, no qual é dito que é “mais perfeito” ser necessário do que não ser. O que se está dizendo então é que se x e y são entidades concebíveis e x existe mas y não existe, então x é “mais perfeito” do que y (implicitamente, sejam quais forem todas as outras propriedades de x e y). Aliás, note-se portanto que “existir” não é uma propriedade necessária das entidades concebíveis. Então chamemos essa propriedade de existir na realidade (e não apenas como “entidade concebível”) de R(x). Temos então :

2. A(x)A(y) [R(x)^~R(y) --> M(x,y)] (premissa)

A partir daí, chega-se (usando 1 e 2) ao centro do argumento, que é a conclusão de que algo que seja deus tem necessariamente que existir. Este passo está perfeitamente correto logicamente. Temos então :

3. A(x) [ D(x) --> R(x) ] (de 1 e 2)

O problema é no último passo, quando se conclui então que necessariamente existe uma entidade tal que ela satisfaz a definição de deus e ela é real (em oposição a meramente concebível).

4. E(x) [ D(x) ^ R(x) ] (errado, injustificável logicamente!)

O que efetivamente nós podemos concluir com base nas premissas apresentadas é que *se* deus como definido acima existe como entidade concebível, então existe como entidade real. Isso de forma alguma estabelece a necessidade lógica de que exista algo, mesmo no mundo das entidades concebíveis, que de fato satisfaça à definição de deus – *caso em que* teria que existir. Essa definição da propriedade “algo maior do que todos os outros” não é necessariamente instanciável para qualquer relação, ainda mais no caso de conjuntos infinitos, e isso não é nenhuma novidade. Isto é, claro, a não ser que estejamos dispostos a aceitar contradições, mas nesse caso automagicamente tudo é verdadeiro sem precisar de prova e não estamos mais falando de coisa alguma.

Portanto, o argumento não faz sentido nem mesmo em termos de lógica abstrata. Note-se que mesmo que ele *fizesse* sentido em termos puramente lógicos, as definições dadas são completamente arbitrárias, e não apresentam qualquer justificativa ou explicação sobre o que exatamente é ser “mais perfeito” ou por que seria “mais perfeito” existir do que não existir. Para o argumento ter qualquer relevância prática seria necessário estabelecer conexões entre tais afirmações e definições e o mundo real, porque senão estamos falando somente sobre um mundo imaginário no qual relações com essa estrutura formal são válidas.

Uma parte do problema de historicamente descontruir o argumento de Santo Anselmo é que um entendimento mais profundo da relação entre lógica e linguagem não apareceu até muito recentemente. Noções mais claras do que seja uma prova e da relação entre sintaxe e semântica em lógica formal só apareceram quase comtemporaneamente. Os gregos de fato iniciaram uma tentativa heróica de estudar o assunto mas chegaram a resultados bastante incompletos e depois disso houve um gigantesco hiato em que o progresso foi muito lento.

Em tempos mais recentes porém houve grande progresso na área, e um entendimento bem mais rigoroso do que constitui uma prova formal, e um dos grandes expoentes nisso foi Gödel.

Muito ironicamente, Gödel foi uma das pessoas que buscou de alguma forma atualizar ou “consertar” o argumento ontológico. Ele escreveu uma versão da mesma idéia usando lógica modal. A versão de Gödel nunca foi realmente considerada prova de coisa alguma pela comunidade matemática em geral, e sofre de problemas similares, embora menos primários.

Note-se que Gödel, apesar de ser um gênio, não era exatamente um modelo de equilíbrio psicológico e no final de sua vida tinha um grande temor de ser envenenado, comendo somente a comida preparada por sua mulher. Ocorreu então de sua mulher ficar doente e ter que ser hospitalizada por um longo período, e como resultado Gödel parou de comer, eventualmente falecendo (!) devido a subnutrição extrema.

O que isso prova sobre seus teoremas? Absolutamente nada! Teoremas não são verdadeiros dependendo de quem os publicou, e sim por causa de sua estrutura. A verdade é verdade independentemente de quem a diga e “fulano disse x” é no máximo evidência circunstancial, seja contra seja a favor. Elevar a autoridade a critério de verdade é subverter completamente a possibilidade de honestidade intelectual. Os maiores gênios da humanidade por vezes (aliás quase sempre) também dizem enormes bobagens e sua genialidade está muitíssimo mais na sua capacidade de enxergar coisas que ninguém mais viu do que na de serem infalíveis. Distinguir o joio do trigo, distinguir a verdade que corresponde objetivamente à realidade dos fatos de historinhas e devaneios é tarefa crítica inalienável do ouvinte sem a qual passa-se simplesmente a acreditar em “coisas”. O que, infelizmente, é a estratégia intelectual de grande parte da população mundial.

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Dawkins ../../.././2009/07/11/dawkins/ ../../.././2009/07/11/dawkins/#comments Sat, 11 Jul 2009 08:36:12 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1074 Como todos por aqui a essa altura provavelmente já estão cansados de saber, eu sou 110% ateu. Porém, ou talvez coerentemente, sou radicalmente contra aceitar acriticamente as pregações de quem quer que seja, incluindo – e aliás, principalmente – as que parecem confirmar as coisas que me agradam ou que eu gostaria que fossem verdade.

Dentro desse espírito, mesmo admirando a paciência e a determinação de Richard Dawkins em enfrentar todos os aborrecimentos decorrentes de buscar combater a religião como agente universalmente catalisador de ignorância, intolerância e fanatismo, não parto do princípio de que tudo o que ele diz seja automaticamente lindo e maravilhoso e certo, nem idolatro sua pessoa, nem tenho qualquer vontade de me tornar seu discípulo (nem de ninguém mais, aliás).

Muitas coisas podem ser ditas sobre Dawkins com variável grau de razoabilidade. Pode-se dizer que ele teria se tornado tão intolerante quanto aqueles que critica. Eu não concordo, mas não é uma crítica absurda, e é um risco constante quando se entra num debate acirrado. Pode-se afirmar que ele não conheceria de forma suficientemente profunda as religiões que critica. Eu também não concordo, mas novamente, ter um PhD e prestígio não tornam ninguém automaticamente especialista em tudo, então uma crítica nessa direção não é algo que deva ser descartado sem reflexão. Como essas poderiam ser feitas muitas outras meritórias de consideração.

Agora, dizer que Dawkins seja *burro* decididamente não é uma delas. Não passa nem perto. Suas credenciais acadêmicas e profissionais como pesquisador, professor e escritor são estelares. Criticar Dawkins atirando-lhe o rótulo dé “burro” é tão pueril quanto criticar o papa atribuindo-lhe o mesmo adjetivo. Nenhum dos dois tem nem um pouco de burro, e afirmar o contrário equivale a querer ganhar um debate chamando o oponente de cara de mamão.

Agora, para acrescentar vários níveis de ironia e constrangimento a isso, se o problema é a palavra “provavelmente”, Dawkins foi explicitamente contra ela. Aliás, a campanha dos ônibus não foi inicialmente nem sequer concebida por ele, e sim por uma jornalista inglesa, a qual aliás agiu motivada por achar que os cristãos estavam agindo de forma psicologicamente abusiva ao promoverem incessantemente a idéia de que quem não seguisse os preceitos de sua religião passaria toda a eternidade sendo torturado. Claro, os cristãos podem fazer isso sem problemas e chamar ateus de perversos, maus, pecadores e perdidos. Mas se alguém decide educadamente dizer que as crenças dos cristãos estão erradas – ah, isso é completamente inaceitável. Hipocrisia total, como de costume.

Dawkins acabou apoiando a campanha, por achar que ela tinha mérito, mas declarou explicitamente que na opinião dele seria mais adequado dizer “There is almost certainly no God.”, sendo que o “almost” fica por conta da consideração prudente de que nosso conhecimento e nossa capacidade de intelecção são evidentemente finitos e possivelmente falhos, e que isso representa apenas o melhor que podemos concluir diante do que sabemos. Aliás, note-se que não costuma ocorrer aos católicos modéstia intelectual similar de dizer algo como “Quase certamente há um deus.” ou “Provavelmente deus existe.” E são essas pessoas que vêm falar de discurso dogmático? Por favor.

Sobre a eternidade ser um custo infinito, esse argumento sim é patético e vexaminoso de tão primário. Ora, eu poderia atribuir todo tipo de conseqüência eterna terrível para os mais variados comportamentos e não segue daí que você deva então seguir minhas recomendações na hipótese improvável de eu estar certo. Inclusive religiões diferentes recomendam coisas diferentes, mutuamente exclusivas, e igualmente condutoras à danação. E aí? Essa linha de argumentação é ridícula. O que precisa ser estabelecida é a credibilidade da afirmação que exista uma punição eterna, não o quanto ela seria horrível se fosse real.

E sim, muito objetivamente, as religiões, em particular a católica, aterrorizam as pessoas mais crédulas e emocionalmente vulneráveis com essa ameaça constante de danação se não forem suficientemente submissas e obedientes. Essa preocupação é muito real para uma grande parcela dos atingidos por esse discurso despersonalizante, e atrapalha, sim, terrivelmente que as pessoas simplesmente aproveitem suas vidas e vão vivê-las em paz de acordo com suas consciências. Aliás, eu pessoalmente iria ainda mais longe e acharia ótima uma campanha que dissesse “Deus obviamente não existe. Pare de se submeter aos que dizem representá-lo e siga sua consciência.” Claro que infelizmente quem é capaz de seguir esse conselho não precisa dele.

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Canibalismo Socialmente Chique ../../.././2009/04/23/canibalismo-socialmente-chique/ ../../.././2009/04/23/canibalismo-socialmente-chique/#comments Thu, 23 Apr 2009 08:01:02 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=429 Uma das minhas maiores críticas à religião é o quanto (com raras exceções como certas variações do budismo) ela não só encoraja como literalmente exige do sujeito que desligue o seu senso crítico e a sua consciência e siga cegamente o que os líderes religiosos proclamam.

Muitos religiosos talvez se levantem para dizer que não é nada disso, que a religião é compatível com o senso crítico e com a consciência individual, etc, mas eu estou cansado de argumentar esse ponto. Não, não é. Para se juntar a quase qualquer religião, você tem que prometer que vai acreditar cegamente no que algum (ou alguns) líder religioso disser. Por exemplo, se você resolver se juntar à religião muçulmana, você tem que acreditar no que Maomé disse, como interpretado por Ulemás e coisas parecidas. Se seu senso crítico e sua consciência disserem que pensando bem sobre tal e qual ponto Maomé estava errado, nada feito. Quem está errado é você.

Isso não só gera uma deturpação patológica do senso individual de ética como faz com que as pessoas sejam forçadas a viver num mundo esquizofrênico em que seu modelo de mundo não tem nada a ver com a realidade concreta enquanto seus atos e escolhas de fato ocorrem na realidade concreta. Enquanto as pessoas estão só achando que estão falando com seus antepassados no centro espírita isso ainda pode parecer mais ou menos inofensivo, mas quando começam a querer se curar de câncer com operações espirituais deixa de ser engraçado.

Somando as duas coisas – viver num mundo de fantasia e seguir cegamente as intruções dos líderes religiosos sobre moralidade – resulta em que é possível induzir uma pessoa seriamente religiosa a fazer praticamente qualquer coisa, por mais grotesca que seja, e ela o fará não só acreditando que era a coisa certa a fazer, como que era absolutamente necessária.

Então num contexto religioso vários comportamentos que em outras circunstâncias seriam encarados como no mínimo estranhos e em vários casos francamente patológicos tornam-se não só aceitáveis como normais e até virtuosos. Aí repentinamente condenar à morte uma mulher que foi estuprada (por ter tido sexo sem ser casada) torna-se um ato moralmente justo e necessário. Não que seja impossível esse tipo de situação acontecer sem religião; sempre haverá pessoas com preconceitos absurdos querendo realizar atrocidades. Mas a religião provê um arcabouço cultural e psicológico para validar e incentivar tais aberrações, dizendo “não olhe para este ato de violência em si mesmo, enxergue como o significado transcendente dele num contexto maior é na verdade positivo”. Daí as pessoas saem a fazer coisas que sem a validação provida pela religião muitas vezes elas mesmas encarariam como altamente duvidosas.

Imagine por exemplo se eu propusesse uma religião com as seguintes características. Periodicamente nós vamos nos reunir num ritual em que encenaremos canibalismo enquanto simultaneamente usamos drogas. Como parte do ritual, seremos informados e lembrados sobre que opinião devemos ter sobre determinados assuntos. Ter opiniões contrárias não é uma opção; estaremos literalmente sendo instruídos sobre qual deve ser a nossa opinião, como revelada diretamente pelo criador do universo aos nossos líderes religiosos, e reportada a nós por um líder religioso presente, e como parte do ritual pode-se pedir de nós que declaremos solenemente que de fato acreditamos nessas verdades sobre as quais fomos instruídos. Deixar de seguir as conseqüências lógicas de tais opiniões, ou mesmo conhecê-las, porém, não é o que realmente se pede de nós. Se formos extensamente ignorantes sobre em que deveremos acreditar e mesmo se agirmos de forma precisamente contrária, tudo estará bem, desde que reafirmemos nossa convicção de que acreditamos que essas são as opiniões certas. Não existe crime maior, porém, do que questionar essas opiniões; é parte fundamental do sistema de pensamento desta religião que não seguir cegamente seus líderes indica uma falha moral absolutamente indesculpável, imperdoável e intolerável que será punida pelo criador do universo com, literalmente, tortura por toda a eternidade, ou mesmo com tortura e morte neste mundo nos casos em que houver poder político para tanto.

