Altruísmo e Sexo

September 11th, 2010 by Sergio de Biasi


Como não fazer

Os homens precisam das mulheres, precisam de muitas formas, e uma boa parte dos homens jamais se sentirá realmente feliz ou realizado sem uma parceira ao seu lado. Em particular, uma boa parte dos homens, se privados de acesso a sexo, entrará rapidamente num estado contínuo de ansiedade e insatisfação. Isso não é ideológico, e muito menos por esporte. É uma questão biológica e metabólica básica.

Apesar disso, chegamos num estágio de avanço civilizatório tal que a maioria absoluta dos homens em sociedades ocidentais modernas não está buscando satisfazer suas necessidades sexuais estuprando ou oprimindo ninguém, e sim dentro de uma relação consensual e mutuamente benéfica.  Dentro deste paradigma, qual seria o comportamento mais saudável, honesto, coerente e maduro? Ora, seria aceitar de bom grado fazer a sua justa parte do investimento, e agir de forma confiável, sensível e amiga, certo?

Infelizmente, o homem que tenta fazer isso se defronta com um dos fatos mais enlouquecedores com que o gênero masculino têm que lidar. Inundados por um contínuo discurso de pretensa insatisfação das mulheres com a falta de sensibilidade masculina, uma parte considerável dos homens resolve então buscar acomodar tão generosamente e voluntariamente e justo quanto possível as necessidades femininas… para então descobrir que essa atitude é absolutamente, catastroficamente, suicidamente mal sucedida. O complexo processo de amadurecimento pelo qual cada homem de nossa sociedade moderna tem que passar envolve observar estupefato com total incompreensão que a esmagadora maioria das mulheres não acha esse tipo de comportamento construtivo e conciliador nem remotamente atraente. A mulher típica empiricamente *não* se sente seduzida nem escolhe como parceiro quem por inclinação de personalidade e natureza de caráter seja gentil, generoso, sensível, quem genuinamente sinta afeto gratuito pelos outros. Não, de forma alguma. Aliás não só não sente atraída como se sente instintivamente repelida por este tipo de comportamento, pelo menos a nível de selecão de parceiro sexual.

Ao invés disso, a mulher média se sente automaticamente, involuntariamente, geneticamente atraída por quem demonstra comportamento socialmente dominante, quem não está nem remotamente buscando relacionar-se com os outros de igual para igual e sim de forma competitiva e hierárquica – que são precisamente os homens com disparadamente menor probabilidade de demonstrar os traços de “sensibilidade” reclamados pelo discurso feminino.

Existiria aqui algum tipo de “insinceridade” feminina? Eu diria que não. O problema é na verdade o mesmo do lado masculino. Então antes que alguém venha dizer que este seria um texto “contra” as mulheres, observo que os homens quase universalmente também são emocionalmente retardados e exibem comportamento similarmente incoerente. Um homem maduro e equilibrado que busque uma relação séria de longo prazo estará também em princípio muito melhor servido por uma mulher emocionalmente estável, generosa e gentil. E se perguntado provavelmente ele dirá que é isso mesmo que está buscando. Mas experimente colocá-lo num ambiente social para ver o que ocorre. Quase universalmente ele migrará instantaneamente em direção à loira peituda que passou duas horas alisando o cabelo ignorando todas as outras considerações. E no caminho afastará para o lado como um objeto fora de consideração a mulher que passou 10 anos cultivando uma personalidade.

A verdade é então  que os homens são em geral tão reféns de seus genes quanto as mulheres.

A perversa causa dessa situação é que nós não evoluímos ao longo de bilhões de anos para melhor servirmos a nós mesmos. Nós evoluímos para melhor servir aos nossos genes. Nossos hormônios, nossos instintos, nossos sentimentos mais primais não estão calibrados para levar a uma vida equilibrada e construtiva que melhor preserve o nosso bem estar ou mesmo o bem comum. Absolutamente não. A nível biológico nós estamos programados para buscar implacavelmente produzir a quantidade ótima de descendentes que estejam o mais bem sucedidos que for possível… em produzir descendentes que façam o mesmo. Qualquer outra consideração é secundária. Se for vantajoso genocidar metade da raça humana no processo, será feito. Se for vantajoso cometer suicídio no processo, igualmente será feito. Não existe qualquer sadismo no primeiro, assim como não existe qualquer altruísmo no segundo. Existe a implacável e matemática tentativa de maximizar a representação dos seus genes na população.

Aliás, ser altruísta de graça pode ser muito bonitinho mas é evolutivamente suicida. Ah, claro, ter um *discurso* de que altruísmo é lindo e coisa e tal é de fato uma adaptação evolutiva muito benéfica, especialmente se o portador dessa estrategia adaptativa conseguir com sucesso convencer os *outros* a serem altruístas enquanto reserva para si mesmo a prerrogativa de não o ser. E para grande parte dos homens e mulheres está tudo ok com toda essa farsa. Eles estão perfeitamente bem adaptados e confortáveis com agirem “racionalmente” para maximizarem seu sucesso reprodutivo, mesmo quando isso vai completamente contra seus interesses como organismo autônomo, contra o bem do grupo, contra o que pregam como certo, etc. É o dilema do prisioneiro elevado a milhares de gerações. Ética, bom senso ou mesmo felicidade não têm nada a ver com o assunto. A esmagadora maioria das pessoas, do alto de sua monumental capacidade para a abtração e para se achar risivelmente no controle de si mesmo, seguirá sua programação genética com precisão robótica e patética.

Neste contexto, quem *de fato* possui tendências altruístas autênticas que não sejam apenas uma estratégia social farsesca estará tragicamente mal adaptado. Isso provoca problemas muito piores do que as conseqüências diretas de tomar decisões pragmaticamente subótimas; ao ser percebido como mal adaptado será automaticamente tratado como tal e portanto inelegível (ou indesejável) para fins reprodutivos.

Diante disso, existem basicamente duas estratégias possíveis. Uma está em buscar desenvolver ao máximo a habilidade de mascarar sua identidade altruísta, tornando-se cada vez mais competente em ignorar os impulsos de sua consciência constantemente clamando por atitudes empáticas, gentis e com consideração pelos sentimentos dos outros (automaticamente e implacavelmente enxergadas por seres humanos mais normais como manipulativas, otárias, malucas, incompreensíveis, alienígenas e em todo caso muito pouco atraentes). Essa estratégia visa tornar-se mais socialmente e sexualmente aceitável para pessoas com as quais você provavelmente não teria qualquer vontade de se relacionar em primeiro lugar. “Sucesso” nesse caminho consistirá em acordar de manhã tendo passado a noite com alguém que, em última análise, você acha um idiota e que age de uma forma absurda.

A estratégia oposta é ao invés de se recusar a seguir cegamente sua consciência, recusar-se a seguir cegamente seus impulsos na direção de se associar a idiotas. A tragédia dessa situação toda é que a mesma crítica que se aplica aos outros tende a se aplicar a nós mesmos, então mesmo que sejamos genuinamente altruístas, mesmo assim nossos fantásticos genes freqüentemente nos farão sentir atração e considerar sexualmente interessantes as pessoas mais erradas possíveis em termos de maximizar a nossa felicidade pessoal. Então ao invés de resolver o problema suicida de “como faço para me tornar atraente aos olhos de pessoas idiotas que deprezo” talvez seja mais esperto dar dois passos para trás e buscar solução para o problema complementar de “como faço para sentir-me sexualmente realizado com uma pessoa que de fato seja boa para mim e com quem seja possível desenvolver uma relação mutuamente recompensadora”.

Agora note-se, tanto para homens quanto para mulheres, é preciso haver aí um grau substancial de maturidade. Nossa tendência automática na maior parte dos casos será gravitar para quem percebemos como socialmente dominante e fisicamente apto, mesmo que isso seja suicidamente subótimo em termos de nossa felicidade. Como aliás normalmente será, dado que as mesmas características que tornam alguém socialmente dominante ou fisicamente apto (e atraente num nível visceral além de qualquer consideração cognitiva superior) são em geral as que tornam alguém infernalmente insuportável numa relação a dois. Então parece altamente esperto buscar evitar essa armadilha. Só que por outro lado, nossos instintos mais basais não são opcionais e exigem satisfação. O que fazer para conciliar essas dois objetivos divergentes?

Bem, o que parece mais provável, realista e sustentável? Que seja possível seduzir um idiota e então convencê-lo a se comportar com consideração e companheirismo? Ou alternativamente, que seja possível se unir a uma pessoa companheira e altruísta e então conjuntamente um aprender a satisfazer as necessidades basais e instintivas do outro?

Auto-estima, Compromisso, Mudança

August 19th, 2010 by Sergio de Biasi

Auto-estima é um bicho complexo. Algumas pessoas simplesmente têm, e outras, por motivos incompreensíveis, não. É um pouco como idealismo, ou honestidade, ou inteligência. São características que até certo ponto dá para cultivar, para regar, para buscar levar a seu máximo potencial. Mas por outro lado, quando tentamos fazê-las brotar onde não estão em casa… o resultado varia do frustrante ao trágico dependendo da quantidade de esforço investido.

Tentar desenvolver uma relacão afetiva séria, sólida e estável com quem não tem auto-estima é um exercício em patologia recomendado apenas para quem quiser viver perigosamente ou testar os limites de sua própria sanidade mental. Note, não é necessariamente que quem não tem auto-estima esteja deliberadamente buscando ser mau, perverso ou cruel. O problema é que quem não acredita que mereça ser amado, quem não consegue se acreditar bom o suficiente para despertar genuíno afeto, estará sempre buscando motivos ocultos e manipulativos nos outros. Estará constantemente sofrendo da síndrome de “Não quero pertencer a nenhum clube que me aceite como sócio.” como dizia Groucho Marx. Em outras palavras, o próprio ato de ser aceito já coloca em questão o mérito e o prestigio do aceitador. “Se você é tão bom assim, o que está fazendo aqui comigo?” “Eu sou obviamente um lixo, logo se essa pessoa está comigo deve ser por algum motivo escuso ou por falta de opção.” É um jogo impossível de ganhar.

Quando encantados por outras qualidades nos envolvemos com alguém com esse tipo de questão, é fácil ser tomado da ilusão de que a falta de auto-estima seja algo circunstancial ou acidental. É fácil pensar que se apenas amarmos o suficiente, oferecermos o suficiente, dermos segurança suficiente, formos bons e gentis e companheiros o suficiente, algum trauma será sanado, alguma barreira será vencida, algum grilhão será partido. Ilusão. Tola, amarga, fútil, perigosa ilusão. Algumas das pessoas mais protegidas e capazes do mundo chafurdam num pântano de falta de auto-estima, enquanto que outras completamente desprovidas de condições, capacidade, mérito ou apoio exibem uma auto-estima refulgente e teimosamente inabalável. Uma das lições mais duras e difíceis que alguém pode ser forçado a aprender é que pode estar além do nosso poder lograr atingir que alguém deficiente em auto-estima se sinta amado.

Mas é pior do que isso. Realmente é um jogo não só impossível de ganhar, mas impossível de não perder feio. Se não manifestamos afeto ou flexibilidade, somos insensíveis e egoístas. Por outro lado, se saímos do nosso caminho para acomodar as necessidades do outro, isso não é interpretado como comprometimento, afeto ou amor. Na-na-não. Para grande surpresa do investidor, qualquer ato de comprometimento é imediatamente interpretado como uma tentativa de manipulação. Então sejam quais forem as ações escolhidas, o futuro com o qual o investidor terá que se defrontar é um só : crescente ressentimento, associado a uma incapacidade patológica de se comprometer.

“Incapacidade de se comprometer?”, talvez se surpreenda o leitor. Mas não é justamente quem tem baixa auto-estima que estará mais disposto a ceder, a se anular, a dar? Talvez contra-intuitivamente, não. Quem tem baixa auto-estima talvez ceda nominalmente em momentos de desespero, ou esteja disposto a pseudo-concordar com não-soluções destrutivas e insustentáveis. Mas muito ironicamente, ser capaz de mudar seriamente e de uma forma saudável e sustentável requer uma *alta* auto-estima. Quem tem baixa auto-estima sempre acha que está muito mais envolvido que o outro, nunca consegue acreditar que realmente é amado, e então tem um medo terrível, fóbico, instransponível de se entregar e de se comprometer. E além disso olha para si mesmo e pensa “why bother?”. Então quem tem baixa auto-estima até faz “grandes” coisas autodestrutivas na hora do desespero, mas tem uma grande dificuldade em investir consistentemente em mudanças autoconstrutivas.

Quem tem alta auto-estima pensa “Droga, estou errando, tem essa pessoa aqui que eu amo e que me ama loucamente e eu a estou magoando, preciso mudar.” Quem tem baixa auto-estima, por outro lado, pensa “Oh tem essa pessoa aqui pela qual sinto rios de paixão querendo que eu mude, mas ela evidentemente não me ama, porque afinal de contas como seria possivel alguém me amar, então como essa pessoa que obviamente não me ama tem a audácia de explorar covardemente os meus sentimentos e me pedir para mudar?”.

Quem tem alta auto-estima pensa “Bolas, não estou atingindo meus próprios padrões, isso não é aceitável, preciso mudar!” Já quem tem baixa auto-estima pensa “De que adianta sequer tentar, eu não vou conseguir mesmo.”

*****************

Mas será que *deveríamos* mudar por causa de relações afetivas para começar? Ora, para mim a pergunta é completamente sem pé nem cabeça, e a resposta é óbvia e simples : claro que deveríamos. Nós mudamos de cidade por causa de um emprego novo, mudamos de hábitos para cuidar da saúde, mudamos nossa forma de pensar e nossas atitudes para nos tornarmos mais calmos e serenos, mudamos nossos gostos, nossa cultura, nossa identidade para deliberadamente nos tornarmos melhores ou para atingir algum objetivo pragmático ou mesmo por objetivo nenhum… então não vamos mudar por causa de uma relação afetiva… *por quê* ?

Inclusive, eu iria mais longe do que dizer que a mudança pode ser justificada. Eu diria que em qualquer circunstância realista ela é imprescindível. Quem não muda não está aprendendo nada, não está indo a lugar algum, virou prisioneiro de seus próprios preconceitos, neuroses, fobias e inseguranças, prisioneiro da sufocante ilusão de que se apenas for suficientemente prudente, nada ruim jamais irá acontecer. E isso é particularmente verdadeiro quando confrontados precisamente com a questão de sair de nós mesmos para buscar encontrar o outro.