Eu poderia continuar, mas acho que já está bem ilustrado. O que eu disse acima, evidentemente, descreve alguns aspectos de um subconjunto dos rituais praticados na religião católica. Uma parte substancial do que ela faz e ensina seria encarado com horror e repúdio se apresentado em qualquer outro contexto. Mas doses maciças de lavagem cerebral e de pretender oferecer respostas a questões fundamentais para as quais não existe realmente uma resposta conseguem tornar socialmente aceitável que pessoas sob outros aspectos normais e razoáveis se reunam semanalmente para encenar canibalismo.

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The Atheists Are Revolting ../../.././2009/04/04/the-atheists-are-revolting/ ../../.././2009/04/04/the-atheists-are-revolting/#comments Sun, 05 Apr 2009 03:54:40 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=400 the-atheists-are-revolting

Este é o muito bem sacado título de um livro mais ou menos recente de um sujeito chamado Nick Gisburne.


Nick Gisburne : God is not love. God is threats.

Nick Gisburne, para quem nunca ouviu falar, resolveu um dia começar a postar vídeos no YouTube falando sobre ateísmo. Rapidamente ele conquistou uma grande audiência. Porém, junto com a grande audiência, começou a sofrer ameaças de religiosos, que passaram a usar de uma série de artifícios para tentar remover sua conta do YouTube. Finalmente, num episódio que nunca ficou perfeitamente bem explicado, sua conta foi permanentemente banida por causa de um vídeo que cita passagens do corão. O motivo oficial dado pelo YouTube foi violação de copyright na trilha sonora que ele usou no vídeo.

O livro foi lançado não muito tempo depois, e é uma coleção de ensaios despretensiosos e relativamente bem humorados sobre religião e ateísmo. O título na minha opinião é uma pérola, que não dá para traduzir direito para o português : “The Atheists Are Revolting”, que em inglês pode ser lido tanto como “Os Ateus São Revoltantes” quanto como “Os Ateus Estão Se Revoltando”.

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O Papa e a Camisinha ../../.././2009/03/24/o-papa-e-a-camisinha/ ../../.././2009/03/24/o-papa-e-a-camisinha/#comments Tue, 24 Mar 2009 11:42:25 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=341 Considere o leitor o seguinte texto, publicado em

http://blog.veritatis.com.br/index.php/2009/03/21/o-papa-na-africa-a-aids-e-os-preservativos/

O Papa na África – a Aids e os preservativos

O Papa está visitando a África, como muitos devem saber. Já no avião de ida, foi interpelado a respeito da questão da Aids endêmica e do uso dos preservativos. Neste artigo do Pe. Zuhlsdorf (em inglês) há um comentário sobre a questão e o vídeo da declaração mais controversa. Ao que parece, a declaração foi maquiada antes de ser colocada no site do Vaticano. Traduzi a declaração do Papa assim:

“Diria que não se pode superar este problema da Aids só com dinheiro. É necessário, mas se não há alma que o saiba aplicar, não ajuda. Não se pode superar [o problema da Aids] com distribuição de preservativos: ao contrário, aumentam o problema.” (grifo meu)

Venham os laicos e loucos, o papa está certíssimo. A distribuição de camisinhas passa uma imagem de “pode tudo, apenas use camisinha” que aumenta a incidência de Aids. Os programas de distribuição de preservativos mostram-se inefetivos até o momento. Os programas que fazem uso de reeducação — abstinência, fidelidade, parceiro único, etc. — são os mais efetivos, e demandam menos dinheiro.

Meu comentário :

Isso aí coloca em evidência total simultaneamente a insanidade e a desonestidade da posição da igreja católica.

Em primeiro lugar, a posição da igreja católica contra o uso de métodos anticoncepcionais é anterior (tanto cronologicamente quanto logicamente) a qualquer questão de saúde pública. Mesmo que não houvesse nenhuma epidemia de AIDS na África, mesmo que sexo casual não apresentasse qualquer risco à saúde, mesmo que a única função cumprida pelos preservativos fosse prevenir gestações indesejadas – mesmo assim a igreja católica continuaria sendo rigorosamente contra seu uso.

Note-se que a igreja católica não acredita apenas que usar métodos anticoncepcionais seja ineficaz, ou indesejável, danoso à saúde, ou não recomendado mas prerrogativa pessoal de cada um. Ela acredita que seja moralmente *errado*, injustificável, e ruim, e os católicos estão em princípio obrigados a não usá-los, e os sérios de fato não usam, um comportamento que a igreja gostaria de ver estendido ao resto da sociedade, e essa posição não tem nada a ver com ser isso a melhor ou pior forma de prevenir AIDS.

Apresentar a posição que há tempos é a doutrina oficial da igreja como sendo a mais apropriada para combater a AIDS é uma falsificação total. Mas tem que ser né? Porque afinal o papa, em sendo “infalível”, não pode mudar de idéia. Seria muito mais honesto apresentar a posição da igreja como sendo a de que mesmo que essa não seja a melhor forma de combater a epidemia de AIDS, é a que mais beneficia o caráter moral da sociedade e salva o maior número de pessoas. Mas essa posição é politicamente insustentável, em particular perante quem não é católico, então é preciso tentar fazer parecer que existiriam motivos menos delirantes para a posição da igreja.

Agora, o trecho abaixo é uma verdadeira obra-prima :

Venham os laicos e loucos, o papa está certíssimo. A distribuição de camisinhas passa uma imagem de “pode tudo, apenas use camisinha” que aumenta a incidência de Aids. Os programas de distribuição de preservativos mostram-se inefetivos até o momento. Os programas que fazem uso de reeducação — abstinência, fidelidade, parceiro único, etc. — são os mais efetivos, e demandam menos dinheiro.

Ela diz tanto sobre a posição católica. Parece mais um jogo dos 7 erros; absolutamente tudo neste trecho está errado.

Em primeiro lugar, *não é verdade* que a mera distribuição de camisinhas (ou mesmo campanhas informativas sobre para que servem e como usá-las) instantaneamente faça com que pessoas que não queriam transar se tornem libertinos depravados. Isso é uma visão completamente distorcida da realidade. As pessoas *já estão transando*, com ou sem a aprovação do papa. E quem não está, não vai repentinamente pensar “oba, camisinhas” e transar com a primeira pessoa que aparecer. Ninguém precisa de camisinhas para transar, como aliás o papa parece saber muito bem. Isso é apenas o bom senso. Mas se o bom senso não é suficiente (como claramente parece não ser), as pesquisas científicas realizadas sobre o assunto mostram que nas comunidades onde foram introduzidos programas de distribuição e informação sobre o uso de preservativos os hábitos sexuais não se alteraram de nenhuma forma significativa. O que de fato se alterou, e de forma *muito* significativa, foi o número de pessoas infectadas com doenças sexualmente transmissíveis.

Por outro lado, nos lugares onde os religiosos conseguiram impor sua fantástica estratégia baseada em educar os adolescentes para a abstinência até o casamento (e nos EUA, onde ao contrário da quase totalidade dos outros países desenvolvidos, infelizmente isso aconteceu em grande escala), as conseqüências foram 1. aumento do número de gestações indesejadas 2. aumento da taxa da natalidade 3. aumento do número de abortos 4. aumento do número de pessoas infectadas com doenças sexualmente transmissíveis. Mas para que eu não seja acusado que não ter “provado” fatos que são de conhecimento público e notório, aqui vão algumas referências :

Abstinence pledges don’t protect against STDs

Many who pledge abstinence at risk for STDs

Teen Mom Bristol Palin Speaks Out Against Abstinence

Conservatives and sexual abstinence groups battle with FDA over condoms

(Adendo importante, após extensa discussão seguida à publicação deste texto : aparentemente, segundo as mais recentes pesquisas científicas, as afirmações sobre o impacto das campanhas promovendo o uso de preservativos ajudarem a diminuir as taxas de contaminação com doenças sexualmente transmissíveis assim como sobre campanhas a favor da abstinência não funcionarem *não se generalizam* para a África, apesar de esse ser o efeito observado nas pesquisas realizadas em países desenvolvidos, que foram as que eu li antes de escrever o artigo.)

Agora, isso é só o aspecto de saúde pública da coisa. A verdadeira agenda da igreja católica, que não tem nada a ver com isso, é promover a idéia de que haja algo errado com sexo pré-marital, e desincentivá-lo de todas as formas que for possível, mesmo que para isso seja necessário deixar as pessoas morrerem de AIDS.

A idéia de que sexo possa ser algo perverso – essa sim é perversa. Sexo é antes de mais nada um instinto biológico fortíssimo e altamente motivante e que se expressado de maneira construtiva, consensual e respeitosa produz pessoas equilibradas, emocionalmente satisfeitas e psicologicamente fortes. Possivelmente, aliás, tudo o que a igreja não quer.

A idéia de que duas pessoas se casem sem antes terem tido sexo é não apenas risível, é perversa e maluca. Duas pessoas que pretendam compartilhar uma existência conjunta precisam conhecer uma à outra profundamente e precisam entender as necessidades um do outro e descobrir se elas se complementam. Achar que seja possível ter uma avaliação disso sem ter sexo com seu parceiro é completamente absurdo.

Isso sem falar no fato de que a igreja simultaneamente não admite o casamento homossexual e não admite o sexo pré-marital. Então os homossexuais simplesmente estão proibidos de fazer sexo se forem seguir as normas da igreja. Mas espere, para não restar qualquer dúvida a igreja é abertamente contra o sexo homossexual. Na verdade a posição da igreja é similar à do presidente do Irã – de que não existem *realmente* homossexuais, que isso é uma perversão moral e mental doentia de pessoas “na verdade” heterossexuais e que como tal deve ser combatida, “tratada” ou punida. Sendo que no Irã, onde os religiosos estão no poder, isso de fato é um crime, como aliás em praticamente todas as sociedade onde os religiosos com esse tipo de posição tiveram poder político suficiente para impor sua vontade.

Aliás, assim como o sexo fora do casamento, que é seriamente punido nas teocracias islâmicas. E não achem que os católicos e assemelhados hesitariam ou hesitaram em tornam isso lei onde tivessem ou tiveram poder político para tanto. Nos EUA existem constantes tentativas dos protestantes nesse sentido, com variado grau de sucesso, limitado apenas pela resistência do resto da sociedade, e que já conseguiram ir bem mais longe no passado, como ilustrado aqui :

Before You Live Together

Before 1970 it was illegal in every state for a man and a woman to live together if they were not married. It is no wonder Linda LeClair and Peter Behr made newspaper headlines in 1968.

Linda was a sophomore at Barnard College. Peter was a Columbia University undergraduate. These two unwed 20-year-old college students did something that millions of Americans found newsworthy. They admitted they were living together. Newspapers and magazines relayed the shocking news. They were shacking up in an off-campus apartment in violation of Barnard College’s regulations.

If Linda and Peter’s living together were to occur today, most people would probably say, “So what. Lots of people live together.” What was once uncommon has become commonplace. Barnard College no longer has a regulation that prohibits unmarried couples living together off campus. As you can probably guess, the state of New York no longer has a law that prohibits unmarried couples from living together anywhere. However, the surprise today is that eight states still do

Talvez o leitor possa imaginar que a igreja tenha mudado junto com a sociedade, mas não foi exatamente isso que ocorreu. A principal mudança foi que a igreja perdeu a quantidade de poder político necessária para impor sua vontade ao resto da sociedade, mas não vejo muitas dúvidas de que o faria se pudesse, como ilustrado por quase todas as sociedades teocráticas do mundo, e nas posições que assume em batalhas travadas dentro de sociedades não teocráticas. Ou por comentários como esse :

Judge rules against cohabitation law

A judge has thrown out a 201-year-old North Carolina law making it illegal for unmarried couples to live together.

Superior Court Judge Benjamin Alford of New Bern struck down the law as unconstitutional in a handwritten ruling released Thursday.

“I think it’s terrible,” said the Rev. Mark Creech, executive director of the Christian Action League of North Carolina.

“It was simply judicial activism at its best. That knocked down the law that is a cornerstone of state marriage policy. The law emphasizes that marriage is the family structure that ought to be encouraged because that is the best institution for family, children and society.”

“What the judge actually did was undermine marriage,” said Creech, who cited studies that concluded that those who live together first before marriage are less likely to stay married.

*******************************************************

Adendo : Desde que eu publiquei originalmente este texto, vários leitores chamaram a minha atenção para a existência de pesquisas científicas sugerindo que ao contrário do que ocorreu no resto do mundo, na África especificamente as campanhas de distribuição de preservativos não pareceram ter o efeito desejado, sendo observada em alguns casos inclusive uma correlação inversa, isto é, aumento do número de casos de AIDS nas regiões com maior número de camisinhas distribuídas. Considerações minhas sobre o assunto podem ser encontradas junto aos comentários feitos ao texto por leitores.

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Para Abortar É Preciso Engravidar ../../.././2009/03/22/para-abortar-e-preciso-engravidar/ ../../.././2009/03/22/para-abortar-e-preciso-engravidar/#comments Sun, 22 Mar 2009 20:43:07 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=329 Um leitor escreve comentando um trecho de um texto recente meu, e propõe a seguinte questão : ok, se existe tanta comoção em torno do aborto, não seria proveitoso que discutíssemos também por que há tantas gestações indesejadas para começar?

De fato me parece proveitoso, e também me parece que seria extremamente coerente da parte das pessoas que são histericamente contra o aborto advogar a divulgação, disponibilização e uso responsável de métodos anticoncepcionais que impedissem que a fecundação ocorrese quando não é desejada. Mas talvez pessoas que defendam posições histericamente não tenham entre as suas habilidades mais desenvolvidas serem coerentes, porque o que ocorre em geral é precisamente o contrário.

No Brasil por exemplo, disparadamente uma das maiores causas desse número tão grande de gestações indesejadas é precisamente… a igreja católica, que insanamente fica fazendo campanha intensa contra a divulgação e uso de métodos anticoncepcionais. Se o problema é realmente impedir o genocídio de bebês, os católicos deveriam ser os primeiros a promover o uso de camisinha e de pílula. Esse foco exacerbado na idéia de que o problema seja que na concepção surgiria um novo ser humano se revela uma impostura a partir do momento em que se percebe que não há da igreja católica qualquer tentativa de ajudar a prevenir a concepção, mesmo estando isso plenamente e facilmente ao alcance da tecnologia atual.

Se a igreja católica quisesse de fato ajudar essas mulheres que estão abortando, buscaria auxiliá-las a não ficarem grávidas involuntariamente. O que elas querem é fazer sexo, não engravidar. E isso é perfeitamente possível hoje em dia, só requer um mínimo de informação e planejamento.

Mas isso tudo faz mais sentido se damos alguns passos para trás para olhar o contexto maior e percebemos que na verdade todo esse circo em torno do aborto é só um aspecto de uma obsessão muito mais ampla da igreja católica em tornar negativa, suja e feia a idéia de sexo, de colocar sexo como causa inexorável de coisas horríveis. Essa atitude profundamente neurótica com relação a um dos impulsos mais universais, saudáveis e potencialmente construtivos do ser humano tem sido responsável por uma quantidade imensurável de desgraça, infelicidade e tragédia.

Nos EUA esse papel é mais fortemente assumido pelos protestantes, que ficam enlouquecidamente promovendo aulas de “educação sexual” nas escolas cujo conteúdo é… promover a abstinência! E já que as “crianças” não vão mesmo fazer sexo, não é necessário ensinar como fazer seguramente, né? Evidentemente isso acaba sendo simplemente uma promoção intencional e irresponsável da ignorância. Freqüentemente existe oposição religiosa até mesmo a ensinar aos adolescentes que iniciam sua vida sexual exatamente *como* se dá a concepção, ao contrário do que ocorre rotineiramente na maior parte dos países desenvolvidos, onde o assunto sexo é tratado com muito mais naturalidade. A “teoria” dos religiosos parece ser que se não falarmos de sexo as inocentíssimas crianças não serão “pervertidas” e não sentirão necessidade de fazê-lo. Como se querer fazer sexo fosse uma perversão. Como se os seres humanos adolescentes não quisessem espontaneamente, biologicamente fazer sexo.

Como conseqüência, em uma pesquisa realizada entre indivíduos de 13 a 15 anos em áreas pobres de sete diferentes cidades americanas (1), 56% não sabiam que é impossível uma mulher ficar grávida com sexo oral, 59% não sabiam que o esperma humano é capaz de sobreviver por vários dias dentro do corpo de uma mulher, 70% não sabiam que lavar a vagina depois de fazer sexo é ineficaz como método anticoncepcional, etc. Talvez aqueles que ingenuamente (e contra a realidade biológica da puberdade) escolhem acreditar na “inocência” dos indivíduos nessa faixa etária achem que isso seja inofensivo e até apropriado, mas essa idéia é esdrúxula diante do fato de que um terço desses mesmos indivíduos já fizeram sexo.

O resultado dessa absurda ignorância promovida deliberadamente sobre sexo ?

EUA : Número um em gonorréia (2)

Porcentagem das pessoas que fazem sexo antes dos 18 anos :
EUA(63), Canadá(53), França(50), Suécia(65)

Porcentagem das mulheres que têm um filho antes dos 20 anos :
EUA(22), Canadá(11), França(6), Suécia(4)

Abortos por cada 1000 mulheres entre 15 e 19 anos :
EUA(29.2), Canadá(21.2), França(10.2), Suécia(17.2)

Incidência de gonorréia por cada cem mil indivíduos entre 15 e 19 anos :
EUA(572), Canadá(59), França(8), Suécia(2)

Olhem para esses números e vejam qual é o resultado dessa atitude míope, neurótica, histérica e opressiva sobre sexo. Examinem o que acontece quando essa idéia insana de “vamos proteger as crianças de sexo” é posta em prática. Não há qualquer impacto significativo sobre a quantidade de pessoas que fazem sexo, mas como as pessoas que estão fazendo sexo o fazem muito mais desinformadas, há um número bem maior de gestações indesejadas, o que leva a um número significativamente maior tanto de abortos quanto de filhos indesejados. Mas de brinde se produz uma sociedade que é (tolamente, desnecessariamente) disparada a número um em gonorréia. Essa é realidade concreta do resultado dessas políticas.

Onde fica então o discurso de que é infantil exibir certos comportamentos e então se eximir das conseqüências lógicas, previsíveis e conhecidas desses mesmos comportamentos? Os movimentos religiosos que buscam obstruir o uso de métodos anticoncepcionais, entre eles a igreja católica, contrariamente a seus lindos discursos, estão na prática concretamente promovendo o aumento do número de abortos. Mais uma medalha para os ninjas da hipocrisia.


(1)
Knowledge about Reproduction, Contraception, and Sexually Transmitted Infections among Young Adolescents in American Cities.
Carrera, Michael; Kaye, Jacqueline Williams; Philliber, Susan; West, Emily. Social Policy, Spring2000, Vol. 30 Issue 3, p41-50, 10p

(2)
Differences in Teenage Pregnancy Rates Among Five Developed Countries: The Roles of Sexual Activity and Contraceptive Use.
Darroch, Jacqueline E.; Singh, Susheela; Frost, Jennifer J.. Family Planning Perspectives, Nov/Dec2001, Vol. 33 Issue 6, p244, 8p, 5 charts, 1 graph

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Autópsia de uma Consciência em Colapso ../../.././2009/03/20/autopsia-de-uma-consciencia-em-colapso/ ../../.././2009/03/20/autopsia-de-uma-consciencia-em-colapso/#comments Fri, 20 Mar 2009 23:57:41 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=321 O contexto é o seguinte. Em comentário a um texto que escrevi recentemente, um dos leitores fez a seguinte observação :

Já quanto à Religião (…), se você não entende como uma pessoa pode acreditar em Deus ou pautar-se por uma Religião – que é uma coisa medonha e totalmente desprovida de razão e moralidade, não é? – por favor, aponte uma só civilização que não tenha se edificado mediante a idéia da existência de Deus (ou Deuses).

Ok, este é um comentário que em si mesmo não considero particularmente absurdo; a religião de fato parece ser um fenômeno universal. Apenas acho muito pouco apropriado daí deduzir que ela seja desejável, boa, ou sequer automaticamente “edificante” no processo civilizatório em oposição a meramente endêmica. Respondi então dizendo isso que acabo de dizer e comentando que

“Eu poderia igualmente dizer : aponte uma civilização que não tenha se edificado sem travar guerras, ou sem pobreza, ou sem usar drogas.”

Recebi então sobre esta frase um comentário que exemplifica tantas coisas sobre as quais venho falando recentemente – inclusive em outros textos – que parei no meio da resposta que estava escrevendo sob a forma de comentário e decidi publicar um texto sobre o assunto.

Eis na íntegra o comentário que me foi deixado :

Caro Sr. Sérgio,

Francamente, creio que sua consciência desta vez entrou em algum tipo de colapso:

“Eu poderia igualmente dizer : aponte uma civilização que não tenha se edificado sem travar guerras, ou sem pobreza, ou sem usar drogas.”

Dirá você que queria dizer, mais não disse o que disse, só usou de uma comparação absurda e sem fundamento para mostrar o absurdo argumento sem fundamento dos católicos.

Pera lá Sr Sabe-Tudo! Quer dizer então que os romanos ou egipcios, ou os gregos fundaram suas civilações chapados ou nestas civilizações houve uso de drogas? E não me venha dizer que não quis dizer isso, pretensos sofismas ou malabarismos intelectuais já não convencem. Que diabos de civilação drogada ou que permitiu uso de drogas foi essa? A civilização dos hippies? Bom..eu já apontei três, gostaria de saber que tipo de drogas os romanos, os egipcios e os gregos costumavam a usar? Ah.. bebidas ou plantas medicinais naõ valem tá?

E tem ainda os medievais católicos..quatro!

E é preciso não um ninja, mais talvez um super-samurai como o Sr. Sérgio para cortar a pobreza à espadas. O Sr Sérgio com estes argumentos do outro mundo parece acreditar na utopia marxista, e eu digo parece, ok? Será que um douto ateu como o Sr Sérgio acredita no mito milenarista de que o igualitarismo é possivel? Ah, não. Afinal para um ateu nada pode ser plenamente bom, só meio bom, a igualdade nunca será possivel com estes ninjas católicos por perto. Ele evidentemente naõ quis dizer o que disse. Fica a consciência individual do Sr. Sérgio registrada em um blogue para convencer ninguém a aderir as suas ideías meio igualitárias, e fica a pobreza.. contra a vontade em cima do muro do Sr. Sérgio.

Aponte o Sr. Sérgio se alguma civilação que perceber sua ordem sendo ameaçada ou de fato, estiver sendo atacada, se ficará de braços cruzados? Creio que o Sr. Sérgio também não quis dizer o que disse, afinal de contas, ele apenas conceituou a guerra como se os dois (ou três, quatro e etc) paises inimigos naõ tivessem razão para se defenderem ou atacarem. Ah.. mais as guerras matam pessoas inocentes e é contra os direitos humanos da ONU. Sim, as guerras matam pessoas inocentes, mas o aborto não, naõ é Sr. Sérgio? Imagina..ele não quis dizer isso. Sim, as guerras são contra alguns direitos humanos, de certa forma, mas o aborto nunca. Não é? Então viva os direitos humanos de quem estão livres dos ventres das mães. Talvez se o Sr. sérgio fosse contemplado com este direito contra sua existência, ele naõ poderia estar se lamentando agora contra os ninjas hipócritas. Ainda bem que sua mãe não cumpriu esse direito da mulher Sr. Sérgio. Sua mãe seguiu a ideologia destes ninjas retrógados. E o senhor está aí..vivo.

Com a palavra, se quiser, o Sr. Sérgio….

Esse texto demonstra uma confusão mental tão grande e uma percepção tão incorreta da realidade concreta que poderíamos facilmente descartá-lo como simplesmente sem nexo. Porém, there is method in the madness, e várias das percepções, preconceitos e raciocínios automáticos nele ilustrados infelizmente não são incomuns, e a ignorância neles contida é ativamente promovida por uma multiplicidade de movimentos políticos e religiosos. Responder a ele torna-se dessa forma relevante e de importância quase pedagógica, supondo que entre os bombardeados pela chuva de mentiras e lavagem cerebral que produz estados mentais como esse existam também outros mais críticos que sintam o cheiro da falsidade e que possam extrair algum benefício (ou pelo menos material para reflexão) de se falar sobre o assunto.

Prossigamos.

Fundamentos

Em primeiro lugar, o ponto da minha comparação é justamente apontar a absurdidade de afirmar que só porque algo seja universal, então será automaticamente civilizatório, ao apontar coisas que são de fato universais, mas não necessariamente civilizatórias. Achei que isto estaria óbvio mas aparentemente era preciso explicar. Mas até aí é só confusão mental.

Drogas

Muito mais espantosos são os comentários sobre as drogas, e foi aí que eu decidi que era mais importante publicar isso como texto e não como comentário. Sim eu estou afirmando que o uso de drogas é algo universal em todas as civilizações. E sim, os romanos, os egípcios, os gregos usavam drogas, caso alguém porventura desconheça esse fato histórico básico. Aliás, assim como os “medievais católicos” (embora seja discutível categorizar esse grupo como “uma civilização”).

Uma parte substancial das drogas mais usadas atualmente incluindo maconha, ópio, e naturalmente álcool não são nenhuma novidade histórica, e foram usadas extensamente nos últimos milhares de anos ao redor do mundo, assim como muitas outras. Isso é algo tão incontroverso e de conhecimento geral que é desnecessário argumentar extensamente. Para quem for mesmo remotamente surpreendido por essa informação que aqui meramente cito, sugiro que leia as referências que apontei e procure outras caso queira compreender quão constrangedora é a insinuação de que romanos, egípcios e gregos não usavam drogas.

Aliás, como isso não fosse suficiente, ironicamente um dos usos mais tradicionais de drogas em todas as civilizações sempre foi em cerimônias religiosas. E ainda mais ironicamente, isso é verdade inclusive na igreja católica onde a eucaristia é realizada com vinho até hoje. E dizer que “bebidas não valem” é mais uma demonstração inacreditável de hipocrisia. O álcool é uma droga tanto quanto todas as outras, por qualquer critério. Falar de drogas com tal grau de histeria e desconhecimento enquanto a sua (suponho) própria religião usa drogas em suas celebrações consegue bater todos os graus de ignorância, hipocrisia e loucura.