Eu pessoalmente acho que esperar que sejamos automaticamente e exatamente o que o outro precisa é completamente irrealista e uma receita para o desastre. Partir do princípio de que “você tem que gostar de mim exatamente do jeito que eu espontaneamente sou” é uma egotrip miópica. Nós estamos continuamente mudando, e estamos continuamente fazendo grandes esforços para nos tornarmos melhores. Não faz sentido chegar numa universidade e dizer “Quero dar aula de astrofísica, eu não tenho um PhD mas eu sou um cara muito legal, você não devia tentar me mudar.” Então temos sim que abraçar a mudança quando ela for na direção de crescer, de nos tornamos melhores, de abrir novas possibilidades e caminhos antes vedados. Precisamos sim aprender a dar o que o outro precisa, a entender as necessidades do outro e a saber satisfazê-las, e mudar sim no processo.

Claro, é preciso ter matéria-prima para trabalhar, não dá pra dar certo com qualquer pessoa, e tem que haver um objetivo e um projeto comum que valha a pena. Mas não vem pronto, é construído. É um esforço compartilhado, um investimento conjunto e é preciso haver negociação e comunicação e confiança. Não dá pra esperar que tudo vá encaixar perfeitamente por total milagre e sorte.

Espero estar deixando absolutamente claro que não estou falando de se submeter ou de se anular; muito pelo contrário, estou falando precisamente de nos libertarmos dos entraves mentais e neuroses queridas que nos impedem de atingir e viver e ser o melhor que poderíamos ser. Não se trata de tomar um caminho que nos torne mais limitados e sim menos, mesmo que para isso tenhamos que sair de nossa zona de conforto.

Claro, eu apoio integralmente que se não temos condição de fazer algo sinceramente de boa vontade para agradar o outro, não devemos mesmo fazer. Mas não devemos confundir isso com “só faço o que eu quero”. Eu não vejo absolutamente nada de errado em fazer coisas por amor, em mudar por amor, em aprender a se sentir confortável com certas coisas por amor. Apenas acho que tem que ser sempre respeitando a si mesmo, nunca indo contra o que voce acha que seja crescer. Mas daí não se deve concluir que qualquer mudança feita para acomodar o outro seja malévola e opressiva.

Malcomparando : se uma carreira que é sua vocação exige que você tenha um título de pós-graduação, eu acho válido então ir fazer o curso, gastar uma fortuna e anos da sua vida, arrancar os cabelos da cabeça mas um dia chegar no ponto de dizer “ok, isso tudo me fez crescer, eu hoje tenho um PhD no assunto que eu amo”. Isso eu acho válido.

Mas se você vai pedir um emprego e seu trabalho é executar prisioneiros, ou mentir, ou enganar as pessoas e isso te deixa extremamente perturbado e você acha que aprender a não se sentir perturbado com essas coisas não é legal, então concordo, não tem que fazer mesmo, tem que ir procurar outra coisa para fazer.

Indo pro lado mais psicológico – se para ter uma boa relação você tem que superar neuroses ou fobias ou limitações difíceis de superar, e fazer um esforço, mesmo que gigante, para se tornar uma pessoa melhor e de quem você mesmo/a goste mais, eu acho isso válido e positivo. Mas se você tem que se autodestruir e quebrar coisas de que você gosta para acomodar o outro, aí é ruim.

Novamente exemplificando, lutar para perder medo de cachorro (é apenas um exemplo) pode ser um investimento perfeitamente válido num relacionamento. Mas aprender a suportar em silêncio a solidão do seu parceiro não te ouvir nunca talvez não seja.

Enfim, depende de cada um, de que limitações temos, de quais são as nossas expectativas sobre nós mesmos, e do que o outro precisa de nós. Os melhores companheiros são aqueles que em vários momentos precisam de nós que sejamos melhores nas coisas em que nós mesmos gostaríamos de melhorar. Esse tipo de expectativa não só não é destrutiva ou sufocante como é mutuamente enriquecedora. Mas eu iria além disso. Mesmo nas coisas que não faríamos espontaneamente questão de melhorar, e possivelmente ainda mais nelas, desde que sejam expectativas positivas e construtivas de alguém que verdadeiramente goste de nós, é precisamente aí que expectativas positivas depositadas sobre nós produzem o efeito mais decididamente renovador, construtivo e revolucionário. Alguém ocupando esse papel em nossas vidas nos tira de nós mesmos, nos traz para fora de nossa zona de conforto em direções que não seguiríamos sozinhos, e estão são as mais importantes de todas. Então sim, sair do seu caminho para deixar o outro feliz pode ser não só perfeitamente construtivo e válido como imensamente enriquecedor.

Ainda Homens, Mulheres e Sexo

August 8th, 2010 by Sergio de Biasi

Maslow’s Hierarchy of Needs
Mulheres do mundo que amam sinceramente algum homem :
prestem muita atenção na figura acima.

Vou escrever aqui sobre algo que uma quantidade imensa de homens pensa e sofre cotidianamente mas que na maior parte das vezes não expressa abertamente ou não consegue sequer articular claramente para si mesmo tal a quantidade de bombardeio ideológico sobre o assunto que prevalece em alguns contextos.

Uma das idéias mais destrutivas para relacionamentos de casais heterossexuais nos últimos 40 anos foi a de que como forma de “libertação” as mulheres casadas ou em relacionamentos monogâmicos estáveis têm o dever político de fazerem sexo se e apenas e precisamente quando estiverem cheias de vontade, e que qualquer coisa diferente disso seria “opressiva”, “errada” ou algum tipo de tentativa animalesca de seus maridos de objetificá-las ou torná-las escravas sexuais.

Esta idéia explora e estimula da forma mais vil as inseguranças e medos femininos e está na base de algumas deformações patológicas que se pode facilmente observar nas relações conjugais em muitas sociedades ocidentais contemporâneas.

Agora vejamos, no passado, o problema (que persiste em vários países do mundo) que precisava ser levantado era que os homens usavam seu poder econômico, político e muscular para controlar, chantagear e forçar as mulheres em geral a suportarem situações injustas e indignas da qual tinham estruturalmente muito poucas formas de escapar. Esse problema foi (corretamente) levantado e combatido ao longo de décadas, e embora não se tenha chegado à perfeição, houve imenso progresso e hoje vivemos num mundo no qual em grandes partes do planeta uma mulher não mais precisa depender do patrocínio de um homem para atingir independência e segurança econômica, social e pessoal.

Porém, nesta nossa nova realidade mais civilizada que criamos, despontou um problema simétrico do lado dos homens, um que atinge proporções absurdas, em particular em sociedades americanizadas ou americanófilas, como muitas e cada vez mais são. Em parte, a questão é que esse sentimento de “empowerment” e “entitlement” das mulheres foi longe demais e ultrapassou a saudável busca pelo respeito mútuo, pela autopreservação, pela liberdade e pelo crescimento pessoal, para se transformar numa ideologia combativa e ácida que coloca homens e mulheres como adversários e encara quaisquer sacrifícios e concessões feitos pelas mulheres como opressivos e inaceitáveis. O que era pra ser o saudável resgate de uma identidade perdida transbordou para a noção ridícula e narcisista de que não fazer exatamente e somente o que você quer exatamente na hora em que você quer é algo abominável, grotesco, impensável.

Até certo ponto, a afirmação do ego e da vontade feminina era sim necessária em sendo o projeto estabelecer uma situação mais equilibrada e justa. Só que levada às últimas conseqüências, isso acaba resultando no mais destilado e indisfarçado egoísmo. Como no caso de vários grupos previamente oprimidos, uma (boa) parte das mulheres caiu na armadilha de quererem se libertar adotando precisamente os valores arquetipicamente representativos dos que percebiam como sendo seus opressores, e hoje em dia é considerado normal e aceitável uma mulher ignorar, desrespeitar, demonizar e até mesmo caçoar (!) das necessidades afetivas, emocionais e sexuais de seus parceiros, precisamente o tipo de comportamento caricaturalmente “masculino” que no passado lhes causou tanto sofrimento, desconforto e que tão vocalmente criticaram.

Então são agora as mulheres que regularmente ignoram as necessidades, desejos, sentimentos e aspirações dos homens. Em tendo conquistado a possibilidade de segurança econômica, social e pessoal que não dependa de submissão total da sua vontade, sentem-se então dotadas da prerrogativa – não, do dever! – de nada mais fazerem numa relação a dois senão exata e precisamente aquilo que desejarem. Em particular, sentem-se energeticamente empossadas, numa relação monogâmica estável, do “direito” de não fazer nada (em particular sexo) senão apenas e exatamente quando quiserem.

Essa á uma noção absurdamente egoísta e infantil do que seja um relacionamento.

Claro, um homem também tem o “direito” de, digamos, falar com a sua mulher e ouvi-la apenas quando quiser e estiver afim e não quando ela precisar. Ou de forma mais geral de nunca prestar qualquer atenção a nada do que ela é, quer ou necessita, e fazer apenas o que calhar de coincidir com o que ele espontaneamente quer. Evidentemente que um homem tem o “direito” de fazer isso. Mas se o fizer, provavelmente fará uma mulher que mesmo assim escolher estar ao seu lado numa relação sólida profundamente infeliz e frustrada. Esse tipo de comportamento foi historicamente (e corretamente a meu ver) criticado como egoísta, insensível e inaceitável.

Mas se é inaceitável para um homem descartar as legítimas necessidades femininas de sua mulher como “frescuras”, e se recusar por exemplo a cotidianamente ouvi-la falar sobre seus sonhos, desejos, sentimentos e aspirações quando isso cumpre uma função psicológica e afetiva importantíssima para ela, por que seria para uma mulher aceitável fazer o mesmo com relação às correspondentes legítimas e muito reais (mas diferentes) necessidades masculinas de seu parceiro?

Agora vejamos, é um fato óbvio e facilmente verificável que no caso geral homens e mulheres têm libidos diferentes, necessidades sexuais diferentes, formas diferentes de ficarem excitados, freqüências diferentes com que desejam sexo, etc. Isso já seria verdade nem que fosse apenas pela individualidade da personalidade de cada um, mas é visivelmente diferente entre homens e mulheres, algo que pode ser abundantemente observado diretamente, e está documentado à exaustão em estudos científicos para quem sentir necessidade disso. Claro, existem exceções de ambos os lados, mas a norma para um casal médio é que sejam diferentes. E o desequilíbrio estatisticamente é na direção de os homens (entre outros aspectos) espontaneamente desejarem relações sexuais com mais freqüência do que as mulheres, assim como é de as mulheres espontaneamente precisarem (entre outros aspectos) de pronunciar uma maior quantidade de palavras por dia.

Muito as mulheres em geral discursam, historicamente bem mais do que os homens, e isso é perfeitamente compreensivel por motivos biológicos, sobre a necessidade de “compromisso”, de comprometimento e de investimento numa relação. Eu pessoalmente concordo com isso. Mas quando chega o momento de fazerem o *seu* lado do investimento, isto é, de fazer não somente aquilo que elas estavam espontaneamente buscando de qualquer forma, e sim aquilo que pedem dos homens – sair um pouco de si mesmo e pensar no outro, ceder para fazer o outro feliz – as mulheres “modernas” sentem-se cada vez mais “sufocadas” por esse repentinamente revoltante e herético conceito. Infinitamente inseguras e preparadas para tratar qualquer homem como seu inimigo mortal à primeira sugestão de que terão que fazer qualquer coisa que não seja exatamente o que queriam, ao mesmo acham perfeitamente natural e razoável exigir categoricamente que os homens cedam em praticamente tudo.

Se uma mulher deseja seriamente estabelecer uma relação monogâmica estável de longo prazo baseada em compreensão, amor e respeito mútuos com quase qualquer homem normal e saudável, deve estar sim preparada para ser uma parceira sexual constante e receptiva, precisamente da mesma forma como um homem que queira o mesmo deve estar preparado para ser um parceiro afetivo constante e receptivo. Isso não é algo derivado de nenhuma hierarquia entre os sexos, ou de leis morais aleatórias reveladas por entidades imaginárias, e sim puro e simples *bom senso*. Querer idealizadamente que haja um contínuo encontro espontâneo de vontades por mágica sem nenhum investimento deliberado nessa direção é completamente fora da realidade. É do mesmo nível que querer fazer pós-graduação mas disposto a ler somente os livros que der vontade e quando der vontade. É um tipo de pensamento infantil no qual se quer obter um resultado sem estar disposto a colocar nisso o seu suor. Todos nós fazemos montes de coisas que não queremos fazer todos os dias, por uma coleção de motivos – econômicos, políticos, profissionais, sociais. Claro, nós temos grande parte das vezes o “direito” de não fazê-las. Eu certamente tenho o “direito” de ir dormir ao invés de estudar para a prova que tenho amanhã. Mas nesse caso não devo ficar surpreso se meu plano de ganhar um diploma começar a não ir lá muito bem. Da mesma forma, se for o caso de que construir e manter uma relação de casal equilibrada, saudável e recompensadora com um homem típico é algo importante para você como mulher, eu afirmo que é um fato biológico básico e óbvio que se você regularmente se negar a fazer sexo com ele, esse projeto terá grandes chances de fracassar.

Note, não digo com isso que então a solução seja a mulher trincar os dentes e “agüentar firme”. Essa é uma *péssima* solução, tão obviamente péssima que eu colocaria que uma mulher que estiver disposta a persegui-la estará mesmo ou autenticamente se violentando (por desespero ou falta de opção) ou então agindo de forma passivo-agressiva para provar algum ponto bizarro. Agora, se esta de fato não é uma opção viável, por outro lado, observo que não existem apenas as opções de trincar os dentes versus ignorar solenemente as legítimas insatisfações do seu parceiro. É preciso abrir espaço para o seu parceiro na sua vida, é preciso descobrir formas de fazer as coisas sem se violentar. Construir uma relação na qual se aprenda a fazer o outro feliz não como uma chateação ou um aborrecimento mas como uma experiência mutuamente enriquecedora para ambos os lados. E se você fisicamente não consegue por exemplo fazer sexo sem se sentir horrível em estando trabalhando 12 horas por dia, bem, então talvez você precise trabalhar menos se quiser que seu casamento sobreviva. Ah, é pedir demais? Bem, observações e compromissos similares e da mesma magnitude valem para o lado masculino para preservar a viabilidade da relação. Um homem que só tenha tempo e energia para o seu próprio crescimento e satisfação pessoais também não será um bom marido. É preciso haver diálogo, boa vontade e investimento de ambos os lados para chegar construtivamente a algo que funcione para os dois. É preciso levar sinceramente a sério as necessidades e sentimentos do outro. Mas assim como é inadministrável a “solução” de dizer à mulher que “eu quero fazer sexo, dane-se o que você está sentindo, não é problema meu, trinque os dentes e agüente firme”, é igualmente inadministrável a “solução” de dizer para o homem “”eu não quero fazer sexo, dane-se o que você está sentindo, nao é problema meu, trinque os dentes e agüente firme”. Mulheres que sentem que sua sexualidade não está sendo respeitada ou compreendida, leiam a frase anterior com muita atenção e entendam que os homens também têm sentimentos.

No passado não muito distante (que nem sequer é passado em vastas regiões do mundo) uma mulher querer, buscar e fazer sexo livremente de acordo com sua vontade era considerado “coisa do demônio”. A duras penas, conseguiu-se progressivamente relaxar essa noção e dar às mulheres muitissimo mais controle e liberdade sobre suas vidas sexuais, e hoje em dias essa autonomia é cada vez mais considerada aceitável, legítima e normal. Eu pessoalmente acho isso muito certo e positivo. Os imperativos biológicos que levavam a essa atitude conflitam terrivelmente com a potencial sofisticação psicológica, intelectual e social dos seres humanos modernos. Porém existe uma diferença muito grande entre ter sua autonomia para decidir reconhecida como legítima – e é mesmo – e resolver usá-la de forma completamente egoísta. Coloquemos assim – cada pessoa deve ter a liberdade de dar ou não atenção a quem quiser. E certamente está entre os meus sagrados direitos civis responder, para alguém que me pede as horas na rua,  “não enche”, e continuar andando. Certamente é meu “direito” fazer isso. É também extremamente anti-social e destrutivo.

E aliás, perversa ironia, ao mesmo tempo em que se aceitou como progressivamente mais razoável que a mulher decidisse fazer sexo com quem quisesse (e novamente, eu acho isso muito razoável), foi-se por outro lado cada vez mais demonizando o instinto sexual masculino, e hoje quem é condenado por seus impulsos absolutamente normais, naturais e esperados é o homem – mesmo quando ele deseja expressá-los dentro de uma relação monogânica estável! Mulheres, não existe absolutamente nada de anômalo, pervertido ou destrutivo em um homem querer sexo basicamente o tempo todo. Essa é a condição saudável, normal, espontânea e esperada de grande parte dos homens. O papel do sexo na vida do homem médio é bem diferente do papel que sexo tem para a mulher média. É tão absurdo uma mulher achar “pervertido” e sinal de falta de caráter e superficialidade o nível de interesse de um homem médio em sexo quanto um homem achar o mesmo sobre o grau de interesse que uma mulher média tem em querer contar como foi o seu dia. Ideologizar essas diferenças é simplesmente xenofobia, medo do desconhecido, incapacidade de sair um pouco de si mesmo aceitar o diferente. Tanto homens quanto mulheres – e pessoas em geral – têm lá suas necessidades perfeitamente legítimas, e grande parte delas nem é lá tão original assim. Então se você está seriamente querendo ter uma relação estável e feliz com alguém do sexo oposto, que tal estar disposto e voluntariamente engajado a conjuntamente achar uma forma mutuamente satisfatória de dar conta dessas necessidades? A atitude moderníssima de “sua felicidade não é problema meu” é simplesmente uma encarnação míope, estúpida e farsesca do dilema do prisioneiro.

Então sim, é óbvio que as mulheres têm o “direito” de ignorar solenemente e até desdenhosa e triunfalmente as necessidades sexuais de seus parceiros. Elas têm esse direito precisamente da mesma forma que um marido tem o “direito” de só dar atenção e carinho à sua esposa precisamente quando lhe convier e nas outras circunstâncias retrucar rudemente “que saco, não enche”. Mas não se deixem carregar pela ilusão de que ao fazê-lo estarão se tornando grandes heroínas defensoras da liberdade e da justiça. Nem esperem que com isso conquistarão a confiança, o companheirismo, a boa vontade e a amizade de seus parceiros. Desnuda de ideologias, sua motivação é a mais antiga e simples do mundo : egoísmo. Claro, é perfeitamente legítimo que uma mulher tenha um ego e o afirme. Histórica e culturalmente isso precisou / precisa mesmo em alguns momentos ser sublinhado. Em doses justas eu chegaria a colocar que é necessário e saudável. Mas é muito, completamente, radicalmente diferente exigir que suas necessidades sejam reconhecidas como legítimas versus reconhecer *apenas* as suas necessidades como legítimas. E isso vale tanto para homens quanto para mulheres.

 

Ainda Aristóteles

August 1st, 2010 by Sergio de Biasi

Aristóteles dizia que tudo no universo seria composto de combinações de cinco elementos :

  • Fogo, que é quente e seco;
  • Terra, que é fria e seca;
  • Ar, que que quente e úmido;
  • Água, que é fria e úmida;
  • Éter, que está numa categoria à parte.

Cada um dos quatro elementos teria seu “lugar natural”. Todos seriam em princípio ordenados em torno do centro do universo, mas com diferentes prioridades. Em primeiro lugar viria a terra, em seguida a água, então o ar, e finalmente o fogo. Quando um elemento é colocado fora do seu lugar natural, ele tenderia a apresentar um movimento espontâneo, sem a necessidade de qualquer causa externa, em direção a este lugar. Assim sendo, objetos sólidos (feitos primordialmente de terra) afudam na água (em direção ao que seria o centro do universo). Da mesma forma, bolhas de ar (imersas em água) sobem, a chuva (imersa em ar) cai, enquanto que chamas (imersas em ar) sobem. O éter seria uma substância à parte da qual seriam compostos os corpos celestes, e que apresentaria perpetuamente movimento circular espontâneo.

Consideremos agora as seguintes questões. Podemos chamar a teoria de Aristóteles de científica? Ela faz algum sentido? Ela é uma besteirada delirante ou é intelectualmente respeitável? Ela ainda é intelectualmente relevante hoje em dia? Ela ainda é relevante para fazer ciência hoje em dia?

Alguém com educação e treinamento científico modernos, especialmente em ciências exatas, poderia facilmente argumentar que tudo isso é uma besteirada total, que está não só completamente superado como não faz qualquer sentido. Poderia afirmar que “fogo, ar, terra, água e éter” não descrevem absolutamente a realidade física de como o universo funciona, que esse tipo de explicação é uma sandice mística que não só não explica nada como entulhou o progresso da ciência por mil anos e ainda bem que foi finalmente reconhecida como tal e enterrada entusiasticamente na lata de lixo da história.  Sim, alguém educação e treinamenteo científico modernos poderia facilmente, triunfalmente dizer tudo isso.

Enquanto isso, um sujeito sem qualquer educação ou treinamento científico (ou que os rejeitasse), poderia por uma enorme coleção de motivos facilmente aceitar literalmente as teorias de Aristóteles como intelectualmente respeitáveis ainda hoje, e diante disso buscar de fato entender o universo literalmente em termos de fogo, terra, ar, água e éter, e achar que entenderá melhor como o universo funciona lendo não um livro texto de física moderna mas sim um tratado de filosofia natural escrito há dois mil anos. Ao que o sujeito com educação e treinamento científico moderno poderia facilmente, trivialmente comentar : “Que perda de tempo!”.

Qual dos dois está certo?

Quero colocar aqui a resposta de que ambos estão completamente errados. Não apenas um pouco, ou ligeiramente errados, mas muito, profundamente enganados.

Comecemos pelo que (para muitos, especialmente para quem de fato trabalha com pesquisa científica) talvez seja o mais óbvio, que é o segundo caso – do sujeito que insiste em ainda hoje citar Aristóteles como se fosse referência para entender como o universo de fato funciona. Isso é similar a querer estudar em detalhes como uma carroça funciona para melhor entender um carro de fórmula um. Não que carroças sejam inúteis ou irrelevantes. O uso de carroças foi de fato uma enorme revolução tecnológica, uma que ainda hoje tem grande relevância prática ao redor do mundo. Carroças – ao contrário de orar para os deuses ou rogar pragas – de fato funcionam, e podem efetivamente ser usadas como meio eficaz de transporte. E de fato é possível pensar num carro de fórmula um como sendo de alguma forma um descendente distante da carroça. Mas muito, muito, muito se passou desde que carroças eram a vanguarda da técnica humana, e muito pouca compreensão se conseguirá obter sobre um carro moderno estudando uma carroça, mesmo a mais brilhante carroça jamais concebida na história da humanidade. Da mesma forma, o pensamento literal de Aristóteles sobre ciência – em particular sobre fisica, como citado no exemplo acima – é totalmente obsoleto no sentido mais pleno da palavra. Nem ao menos é o caso de que a ciência moderna se fundamente (senão historicamente, e de uma forma distante e vaga, e quando o faz é freqüentemente para contradizê-lo) sobre o pensamento de Aristóteles.

Devemos então descartar Aristóteles como um pateta, um irrelevante?

De forma alguma.

Para começar, ele tem enorme importância histórica, e isso em si mesmo já seria suficiente para torná-lo intelectualmente relevante. Mas ele poderia ter importância histórica e mesmo assim ser um estulto ou completamente delirante (exemplos disso não faltam). Seria o caso?

Novamente, não, absolutamente não.

Voltemos aos aspectos da física de Aristóteles discutidos no começo deste texto. Tomá-los como um modelo literal do universo é risível dado o conhecimento atual. Porém, é preciso ter em conta que Aristóteles não tinha o benefício de séculos de ciência moderna para criar a sua física. Adicionalmente, é preciso tomar *muito* cuidado para não interpretar de forma excessivamente literal o que ele disse (e isso se aplica em geral a textos antigos retirados de seu tempo, seu lugar, e sua cultura), ou teremos um entendimento de suas teorias que o próprio Aristóteles classificaria de ridículo. Mais concretamente, pensemos sobre que tipo de interpretação não absurda poderíamos dar às tentativas de Aristóteles de descrever a realidade.

Para começar, Aristóteles buscava com este modelo descrever sistematicamente e idealmente explicar fatos concretos da realidade cotidiana. Não “fatos” mitológicos como anjos e duendes e fadas, mas fatos concretos como movimento e estrutura objetivamente observáveis e observados. Adicionalmente, para explicá-los, ele postula leis preditivas e universais cuja validade ou falsidade podem ser em princípio ser objetivamente verificadas por qualquer um e que abundantemente admitem logicamente observações que as contradigam (por exemplo, uma pedra que espontaneamente suba ao invés de descer). Isso é muito, radicalmente diferente de apresentar explicações místicas, teológicas ou cheias de exceções arbitrárias. Por esses dois critérios (discursar sobre a realidade observável e apresentar explicações preditivas universais objetivamente falseáveis), o modelo de Aristóteles descrito acima é, sim, perfeitamente científico.

Mas mais do que isso, a física de Aristóteles de fato forma um sistema razoavelmente coerente e integra (mesmo que apenas parcialmente) aspectos importantes de vários dos fenômenos mais visíveis e importantes na realidade da física cotidiana. Entre eles, a atração gravitacional do planeta Terra sobre todos nós, e como isso causa movimento “espontâneo” de matéria sem qualquer interação direta, algo que longe de ser falso, perturbava até Newton, que afirmou algo nas linhas de que “reconhecia as limitações de seu modelo que mesmo propondo uma lei pragmaticamente útil para descrever os efeitos da gravitacão, não fornecia nenhuma teoria ou explicação minimamente razoável para explicar sua origem ou justificar sua forma”, um problema que só veio a ser um pouco mais satisfatoriamente tratado por Einstein, e mesmo assim só em sua teoria da relatividade geral, e mesmo assim até hoje ainda de forma incompleta.

O modelo de Aristótles também inclui alguns aspectos de mecânica clássica que eu não descrevi completamente, como por exemplo a afirmação de que com exceção do movimento “espontâneo” descrito acima, todo movimento requer uma “força” constantemente aplicada ou cessará, algo que parece superficialmente contradizer Newton mas que ne verdade está essencialmente correto num mundo realista com atrito ao invés de no mundo idealizado dos livros de física básica.

Adicionalmente, em sua física Aristóteles propôs (como descrito acima) uma teoria sobre diferentes formas nas quais a matéria poderia existir. Para quem não sabe nada de ciência e resolve ter uma interpretação mística e fundamentalista do modelo acima, o resultado será algo que deixaria o próprio Aristóteles constrangido. Mas talvez surpreendentemente para quem nunca tenha pensado sobre isso, se entendermos a física de Aristóteles como uma teoria científica ao invés de como um oráculo, e buscarmos entender quais fenômenos ele estava descrevendo mesmo sem saber explicá-los, a classificacão de Aristóteles, embora desprovida de uma nomenclatura moderna e de um arcabouço teórico apropriado, é *precisamente igual* à que hoje usamos. Ele descreve cinco possibilidades, em ordem de “afinidade” com o centro do universo : terra, água, ar, fogo e éter. Ora, hoje em dia nós de fato fazemos a mesma classificação, apenas com o nome de “estados” da matéria : sólido, líquido, gás, plasma e vácuo. E sim, hoje em dia estranhamente se acredita que o vácuo não seja exatamente vazio; não é exatamente preenchido de “matéria” no sentido em que estamos acostumados, mas também não é desprovido de propriedades físicas ou de partículas. E os motivos que levaram Aristóteles a fazer essa classificação são, a grosso modo, exatamente os mesmos que nós : claramente uma pedra é diferente de uma poça d’água, que é diferente de um sopro, que é diferente de uma chama, que é diferente do que existe quando olhamos para o céu. O que exatamente são esses estados Aristóteles não foi capaz de compreender, e ele não chegou nem perto de algo parecido de uma compreensão moderna sobre por quê esses estados da matéria existem. Mas ele viu que havia algo ali, e construiu um modelo para capturar essas propriedades.

E de fato, sob um campo gravitacional, a grosso modo esses estados da matéria se comportam como descrito. Inclusive a natureza do campo gravitacional é de atração radial em direção a um centro – algo que permanece a grosso modo verdadeiro nas teorias mais modernas. E de fato a atração gravitacional produz um movimento aproximadamente circular nos corpos celestes mais facilmente observáveis. E ao contrário dos estados da matéria, ainda hoje não temos realmente uma compreensão perfeitamente satisfatória de por quê gravidade exista; apenas sabemos descrever muito melhor como ela funciona. Inclusive, muitos séculos depois de Aristóteles, havia uma quantidade considerável de motivos que não apenas preconceito ou tradição para questionar o abandono da ideia de que a Terra seria o centro do universo  (por outro lado isso absolutamente não torna aceitável sair queimando quem ousar questionar a ortodoxia). Sem uma teoria alternativa para interações gravitacionais, muito da física baseada nas idéias de Aristóteles simplesmente para de funcionar.

Então sim, a teoria física de Aristóteles faz total sentido, inclusive pelos padrões mais modernos. E sim, ela é uma teoria científica no sentido de que tenta seriamente fazer previsões concretas sobre como o universo de fato funciona, e tenta criar um modelo teórico que se conforme ao que de fato é observado. As teorias mais modernas sobre o universo, que falam por exemplo sobre matéria escura e energia escura, estão no mesmo estágio especulativo em que Aristóteles estava. Percebe-se que existe algo ali, só nao se sabe exatamente o quê. E portanto não, Aristóteles absolutamente não foi um paspalho, ele conseguiu ordenar numa teoria razoavelmente coerente muitas observações pertinents sobre fatos cuja causa e fundamento só foram ser desvendados muitos séculos depois.