Sobre que tipo de civilização drogada “permitiu” o uso de drogas, a resposta é todas. Inclusive aliás as atuais, nas quais por exemplo álcool, cafeína e nicotina continuam sendo perfeitamente legais e aceitas socialmente para uso recreativo, e às quais podemos adicionar uma enorme coleção de drogas psicotrópicas disponíveis para uso medicinal. Isso sem falar nas que apesar de nominalmente ilegais são usadas em ampla escala.

Ailás, esse negócio de criar uma histeria inacreditável em torno de drogas e de querer proibi-las é algo absolutamente moderno. Historicamente, a preocupação e mesmo a condenação moral sempre foram com o abuso, não com o consumo em si. Tão recentemente quando no começo do século 20, a coca-cola (uma bebida popular sem qualquer estigma social) continha cocaína e só quando uma onda de histeria regulatória tornou a cocaína ilegal ela foi substituída por outra droga similar, a cafeína. Aliás, nos estados unidos houve tentativas sérias de se proibir a cafeína (sem grande sucesso) assim como o álcool (que eventualmente fracassou, mas com consequências terríveis). Mas voltando à cocaína, ela não apresentava qualquer problema ou estigma para ninguém, sendo que na Europa do final do século 19 era ingrediente por exemplo no popular Vinho Mariani, que era não só consumido como recomendado pelo papa Leão XIII, que premiou o químico que o desenvolveu com uma medalha.

Pobreza

Passa então o autor do comentário a argumentar que eu estaria defendendo o igualitarismo, logo em seguida a eu afirmar que a pobreza, assim como a religião, a guerra e o uso de drogas, é um fenômeno universal nas civilizações humanas.

Para começar, isso demonstra uma incapacidade embaraçosa de apreender a estrutura básica do meu argumento. Mas saltando por cima do fato de que eu estava justamente dizendo que a pobreza é algo universal e possivelmente de alguma forma essencial e inevitável nas sociedades humanas, existe um erro bem mais relevante : a noção de que o combate à pobreza (compreendida como miséria) seria automaticamente uma defesa do igualitarismo. Esse é *precisamente* o perverso e injustificável salto cognitivo que o marxismo conseguiu que grandes massas humanas introjetassem a ponto de o realizarem de forma silenciosa, automática e acrítica. E o autor do comentário realiza esse salto sem se dar conta, enquanto nominalmente criticando o marxismo! Ora, é precisamente isso que os marxistas defendem : que a melhor forma de combater a miséria seria atacando as desigualdades, impedindo e destruindo a acumulação de riqueza privada, que empobrecer os ricos seria um objetivo desejável e meritório. Então dessa forma consegue-se cooptar para o projeto marxista pessoas que movidas pela caridade buscam aliviar os sofrimentos decorrentes da pobreza alheia, ensinando-lhes que combater a miséria é idêntico a promover o igualitarismo que tem como conseqüência perseguir a riqueza. Com tantas pessoas que (como o autor do comentário) automaticamente vêem como equivalente o combate à pobreza e a defesa do igualitarismo, não é surpresa que haja tantos comunistas.

Guerra

Essa parte é até difícil de comentar porque ela é basicamente um amontoado de incongruências nas quais até mesmo a capacidade de escrever de forma ortográfica e gramatical do autor do comentário se esgotou. Eu não “conceituei” a guerra de forma alguma um meu texto, eu não disse coisa alguma sobre a ONU, ou sobre “direitos humanos” ou sobre a guerra matar pessoas inocentes. Isso tudo veio diretamente da imaginação do autor do comentário.

Aborto

Finalmente, o autor do comentário decide falar sobre aborto, e ignora completamente, como é de praxe, o fundamento da posição de quase todos aqueles que se opõem à criminalização do aborto no início da gestação : que num aborto realizado suficientemente cedo, *ninguém* morre. Para a maioria das pessoas contra a criminalização do aborto, o ponto não é e nunca foi se é certo ou bom matar bebês e sim se bebês estão morrendo para começar. Adicionalmente, representar a posição de “o aborto não deve ser um crime” como sendo “todas as pessoas devem abortar sempre que ficarem grávidas” é um discurso no mínimo desonesto se for só uma mentira e francamente maluco e delirante se o próprio autor do comentário não percebe a distinção.

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Os Ninjas da Hipocrisia ../../.././2009/03/18/os-ninjas-da-hipocrisia/ ../../.././2009/03/18/os-ninjas-da-hipocrisia/#comments Wed, 18 Mar 2009 06:08:14 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=313 A Mosca Azul faz o segunte comentário sobre este meu texto :

Um católico não tem de “seguir dogmas” tal qual um manual de etiqueta ou de bom comportamento; o crente, porém, deve crer neles incontornavelmente, na doutrina teológica. Se não acredita, está fora. Isso em nada é similar aos argumentos sobre práxis política que o Sergio apontou.

O formato do argumento parece ser então mais ou menos o seguinte : não podemos criticar a instituição igreja católica por atos reprováveis praticados por católicos porque ela não requer realmente que os católicos façam qualquer coisa boa, apenas que acreditem sinceramente em uma certa quantidade de dogmas inacreditáveis.

Isso levanta um aspecto de fato muito fundamental na fé católica : o importante, o essencial não é fazer coisa alguma, e sim “acreditar”. Isso permeia toda a personalidade do catolicismo e explica muitas coisas quando compreendido.

Coerentemente, o Pedro, em um texto recente, observa que ao contrário do que ocorre no direito civil, “não pode haver excomunhão para quem desconhece a pena de excomunhão para determinado ato”. Ou seja o importante *mesmo* não é fazer a coisa certa, é obedecer, é subjugar seu julgamento pessoal à autoridade eclesiástica. Não existe pecado maior do que ouvir uma ordem e ter a ousadia de conscientemente contrariá-la. Tudo o mais pode ser “desculpado” na confissão no domingo.

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Por Que As "Pessoas Católicas" Só Falam Bobagens Sobre Quem Não Concorda Com Elas? ../../.././2009/03/15/por-que-as-pessoas-catolicas-so-falam-bobagens-sobre-quem-nao-concorda-com-elas/ ../../.././2009/03/15/por-que-as-pessoas-catolicas-so-falam-bobagens-sobre-quem-nao-concorda-com-elas/#comments Mon, 16 Mar 2009 01:44:51 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=274 Eu começaria por dizer que isso nem sequer é verdade. Apenas me pareceu um título irresistível após o título, digamos, estusiasmadamente generalizante do texto do Pedro.

Naturalmente, as “pessoas esclarecidas” falam todos os tipos de coisas sobre todos os tipos de assuntos, assim como o fazem as “pessoas católicas”. Muitas das críticas feitas mutuamente são perfeitamente razoáveis, e até mesmo o Pedro, quando resolve ser razoável, faz críticas muito sérias sobre as quais vale a pena refletir. Existem críticas perfeitamente válidas à religião católica, assim como ao – como colocar? – “esclarecimento”.

Porém, recentemente, tem acontecido um fenômeno que não ocorre em geral com todas as “pessoas católicas”, mas que tem acontecido com o Pedro. O fenômeno é escrever longos textos na linha de “Aqui estão detalhadamente todos os motivos pelos quais o presente tema sobre o qual discorro não me interessa e por que falar sobre ele é uma perda de tempo tão grande que não vou ficar me dando ao trabalho de debater o assunto”. E então procede a debater o assunto.

Eu não sei exatamente como classificar esse modus operandi, se como hipocrisia ou meramente arrogância, falta de self-awareness ou algo mais, mas o que eu extraio disso é o seguinte : existe uma dissonância fundamental entre o que está sendo dito e o que está sendo feito. O que, pensando bem, talvez no fim das contas infelizmente seja uma característica bastante comum entre as “pessoas católicas”. E não tem como ser diferente, porque a realidade na qual vivem é completamente fantástica e dissociada do que realmente é verdade; se fossem forçadas a seguir à risca tudo o que dizem, não só sua loucura ficaria evidente demais para ser varrida para debaixo do tapete, como a grande maioria provavelmente desistiria no ato de ser católica.

Mas prossigamos às quatro “coisas” listadas por Pedro ao defender que o discurso dos “detratores da religião” por “pessoas esclarecidas” só pode ser explicado por “burrice ou má fé”, sendo “mesmo o caso de procurar explicações psicológicas”.

Ponto Número Zero

Aliás, comecemos por uma pré-coisa discutida no começo do texto, que é a distinção entre as seguinte “entidades” : “1. o magistério da Igreja, 2. a instituição materialmente existente, 3. todos aqueles que se dizem católicos, 4. todos aqueles que se disseram católicos em toda a história, 5. muitas coisas além disso e 6. tudo isso junto.”

Evidentemente aqueles que se dizem “católicos” não necessariamente seguem exatamente os dogmas oficiais defendidos por Roma. Isso é óbvio para qualquer pessoa minimamente pensante. Mas esse argumento é similar a defender o comunismo dizendo que Cuba não é *realmente* comunista, ou que a China não é *realmente* comunista, e assim por diante, por não seguirem fielmente os cânones do “verdadeiro” comunismo. Esse argumento se torna ainda mais indefensável quando evidentemente até mesmo representantes supostamente oficiais da igreja católica como padres, monges e assim por diante nitidamente agem e ensinam flagrantemente contra o que Roma diz. Se uma unidade do exército americano comete um massacre num país estrangeiro, não é uma defesa razoável nem sustentável dizer “ah, eles agiram contra nossas ordens então não temos nada a ver com isso”. É melhor do que se o mal causado fosse intencional, mas dissociar-se convenientemente das conseqüências concretas da forma como sua instituição funciona é, isso sim, cegueira ou hipocrisia. O mais fantástico é que essas são as mesmas pessoas que desmontam esse argumento como ridículo quando aplicado em outros contextos.

Por exemplo, seria muito fácil afirmar (e de fato é um argumento quase padrão) que os críticos do comunismo são uns tolos ignorantes e desinformados porque não conseguem sequer observar a distinção fundamental que existe entre “1. os líderes comunistas (Stalin, Lenin, Castro, Mao, etc), 2. os governos comunistas (União Soviética, Cuba, China, etc), 3. todos aqueles que se dizem comunistas, 4. todos aqueles que se disseram comunistas em toda a história, 5. muitas coisas além disso e 6. tudo isso junto.”

Isso é uma forma de magicamente escapar da acusação de que o comunismo matou milhões de pessoas ao longo da história. “Oh, vejam que ignorância, não foi o comunismo, foi Stalin.”

Naturalmente, esse argumento poderia ter algum fundamento se os atos perpetrados não tivessem nada a ver com comunismo. Se descobrimos um bombeiro estuprador, não corremos a bradar que a instituição dos bombeiros é corrupta. Mas se os bombeiros sistematicamente saqueiam as residências nas quais entram durante incêndios, há algo errado com a instituição.

Na verdade, eu diria que é impressionante como em geral as pessoas comuns não religiosas interessadas no assunto quase sempre sabem muito, muito mais sobre a igreja católica do que o “devoto” médio, que em geral não conhece absolutamente *nada* sobre o que realmente está na bíblia, quais preceitos são realmente dogmas oficiais, qual a estrutura da igreja católica, sua história, etc. Tais pessoas “esclarecidas” estão em geral muito mais qualificadas para emitir qualquer julgamento sobre a igreja católica do que o “católico” médio. Isso não diz nada sobre a igreja? Pois para mim diz *muito*. Não é como se essas pessoas não fossem todo domingo à missa, e ouvissem algo que deveria ser um sermão iluminando algum aspecto da fé católica. Ao invés disso são universalmente servidas um ritual zumbificante e completamente desinformativo.

Em resumo, esse argumento de dividir a igreja católica em uma multiplicidade de entidades pode até funcionar para certos tipos de crítica, mas não é uma panacéa que automaticamente torne vazias ou inválidas críticas feitas ao todo apontando para uma das partes. Aliás, está muito mais para um truque de prestidigitação retórica ao final do qual as críticas são simplesmente ignoradas.

Ponto Número Um
“um horror absoluto à idéia de que algo não mude”

Quando se trata de qualquer pessoa ou entidade que esteja defendendo conhecer “a verdade” sobre o mundo, esta “verdade” não estar aberta a discussão e ter que ser aceita por autoridade ou “fé” é sim algo que pega muito mal. Naturalmente que mudar apenas para demonstrar “modernidade” é estúpido. Mas responder a qualquer crítica sobre inconsistência com a realidade ou incoerência interna com “isso é um mistério da fé” não funciona muito bem entre “pessoas esclarecidas”. Quando algo não muda porque tudo indica que seja verdade apesar de uma grande quantidade de reflexão e investigação, isso é excelente e indica que talvez tenhamos encontrado algo próximo à verdade. Nenhuma pessoa “esclarecida” que eu conheça tem qualquer problema com o teorema de Pitágoras ser o mesmo há mais de mil anos, ou brada pela sua revisão por ser arcaico e antigo. Mas ele de fato tem algo eterno e transcendente a seu favor. Ele é de fato verdadeiro, e não é preciso recorrer a nenhuma autoridade ou “fé” para verificar isso.

Já algo que não muda porque foi arbitrado por alguma autoridade como convencionalmente “verdadeiro” não goza, não interessa o quanto se esperneie sobre o assunto, do mesmo grau de eternidade e infalibilidade, e não parece um bom fundamento para um sistema de crenças ou valores. O impedimento contra mudanças é completamente artificial nesse caso, e desperta desconfiança e desconforto em qualquer um com independência de pensamento.