Voltemos agora ao reverso da questão. Isso contradiz a afirmação de que a física de Aristóteles está completamente obsoleta?

Absolutamente não.

A física de Aristóteles é extremamente incompleta, excessivamente vaga, desprovida (pelos padrões modernos) de rigor e de profundidade teórica e em vários pontos factualmente errada. Seu sistema está tão ultrapassado que não tem mais qualquer papel em descrições modernas de como o universo de fato funciona. Sim, ele corretamente identificou e tentou descrever certos fenômenos que hoje em dia compreendemos, como os estados da matéria. Mas o nível de entendimento que ele foi capaz de atingir é tão infinitamente inferior ao atual que seria uma falsificação da verdade decrever suas idéias como algo menos que obsoletas. Não faz qualquer sentido hoje em dia tentar explicar o universo em termos de – literalmente – terra, água, fogo, ar e éter.

E é nesse ponto que aparentemente surge a maior parte da confusão sobre o assunto. Sim, uma criança aprender a falar é algo incrível que requer um nível impressionante de habilidade e inteligência. Isso não quer dizer que agora nós vamos colocar crianças para dar aula de pós-graduação em lingüística. Os primeiros grupos de macacos que começaram a falar eram brilhantes, mas hoje em dia isso não é mais novidade, e linguagem é uma tecnologia que desde então evoluiu muito. Não iríamos pedir a eles por lições de oratória, assim como não iríamos pedir a Isaac Newton conselhos sobre satélites de posicionamento global. Pelo menos não antes de ele fazer um curso de física moderna.

Então se eu critico referências acríticas à relevância de Aristóteles – e ele falou sobre muito mais do que física – é nesse sentido. É preciso entender do que se está falando, é preciso conhecer o que se falou de novo sobre o assunto desde a antigüidade. Mas principalmente e acima de tudo é preciso citar Aristóteles não como um argumento, ou como uma prova, ou como um oráculo. Nada se torna verdadeiro ou falso porque Aristóteles – ou Einstein, ou Newton, ou o Papolino – o disseram. A fundamentação última tem que ser na realidade independentemente verificável. E é na verdade principalmente aí que, me parece, repousa a revolta e a ira dos que se sentem pessoalmente ultrajados com o questionamento da relevância moderna de Aristóteles. Eles não querem verificar independentemente coisa alguma, afinal isso é trabalhoso e – pior ainda – incerto. Eles anseiam ao invés disso por viverem imersos no conforto das certezas absolutas, e dadas as constrangedoras limitações intrínsecas à condição humana para compreender qualquer coisa com qualquer grau de profundidade, precisam postular essa infalibidade oracular fora de si mesmos, em figuras que – grande sorte! – sabem exatamente identificar e às quais têm acesso. Em outras palavras, eles querem viver num mundo em que alguém lhes diga o que pensar e em que acreditar e escolhem como referência quem consigam aliviados enxergarem como suficientemente messiânicos para cumprir esse papel (para o qual naturalmente não faltam pretendentes ou candidatos). Em suma, preferem – nos casos mais sofisticados, deliberada e explicitamente – a segurança emocional das certezas absolutas escandalosamente fajutas à angústia e impotência diante da imensidão do que desconhecemos. Em outras palavras, ficam com a pílula azul.

. . . I have not been able to discover the cause of those properties of gravity from phenomena, and I frame no hypothesis . . .” ” . . . it is enough that gravity does really exist, and act according to the laws which we have explained . . .”

Homens e Sexo

July 25th, 2010 by Sergio de Biasi

Mulheres do mundo, vou lhes prestar um grande favor e colocar aqui alguns fatos sobre homens que qualquer homem médio com um mínimo de experiência, introspecção e sinceridade está abundantemente cansado de conhecer mas que a mulher média absolutamente desconhece.

Homens do mundo, vou lhes prestar um grande favor ao dizer explicitamente as coisas que vocês queriam que suas parceiras soubessem mas que por um monte de motivos elas não estão dispostas a ouvir, não é socialmente aceitável dizer, ou que não é dito porque coloca a nós homens numa posição da extrema vulnerabilidade.

Esposas, namoradas, parceiras, ouçam : existe uma grande probabilidade de que você não tenha a mais remota idéia de quão importante sexo é para um homem, ou mais especificamente, para o homem que você ama.

Note, não é que as mulheres em geral não percebam que existe alguma coisa acontecendo com homens e sexo. Elas percebem que os homens falam sobre sexo, e buscam sexo, e as procuram para ter sexo, e etc. Mas elas vezes demais não conseguem entender exatamente o que está acontecendo, e saltam para todo tipo de conclusão equivocada, com conseqüências extremamente negativas para a felicidade geral de ambos os gêneros.

Comecemos com um exercício de desconstruir certos preconceitos. Vou iniciar com alguns fatos concretos. Os homens em geral, muitissíssimo mais do que as mulheres, estupram, consomem pornografia, pagam por sexo, e estão genericamente propensos a todo tipo de comportamento desonesto, ilegal, destrutivo, insensato, absurdo e bizarro para obter de alguma forma acesso a sexo ou mesmo a simulacros de sexo. A questão é : por quê?

Não tendo que andar por aí com seu sangue inundado de testosterona 24 horas por dia, uma grande parte das mulheres tende a concluir que é porque os homens sejam brutos insensíveis, estúpidos egoístas, que por um capricho fútil estão dispostos e felizes em usar os outros sem qualquer consideracão por seus sentimentos, em particular suas mulheres. Bem, evidentemente que existem tais pessoas que não se importam com suas parceiras, mas isso não é privilégio do gênero masculino, e sim decorrente do fato de que uma boa parte (talvez a esmagadora maioria das pessoas) é horrivel mesmo. O mesmo tipo de fenômeno ocorre do lado feminino.

Mas façamos aqui um exercício que acredito que será muito elucidativo. Você, mulher que não entende o comportamento dos homens com relação a sexo, e se sente tentada a concluir que seu homem não se importa, que é um grosseirão que quer apenas objetificá-la, faça o seguinte esforço de imaginação. Tome o comportamento que você observa nos homens – ou no seu homem – e ao invés de concluir que se ele está fazendo tais e quais coisas então ele não tem caráter, pense ao contrário. Você, mulher bem intencionada que se importa sinceramente com o bem estar do seu parceiro que em outros aspectos parece ter grandes qualidades mas não consegue entender o comportamento dele com relação a sexo, parta do princípio de que ele se importa com você tanto quanto você se importa com ele (claro, supondo que você tenha fortes motivos e evidências em outras áreas da vida para concluir que escolheu um parceiro que de fato se importe com você), e tente então se colocar na posição dele. Pense o seguinte : o que *eu* teria que estar passando para apresentar esse tipo de comportamento? Qual o nível de desespero e frustração eu teria que atingir antes de começar a agir dessa forma?

A verdade constrangedora e que coloca os homens extremamente vulneráveis é que os homens precisam desesperadamente de suas mulheres, e sexo é uma parte absolutamente fundamental disso. Um homem médio pode receber de sua companheira um monte de demonstrações de companheirismo e carinho e afeto mas a não ser que esteja patologicamente estressado, deprimido ou bravo – e grande parte das vezes mesmo assim – ele não se sentirá amado (pelo contrário, sentir-se-á rejeitado e alienado, não interessa quantas explicações ouvir) se não receber sexo.

Mas é mais do que isso. Mais do que não se sentir amado, com as naturais conseqüências psicológicas e afetivas, o homem médio se tornará progressivamente ressentido, amargo, desmotivado e destrutivo. Os homens precisam metabolicamente, biologicamente, quimicamente de sexo – pense num nível de um viciado em heroína. Na verdade pior, porque a síndrome de abstinência não passa e vai embora após alguns dias / semanas – ela simplesmente permanece lá, opressivamente, onipresente, constante, insufocável. Tente trabalhar, se relacionar, descansar, viver uma vida produtiva com uma britadeira ligada 24 horas por dia no volume 11 sacudindo seu corpo e sua mente com a urgência de um afogamento dizendo “você precisa ter acesso sexual à sua parceira”. Entenda que esse é o estado biológico normal de grande partes dos homens e entenderá muito sobre os homens – e sobre o seu parceiro que você ama.

Claro, como sempre, indivíduos variam e a média não dita casos particulares. E além disso, a história prévia faz muita diferença – alguém que nunca fez sexo, ou nunca fez sexo satisfatório, dentro de uma relação afetiva estável, não tem com o que comparar, e avaliar corretamente de onde vem toda essa angústia. E uma parcela dos homens, seja por falta de introspecção, mas provavelmente muito mais por uma questão de se preservar, não está disposto a admitir claramente e abertamente com todas as palavras quão séria é essa questão em suas vidas. Mas a verdade é que o homem médio começa a ficar frustrado e incomodado após algo da ordem de 24 horas sem ter acesso sexual à sua parceira. E progressivamente isso cresce em direção ao desespero.

E quando eu digo desespero, é desespero mesmo. É como se as mulheres tivessem a chave da geladeira e os homens só pudessem se alimentar quando elas decidissem permitir. Inclusive eu diria que para a maior parte dos homens gera um grau de desespero e frustração bem maior não ter acesso a sexo do que não ter acesso a comida. Por favor, mulheres do mundo, prestem atenção ao que estou dizendo, e entenderão muito do comportamento masculino, e terão mais compaixão quando um homem tentar explicar que precisa ter sexo com você ou vai ficar louco. A metáfora com estar lhes negando alimento é bastante realista.

Claro, uma mulher pode ter dificuldade de entender como isso possa ser tão intenso e paralisante, e argumentar por exemplo que não ter acesso a sexo não causa a morte, como não ter acesso a comida eventualmente causa. Mas a isso eu respondo : lembre-se de que as nossas necessidades biológicas não se expressam como decisões racionais a nível cognitivo e sim como imperativos psicológicos no nível mais basal a instintivo. Você não decide comer da mesma forma que decide encher o tanque do seu carro, pensando calmamente “Oh, meus níveis de glicose estão baixando, provavelmente está na hora de injetar uns carboidratos no meu sistema.” Não, você *precisa* comer, inicialmente como um leve desejo, então como uma vontade crescente, e finalmente desesperadamente, ansiosamente, avidamente. Se alimentação, ou sono, ou água, ou ar lhe for negado por tempo suficiente, o resultado será o mais completo desespero, no qual todas as outras prioridades serão jogadas às favas até que essa necessidade biológica seja atendida. Isso não é um mecanismo racional que ocorra baseado em considerações lógicas. Se fosse, todos conseguiriam fazer dieta sem problemas. Não é assim que funciona.

Eu estou aqui então relatando algo que é verdade para uma grande fração dos homens com relação a sexo, certamente para o homem médio. Não acredite se seu homem tentar negar este fato por uma questão de dignidade, auto-preservação, pressão social ou porque você não consegue entender ou aceitar que seja assim. Nós homens somos reféns de uma quantidade enorme de testosterona sendo continuamente despejada em nosso sangue. Somos reféns disso e temos que lidar diariamente com isso de algum jeito. Escolher o que fazer diante disso vai depender do caráter e da capacidade para auto-controle de cada um, mas o sentimento visceral e opressivo ao qual o homem médio está sujeito é de que sexo não é opcional. Não tem sequer que ser bom ou agradável, tem que ser feito. Assim como alimentação – em desespero, você catará restos de um sanduíche semi-apodrecido de uma lata de lixo na rua. Não que você queira viver assim; você buscará construir uma vida na qual isso nunca ocorra. Mas é o que grande parte, em desespero, fará se for absolutamente necessário.

Agora, você, mulher que lê este texto, certamente já viu em algum momento um mendigo sem teto catando sanduíches semi-aprodrecidos de latas de lixo no meio da rua. Imagine, quão desesperada você teria que estar para fazer isso? Quanta fome você teria que estar sentindo para sentir alívio e paz ao ingerir um sanduíche semi-comido que você tirou de uma lata de lixo no meio da rua?

Grande parte das mulheres parece acreditar – possivelmente baseadas em como elas próprias vivem sua sexualidade – que a busca constante de sexo por parte dos homens através de todos os meios e artifícios possíveis seria um sinal de futilidade e de busca narcisista de auto-gratificação. Que quando um homem contrata uma prostituta ele estaria pensando “Hehe, eu sou gostosão mesmo, quero pegar todas.” Mas com muito maior probabilidade, o homem médio nessa situação está sendo motivado pelo mais completo desespero, solidão, medo e angústia. Claro, existem exceções, como em tudo. Mas o homem médio nessa situação, independentemente de qualquer imagem estereotipada de garanhão ou pegador que mitologicamente se tenha construído sobre o assunto, é muito mais provavelmente alguém em total desespero. É o mendigo tirando sanduíches da lata de lixo. Claro que é extremamente vexaminoso e deprimente se assumir nessa posição tão vulnerável, então os homens mesmos em geral deixam seguir – e até incentivam – esse mito como forma de preservar um pouco de sua dignidade. Mas na maior parte das vezes a realidade é muito menos glamourosa.

Então pense e reflita, você, mulher que lê este texto : quão desesperada você teria que estar para pagar uma pessoa desconhecida para tocar em você e demonstrar que te aceita e que te recebe como mulher? Quão absurdamente desesperada você teria que estar para gastar dinheiro que você não tem, arriscando sua saúde, sua reputação, seu bem-estar, sua dignidade, em alguns casos sua liberdade e sua vida, para fazê-lo? Quão desesperada você teria que estar para retirar um sanduíche semi-apodrecido do lixo e comê-lo e ainda se sentir aliviada com isso? Para roubar um pão do mercado quando ninguém estivesse olhando?

Mulheres do mundo : por favor não coloquem seus homens nessa condição de desespero. Vocês não têm tanta testosterona quanto nós sendo continuamente despejada no seu sangue e em geral não conseguem sequer começar a compreender por que os homens agem como agem com relação a sexo. Eu estou tentando explicar. Por favor ouçam, e se vocês sinceramente se importam com algum homem em particular, saibam que isso provavelmente é verdade sobre ele também, mesmo que ele nunca tenha articulado, ou mesmo que ele veementemente negue (porque é de fato algo muito complicado de admitir).

Note, não é que seu parceiro não te ame, ou que ele te enxergue apenas como um dispositivo para aliviar suas tensões sexuais. Um homem com o qual valha a pena estar sente sim uma quantidade enorme de afeto e carinho e amor por você, essencialmente como você sente por ele. Mas as necessidades psicológicas e afetivas dele não são necessariamente atendidas da mesma forma que as suas. Assim como você precisa que ele te ouça, e que ele atenda a certos imperativos psicológicos e afetivos muito profundos da sua parte mesmo quando ele estiver cansado, estressado, preocupado ou ocupado, ele precisa de compromisso similar da sua parte. Um homem ao qual sexo é racionado por sua parceira ficará insatisfeito, amargo, e infeliz. Imagine estar continuamente numa posição na qual você não sabe de onde ou quando virá a sua próxima refeição.

Claro, evidentemente você também tem suas próprias questões com relação a sexo, mas compreenda o quão crucialmente importante é que você encontre uma forma de acomodar as dele sem se violentar, e tente compreender quão profundas e intensas provavelmente são as dele, quase com certeza bem mais do que você jamais imaginou ou ele conseguiu te explicar.

Uma certa categoria de mulher talvez se sinta tentada a dizer cinicamente “não é problema meu, lide com isso”. Mas na maioria dos casos nós não temos como “lidar com isso” sem a ajuda de uma mulher. Responder isso a um homem é como responder a uma mulher que diz “eu preciso que você atenda à minha necessidade de ser ouvida” que “não é problema meu, lide com isso”. Não é uma resposta apropriada dentro de uma relação afetiva sólida baseada em respeito, carinho e consideração mútua pela felicidade do outro.

Os homens do mundo com os quais vale a pena estar não estão buscando uma escrava sexual, um eletrodoméstico com um buraco aquecido, não estão querendo receber carinho e afeto e amor sem dar nada em troca. Muito pelo contrário. Eles reconhecerão o seu comprometimento, e motivados por amor, gratidão e carinho farão tudo ao seu alcance para retribuir à altura e prestar atenção a que as suas necessidades também estejam sempre satisfeitas. Mas eles de fato precisam intensamente, de forma muito mais profunda e visceral do que você espontaneamente compreenderia, que você esteja sexualmente receptiva. Tente sinceramente entender isso. Não significa que ele não se importe com você. Muito pelo contrário, qualquer homem com quem valha a pena estar tentará entender também o seu lado, e através de diálogo chegar a uma forma de fazer as coisas que possa funcionar para ambos. E estará não só disposto como determinado a fazer a parte dele quando se tratar de satisfazer as suas outras necessidades afetivas e psicológicas. Mas você precisa compreender o quão fundamental é essa questão de sexo para o homem médio. O quão importante isto é para a sanidade mental dele, para a saúde da relação, para a capacidade dele de ser um ser humano equilibrado e funcional e um bom companheiro.

Antes de mais nada, não assuma que sexo para ele signifique a mesma coisa que significa para você. Se você diz para seu parceiro “Eu te amo e está tudo bem mas eu não estou afim de fazer sexo com você hoje.”, o que ele vai ouvir é : “Eu não te amo mais. Eu não sinto mais atração por você. Eu não gosto mais de você. Eu não sou mais sua mulher.” Um homem razoável conseguirá compreender situações desviantes e exceções, mas isso ocorrer regularmente será inevitavelmente compreendido dessa forma. Esse é um ponto extremamente complexo de explicar ou fazer entender.

Talvez uma comparação ajude. Suponha que seu marido chegue em casa e você esteja cheia de saudade dele e você corra para ele e o abrace esperando naturalmente que ele a abrace de volta. Suponha então que a resposta dele seja ficar ali em pé parado sem esboçar qualquer reação senão um vago ar de desconforto e impaciência. Então você tente beijá-lo e ele vire o rosto. Aí você pergunte “Puxa, o que está havendo?” e ele responda “Nada, está tudo ótimo, eu te amo e sou apaixonado por você, mas neste momento não estou afim de que você encoste em mim.” E suponha que isso ocorresse com considerável freqüência, digamos mais da metade das vezes em que você o procurasse. Você pensaria que está tudo bem, ótimo? Isso seria administrável?

Ou, para fazer uma outra comparação, que talvez fale ainda mais profundamente às mulheres. Suponhamos que seu parceiro chegasse em casa e você estivesse cheia de saudade dele. Então você falasse “Oi querido, que bom que você chegou!” e ele não falasse nada ou falasse “Hm.” e então andasse até você, te virasse de costas, puxasse sua calça para baixo e fizesse sexo com você ali mesmo sem qualquer carinho e sem dizer nada, terminasse, fechasse o zíper, e então fosse para o computador trabalhar te deixando em pé ali no meio da sala. Aí quando você se aproximasse dele para conversar ele dissesse “Que saco, já te disse que não é sempre que estou afim de conversar, só às vezes, me deixa em paz”.

Se essa última história soa simultaneamente realista (embora caricatural) e extremamente frustrante, pense que é *precisamente* assim que os homens se sentem quando após buscarem atender às legítimas necessidades de afeto, carinho e atenção de suas mulheres são então rejeitados sexualmente. As necessidades dos dois parceiros em uma relação de casal não são necessariamente as mesmas, ou sincronizadas. Ambos têm que estar dispostos a fazer compromissos e a não fazerem exatamente o que querem na hora em que querem. Claro, é preciso escolher um parceiro cujas necessidades você tenha condição de satisfazer sem se violentar, e que tenha condições de satisfazer às suas necessidades sem se violentar. Mas muitas vezes um dos dois estará ouvindo o outro, e prestando atenção no outro, e cuidando do outro não porque essa seja a atividade mais divertida do mundo naquele momento, e sim motivado por amor e carinho e comprometimento com a relacão. Se isso for constantemente um sacrifício insuportável, então é claro que não é viável. Mas é infantil e irreal esperar que porque você é apaixonado por alguém automaticamente suas necessidades estarão sempre perfeitamente sincronizadas. É preciso haver a maturidade de ambos saírem do seu caminho para atenderem às necessidades do outro, e cuidarem um do outro. Muitas e muitas vezes estará em suas mãos o poder de fazer seu parceiro ou parceira imensamente feliz e dar a ele eu ela algo que ninguém mais no mundo poderia dar com apenas um moderado e administrável grau de flexibilidade da sua parte. E se ele fizer o mesmo por você, ambos têm muito a ganhar, e na soma estarão muitíssimo mais felizes do que se fossem se fechar em si mesmos e em “eu só faço o que eu quero”. Mas para isso ser possível, é preciso haver comprometimento genuíno de ambas as partes, é preciso haver uma determinação sincera de entender e satisfazer as legítimas necessidades um do outro sem joguinhos e manipulações. Não dá pra construir uma relação na qual os parceiros estejam ambos felizes, satisfeitos e realizados insistindo na atitude “seus problemas não são da minha conta, não são minha responsabilidade, não enche”.

Claro, para muitas pessoas, possivelmente a maioria, tanto homens quanto mulheres, isso não é sequer uma questão. Tais pessoas estarão perfeitamente felizes em ter uma relação medíocre na qual consigam capturar alguém para se submeter a satisfazer a maior quantidade possivel das suas necessidades enquanto dão o mínimo possível em troca. Isso vai do caráter de cada um. Mas para quem não é assim e mira em algo diferente, em particular para as mulheres que querem verdadeiramente uma relação de encontro e amizade e comprometimento mútuo e recíproco com a felicidade alheia, prestem atenção no que estou dizendo. Mulheres bem intencionadas do mundo, não usem sexo como forma de tentar manipular ou controlar seus parceiros. Isso é cruel e perverso e gerará uma quantidade infinita de ressentimento. Não usem sexo como uma forma de puni-los, ou de expressar sua frustração. E não submetam seus parceiros ao sofrimento, solidão e angústia de ouvirem “Não enche, só vamos fazer sexo quando *eu* estiver afim”. Os homens não têm a mesma relacão com sexo que vocês têm. Sexo não significa para os homens o que você mais espontaneamente estaria inclinada a achar que significa, especialmente não se você estiver baseado sua avaliação na sua própria relação com sexo. Da mesma forma, simetricamente, homens bem intencionados do mundo : não submetam suas parceiras ao sofrimento, solidão e angústia de não ouvi-las quando elas precisarem de sua atenção, de ouvirem “Não enche, estou ocupado, só vamos conversar sobre suas histórias, preocupações, planos, sonhos e problemas quando *eu* estiver afim, enquanto isso me deixa em paz.”

Mulheres bem intencionadas do mundo, se você tem um parceiro que por sólidos motivos você acredita que se importe com você mas que tem um comportamento com relação a sexo que você não entende, não caia no equívoco de achar ou de acusá-lo por isso de que “você está interessado apenas no meu corpo”. Esse tipo de “acusação”, além de usualmente ser equivocada no caso de você ter escolhido um parceiro decente que você admira (um homem com quem valha a pena estar jamais estaria com você numa relação séria se não apreciasse a sua personalidade e quem você é), parece implicitamente colocar a questão de que haveria algo de errado ou incorreto em o homem estar sim interessado no seu corpo. É claro que ele está. Isso é normal, saudável, esperado e uma parte integral e fundadora da relação. Sim, seu parceiro espera que você faça sexo com ele, e regularmente, não como um favor, uma exceção ou uma recompensa, da mesma forma que você espera que ele a ouça, e satisfaça outras legitimas e saudáveis necessidades emocionais e afetivas suas, e não apenas quando ele quiser alguma coisa, ou como migalha para você não ir embora. Se ele se furtar a fazê-lo, estará errando muito, e deixando você profundamente infeliz e frustrada. Mas o mesmo vale para o seu lado da relação. Ambos os lados precisam buscar compreender as necessidades insatisfeitas um do outro e buscar sinceramente aprender a satisfazê-las. Ambos os lados! E as necessidades do seu parceiro ou parceira não são necessariamente as que você esperava ou exatamente as mesmas que as suas. Não deixe de acolhê-las por causa disso, e não se furte a buscar satisfazê-las porque elas não fazem sentido para você. Homens e mulheres são biologicamente, quimicamente, metabolicamente diferentes, mas cada um tem em si as ferramentas para fazer o outro mais feliz do que jamais poderemos compreender. Então ouçamos nosso parceiro e abramos ambos mutuamente acesso aos recursos que nós temos inatamente para fazê-lo muito, muito feliz.

Morte por Solidão

June 15th, 2010 by Sergio de Biasi

A teoria mais conhecida sobre a queda do mítico, gigantesco, santo e sagrado Império Romano é a de que ele teria sido ao longo de séculos primeiro desestruturado e então literalmente, concretamente, fisicamente destruído por invasões militares bárbaras. Este é um desses factóides enciclopélicos freqüentemente “ensinados” em escolas.

Uma teoria um pouco menos conhecida é a de que não teria sido bem isso que aconteceu. Existem fartos e grandes indícios de que 1) a maior parte dos bárbaros não tinha qualquer interesse em destruir o Império Romano e 2) a desintegração do modo “romano” de viver não está perfeitamente sincronizada com a desintegração do império. Elaboremos.

O fato é que o Império Romano exercia *imenso* fascínio sobre os bárbaros, que em geral queriam tão somente *permissão* para migrar pacificamente para dentro das fronteiras do império em busca, por assim dizer, de uma vida melhor. Queriam aprender a língua (e em grande parte o fizeram, tanto quanto foi possível), queriam adotar as religiões, as instituições, o modo de ser romano. Quem de fato não queria isso eram os cidadãos romanos, que achavam os bárbaros, com seus modos selvagens e aparência pouco “sofisticada”, indignos de ingressar no império. Quer dizer, indignos *exceto* para executar tarefas que os romanos mesmos não queriam mais executar, via pela qual – por exemplo como soldados mercenários – hordas inteiras de bárbaros foram eventualmente assimiladas. Então criou-se uma situação na qual mais e mais bárbaros foram fazendo na prática parte do império romano, até chegar um momento em que simplesmente assumiram o poder de fato. E o que fizeram com isso, resolveram denunciar todos os valores romanos? Não! De forma alguma. Os bárbaros buscaram na maior extensão possível dos seus esforços preservar toda a estrutura política, administrativa e cultural do império, muito depois do último imperador ter sido deposto. Mas não foram bem sucedidos em fazê-lo, e a decadência paulatina de todos esses aspectos se deu irreversivelmente ao longo de grandes períódos de tempo.

Qualquer semelhança com o mundo atual é mera identidade.

Para reforçar o ponto, vamos a uma teoria ainda menos conhecida sobre o que de fato ocorreu. O império romano passou por uma cisão espontânea em dois e o império do oriente durou ainda mais um bom tempo. Qualquer explicação do colapso do império do ocidente tem que levar isso em conta, isto é : o que deu errado no ocidente que fez com que a queda viesse tão antes e fosse tão mais dramática? Bem, uma força que alguns historiadores consideram que se deveria levar em conta é que os árabes, repentinamente inspirados e unidos pela doce mensagem de paz e amor do corão, decidiram partir da Arábia, invadir o Iraque e então conquistar militarmente todo mundo ao seu redor. Ironicamente, em termos de religião e teologia, os árabes eram bem mais tolerantes que os papólicos, e achavam que cristãos e judeus cultuavam uma forma imperfeita de islamismo que mesmo sendo errada tinha valor suficiente para ser respeitável (ao contrário de todo o resto, que tinha mesmo era que se converter ou morrer; e aliás tentar converter alguém do islamismo para o cristianismo por exemplo seguiu sendo crime passível de pena de morte). Então em um dado momento, após conquistarem um dos maiores impérios da historia, resolveram ficar mais calmos e parar com a farra. Mas a essa altura, muito mais de cultura e civilização estava crescentemente sendo preservado no império árabe do que na Europa. Por que? Uma possivel explicação é que a riqueza do império romano em geral e da Europa em particular era enormemente dependente de impostos e de comércio. Ao perder acesso às rotas através do Mediterrâneo e dos territórios agora em mãos dos Árabes, os restos moribundos do império romano no centro da Europa, mesmo não tendo sido completamente subordinados aos árabes, perderam completamente sua viabilidade econômica, enquanto o império do oriente ainda persistiria por séculos. O problema não seria então basicamente militar, ou cultural, mas econômico.

Recapitulemos então as idéias que levantamos até agora sobre a desintegração do império romano.

A) O império romano teria se desintegrado diante de derrotas militares
B) O império romano teria se desintegrado diante de decadência e descaraterização cultural
C) O império romano teria se desintegrado diante de se ter tornado economicamente inviável

Vamos agora à piéce de résistance : as teorias mais modernas sobre o colapso do império romano.