Evidentemente que na ciência também não é o caso de que o sujeito ali da esquina tenha os meios para contestar verdades sobre física de partículas. Mas isso é uma limitação prática, não de princípio. Novamente, a matemática é um excelente exemplo de disciplina científica na qual tais limitações práticas impõem muito poucas barreiras ao progresso do conhecimento. Se algo é realmente verdade, é verdade para todos, e qualquer um com suficiente dedicação e talento pode fazer novas descobertas universalmente verificáveis por outros de forma muito objetiva, sem precisar de autorização, permissão, aprovação ou concordância das autoridades vigentes. Isso é completamente contrário à idéia, sim, tristemente eterna de que alguém vai lhe dizer o que fazer – seja o governo, o papa, sua família, o professor da escola.

Aliás, a própria idéia de que haja uma autoridade central decidindo a “verdade” na qual todos estarão então forçados a acreditar é odiosa e absurda. E é nesses moldes que a igreja católica funciona. Portanto mesmo que ela fosse infalível e estivesse absolutamente certa na totalidade de suas santas conclusões (algo em que eu não tenho qualquer razão para remotamente acreditar), um sistema como esse é infantilizante e perverso.

O mais irônico é que a igreja católica, pretensamente eterna e universal, começou num momento histórico determinado e muda o tempo todo. Talvez mais lentamente e ponderadamente, digamos, do que um partido político, mas em longos períodos de tempo a igreja católica mudou enormemente. Se compararmos a igreja católica atual com a de 500 anos atrás e com a de mil anos atrás, veremos mudanças, sim, revolucionárias, nos assuntos mais fundamentais possíveis. Enxergar a igreja católica como uma referência espiritual estável e coerente é risível. Exercícios retóricos para tentar forçar uma consistência inexistente apenas realçam a existência da questão.

Ponto Número Dois
“desejo de que nenhum ato tenha uma conseqüência indesejável”

Essa é quase uma tautologia. É claro que todos queremos que nossos atos tenham apenas as conseqüências que desejamos, quase por definição. Não há absolutamente nada de errado com isso, e o contrário seria esquizofrênico.

A crítica, talvez mal articulada na frase acima, parece ser sim ao comportamento infantil de não quem não assume a responsabilidade por conseqüências obviamente previsíveis de seus próprios atos. Alguém que faz sexo irresponsavelmente, vê-se diante de uma gravidez, e diz “ah, não foi culpa minha, porque não era o que eu queria”. Ou que bebe um monte de refrigerante, ganha peso, e então diz “ah, não foi culpa minha, eu estava com vontade de beber refrigerante, não de engordar”. Sim, isso é absolutamente infantil, e diria eu, pior do que infantil, demonstra problemas sérios de caráter.

Porém, para começar, o que decorre como conseqüência previsível de certos atos muda com a tecnologia e com o contexto. Hoje em dia pessoas perfeitamente responsáveis e conscientes podem usar por exemplo pílulas anticoncepcionais para evitar a causalidade entre sexo e filhos, ou comprar refrigerantes preparados com adoçantes artificais que podem beber sem engordar. Essas causalidades mudaram modernamente, mudando também o significado de tais atos (desde que executados responsavelmente). Porém existe em certos segmentos da sociedade uma inércia moral alucinada que ainda enxerga certas coisas como causa incontornável de certas outras, quanto isso simplesmente não é mais verdade. Sexo absolutamente não precisa gerar bebês, e qualquer pessoa “esclarecida” está abundantemente consciente disso. Então quando “pessoas católicas” vêm buscar impor esse discurso plastificado, e sim, protegido de “mudanças” pela autoridade da igreja, é natural que “pessoas esclarecidas” não vejam qualquer sentido ou mérito em tais idéias. Não mais do que em “Se você escolher dirigir um carro deve estar preparado para a hipótese de que seu pneu vai furar, você vai perder o controle e matar TRANSEUNTES INDEFESOS!!!!”

Adicionalmente, no caso de sexo, o discurso é particularmente absurdo. Assim como hoje em dia a causalidade entre o ato sexual e gravidez pode ser confiavelmente eliminada por pessoas responsáveis, a causalidade entre gravidez e gerar bebês também simplesmente não é mais automática. Existem diversas formas de se evitar que uma gravidez leve à geração de bebês, especialmente no começo da gestação, quando métodos químicos podem ser usados com mínimos efeitos colaterais. E não, eu não aceito nem como hipótese a idéia de que um óvulo recém fecundado seja um “bebê”. Essa é uma afirmação simplesmente ridícula para mim. Abortar quando não se deseja ter um filhos, isso sim pra mim é um ato de grande responsabilidade e que demonstra a determinação de assumir a responsabilidade pelas conseqüências de seus atos ao invés de meramente agir como vítima de suas próprias escolhas.

Então o que realmente ocorre em geral não é que as “pessoas católicas” lutem para aumentar o grau de responsabilidade e consciência na tomada de certas decisões. De forma alguma. Em geral o que ocorre é que elas tomam seus preconceitos ditados por Roma e criam todo o tipo de conseqüência absolutamente falsa e fabricada como inevitavelmente decorrente de certas escolhas e então repetem isso ad nauseam com um discurso agressivo, acusatório e pseudo-moralista, enquanto tentam pressionar a sociedade a tornar seus dogmas autoritários leis civis aplicáveis a todos. Não, obrigado. Não tenho qualquer intenção de ensinar a meus filhos que toda vez que eles se masturbam um anjo no céu começa a chorar.

Ponto Número Três
“eufemismos tolos e totalitários”

O ponto anterior ainda tinha uma conexão mais ou menos forte com religião, ao buscar explicar uma posição antagônica das “pessoas esclarecidas” com relação a religião através do fato de esta pretensamente lhes lembrar sobre as conseqüências negativas de seus atos. Me parece que o ponto atual vai mais na direção de um discurso genérico contra as tais “pessoas esclarecidas”. Mas vejamos do que ele trata.

O único “eufemismo tolo e totalitário” citado nesta parte é “precisamos discutir algo” significar “precisamos mudar a legislação”. Então os dois exemplos são no sentido do “legalizar x”. Ora, para começar, eu não vejo como um discurso genérico em favor de “precisamos mudar a legislação para legalizar x” possa ser autoritário. Independentemente do discurso ser tolo, ou desonesto, como é que ele pode ser autoritário? Pelo contrário, o que me parece extremamente autoritário é a legislação vigente sobre esses assuntos.

Talvez então a *forma* de mudar a legislação é que seria autoritária. Talvez a crítica seja que quem diz querer “discussão” sobre esses assuntos na verdade não quer discutir coisa alguma, e sim impor sua mudança na legislação. Esse argumento torna-se francamente ridículo quando observamos a receptividade ao debate apresentada por aqueles que defendem as posições opostas. Aqueles a favor da criminalização do aborto e das drogas têm por norma uma retórica apocalíptica, autoritária e inflexível, e não costumam estar abertos a discutir coisa alguma. Um pré-requisito para que a legislação pudesse ser mudada de forma não autoritária seria que houvesse uma discussão honesta dos assuntos em questão, e que o público em geral tivesse consciência dos fatos objetivos sobre o assunto, ao invés de uma torrente de propaganda e lavagem cerebral. Especialmente sobre as drogas, a quantidade de desinformação é grotesca; as pessoas não tem a mais remota noção de que a maioria das drogas ilegais é menos viciante e apresenta menos riscos à saúde do que por exemplo cigarro. O discurso sobre o assunto de uma parte substancial das “autoridades” é simplesmente desonesto, ignorante e mentiroso. Então é preciso, sim, discutir esses assuntos de forma menos mentirosa. Aliás em grande parte dos casos o tabu imposto em torno do tema é tão forte que nem sequer há discussão. Então nesses casos o que é preciso para começar é sim discutir o assunto. Não há nada de eufemismo, nem de tolo, nem de totalitário nisso.

Por outro lado, ironicamente, o outro lado do debate não hesita por um segundo em usar, eles sim, eufemismos, tolos, e totalitários. Enquanto os defensores da não-criminalização do aborto se entitulam de forma razoavelmente neutra “pro-choice”, aqueles a favor da criminalização do aborto, que são literalmente “against choice”, se entitulam “pro-life”. Chamar a posição a favor da criminalização do aborto de “pro-choice” é isso sim um exemplo reluzente de um eufemismo tolo e totalitário. E completamente desonesto, porque evidentemente é construído em torno da insinuação de que seus oponents sejam “against life”, ignorando completamente o fato de que o debate é justamente sobre se existe uma vida humana sendo terminada.

Mas é como todo o resto; é dizer “Jesus é filho de Deus”, e então responder a “Mas como você sabe?” com “Está na Bíblia” e “Mas como você sabe que a Bíblia está certa?” com “A santa igreja católica disse que está” e então a “Mas como você sabe que a igreja está certa?” com “Ah, ela foi fundada por Jesus!” e então “Mas como você sabe que Jesus está certo?” com “Ora, ele é o filho de Deus, duh!”

Ponto Número Quatro
“mentalidade vitoriana”

Quanto à descrição das “pessoas esclarecidas” como tendo mentalidade vitoriana, supostamente imagino em oposição ao autor, eu fico pasmo.

O texto ao qual presentemente respondo é colocado desde um ponto de vista de alguém que é tão “superior” ao objeto criticado que nem sequer mais fica indignado com os absurdos que observa, por estar tão distanciado de tais erros que lhe provocam apenas curiosidade. O que pode ser mais vitoriano do que isso? “Oh, olhe só que coisa curiosa os nativos estão fazendo hoje!”

Note, o problema não é tanto colocar fotos de atrizes inglesas e francesas semi-conhecidas versus fotos de mulheres toscas com bunda grande e peitão de fora sambando na rua. Cada um tem seu gosto. A questão é colocar fotos de quaisquer mulheres louvando o quanto são atraentes e então vir com invectivas relacionadas com o fato de que “sexo gera bebês”. Isso sim é hipocrisia vitoriana em grande estilo.

A mentalidade vitoriana se definia justamente por proclamar altíssimos ideais de “pureza” enquanto na prática continuava-se sendo simplesmente humano. Então as esposas da época vitoriana eram nominalmente desencorajadas a apreciarem sexo, mesmo com seus maridos. Os quais então recorriam a prostitutas para terem sexo de verdade. Um costume bastante “católico”, aliás.

Por outro lado alguém que abertamente proclama para todos ouvirem que gostariam sim de agarrar aquela mulata seminua que samba à sua frente pode ser chamado de muitas coisas, mas acho que “vitoriano” não me parece ser uma delas. Pode até ser o caso de que a pessoa declare isso por pressão social para se mostrar “do povo”, mas mais uma vez, o enaltecimento de ser “do povo” não é exatamente algo que possa ser chamado de “mentalidade vitoriana”, aliás muito pelo contrário.

Sobre acusar tais “pessoas esclarecidas” de usarem a indignação como substituição a argumentos, isso é no mínimo curioso vindo de quem apóia movimentos cujo único “argumento” contra o aborto é “OH, TEMOS QUE PARAR O GENOCÍDIO DE BEBÊS”. Como se o centro da discussão em torno do aborto não fosse justamente se está ocorrendo um genocídio de bebês para começar. A discussão não é e nunca foi sobre se matar seres humanos é ótimo e lindo, e sim sobre se seres humanos estão sendo mortos. Mas é óbvio que apresentar a questão com esse grau de honestidade é prejudicial à retórica.

Por mais que eu deteste o politicamente correto, eu vejo muito, muito, muito mais falsa, hipócrita e freqüentemente histérica indignação do lado daqueles que se opõem aos “democrats” e “liberals” americanos do que vinda que deles próprios. Sou o primeiro a concordar que é completamente estúpido uma pessoa não poder ser contra, digamos, ação afirmativa sem aparecer alguém para chamá-lo de racista. Mas é igualmente estúpido alguém não poder ser contra a criminalização do aborto sem aparecer alguém para chamá-lo se assassino de bebês. Ou mesmo de defensor do aborto; é perfeitamente possível ser contra a criminalização do aborto sendo radicalmente contra o aborto, e essa aliás é uma posição bastante comum. Mas isso se perde na retórica histérica e desonesta de “Oh, você é contra a crimininalização do aborto? SEU ASSASSINO!”. Ou “Oh, você é a favor da descriminalização das drogas? SEU ASSASSINO IRRESPONSÁVEL! QUER QUE NOSSAS CRIANÇAS MORRAM DE OVERDOSE E SE PROSTITUAM NAS RUAS??” Err, se eu sou a favor da descriminalização, talvez seja em parte porque eu acho altamente improvável que qualquer dessas coisas vá acontecer. Aliás, provavelmente diminuirão.

Esta confusão intencional entre o que alguém acha errado e o que deve ser crime é desonesta e deturpa tanto a consciência moral quanto o papel do estado. Mas a igreja católica, em todas as oportunidades que historicamente teve, nunca se importou muito com o fato de que nem todos são católicos, e sempre buscou tornar lei civil aquilo que seus preceitos morais alienígenas recomendam, sem hesitar por um momento em usar de desinformação e histeria para atingir esse objetivo.

Aliás, mesmo que não houvesse qualquer desinformação ou lavagem cerebral, me parece razoavelmente claro que algo nem tudo que é desaprovado em pesquisas de opinião pública deva ser automaticamente tornado ilegal para começar (acho que nem é preciso argumentar sobre o tipo de aberração a que isso leva/levou/levaria).