Estudos arqueológicos recentes mostraram um fenômeno estranho ocorrendo ao longo de um grande período de tempo : despopulação espontânea. A cidade de Roma em seu auge pré-medieval chegou a possuir da ordem de um milhão de habitantes. Então progressivamente, o que se observou foi uma queda da população, um descréscimo contínuo. Quinhentos mil, cem mil, etc. Isso não ocorreu somente em Roma; ocorreu em grande escala. Um grande número de construções romanas foram encontradas desertas, desocupadas, sem que isso tenha sido o resultado de algum grande cataclisma ou invasão. Poder-se-ia pensar que isso teria sido o resultado de algum tipo de migração para o campo, mas existem várias evidências de que não seja o caso. Como grupo biológico, os romanos simplesmente pararam de se reproduzir. Um dos motivos por que isso passou despercebido como idéia por tanto tempo ao se pensar sobre o assunto é o quão contraintuitivo soa que uma das civilizações aparentemente mais bem sucedidas do mundo tenha resolvido voluntariamente entrar em apoptose. Então mesmo quando as pistas estavam lá o tempo todo, elas freqüentemente foram interpretadas como conseqüência e não como causa. Mas um acúmulo cada vez maior de fatos leva a crer que a despopulação não seria então uma *conseqüência* da decadência, e sim sua causa. Então não seria o caso de que os bárbaros, ou os árabes, ou os vikings ou ninguém mais  teria destruído a cultura romana de fora para dentro ou expulsado geograficamente os romanos de onde se encontravam. Tais grupos apenas ocuparam o vácuo deixado por uma civilização que desapareceu por crescente falta de gente.

O mais irônico, ou assustador, ou informativo (dependendo do ponto de vista que assumirmos) é que esse é precisamente o fenômeno que observamos *hoje* nas nações mais “desenvolvidas” do mundo. Ao atingirem o auge da “sofisticação”… tornam-se biologicamente estéreis, inférteis, cometem suicídio filogenético. Seus representantes simplesmente param de se reproduzir e o vácuo resultante é entao ocupado por populações nas quais ainda queima a chama primitiva, selvagem e renovadora de “eu quero produzir mais indivíduos da minha espécie”. E sem isso, sem esse fogo biológico primordial, sem essa vontade irracional de se conectar genuinamente a outros seres humanos e com isso produzir novas vidas e cuidar delas ao invés de se preocupar primordialmente apenas com o próprio nariz e com joguinhos estúpidos de apostar a própria sobrevivência e felicidade na impostura de querer se fingir sofisticado demais para ser um primata, sem isso nenhuma civilização do mundo, por mais culturamente avançada, por mais intelectual, tecnologicamente, economicamente pujante que seja, por mais militarmente poderosa que tenha se tornado, pode sobreviver.

O grande, sagrado, santo, mitológico império romano não morreu por falta de poder militar, decadência cultural, ou mesmo colapso econômico. Todos esses fenômenos de fato ocorreram, mas foram conseqüências, não causas. Não, o império romano morreu por falta de gente. O império romano morreu de solidão.

Breve Bibliografia em Filosofia da Ciência

May 30th, 2010 by Sergio de Biasi

Infelizmente quando me mudei para cá deixei quase a totalidade dos meus livros para trás e à época não os tinha no meu computador, então reconstruir uma bibliografia partindo do que eu li e posso recomendar pessoalmente fica mais complexo dado que primeiro preciso me lembrar do que eu li. :-)

Seja como for, periodicamente recebo pedidos de recomendações sobre o que deve ser lido em filosofia da ciência. Bem, embora eu tenha decidido dedicar minha vida profissional à academia, não é com filosofia da ciência que eu gasto a maior parte dos meus esforços, então qualquer lista que eu proponha terá provavelmente grandes e importantes lacunas. Me reconforto um pouco em saber que isso provavelmente é verdade de qualquer lista desse tipo, dada a vastidão do tema. Enfim, essas são algumas das recomendações bibliográficas pessoais minhas sobre o assunto.

Para começar, eu gostaria de apontar que alguns dos grandes cientistas ao longo da história – aqueles que propuseram idéias tão importantes e revolucionárias que alteraram a própria forma de fazer ciência – se viram forçados eles mesmos a considerarem as implicações filosófica e metafísicas do que estavam dizendo, assim como a olharem para o próprio processo científico e questionarem sua natureza e validade. Então tendo eu sempre sido interessado em ciência, antes mesmo de consumir qualquer literatura exclusivamente sobre filosofia da ciência, já havia lido diversas discussões do assunto por acadêmicos hoje reconhecidos por vezes primordialmente por seu trabalho científico e não por suas discussões de filosofia. Entre eles estão notavalmente Galileu Galilei, René Descartes, Isaac Newton, Ernst Mach, Henri Poincaré, Albert Einstein, Bertrand RussellWerner Heisenberg. Digo notavelmente não apenas em termos de sua relevência intrínseca mas também em termos da influência que tiveram sobre minha opinião sobre filosofia da ciência como sendo um assunto importante. Poucos textos li no original da maior parte deles; na maior parte das vezes li *sobre* o que eles pensavem ao invés de diretamente o que escreveram, tanto pela inacessibilidade das fontes primárias quanto pela sua inescrutabilidade quando lidas contemporaneamente. Mas digo já de saída que é um equívoco gigantesco imaginar que os grandes cientistas desconheçam, não considerem, ou não discutam as implicações filosóficas do que estão fazendo assim como o que os autorizaria no final das contas a afirmar o que quer que seja sobre a realidade objetiva. Inclusive, repito, nas obras científicas mais revolucionárias e relevantes, a ciência esbarra diretamente com filosofia, e na expansão das fronteiras mais avançadas da ciência é necessários discutir explicitamente questões filosóficas. Isso fica claríssimo ao examinarmos o que todos os cientistas acima de fato disseram sobre filosofia da ciência. Infelizmente hoje em dia existe – possivelmente domina – o conceito do cientista não como vocação intelectual mas como “somente um emprego”, caso em que o sujeito está em geral muitíssimo pouco preocupado em questionar paragidmas ou revolucionar qualquer coisa e sim, muito pelo contrário, interessado em investir seus esforços nas direções menos controversas que for possível, receber seu salário e ser deixado em paz.

Uma exceção na lista acima quanto a eu ter consumido primordialmente fontes secundárias é no caso de Einstein. Não que eu não tenha lido muito do que se escreveu tanto sobre ele quanto sobre sua obra científica e seu significado (além de quando estudante de engenharia ter sido submetido à versão-para-universitários da teoria da relatividade especial presente em livros texto de física moderna), mas além disso também li diversos textos escritos pelo próprio, como a coletânea The World As I See it (que na verdade não tem muito sobre filosofia da ciência) e Relativity. Este último de fato fala sobre filosofia da ciência, interessantemente não como um tópico em si, mas como uma necessidade para fazer a ciência da qual o livro trata. Uma parte substancial do livro é gasta discutindo conceitos, como justificá-los, e seu significado.

Outra grande exceção na lista acima quanto a eu ter consumido primordialmente fontes secundárias é no caso de Russell. Autor extremamente prolífico, várias de suas obras permanecem não apenas legíveis como relevantes ainda hoje. O primeiro livro que li dele foi Introduction to Mathematical Philosophy, um clássico absoluto que se por um lado hoje em dia está academicamente um pouco datado, por outro lado permanece perfeitamente acessível e retrata um momento de transição de importância fundamental tanto para filósofos quanto para matemáticos – e de forma mais ampla para cientistas em geral. A única contra-indicação que eu talvez possa ter a esse livro é que possivelmente seja difícil gostar dele para quem por algum motivo se convenceu de que odeia matemática.

Até o momento, porém, venho citando os contatos que tive com filosofia da ciência como efeito colateral de estar interessado em ciência. O primeiro contato que tive com pensadores que se dedicaram mais extensamente a abordar filosofia da ciência como um assunto em si mesmo foi através do curso obrigatório de filosofia da ciência que fiz na PUC-Rio. Um parêntesis aqui para que não sabe – a PUC tem como um de seus princípios a idéia de que todos os seus alunos devem ter uma formação não apenas técnica mas também minimamente humanística e moral, e para satisfazer esse requisito o aluno tem que escolher uma certa quantidade de cursos em filosofia, religião e ética para cursar de forma a poder se graduar. Entre esses cursos, eu fiz o de filosofia da ciência, e isso acabou sendo razoavelmente interessante, por vários motivos. Um deles é que eu parecia ser praticamente o único ser humano na sala de aula remotissimamente interessado nos tópicos sendo discutidos, então as aulas viraram por vezes um diálogo entre mim e o professor com a classe presente assistindo. Outro motivo é que por total coincidência revelou-se que o professor morava exatamente no mesmo prédio que eu, e não tinha carro, e ia para a PUC de ônibus, algo que levava da ordem de 40 minutos. Assim sendo, eu passei a dar carona para ele regularmente, e no caminho já íamos falando de filosofia da ciência, com o resultado de que quando a aula começava a turma estava de fato meio que se juntando a um diálogo pré-existente. Finalmente, como mencionei, foi a primeira vez em que de fato fui apresentado de forma minimamente organizada à literatura da filosofia da ciência como um assunto em si mesmo.

O professor adotou como referência recomendada o autor Alan Chalmers, especificamente o livro What Is This Thing Called Science, que eu concordo que é uma boa introdução ao assunto. Um outro livro do Chalmers que pode valer a pena é Science and Its Fabrication.

Bem, só que a partir daí se abre todo um universo do estudo da filosofia da ciência não da parte dos cientistas mesmos e como parte do processo científico, mas sim partindo de filósofos, e como um assunto em si mesmo ao invés de aplicado ao desvendamento de uma determinada questão científica. É completamente impossivel sequer começar a resumir aqui todas as posições e questões envolvidas, mas posso citar alguns dos autores e livros que considero mais essenciais – ou pelo menos que eu pessoalmente acho que vale a pena examinar. Entre eles (forçosamente incompleta esta lista) : Charles Sanders Peirce, Karl Popper, Thomas Kuhn, Paul Feyerabend, Willard Van Orman Quine, Daniel Dennett. Ressalva : nem todos eles têm igual relevância ou importância e essa lista expressa fortes preferências pessoais. Naturalmente que em qualquer lista deste tipo temos que incluir também Platão e Aristóteles, mas isso além de óbvio eu considero como pré-requisito fundamental para qualquer um que queria falar seriamente seja de ciência, seja de filosofia. E como dizer que “ah, e para discutir filosofia você precisa saber ler e escrever”. Isso sendo dito, não é discutindo Platão e Aristóteles que vamos compreender o que ocorre modernamente seja em ciência seja em filosofia da ciência.

Peirce em particular teve uma vida infernal e é na minha opinião um pensador que se não tivesse sido assolado por circunstâncias adversas teria hoje muito mais relevância do que lhe é concedida. Karl Popper é figura obrigatória em qualquer lista, e seu livro The Logic of Scientific Discovery é um clássico. A obra correspondente de Kuhn é The Structure of Scientific Revolutions, e para quem gostar deste, a continuação obrigatória é Feyerabend, com Against Method. Quine figura nesta lista em grande parte por minha simpatia pessoal :-). Ele nunca realmente escreveu um grande clássico sobre filosofia da ciência. Mas isso não quer dizer que não tenha escrito nem tido influência sobre o assunto, e uma possível sugestão seria From a Logical Point of View.

Finalmente, temos Daniel Dennet, um prolífico e ativo filósofo contemporâneo que se ocupa entre outros assunto com filosofia da ciência, e que acrescento a esta lista em parte porque ele de fato escreve sobre o assunto de forma geral mas mais especificamente porque ele tem a coragem de discutir abertamente religião de forma crítica como não estando de forma alguma à parte do processo científico. A idéia de que a religião possa querer por vezes se colocar como uma “forma de conhecimento” separada da ciência e imune à lógica ou a todas as considerações que (por vezes os próprio religiosos!) fazem ao processo científico é completamente insustentavel. Ou a religião está de fato dizendo algo sobre a realidade, algo com pretensões a ser objetivamente verdadeiro, e nesse caso a filosofia da ciência é relevante e precisa ser levada em conta, ou não está, e nesse caso, importantes que as idéias religiosas sejam, pertencem ao reino da mitologia, arte, literatura ou fantasia, mas não são uma investigação coerente da realidade objetiva. Para quem gostou dessa descrição, eu recomendo o livro Breaking the Spell.

Outros livros que eu aleatoriamente gostaria de mencionar que de alguma forma discutem criticamente como a ciência de fato funciona assim como os fundamentos filosóficos da nossa própria capacidade de compreender qualquer coisa são : Beyond The Hoax (Alan Sokal), Godel, Escher, Bach (Douglas Hofstadter) e Are Quanta Real?.

Einstein Esteve Aqui

May 28th, 2010 by Sergio de Biasi

Fuld Hall
The Institute for Advanced Study at Princeton

Eis que por uma seqüência imprevista de eventos eu acabei indo visitar o Institute for Advanced Study na cidade de Princeton. Talvez isso não signifique muito para quem não seguiu carreira acadêmica e não fica muito impressionado em andar pelos mesmos caminhos onde Einstein e Gödel passeavam juntos. Mas para mim é impressionante finalmente ver a lareira ao lado da qual algumas das conquistas mais importantes do pensamento humano foram discutidas e desvendadas, e ver o escritório onde Einstein trabalhava.

Einstein

O instituto é atípico (era mais ainda quando foi fundado) no sentido em que não é exatamente uma instituição acadêmica padrão. Ele não tem alunos, ou laboratórios, nem dá diplomas de coisa alguma. Ele também não vende, contrata ou dirige a pesquisa de nenhum de seus membros. Nao se trata, portanto, nem de uma instituição de ensino, nem exatamente de uma instituição de pesquisa. É uma instituição, como diz o nome, de estudos avançados. A idéia é que algumas das melhores e mais brilhantes mentes que puderem ser encontradas serão convidadas a se juntarem ao instituto para então serem deixadas em paz para pensarem… no que quiserem.

Ironicamente, ao longo dos anos, foi repetidamente observado que essa proposta não é necessariamente a mais produtiva em termos de resultados científicos. Vários cientistas acima de qualquer suspeita, como por exemplo Richard Feynman, observaram que toda essa liberdade, que em princípio permitiria aos gênios explorarem suas idéias sem as amarras dos compromissos usuais, acabaria na prática gerando ao invés disso estagnação e paralisia. Segundo Feynman, é preciso um certo grau de urgência e de problemas sendo atirados no seu colo para manter a mente ativa e produzindo.


Andando aleatoriamente pelo Institute for Advanced Study

Seja como for, algumas das mentes mais brilhantes do mundo de fato passaram pelo instituto. O número de vagas permanentes, porém, é bastante limitado; a maior parte dos pensadores recebe apenas posicões temporárias e são periodicamente substituídos.

O local inteiro, embora extremamente agradável e confortável, não é muito grande nem arquiteturalmente impressionante. De fato a impressão é a de que este seria o resultado de um monte de matemáticos se juntando e decidindo “ok, precisamos de uns prédios aqui”. Seu significado porém é imenso, e de certa forma essa simplicidade e despojamento nos fazem apreciar e entender ainda mais profundamente a escala de valores e a personalidade daqueles que ali trabalham. Nada de colunas neoclássicas de mármore com 30 metros de altura, nada de prédios com ângulos impossíveis revestidos de vidro e aço, nada de arabescos ou gárgulas. Não estamos aqui para impressionar ninguém. Estamos aqui para pensar.