Finalmente, alardear taxas nominais de “rejeição ao aborto” em pesquisas de opinião pública no Brasil provavelmente apenas registra o sucesso da igreja católica em sua campanha insana de lavagem cerebral para tornar socialmente inadmissível a defesa pública da legalização de uma prática que é onipresente e corriqueira em todas as localidades e classes sociais do país. Por um lado avalia-se que no Brasil se realizem aproximadamente um milhão de abortos por ano. Por outro lado, a taxa de natalidade brasileira gira em torno de 18 por mil habitantes e caindo. O Brasil tem aproximadamente 200 milhões de habitantes. Isso significa que para cada 18 crianças nascidas, aproximadamente 5 são abortadas. Ou seja, aproximadamente vinte por cento de *todas* as situações em que ocorre uma gravidez são resolvidas com um aborto. E eu devo acreditar que este é um país com uma forte posição “contra” o aborto? Só mesmo na mente delirante das “pessoas católicas”. Isso é uma impostura e uma hiprocrisia de dimensões continentais. O que aconteceu foi que se dizer a favor de legalização do aborto se tornou “politicamente incorreto”, em grande parte por pressão da igreja católica, que impinge a pecha de “assassino” a qualquer um que ouse fazê-lo. O mesmo ocorre por outros mecanismos com a legalização de certas drogas, que apesar de universalmente usadas, carregam consigo uma carga artificialmente, arbitrariamente e hipocritamente inflada de inaceitabilidade social, de forma que defender abertamente sua legalização implica se atirar de cabeça em estigmas e acusações quase incontornáveis pela força da histeria, lavagem cerebral e desinformação que os cercam.

Conclusão

“1. Ninguém mais atribui neutralidade ou imparcialidade à mídia. De que modo isso afeta a credibilidade?”

Na minha opinião, positivamente, desde que isso seja introjetado pela mídia. Desde que o jornalista não seja deliberadamente mentiroso, eu acho que revelar suas opiniões e afiliações pessoais ao invés de se revestir de um suposto manto de imparcialidade e objetividade contribui para o que o leitor seja melhor capaz de julgar por si mesmo em que acreditar. Naturalmente, desde que não estejam todos dizendo precisamente a mesma coisa e haja de fato onde encontrar opiniões alternativas defendidas de forma minimamente competente a seres consideradas.

“Será que o jornalismo se tornou apenas um reforçador da identidade ideológica dos leitores?”

A pergunta é justa, e acho que infelizmente a maioria das pessoas tende a buscar apenas autores que confirmem seus pontos de vista. Porém no jornalismo pelo menos existe uma certa diversidade, mesmo que sem igualdade de representação. Por outro lado, a igreja, que certamente pretende ter um papel muito mais fundamental na vida das pessoas do que a imprensa, é construída sobre uma fundação dogmática e unanimista. Cabe então perguntar “Será a igreja apenas um reforçador da identidade ideológica de seus devotos?”, e se essa pergunta já é séria no caso da imprensa, me parece muitíssimo mais contundente no caso da igreja.

“2. Não será a hora de parar de não perceber que existe uma identidade de grupo entre jornalistas, que quem está de fora percebe? Como isso afeta a relação entre o público e os jornalistas?”

Acho que todas as pessoas pensantes percebem isso claramente há já muito tempo, e esse é provavelmente um dos motivos pelos quais agora que há alternativas os jornais tradicionais estão no mundo inteiro em crise. A internet permitiu o acesso direto do leitor tanto a fontes primárias de informação quanto a opiniões divergentes freqüentemente excluídas da grande mídia.

Isso sendo dito, estou falando das pessoas pensantes, com independência intelectual, senso crítico, e iniciativa. É provavelmente justo dizer que tais pessoas são infelizmente são uma pequena parte da população. Para a pessoa média, trata-se de ver um noticiário povoado de banalidades irrelevantes como o panda que não quer comer no zoológico tal ou a perseguição ao fugitivo na auto-estrada. Para essas pessoas a relação com a mídia continua mais ou menos igual : o jornalista é uma fonte de entretenimento e de cola social sob a forma de assuntos inofensivos para conversar com família, amigos e colegas, um instrumento de socialização entre ou com pessoas que não tenham qualquer vida interior, idéias próprias ou mais sobre o que falar mas que precisem exercer a necessidade humana de produzir ritualmente sons que outros comunalmente fingem que ouvem enquanto esperam a sua vez de produzi-los. E a uniformidade do discurso é fundamental para isso de fato funcionar.

3. Por mais padronizada que seja a linguagem jornalística, não será melhor abdicar do padrão em nome da informação, isto é, da complexidade?

Seria se o objetivo fosse realmente informar. Mas a função que a grande mídia cumpre normalmente está muito distante disso. Aliás, freqüentemente, o objetivo é desinformar, por vários motivos. Nenhum veículo de mídia quer realmente ofender ou alienar seu público com medo de perdê-lo, então instintiva e naturalmente evita vários assuntos, freqüentemente os mais importantes. Além da questão dos anunciantes, da necessidade de escrever sobre algo mesmo quando não há nada a escrever, da necessidade de não contrariar demais o governo, etc. Então o “jornalismo” voltado para as grandes massas é na sua maior parte um circo de desinformação irrelevante e superficial com valor primordialmente de entretenimento e de semente de coesão social. Informar não tem muito a ver com isso.

Ou isso inviabilizaria o jornalismo enquanto negócio? Se inviabilizar, em que o jornalismo difere moralmente do tráfico de heroína?

Eu pessoalmente não acho que haja nada de errado com o tráfico de heroína em si mesmo; a meu ver 99.9% dos problemas ligados ao comércio e consumo de heroína derivam de sua ilegalidade. Aliás a meu ver o tráfico de desinformação promovido pela imprensa é infinitamente mais danoso e viciante para a sociedade do que qualquer coisa que a heroína jamais causou ou pudesse causar. Infelizmente isso não ocorre por acaso; é uma simbiose com o público que não quer realmente ser informado tanto quanto entretido.

“4. Serei eu mesmo uma pessoa tão esclarecida a ponto de poder tornar meus preconceitos padrões universais de julgamento? Será que não estou deslumbrado demais com meus diplomas?”

Eu acho que nenhuma pessoa é esclarecida a esse ponto. Temos cada um nossas opiniões baseadas em nosso bom senso, nossa inteligência e nossas experiências pessoais, e se elas têm algum mérito cabe a nós demonstrarmos aos outros através do convencimento, não da autoridade, da força, da intimidação ou da lavagem cerebral, que elas o têm. Claro que pretendemos que nossas opiniões tenham de fato valor de verdade e aplicabilidade universal, mas isso deve ser mais um objetivo a ser honestamente perseguido do que um mantra a ser repetido – ou imposto.

E decididamente deslumbrar-se com seus próprios diplomas – isto é, confundir aprovação e prestígio com estar certo – é um risco contínuo e perverso nos meios intelectuais.

Agora, se essa é uma questão importante a ser colocada para os intelectuais e pseudo-intelectuais de plantão, é ainda muito mais apropriadamente colocada ao próprio autor da pergunta, ao papa, aos bispos e às outras “pessoas católicas” que ao contrário das “pessoas esclarecidas” se apresentam explicita e declaradamente como detentores de verdades infalíveis : “Serei eu mesmo uma pessoa tão esclarecida a ponto de poder tornar meus preconceitos padrões universais de julgamento?”

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Darwin e etc. ../../.././2009/02/28/darwin-e-etc/ ../../.././2009/02/28/darwin-e-etc/#comments Sat, 28 Feb 2009 20:32:30 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=243 Eu fico muito admirado com a percepção de que exista alguma “perseguição” à religião latente no mero fato de um dos grandes triunfos da ciência moderna estar sendo comemorado. A correlação que existe entre os dois (ciência/teoria da evolução versus criacionismo/religião) é assimétrica e é em geral muito mais objeto de preocupação pelo lado da religião do que pelo lado da ciência. Existem muito mais religiosos gastando seu tempo combatendo as teorias científicas que descendem das idéias originalmente propostas por Darwin do que cientistas gastando seu tempo para provar falsas idéias defendidas por religiosos sobre os mesmos assuntos. Além disso, de fato nem sequer há qualquer contradição lógica intrínseca com a proposição de que o processo evolutivo em si mesmo poderia em princípio ser a implementação de um plano, como provavelmente a maior parte dos cientistas admitiria sem problemas. Essa aliás é, acredito, a posição oficial da igreja católica. Então como pode ser uma celebração da teoria da evolução algum tipo de ato anti-religioso? Bem, talvez pudesse emocionalmente e socialmente ser apesar de isso ser injustificado, mas nem sequer isso é o que vejo. Eu vejo a celebração de Darwin como similar à celebração de Newton ou Einstein; enaltecimento de pessoas cujas idéias avançaram a nossa compreensão de como a realidade funciona. Aliás, Einstein era completamente ateu (apesar de algumas pessoas quererem afirmar o contrário com citações aleatórias completamente fora de contexto) enquanto que Newton era profundamente religioso. E daí? Eu não vejo, pelo lado da esmagadora maioria da comunidade científica, ninguém realmente se importando com nada isso ao celebrar suas obras, assim como as de Darwin.

Outro argumento que me espanta é o de que a rejeição ao criacionismo nos currículos escolares ou nas publicações acadêmicas seria ideológica. De fato, se um cientista quer ser biólogo numa universidade séria, ele não pode começar a defender que evolução seja “apenas” uma teoria, e sair escrevendo papers sobre “intelligent design” (ou sobre duendes, aliás). Mas ele está sendo “censurado”? Não, ele pode seguir acreditando no que quiser e divulgar isso usando os meios de que dispuser. Mas não através de uma instituição cujos critérios de busca de verdade não são compatíveis com os dele. Se eu disser que as vozes na minha cabeça estão me dando informações sobre outros universos eu também não serei contratado pela universidade. Sendo a ciência um empreendimento humano, tais critérios necessariamente passam pela avaliação e pela aprovação dos outros cientistas. Se ele não conseguiu convencer os outros cientistas de que suas teses são válidas ou merecem investigação, isso é um motivo perfeitamente válido para não ser contratado. Evidentemente que isso deixa a pesquisa influenciável pelos preconceitos e convicções pessoais dos cientistas, mas é quase cômico uma instituição religiosa criticar esse sistema quando sua própria estrutura é intrinsecamente autoritária e dogmática e não há qualquer espaço para julgamento individual da verdade quando existe um pronunciamento oficial sobre o assunto. Os cientistas gozam de uma liberdade (relativa às opções) extraordinária dentro de suas próprias instituições para questionar o status quo; apenas essa liberdade não é infinita e tem que de alguma forma se conectar com o resto do que os cientistas já concluíram que seja provavelmente verdadeiro. E cabe ao cientista que diverge do status quo convencer seus colegas de que suas teses têm méritos.

Em outras palavras, se eu quiser defender seriamente que na verdade o Sol gira em torno da Terra, precisarei de argumentos extraordinariamente bons. O mesmo ocorre com evolução, que é um fato científico extensamente estabelecido por uma variedade quase ridícula de métodos além de qualquer dúvida razoável. Quem não está interessado na verdade científica da evolução, ótimo, mas então não fique escandalizado de questioná-la não ser respeitável no meio científico. Existem excelentes motivos para questionar isso não ser levado a sério que não passam por qualquer preconceito extra-científico. Agora, quem de fato quer questionar seriamente a validade científica da evolução, ou pelo menos defender que questioná-la seriamente (ao invés de meramente especulativamente) seja intelectualmente respeitável, precisa ter excelentes argumentos contra, porque os que existem a favor são muito fortes. E naturalmente não adianta simplesmente ler a página da Wikipedia sobre evolução. Seguimos um longo caminho desde Darwin, e hoje em dia as evidências mais fortes e conclusivas do processo evolutivo vêm da genética molelular. Não é nem de longe uma posição primordialmente ideológica.

Agora, dizer por exemplo algo como “eu não me interesso nem um pouco pelos argumentos científicos sobre aquecimento global e na verdade os desconheço inteiramente e pretendo permanecer assim mas acho que as pessoas que questionam as causas apresentadas pelo governo como mais prováveis deveriam ser levadas mais a sério”, isso sim soa como “não vi e não gostei”.

O que nos leva à questão de como então é possível ao cidadão comum julgar debates em torno de questões científicas. Afinal, independentemente do interesse como drama cultural, algumas dessas questões possivelmente *têm* implicações concretas sobre nossas vidas (por mais que muitos entre nós não tenham qualquer interesse ou tempo para compreendê-las) e freqüentemente são base para decisões políticas. Mas considerando que para muitos não é possível ou desejável meter-se a ler exaustivamente artigos científicos e estudar cálculo, como proceder? Resta-nos usar a “intuição” ou o bom senso sobre o que faz sentido, associado a algum tipo de escolha e julgamento de caráter das “autoridades” científicas em que vamos acreditar.

Evidentemente, se alguém aparece na televisão para dizer “pesquisas científicas provaram que coca-cola mata em duas horas” eu, pela minha própria experiência, vou concluir imediatamente que isso é falso, não interessam os argumentos. Aliás,quando a mídia cita algo que começa com “pesquisas científicas provaram que” ou “cientistas descobriram que” trata-se quase sempre de algo completamente falso, distorcido e delirante. Então de fato é saudável buscar fontes mais confiáveis do que o Globo ou a Veja (ou o New York Times ou a Newsweek). Mas quais são essas fontes? Infelizmente (digo infelizmente pela sua inacessibilidade prática e intelectual), na maioria dos casos, são mesmo os papers científicos (para questões mais atuais e controversas) ou livros texto de ciência básica, para questões mais gerais e fundamentais. E o entendimento não vai surgir em uma tarde. Mas tais fontes têm a maior probabilidade de conter análises sérias, mas mais do que isso, dados concretos e mais ou menos confiáveis sobre a questão. Sendo que probabilidade não é certeza, e eu diria que qualquer análise dos dados deve ser lida com grande senso crítico, afinal o livro foi escrito por outra pessoa. Um livro sobre ciência que contenha apenas conclusões é muito ruim e suspeito e deve ser encarado com extrema desconfiança.

Felizmente para grande parte dos assuntos é possível simplesmente ficar com uma opinião genérica baseada no bom senso e na intuição. Ou simplesmente confiar que alguém pensou sobre isso. Digamos que após eu ler um artigo numa revista eu me pergunte – será que a radiação do meu celular não pode me matar? A lógica diz que se isso é um risco real, então pessoas estão morrendo disso. Estão? Isso é bem mais simples de pesquisar ou estimar do que entender argumentos sobre por que microondas não têm energia suficiente para quebrar ligações colaventes em moléculas biológicas.

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Racionalidade, Transcendência e Fé ../../.././2007/06/22/racionalidade-transcendencia-e-fe/ ../../.././2007/06/22/racionalidade-transcendencia-e-fe/#comments Fri, 22 Jun 2007 19:28:21 +0000 Sergio de Biasi http://oindividuo.com/?p=436 Mesmo quando eu era criança eu nunca achei que Deus fosse uma idéia muito acreditável. Mas mais do que isso, eu nunca achei uma idéia realmente atraente. Claro, a falta de sentido incomoda, mas eu não vejo *mais* sentido no fato de que um ser todo-poderoso tenha me criado arbitrariamente e escolhido objetivos arbitrários para a minha existência com os quais eu possivelmente nem sequer concorde.

Para mim, a mágica está no fato de que, apesar de tudo, vemos significado em quase todas as coisas, apesar de nada realmente fazer sentido. Está no fato de que contra todas as probabilidades, temos sentimentos transcendentes, mesmo cercados por todos os lados de finitude e mortalidade. Está nos fugazes momentos em que não precisamos de qualquer justificativa para estarmos fazendo exatamente o que estamos fazendo e aquele instante poderia durar para sempre.

Portanto a dicotomia entre racionalidade e sentimentos se resolve numa grande síntese quando percebo e aceito que apesar de tudo, quase sem querer, e contra toda a lógica, eu vejo constantemente significado, a realidade está transbordando de significado. Significado injustificável, inexplicável, significado que pela mera racionalidade não deveria estar lá, mas está.

Dessa forma, por um lado o mundo faz total sentido racionalmente. Racionalmente, somos um monte de átomos girando no espaço, resultantes de um grande processo evolutivo sem qualquer propósito. Nada tem realmente um fim, um objetivo. Nada é certo ou errado. Nós não somos nada, não significamos nada, não podemos almejar ser mais do que nada. De onde vieram as leis da física? Ninguém sabe. Mas não saber faz completo sentido racionalmente. Na verdade o uso mais elevado da razão nos revela que existe uma quantidade infinita de verdades incognoscíveis, muito mais numerosas que aquelas às quais temos acesso, mesmo em teoria. Querer ser capaz de explicar tudo vai contra os limites demonstrados pela própria razão. Faz total sentido. Pode até ser frustrante, mas isso é completamente irrelevante sob o aspecto da lógica pura.

Por outro lado, admiravelmente, o mundo também faz sentido emocionalmente. Não devia fazer, não há qualquer motivo lógico para fazer, mas faz. Constantemente vemos sentido. Evidentemente, pessoas inteligentes e/ou com suficiente grau de consciência perceberão aí um problema, e poderão cair na tentação de não se conformarem com o fato de que o mundo possa fazer sentido emocionalmente sem que haja uma base racional para isso. Note-se, porém, que “fazer sentido” emocionalmente não é o mesmo que “fazer sentido” racionalmente. Fazer sentido racionalmente tem a ver com lógica, e silogismos, e axiomas, e provas, e teoremas, etc… Fazer sentido emocionalmente é algo muito mais fugidio. É mais um sentimento holístico de “isto é bom”, “isto está certo”, “isto é como deveria ser”. Tentar capturar isso em qualquer sistema filosófico, teológico ou cosmológico é uma quimera. Porque é eminentemente arbitrário e profundamente pessoal. Cada vez que vemos sentido em alguma coisa é uma mágica acontecendo.

Diante disso, porém, minha reação não é de concluir pela existência de alguma entidade externa que tenha lá colocado esse significado. Alguns chamariam a esse caminho que não tomo (suspeitamente e literalmente “deus ex machina” para mim) de fé, mas eu digo que é justamente o oposto – de alguma forma exigir uma explicação é que demonstra falta de fé. O que se costuma chamar de fé soa para mim como incapacidade de simplesmente aceitar o surpreendente dom de ver sentido transcendente onde ele verdadeiramente não existe. Soa como incapacidade de aceitar que o que nos faz felizes não tem absolutamente nada a ver com lógica ou racionalidade. Que o que achamos que é bom e certo é completamente arbitrário mas importante assim mesmo. Pode até ser frustrante pelo aspecto racional, mas isso é emocionalmente irrelevante – continuamos sentindo o que sentimos.

Muito mais provavelmente se trata de que essa “mágica” esteja programada nos nossos genes para que consigamos lidar com sermos simultaneamente seres capazes de racionalidade e autoconsciência mas ainda assim avassaladoramente impelidos pelo imperativo evolutivo de sobreviver e replicar. Se não víssemos significado nas coisas possivelmente afundaríamos na apatia ou reverteríamos a macacos movidos de forma mais direta pelos nossos instintos – caso em que não gastaríamos nosso tempo com usinas nucleares, aviões a jato, satélites e outras realizações que representam uma enorme vantagem evolutiva com relação aos nossos primos menos transcendentes.

Só que do jeito que as coisas são, saber que o sol é uma bola de hidrogênio não muda o que sinto ao olhar para o horizonte no amanhecer. Nada faz realmente sentido, e no entanto se certas condições forem satisfeitas somos capazes de viver muito felizes como se fizesse. *Isso* é mágica, e está ao alcance da maioria das pessoas. A “fé” pode até servir como algum tipo de muleta que as ajuda a aceitar e viver suas necessidades emocionais, para que se sintam autorizadas e justificadas em sua instintiva busca de transcendência. Porém, minha visão é de que se por um lado essa autorização não é de forma alguma justificada, ela também não é necessária, e é muito mais verdadeiro simplesmente aceitar que nossa necessidade de transcendência prescinda e preceda qualquer justificativa do que se afundar em buscas sem fim por um inexistente motivo cósmico que nos autorize a sentir e expressar o que sentimos de qualquer forma.

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Ateísmo Transcendente ../../.././2000/06/14/ateismo-transcendente/ ../../.././2000/06/14/ateismo-transcendente/#comments Wed, 14 Jun 2000 22:00:29 +0000 Sergio de Biasi http://oindividuo2.wordpress.com/?p=89 “O moralismo é o câncer da ética” – Betinho

Pedro Sette abre seu artigo mais recente citando São Paulo : “Tudo é bom, mas nem tudo é conveniente”. Acho a citação muito feliz e apropriada, e concordaria com ela sem qualquer problema. Portanto, já partimos os dois de uma base consideravelmente comum – o prerequisito para um debate que faça algum sentido. Resta, naturalmente, discutir como decidir o que é e o que não é conveniente.

Com relação a isso, cito acima uma fonte que normalmente não me agrada muito, mas que nos deixou alguns pensamentos interessantes, como esse. Acredito que a intenção nesta frase fosse, em resumo, repudiar a idéia de que seja possível tranformar o pensamento moral em uma cartilha petrificada de atos bons e maus. Mais do que isso, a frase parece conter a noção de que o desejo de impor um determinado conjunto de reflexões éticas criados por uma pessoa ou grupo em particular a todos em volta é algo comparável a uma doença.

Podemos ir ainda mais longe. Eu diria que um significado ainda mais profundo que podemos tirar dessas poucas palavras é o de que mesmo quando estamos com total razão e mesmo que por inspiração divina pudéssemos ser informados onde afinal de contas está o lado do “bem”, mesmo nesse caso pode não ser conveniente – para usar as palavras de São Paulo – tomar em nossas mãos a tarefa de retificar a todo custo e até o último detalhe a mais mínima ação “errada” daqueles à nossa volta. Fazê-lo, além de ser extremamente pretensioso, pode ser invasivo e destrutivo se levado às últimas conseqüências.

Apesar de ter opiniões fortes sobre determinados assuntos, eu tendo a concordar com esta visão desfavorável do moralismo, portanto mais uma vez assinaria embaixo de vários pontos levantados pelo Pedro em seu artigo. Contudo, somente até um certo momento.

Em primeiro lugar, acho equivocadíssimo concluir daí que não se deve “julgar os outros segundo seus (de quem julga) próprios critérios morais”. E ainda por cima usando o argumento de que “todos pecaram” como se daí decorresse que portanto ninguém teria autoridade para criticar o que quer que seja. Se não vamos julgar os outros segundo “nossos próprios critérios morais”, vamos julgar segundo quais, então? Segundo os do autor do ato? Segundo os do papa? Segundo a média da sociedade? Isso sim seria fazer pouco do “julgamento moral pessoal e instransferível” que Pedro descreve. Quanto à não inocência dos julgadores, ora – se formos realmente considerar cegamente as palavras de Jesus de forma literal e concluirmos que ninguém pode realmente julgar ninguém, ponto, então deveremos achar muito bom e normal o canibal, o estuprador, o genocida, etc… pois afinal de contas ninguém aqui é imaculado. Não acho que fosse isso que ele buscasse instar as pessoas a fazerem. Não acho que a pregação dele fosse a de que devamos abrir mão de ter um julgamento moral. Acredito, sim, que o sentido é outro bem diferente – o de que não devemos ser intolerantes e implacáveis ao perceber os erros dos outros. Ao impedir que a mulher infiel fosse apedrejada, em nenhum momento ele levantou dúvidas sobre o fato de que ela havia mesmo pecado.

Pedro diz também que “as coisas não são boas ou más conforme as julgamos, e sim conforme se apresentam em um dado momento”. (Aliás, acho muito engraçado ver essa idéia na boca de quem é incondicionalmente contra o aborto.) Conclui então que “as questões do bem e do mal no mais das vezes se apresentam apenas como casos concretos e irredutíveis, dos quais raramente se pode extrair uma regra geral”. Ora, longe de mim querer defender que o significado moral de um ato não dependa do contexto em que ele se insere. Concordo plenamente que cada ato humano é único e tem também um significado único, e que não há quantidade de regras suficiente para dar conta de todos eles. Porém, isso não quer dizer que as “regras” não nos permitam apreender parcialmente o significado de um ato, um aspecto desse ato, visto à distância, num alto grau de abstração. É claro que a realidade é independente e sempre muito mais rica do que as abstrações que construímos sobre ela, mas somente através da construção de abstrações podemos processar o conhecimento incompleto e imperfeito a que temos acesso. É óbvio que todos os assassinatos são diferentes e têm significados morais muito diferentes. Mas também me parece bastante razoável dizer que um assassinato seja algo em princípio ruim; senão, teremos que rejeitar “Não matarás” por ser “insensível ao contexto”.

Mais adiante, Pedro elabora especificamente sobre a questão do significado moral da aproximação com a namorada de um amigo, e diz : “E ainda pode acontecer de ela ser um bem tão importante e fundamental que justifique o rompimento de quaisquer relações.” Ora, agora sim estamos entrando em terreno perigoso. Quer dizer então que “o rompimento de relações” pode ser um “preço” razoável a se pagar para atingir o “bem” de relacionar-se com a namorada do amigo? Ora, essa é a racionalização mais antiga do mundo para se realizarem as maiores besteiras. Claro, eu consigo construir mentalmente um contexto em que “relacionar-se com a namorada do amigo” (ou até mesmo esposa, estragando seu casamento) possa colateralmente trazer de alguma forma um “bem”, assim como posso imaginar contextos em que matar alguém traz um “bem” (um psicopata ameaçando dez reféns, por exemplo). Porém, isso é uma forma de driblar a questão de que o ato em si é, em princípio, moralmente indesejável! Devemos lutar para que não seja necessário abater o psicopata a tiros e não buscar deliberadamente esse desfecho. Simplesmente executar o psicopata é imoral mesmo que o desejo de fazê-lo seja compreensível (isso me lembra a última cena de “Seven”).