Ainda Ateísmo

May 27th, 2010 by Sergio de Biasi

“Religion is based … mainly upon fear … fear of the mysterious, fear of defeat, fear of death. Fear is the parent of cruelty, and therefore it is no wonder if cruelty and religion have gone hand in hand … My own view on religion is that of Lucretius. I regard it as a disease born of fear and as a source of untold misery to the human race.”
-Bertrand Russell

Com o risco de chover no molhado e voltar a um tema requentado e excessivamente debulhado a ponto de ficar chato, voltemos ao tema do ateísmo. Ao escrever esse tipo de texto considero que estou (espero estar) prestando um serviço de utilidade pública ao me dar ao trabalho de explicar o que deveria ser abundantemente óbvio. Mas se não é óbvio para certas pessoas intelectualmente honestas e que buscam a verdade, então de fato é muito importante que alguém escreva sobre o assunto, nem que seja para dar apoio moral a quem olha para certas coisas e pensa “mas peraí, isso não faz nenhum sentido” e no entanto acaba por questionar o próprio julgamento diante da ausência de pensamento divergente e idéias discordantes no universo social no qual habita.

Enfim, a motivação desta vez é a seguinte. Volta e meia recebo mensagens de leitores afirmando que tal ou qual resposta a um de meus textos sobre ateísmo merece comentários, que apresenta argumentos sólidos, que desconstrói completamente o que eu falei e coisa e tal. Em geral eu já conheço as tais respostas, e não comentei nada porque são muito fraquinhas e não acrescentariam absolutamente nada ao debate. No entanto, como eu coloquei, talvez o que seja absolutamente óbvio para mim não o seja para alguns leitores, e existe uma pequena chance de que nem todos eles tenham se fechado hermeticamente a argumentos e a pensar criticamente sobre o assunto. Então, assim sendo, lá vai.

A primeira resposta que vou comentar está publicada aqui  : Refutando um ateu

Essa resposta já começa muitíssimo mal ao anunciar que vai usar um fomato inspirado no disputatio medieval. Repito aqui o que já disse diversas vezes. Existe uma diferença brutal e grotesca entre reverenciar o intelecto de pessoas brilhantes do passado que foram capazes de ver muito adiante de seu tempo versus citá-las literalmente ou achar acriticamente que os métodos e idéias que eram revolucionariamente geniais há séculos atrás ainda o sejam pelos padrões de hoje.

Enfim, a resposta em questão se refere ao meu texto Ateísmo Para Principiantes.

A resposta começa por fazer a seguinte afirmação sobre o meu texto :

1) É possível fazer uma analogia entre Deus e o Papai Noel. São duas crenças, e de mesmo grau.

Já nesta primeira frase, a desonestidade (ou alternativamente a obtusidade) do autor fica clara. Absolutamente não afirmei isto colocado acima, e muito pelo contrário, escolhi Papai Noel ao invés de Zeus ou Horus como exemplo especificamente porque é razoavelmente incontroverso (exceto para quem é maluco ou não tem absolutamente nada melhor para fazer) que Papai Noel não exista de fato. Apesar disso, caso fosse contra a lei não acreditar em Papai Noel ou caso eu fosse regularmente atacado por questionar essa crença, discutir a existência de Papai Noel cresceria muito em relevância, e é esse tipo de reação e posição que caracteriza os ateus, não em geral um arcabouço filosófico maior em comum. Eu estou nesta parte do texto discutindo a falta de unidade ideológica entre ateus, não se a crença em deus é filosoficamente equivalente à crença em Papai Noel.

Mas então, ironicamente ao extremo, a resposta prossegue para afirmar :

NEGAÇÃO: O argüente constrói um “boneco de palha” do Deus cristão. O Deus cristão não é um mito, é o ser infinito e necessário. Não consta que Papai Noel seja um ser infinito, mas sim um ser contingente e ficcional.

Ora, santas ironias. Isso de dizer que eu estou construindo uma equivalência entre deus – e veja só, especificamente o deus cristão, que eu nem sequer menciono, afinal ateus não acreditam em NENHUM deus, não só no cristão – isso sim é um ridículo boneco de palha. Esta parte do meu texto nem sequer discute se deus existe ou não, e sim o fato de que crer ou não crer em deus não são posições sustentadas por grupos com perfis similares de unidade ideológica.

Segue-se então um amontoado de – não há como descrever de outra forma – baboseiras sobre  “o ser infinito já foi demonstrado desde Parmênides” :

o Ser infinito já foi demonstrado desde Parmênides, e aqui demonstramos da nossa forma: ou há algo, ou não há nada. Se nada há, nada se questiona, logo algo há, algo é. A este algo, a esta positividade, a esta estabilidade, a metafísica chama de ser. Ou o ser é finito e contingente ou é infinito e necessário. Se é finito e contingente, houve um tempo em que nada houve. Mas do nada absoluto nada pode provir, porque nada não há, o nada não afirma nada, não tem positividade. Logo, o ser é infinito e necessário. Este ser infinito e necessário é o Deus cristão.

Este parágrafo é um amontoado de palavras em busca de um significado. Metade dos termos não têm qualquer significado minimamente rigoroso ou aplicável de qualquer forma útil, e saltos inacreditáveis são dados mesmo que aceitemos a “lógica” interna do “raciocínio”. Chegamos aqui num ponto em que, sinceramente, nem adianta explicar. Isso aí acima  é um monte de besteiras. São coisas como esta que fizeram a metafísica perder sua credibilidade. Não que eu pessoalmente ache que ela não tenha importância ou lugar na filosofia ou mesmo na ciência moderna, mas isso aí é só uma chutação total sem qualquer rigor.

Vou me concentrar portanto em uma parte do argumento que é a menos delirante, embora ainda respondida de forma equivocada, que é : Como resolver o legítimo e profundo problema metafísico de que existe qualquer coisa? Por que existe algo ou invés de nada? Esse é o problema que de fato precede todos os outros e que está na base de grande parte das tentativas de construir uma teologia que parta de (ou pelo menos respeite) lógica e razão. Só que dessa questão não resolvida, vezes demais se parte então para postular alguma “causa primeira” com todo tipo de propriedades arbitrárias e que magicamente não requer ela mesma uma explicação, geralmente com pseudo-justificativas do tipo “ela sempre existiu”. Ora, se é para postular que algo sempre existiu e que por isso não precisaria de explicação (que já é evidentemente uma enrolação, mas aceitando esse argumento) então nesse caso vamos postular que o universo sempre existiu, ou que as leis da física sempre existiram, e que as leis físicas são logicamente necessárias do jeito que são, embora ainda não tenhamos entendido o motivo. Isso é muito mais metafisicamente satisfatório do que criar entidades com propriedades fantásticas que não temos nem remotamente condições de determinar ou justificar.

Enfim, a resposta parte então para as seguintes afirmações sobre o trecho seguinte do meu texto :

Proposições contidas
1) Religiosos em geral não duvidam de suas posições, acreditam estar certos.
2) Ateus, pelo contrário, são céticos sobre quase tudo. A única certeza deles é a de que Deus não existe.
3) É incontornável o fato de que alguém está certo e alguém está errado.

Mais uma vez, essas afirmações só podem ser explicadas por desonestidade ou obtusidade. Em primeiro lugar, a afirmação (1) não foi originalmente feita por mim, e sim precisamente pelo texto que estou criticando. Mas isso colocado, eu de fato acho que muitos religiosos parecem – não raro anunciam abertamente – assumir uma posição perfeitamente acrítica e dogmática diante de suas crenças. Mas seja como for, e seja quão críticos e ponderados alguns religiosos sejam antes de chegarem às suas conclusões, grande parte deles – e isso depende em parte da religião específica – de fato aceita argumentos baseados em autoridade, tradição ou revelação como perfeitamente válidos.

Então eu cuidadosamente passei a descrever que isso distingue a mim, eu, pessoalmente, do religioso padrão. Note-se, eu *não* acho, nem defendi, que a minha posição pessoal seja representativa de todos os ateus ou mesmo dos ateus em geral. Mutíssimo pelo contrário; eu repetidamente argumento que não existe posição filosófica ou ideológica unificada entre os ateus, e que essencialmente a única coisa que os *une* numa categoria – absolutamente não a única coisa em que acreditam – é não acreditarem em deus. Então descrever o que eu disse como sendo o enunciado em (2) é uma falsificação total; não só não é o que eu disse como é oposto ao que eu disse em vários aspectos. Se o autor realmente depreendeu honestamente algo como o que está em (2) do meu texto isso é algo que beira o analfabetismo funcional e é risível (ou conversamente altamente apropriado) que vá querer então construir um debate escolástico (entre si mesmo e um exército de bonecos de palha). No texto original, eu sublinho veementemente a questão de que nem todos os ateus rejeitam a idéia de deus pelos mesmos motivos, e que variam enormemente em suas crenças e ideologias. Esse é um dos principais temas do texto inteiro. Eu não acho nem afirmei que a maior parte dos ateus seja “cetico sobre quase tudo”, e aliás nem que *eu mesmo* seja cético sobre quase tudo – o que eu afirmei foi o que o tipo de argumento que eu aceito como legítimo exclui vários dos tipos de argumento que o religioso médio aceita como legítimo. Mas eu de fato aceito muitos argumentos concretos como legítimos e em muitos fatos como solidamente estabelecidos (o que não quer dizer que não possam ser legitimamente questionados, apenas que é preciso que sejam apresentados contra-argumentos de força suficiente). Apenas não aceito que crença em fatos deva ser decidida com base em tradição, revelação ou autoridade, como ostensivamente grande parte dos religiosos abertamente faz.

Em resumo, é simplesmente ridícula a afirmação de que eu teria dito, seja sobre “os ateus”, seja sobre mim mesmo, que “a única certeza deles é de que deus não existe”. Isso não tem absolutamente nada a ver com qualquer coisa que eu tenha dito. Muitos ateus inclusive são ridiculamente pouco críticos, e divergem dos religiosos apenas por acreditarem em autoridades (ou fantasias) diferentes. O autor da resposta segue porém não só partindo dessas premissas absolutamente absurdas sobre o que eu teria dito como procede mais uma vez a construir argumentos tão completamente delirantes que não há nem o que comentar. Eu posso me munir de paciência e me aventurar a refutar afirmaçoes como “o Sol gira em torno da Terra”, que estão completamente erradas, mas que pelo menos fazem sentido e nas quais há concebivelmente motivos para acreditar. Mas não há paciência que se justifique para afirmações do tipo “já que o Sol gira em torno da Terra seu magnetismo animal aquece a aura da atmosfera terreste e provoca permutações astrais”. É esse o nível do discurso com o qual nos defrontamos aqui. Não existe sequer o que refutar. São Tomás de Aquino provavelmente teria vergonha de se ver citado num contexto como esse, e *certamente* retiraria grandes partes das coisas que escreveu se pudesse ter acesso à lógica, à filosofia e a ciencia modernas. Argumentar no século 21 com base nas categorias metafísicas e na estrutura lógica que prevaleciam na escolástica medieval é RIDÍCULO.

Sobre a proposição (3), eu *de fato* a coloco – é incontornável o fato de que alguém está certo e alguém está errado. E tanto quanto é possível decodificar do festival de confusão mental no trecho da resposta que se segue, o autor afirma exatamente o mesmo que eu, embora por vias altamente tortuosas – que é inescapável que exista uma verdade necessária, e que se discordamos sobre características irrenconciliáveis da sua natureza última, um dos dois lados está inescapavalmente errado. Agora, repetidamente dizer “e essa verdade necessária é o deus cristão” é simplesmente patético, dado que “o deus cristão” envolve um grande conjunto de características que de forma alguma decorrem automaticamente do simples princípio metafísico de que é preciso haver no fundamento de tudo uma verdade necessária. Essa “verdade necessária” poderia envolver um deus, três deuses, infinitos deuses, ou zero deuses. Minha posição pessoal é que tudo indica que envolva zero deuses, não que eu negue o princípio metafísico de que a verdade, em algum nível de abstração, é necessária.

Do mesmo trecho do meu texto são “extraídas” as seguintes proposições :

4) Ateus em geral fundamentam seus argumentos; religiosos em geral não.
5) Religiosos em geral aceitam argumentos de autoridade, tradição e revelação, enquanto um ateu os rechaça.
6) A fé não é uma boa base para um sistema de crenças.

Novamente, o autor da reposta confunde completamente em (4) o que eu afirmo sobre *mim* como sendo algo que eu estaria afirmando sobre todos os ateus, algo que eu digo com todas as palavras que não é o caso. Mas mesmo tomando como descrição do que teria dito sobre mim, é completamente absurda. Eu não disse que os religiosos não fundamentam seus argumentos, apenas que quase a totalidade deles aceita como argumentos válidos categorias de argumentos que eu absolutamente não aceito como tal.

E sim, a primeira parte de (5) é não só ontensivamente e admitidamente verdadeira como em grande parte das religiões, uma exigência formal. Quando a isso ser diferente para os ateus em geral, mais uma vez – eu *não* acho que todos os ateus pensem igual a mim, e isso é um dos principais pontos do meu texto. Inúmeros ateus estão perfeitamente felizes em aceitar autoridade, tradição ou mesmo revelação, apenas divergem dos religiosos sobre quais autoridades, tradições ou revelações consideram legítimas.

Sobre (6), o único ponto sobre o qual o autor realmente diz algo novo, finalmente – embora mais uma vez de forma convoluta – se coloca algo que parece com um argumento que vale a pena considerar, que é o seguinte : a fé é um elemento indispensável em qualquer sistema de crenças. Esta não é uma afirmação absurda, mas sobre ela eu tenho duas observações.

A primeira observação é que apesar de não ser absurda, ela é falsa. É perfeitamente possível produzir todos tipo de afirmações cuja verdade é logicamente necessária sem que isso envolva qualquer tipo de fé. É perfeitamente possível ter crenças que não dependam de qualquer suposição arbitrária. Certo, é verdade que derivações lógicas partem de conjuntos de axiomas. Porém não há nada de errado com o conjunto vazio como ponto de partida, e é simplesmente errado concluir que dele nada podemos derivar. É verdade que deste ponto de partida somente poderemos construir teorias tautologicamente equivalentes ao conjunto vazio, mas se vamos argumentar que nosso universo está fundamentado em última análise em verdades logicamente necessárias, nosso objetivo último deveria ser precisamente explicar como é possível derivar o universo inteiro do conjunto vazio – um projeto altamente ambicioso que talvez nunca seja possível realizar completamente. Mas não, a fé não é necessária para “qualquer” sistema de crenças.