Próximo ao final do artigo, Pedro afirma que “A idéia de uma moralidade atéia, que permaneça como uma régua fixa de um objeto mutante, dissociada das necessidades da vida real da alma, e daquilo que lhe convém ou não em tal ou qual momento na sua peregrinação rumo à perfeição, não pode ser minimamente aceita.” Pra começar, não percebo qual a relevância do “atéia” neste caso. Quer dizer então que uma moralidade que permaneça como uma régua fixa, etc… seria muito boa se não fosse atéia? Não deve ser isso, pois nesse caso vários trechos do artigo seriam refutados por um ou dois mandamentos. Será então que ele está querendo defender que do atéia decorrem as outras críticas? Acho que não, pois a posição atéia nitidamente permitie (e até favorece) o relativismo moral e coisas como “réguas não fixas”. Acredito, portanto, que a rejeição aqui seja ao “atéia” em si mesma, como na frase “não posso aceitar uma moralidade atéia”, independentemente das outras críticas apresentadas na frase. E acho que a motivação para isso está na colocação prévia de que “E ao meu amigo Sergio, a quem estimo e respeito, falta a medida fundamental, que é a admissão da existência de Deus. Somente o absoluto divino pode mensurar e dar sentido ao relativo humano.” O problema é que o benefício apontado pela admissão da existência de Deus nesse contexto seria, portanto, precisamente estabelecer uma escala em comparação à qual poderíamos avaliar alguma coisa. Só que o que seria isso senão exatamente a “régua fixa para objetos mutantes” execrada logo em seguida? Aliás, a própria imagem não me parece muito bem escolhida, pois o objetivo mesmo de uma régua é justamente ser fixa diante de objetos mutantes – esse é seu comportamento esperado e apropriado. Senão, tudo teria o mesmo valor moral e avançar um sinal seria um erro de valor tão grande quanto (ou no mínimo incomparável ao de) dar um tiro em alguém. Claro, isso, por mais que o Pedro não queira, acaba sendo a indefensável (a meu ver) posição relativista. Portanto, a idéia de usar “réguas mutantes” para “objetos mutantes” definitivamente não parece muito acertada. Vem então a crítica “dissociada das necessidades da vida real da alma”. Bem, aí, já concordo; uma moralidade baseada em modelos abstratos e que não se refira, a cada aplicação, à vida real e concreta, provavelmente resultará em um erro de julgamento atrás do outro. Em nenhum momento eu fiz a defesa do contrário. Exprimi meu julgamento pessoal sobre várias situações, com afirmações como “roubar é ruim”, mas é claro que não pretendi com isso excluir o contexto no qual a ação ocorre. Se um mendigo “rouba” um pão quando ninguém está olhando porque está com fome isso tem um significado moral bem diferente de apontar um revólver para cabeça de alguém e dizer “isso é um assalto”. Novamente, posso até imaginar um contexto em que um roubo possa trazer, colateralmente, um bem (o mendigo não morrer de fome certamente me parece ser um bem) mas isso não significa que (aliás, como alguns acabam se enrolando em achar) o roubo que o mendigo cometeu, em si, seja um “bem”. Não vamos agora tentar resolver o problema da fome dos miseráveis incentivando-os a furtar (não que não haja gente que ache a idéia ótima).

Finalmente, Pedro conclui ao final que “a correção nas ações é mais importante do que o fluxo descontrolado da simples imaginação e dos desejos”. Concordo plenamente com isso, e nunca sugeri que o contrário fosse verdade. O que defendi (e reitero) em meu artigo original é que deliberadamente cultivar pensamentos imorais é diferente de sentir atração uma passageira atração pela mulher que passou ali na esquina. E que acreditar que “o fluxo descontrolado da imaginação e dos desejos” possa ocorrer sem quaisquer conseqüências concretas me parece meio pouco realista. E nisso, não estou sozinho:

Mateus, 5 (Sermão da montanha)

27 Vós ouvistes o que diziam nos tempos antigos : “Não cometais adultério”

28 Mas eu vos digo : Aquele, seja quem for, que olhar para uma mulher com desejo por ela já terá cometido adultério com ela em seu coração.

29 E se vosso olho direito vos ofende, arrancai-o o jogai-o longe, pois é de maior proveito para vós que um de vossos membros pereça a que o corpo todo seja atirado ao inferno.

Ou seja, no cristianismo, o mandamento não é algo óbvio como “não tomar a mulher do próximo” e sim algo de significado moral mais amplo que é “não cobiçá-la”.

Por que é que não há mandamentos como “não estuprar” ou “não comer carne humana”, etc…? Acredito que isso se deva ao fato de que é tão óbvio que isso não é pra fazer que ninguém normal tentaria ficar inventando argumentos para dizer que fazê-lo seja bom. Já em algumas outras situações – como cobiçar a mulher do próximo, e não apenas dar uma olhadela nela e achá-la atraente – nossa inteligência pode freqüentemente nos prestar um desserviço ao construir elaboradas racionalizações para tentar justificar o que no fundo é imoral mesmo.

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Um Artigo Bem Ateuzão ../../.././1999/12/15/um-artigo-bem-ateuzao/ ../../.././1999/12/15/um-artigo-bem-ateuzao/#comments Wed, 15 Dec 1999 22:00:31 +0000 Sergio de Biasi http://oindividuo2.wordpress.com/?p=95 Pedro Sette Câmara me escreve sugerindo “por que é que você não escreve um artigo bem ateuzão, antes que isso aqui vire um jornal beato?”

Minha primeira reação foi de duvidar da necessidade ou utilidade de um artigo assim; afinal, o ateísmo é mais uma não-crença do que um conjunto organizado de convicções. Não faria sentido, para mim, criar ou organizar uma escola de pensamento baseada nessa não-idéia – seria como fundar uma “associação de pessoas que não acreditam que sejamos todos uma simulação de computador”. Nunca vi nenhum motivo sequer vagamente persuasivo para cogitar que assim fosse, não vou perder meu tempo com isso. Porém, como é possível? Em Deus muitos dizem acreditar! A idéia em si, a nível abstrato, já é meio fantástica, mas o mais impressionante é que não tem nenhuma mais exageradamente mínima correspondência na realidade acessível!

Minha posição ateísta, destaco, não é metodológica; não parto gratuitamente do princípio de que Deus não existe para então tentar sair tirando conclusões. Ao contrário, minhas convicções atéias são resultado de uma postura metodológica mais ampla, baseada na confrontação da reflexão com a experiência e a observação. A maioria dos teístas, eles sim, têm nesse caminho uma escolha metodológica. Vêem a necessidade – lógica, espiritual ou emocional – de que Deus exista a priori. Ou então, nos casos covardes e hipócritas, é simplesmente tão mais conveniente se convencerem (ou agirem como se) de que Deus existe que o fazem.

Evidentemente, há também aqueles que afirmam que foram exatamente a experiência e a observação que os levaram à conclusão de que Deus existe. Seria a postura filosófico-científica, ou seja, resumindo, a de tentar descrever a realidade através de um modelo, comparar as previsões resultantes com o que realmente ocorre, e então estar disposto a corrigir o modelo. Porém, na prática o que via de regra observo ocorrer é que não há absolutamente nenhuma tentativa, das mais débeis, para se corrigir o modelo. Isso é um dos sintomas mais fortes do caráter não científico de atividades como a homeopatia, a astrologia, a acupuntura, assim como da totalidade das religiões, especialmente as teístas (a maioria das quais, coerentemente, pelo menos não se pretende científica). São atividades baseadas na tradição, na revelação e na repetição, e, nos casos mais nobres, também na reflexão, na meditação e na especulação, mas não na modelagem e experimentação. Mais forte ainda do que isso, as mais prudentes e antigas são, normalmente, completamente não falseáveis, no sentido em que não apontam experiências objetivas com resultados observáveis necessários. Seus modelos não incluem qualquer previsão de resultados não viáveis, como qualquer teoria para o funcionamento da realidade tem a obrigação de fazer para poder proclamar-se científica. Nesse sentido, a afirmação “tudo cai para cima” é infinitamente mais científica do que “Devemos resistir ao mal” ou “Deus é formado de pai, filho e espírito santo” ou “Aquarianos são criativos” ou “Este remédio aumenta a sua energia cósmica positiva”. Como demonstrar que essas últimas “hipóteses” não são verdadeiras? Impossível, e vão; elas não são “hipóteses”, não foram concebidas como algo para ser testado. Não são afirmações científicas. Apresentar afirmações desse tipo como científicas sem apresentar formas de falsificá-las é no mínimo ignorância e no máximo desonestidade.

O interessante é que essa “não falseabilidade”, muito longe de ser percebida como sintoma de possível vacuidade de conteúdo, é muito atraente para a maioria das pessoas, que podem então projetar nesses modelos suas próprias convicções e desejos (muitas vezes inconscientes) sobre o que gostariam que fosse verdade.

Claro, porém, que nem tudo neste mundo precisa ser científico. A meu ver, várias das atividades não científicas que discursam sobre como a realidade funciona podem, em princípio, ser fontes de iluminação e transcendência, afinal, há muitas perguntas cujas respostas não estão e talvez nunca estejam ao nosso alcance e que no entanto são parte fundamental da existência humana. Só pra começar, para que se possa falar sobre a realidade é preciso primeiro supor que ela exista e portanto a filosofia, por exemplo, não só é necessária e útil como precede a ciência como desbravadora do desconhecido. Da mesma forma, embora possa querer determinar, digamos, se meu sistema de valores é internamente coerente ou até mesmo consistente com a realidade, não pretendo que ele seja científico – já que, por exemplo, ele passa por necessidades psicológicas até certo ponto arbitrárias minhas. Claro que disso não decorre que ele seja irrelevante ou vazio de conteúdo.

Porém, existe, a meu ver, uma grande distância entre filosofar e refletir sobre o sentido da vida, deveres morais, metafísica, etc… e acreditar em qualquer coisa. Há uma diferença entre elaborar uma determinada interpretação transcendente da realidade – como por exemplo, as religiões em geral fazem – e, por outro lado, dessa interpretação começar a derivar conseqüências práticas não sobre o significado ou o valor de determinados eventos mas sobre sua existência e/ou verificabilidade concretas.

A maioria das pessoas tem, por exemplo, a necessidade psicológica de dividir os atos humanos em bons ou maus, para conseguir viver uma vida produtiva e equilibrada. Sendo essa necessidade um fato em si, e seus benefícios palpáveis; é natural que se queira justificá-la ou discutir suas causas. Pode-se supor, por exemplo, que alguma mega-consciência universal tenha acordado numa manhã de domingo sem ter nada melhor pra fazer e decidido o que é certo e o que é errado. Ok, é uma especulação válida. Mas por que ela seria melhor ou pior do que supor que isso foi um resultado da evolução biológica, ou um artefato cultural, ou obra de lavagem cerebral realizada por alienígenas? Podemos refletir sobre o assunto e especular sobre a resposta – que é a solução filosófica, a única acessível em muitos casos – ou, para certos tipos de questões, podemos comparar o que filosofamos com a realidade, e estarmos preparados para a possibilidade de termos uma decepção – e então estaremos fazendo ciência no sentido moderno da palavra.

No caso das atividades que se aventuram a sustentar previsões e modelos pseudo-científicos, como a homeopatia e a astrologia, sua inconsistência fica patente a partir do momento em que não há tentativas minimamente sérias de confrontá-las com a realidade efetivamente observada (aliás, como dito anteriormente, já fica patente a partir da inexistência dessa preocupação nos praticantes dessas atividades). No caso específico da explicação “Deus”, desconheço qualquer escola de pensamento o coloque seriamente no campo científico da experimentação; normalmente os argumentos apresentados são pessoais e não reprodutíveis (intuição, revelação, etc…) ou então filosófico/lógicos.

Caímos então na tentativa de justificar a crença na existência de Deus através da filosofia, algo que foi repetidamente tentado através da história – o que já é indício de quão nebulosas são tais “provas”. Tomemos, por exemplo, o argumento ontológico. Vou ter que ser sincero aqui; para mim trata-se de uma das asneiras mais inacreditáveis que já se concebeu. A idéia é mais ou menos a seguinte : Deus é perfeito; não existir seria uma imperfeição; logo Deus existe. Só posso dizer o seguinte : caramba! Esse argumento não é piada; foi usado seriamente por teólogos. Claro, não cabe aqui buscar refutar minuciosamente essa ou qualquer outra das milhares de “provas” filosóficas da existência de Deus – para isso precisaria de mais algumas centenas de páginas. A questão que quero colocar é que, na minha avaliação, todas as que conheço dão saltos mortais mirabolantes e indefensáveis de anti-lógica, recorrem à “necessidade de um princípio organizador” ou ao fato de que “nada ocorreria sem uma força motriz” ou “tudo o que existe é criado por algo que lhe é superior” ou “o conceito do perfeito não pode surgir espontaneamente de uma realidade imperfeita”, e assim por diante. Em resumo, ouvi, processei, e não estou nem um pouco convencido.

Claro, podemos também simplesmente ignorar todas as evidências e argumentos devido à necessidade de acreditar numa determinada explicação, assim como uma criança pode ter necessidade de acreditar em coelhinho da páscoa. Isso pode se dar por comodidade, por medo, por corresponder a anseios emocionais – as motivações possíveis são várias e poderosas. O que observo é que a crença em Deus – assim como em algumas outras coisas – na maioria absoluta das vezes está mais ou menos por aí; ele é um papai noel que conquistou respeitabilidade social, resultado de um estado infantil de desenvolvimento psicológico em que o sujeito não percebe, não compreende ou não aceita o fato de que a realidade independe de suas necessidades e fantasias. Aliás, um problema muito comum.

Finalmente, há aqueles que parecem perceber a distinção entre fantasia e realidade, que parecem não estar numa armadilha dessas e mesmo assim proclamam acreditar em Deus. Geralmente tendo a acreditar que apesar de não parecer, no fundo estão – que o custo de renunciar a essa crença seria grande demais, que precisam dela por algum motivo. Porém, suponho que até nas melhores famílias na busca da verdade às vezes é mesmo possível cometer alguns grandes erros de julgamento.

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