A segunda observação é que mesmo que aceitemos que nem todo sistema de crenças requeira fé, algúem poderia observar que quando lidando com conhecimento incompleto e limitado, como é a condição humana, talvez necessitemos de dar alguns saltos de fé para podermos tomar decisões úteis. A fé seria então necessária para uma grande parte dos sistemas de crenças com aplicabilidade prática. Agora veja, o fato de que é preciso por vezes supor como verdade algo que não conseguimos estabelecer como logicamente necessário não significa então que vamos sair acreditando em qualquer coisa, ou que todos os sistemas para escolher crenças sejam equivalentes. Certo, é claro que é possível que todas as nossas percepções sejam falsas, que seja tudo um sonho, uma simulação de computador, um delírio. Do ponto de vista *estritamente* lógico, o fato de que o sol nasceu rigorosamente todos os dias desde que nascemos não torna sequer mais provável que ele vá nascer amanhã. Mas para ter uma vida que faça sentido, e tomar alguma decisão ao invés de ficar atolado num pântano metafísico, você tem que escolher acreditar em alguma coisa – por exemplo que o Sol vai de fato nascer de novo amanhã. Eu aceito este argumento. Mas não decorre daí que “então o sistema de crenças X está certo”, aliás muito pelo contrário – o que se está argumentando é precisamente que nenhum sistema de crenças desse tipo – que exija saltos de fé – é logicamente justificável.

A questão é precisamente como escolher entre sistemas de crenças que, a rigor,  não podemos justificar logicamente, pelo menos não de forma necessária. E é aí que entra o princípio científico da navalha de Occam – não vamos sair fazendo suposições a não ser que elas acrescentem poder explicativo ao modelo que estamos construindo para buscar explicar os fatos que estamos admitindo como verdadeiros. Os modelos científicos, porém, são de fato admitidamente provisórios e injustificáveis como logicamente necessários. Isso não significa porém que sejam arbitrários. Tomar decisões lógicas com informações incompletas não garante acertos mas não é equivalente a escolher aleatoriamente. Agora, de um ponto de vista mais prático, a principal justificativa para a ciência é que ela FUNCIONA. Como já dizia Einstein, a coisa mais impressionante, maravilhosa e surpreendente sobre o universo é que é possivel entendê-lo. Enquanto a ciência nos deu reatores nucleares, naves espaciais e computadores, os modelos de como a realidade funciona baseados em teologia e similares não foram capazes de concretamente explicar, prever ou esclarecer absolutamente NADA, em nenhum nível, físico, metafísico, psicológico ou de nenhuma outra ordem. A realidade simplesmente NÃO FUNCIONA do jeito que as investigações teológicas prescrevem, descrevem ou prevêem e isso ao longo da história é repetidamente e facilmente observável. A principal função cumprida pelas crenças religiosas é criar um falso, ilusório e pernicioso conforto diante das questões para as quais se formos honestos não temos resposta satisfatória.

“What men really want is not knowledge but certainty.”
-Bertrand Russell

Agora, novamente, eu admito que do ponto de vista estritamente lógico é perfeitamente possível que, digamos, quem esteja certo mesmo seja a Igreja da Cientologia e Xenu tenha explodido bilhões de pessoas com bombas atômicas. Mas isso para mim é tão realista e verossímil quanto Jesus ressuscitando pessoas ou nossa” alma” voltando encarnada num sapo. Não existe absolutamente qualquer evidência a favor de nenhuma dessas coisas, e entre algo que repetidamente faz previsões extraordinariamente confiáveis, mesmo que essa previsões tenham em parte sido obtidas por tentativa e erro e não por deducão rigorosa, versus um outro sistema de crenças que faz todo tipo de afirmações delirantes sobre a realidade que nunca se observam em lugar algum, eu sinto muito, eu fico com o primeiro. Inclusive diante da impossibilidade de deduzir logicamente como o universo funciona, a grande força da ciência é justamente ter a humildade de admiti-lo e estar disposta a constantemente mudar de idéia quando suas previsões falham – que é muitíssimo mais do que se pode dizer da quase totalidade das crenças religiosas. Então pode ser o caso de que talvez amanhã toda a ciência como atualmente consta dos jornais acadêmicos pare completamente de funcionar, e comece a chover sapos e anjos desçam do céu, mas nesse caso os cientistas serão metodologicamente obrigados a reverem seus conceitos sobre como o universo funciona. Novamente, ao contrário de grande parte dos religiosos, que mesmo diante de montanhas de evidências, aferram-se a crenças imutáveis e inamomíveis usando (quando se dispõem a tanto) de argumentos como esse de que “a fé é um elemento incortornável de qualquer sistema de crenças”. Bolas, mesmo quando é, não significa então que seja igualmente razoável sair acreditando em qualquer coisa.

“The trouble with the world is that the stupid are cocksure and the intelligent are full of doubt.”
-Bertrand Russell

O que nos leva finalmente de volta à minha afirmação original : a fé nao é uma boa base para um sistema de crenças. Se formos chamar de fé qualquer crença que não pudermos estabelecer como verdade logicamente necessária, então de fato em várias circunstâncias teremos que sustentar crenças deste tipo se não quisermos ficar paralisados num atoleiro existencial. Mas isso não significa que a fé seja necessariamente a *base* do meu sistema de crenças, não no sentido de que seja o fator preponderante ou mais significativo. Se alguém for argumentar que é a fé que torna meu sistema de crenças possível, e por isso é sim a base dele, eu observo que não, ela *não* torna meu sistema de crenças logicamente justificável; de fato, nada pode fazê-lo, não no atual estágio em que estamos no entendimento da realidade. A fé é apenas um quebra-galho, um tapa-buracos para o fato de que eu não sei tudo. Mas certas suposições se revelam mais úteis e mais esclarecedoras e com maior poder preditivo do que outras, e eu acho desejável preferir essas suposições às outras. Então, nesse sentido, as suposições são completamente arbitrárias enquanto as conclusões não são, e é pelas conclusões que eu julgo a qualidade das suposições. Os religiosos tendem a inverter isso completamente e insistir em suposições engessadas e imutáveis, tomando portanto a fé como base de seus sistemas de crenças, ao invés de fazerem exatamente o oposto – escolher as suposições não justificáveis que vão fazer com base no quanto as suas conseqüências parecem ser compatíveis com a realidade de fato observada.

Finalmente, o autor “extrai” do mesmo trecho do meu texto as seguinte afirmações :

7) Acreditar em Deus é uma posição circunstancial, não metodológica ou a priori.
8 ) Para a crença em Deus se justificar, é necessária:a) a comprovação empírica de sua existência.b) uma definição que faça sentido e que apresente evidências
9) Tudo o que não possui comprovação empírica é dotado de um aspeco mitológico.

Quanto a (7), isso não é algo “refutável”; eu estou descrevendo a minha posição pessoal.

Quanto a (8), sim, é claro que é preciso haver uma definição que faça sentido. Não dá para debater se deus existe ou não sem que se apresente uma descrição minimamente consistente sobre de quê estamos falando, algo que a maior parte dos religiosos falha completamente em fazer. Note que se formos levar a sério o fato de que o autor afirma ter “refutado” (8), ele quer então que aceitemos a existência de deus sem qualquer evidência empírica (“comprovação empírica” é uma besteira) e também sem uma definição rigorosa seguida de argumentos sólidos. E a rigor, ele está certo – a mera crença em deus não requer qualquer uma dessas coisas, assim como não o requer a crença em gnomos habitando o centro da Terra. A crença em coisas aleatórias requer apenas a vontade de acreditar.

“I wish to propose for the reader’s favourable consideration a doctrine which may, I fear, appear wildly paradoxical and subversive. The doctrine in question is this: that it is undesirable to believe a proposition when there is no ground whatever for supposing it true.”
-Bertrand Russell

Quanto a (9), isso (como inúmeras outras afirmações) não tem absolutamente nada a ver com qualquer coisa que eu tenha dito.

Enfim, eu poderia prosseguir discutindo ponto por ponto o resto do texto, mas ele é completamente desprovido de conteúdo, de mérito, ou mesmo de evidências de ter sido capaz de sequer entender o que eu disse no meu texto original. Está encharcado de confusão mental e de erros de lógica básica, e é uma perda total do meu tempo ficar “refutando” essa extensa besteirada. Inclusive estou cogitando seriamente parar de fazê-lo até mesmo parcialmente no futuro; qualquer ponto que eu poderia querer ilustrar ao dar corda para esse tipo de coisa já foi extensamente exemplificado no passado, e quem não quiser ver continuará mesmo cego. Infelizmente não tenho qualquer dúvida de que isso será interpretado como “oh, se você não está respondendo é porque ficou sem tem o que dizer / não tem resposta / foram apresentados argumentos irrefutáveis”. Longe disso, longe disso. É apenas que esse tipo de texto longe de serem “refutações muito bem estruturadas”, é só um festival de sandices.

Entre outros exemplos que eu poderia citar : eu escrevo que “se a ciência universal fosse atingida, ela nos diria se deus existe ou não” e o sujeito escreve que eu teria dito que “sem a ciência universal, é impossivel afirmar se deus existe ou não”. Eu digo A => B e o sujeito afirma que eu estou dizendo que ~A => ~B, um erro absolutamente básico de lógica que não se admitiria num estudante iniciante. E essa pessoa quer escrever uma refutação nos moldes de um debate escolástico!

**************************************

Uma outra resposta um pouco menos primária pode ser encontrada aqui : O empirismo ateísta na corda bamba

Digo um pouco, mas não muito. Em primeiro lugar, o autor parte já de saída do equivocado princípio de que eu só aceitaria argumentos baseados em observacões sensíveis, e não em princípios lógicos ou necessidades metafísicas. Ora, não é que eu não aceite tais argumentos em princípio – apenas eles não existem. E não me venham com São Tomás de Aquino, Santo Anselmo e outras coisas desse tipo porque o que eles nos dão em termos de argumentos ontológicos é simplesmente ridículo e absolutamente não estabelece necessidade lógica alguma de um deus nos moldes cristãos. Existe uma distância brutal entre argumentar pela necessidade de uma “causa primeira” e dizer “então taí, é o deus cristão”. Chamar as verdades que são logicamente necessárias de “deus cristão” não lhes atribui magicamente nenhuma das inúmeras outras características sustentadas pela teologia cristã, nem exime o autor de justificar tais características. Mas ok, pinçando como pinçou o autor uma afirmação completamente fora de contexto, não é supreendente que sua interpretação esteja facilmente sujeita a distorções.

Mas daí ele passa então a fazer outras afirmações mais genéricas que não têm diretamente a ver comigo, como por exemplo de que “Hoje, o grande inimigo do ateísmo é a ciência mais atual.” Er, não, não é, e no caminho para buscar afirmá-lo o autor faz várias afirmações altamente impróprias. Para começar, a ciencia clássica em si mesma absolutamente não é universalmente baseada no “empirismo”. Muito antes de se falar em teoria da relatividade ou em mecânica quântica, a posição filosófica de positivistas e assemelhados, popular que tenha ficado em um dado momento, sempre foi apenas uma facção entre outras e absolutamente não a posição unânime na comunidade científica.

Adicionalmente, o ateísmo absolutamente também não tem como fundamento filosófico essencial nenhuma reverência ao empirismo. Grande parte – diria eu todos os sérios – pensadores ateus aceitariam prontamente argumentos lógicos ou metafísicos a favor da existência de deus caso lhes fosse apresentado um que considerassem válido. Evidentemente diante disso a atitude científica seria verificar que as conseqüências necessárias desses argumentos de fato se observam (e se não fossem observadas seria razoável concluir que existe um equívoco em algum lugar), mas tais argumentos não seriam rejeitados por princípio, só por não serem “evidências empíricas”. Apenas eles não existem. Claro, se apesar de não haver um argumento lógico sólido desde primeiros princípios alguma observação prática revolucionária fosse feita – e aí entra a parte do meu texto que foi citada – então mesmo assim isso seria um motivo forte para rever a posição ateísta. Mas absolutamente não é o caso de que tais observações sejam necessárias como pré-requisito para a idéia ser considerada seriamente.

Além disso, o ateísmo também não está filosoficamente fundado ou associado nenhuma forma à mecânica clássica como quer fazer crer o autor do texto. Para começar, se quisermos construir o argumento de que a ciência avançada caminha no sentido de desvendar um mundo real que está vastamente distante dos sentidos e que absolutamente não é acessível, mesmo com muito boa vontade, diretamente através de observações “empíricas”, eu não só *concordo* com isso, como não é preciso chegar à mecânica quântica para encontrar exemplos. A presença de hélio no sol, a existência de átomos com núcleos e elétrons, a verdadeira natureza das estrelas como objetos concretos brilhantes a grandes distâncias, a evolução das espécies, a gravitação universal, a verdadeira natureza da luz como oscilação de campos elétricos e magnéticos, tudo isso foi atingido pela mecânica clássica e está muito, muito distante do que se pode chamar exatamente de “empírico”. Claro, observações empíricas foram necessárias para se chegar às teorias correspondentes, mas as teorias vastamente superam as observações e falam sobre a estrutura do real de formas que transcendem imensamente o que é diretamente observável. O que possivelmente a mecânica quântica traz de filosoficamente novo é embaralhar significativamente o conceito de nexo causal, mas isso de forma alguma é impeditivo seja para o empirismo seja para o ateísmo.

Enfim, é simplesmente falso que “um dos principais argumentos do ateísmo” seja o empirismo, ou que a transição de ciência clássica para ciência moderna tenha causado (ou sido forçada por) um abandono do empirisimo, ou que a mecânica quântica ou a ciência moderna de modo geral apresente qualquer problema para o ateísmo. Inclusive é muito irônico e até constrangedor que o autor venha acusar os ATEUS de antropocentrismo enquanto a maior parte das religiões é que defende que o ser humano seja filosoficamente, cosmicamente, metafisicamente algo de profunda relevância para o universo, quiçá o propósito mesmo da sua existência.

**************************************

Para recompensar os leitores que tiveram a paciência de chegar até aqui, alguns links divertidos :

Things Atheist Didn’t Do

Still More Things Atheists Didn’t Do

Things Atheists Didn’t Do In 2009 (Part 1)

Things Atheists Didn’t Do In 2009 (Part 2)

Amor e Medo

May 21st, 2010 by Sergio de Biasi

No dia seguinte ao natal de 1862, mais de 40 mil soldados americanos receberam ordens de avançar,  em direção a uma formação de aproximadamente outros 40 mil soldados… também americanos, que estavam na cidade de Murfreesboro, Tennessee. Foi um dos momentos mais importantes da guerra civil americana, e a ordem pouco usual de iniciar uma ofensiva durante o inverno partira diretamente de Abraham Lincoln, que estava profundamente frustrado com a hesitação de seus generais em avançarem decisivamente contra as forças confederadas e desejava resultados concretos para uma campanha que a seu ver já havia se alongado muito mais do que seria estrategicamente apropriado.


Yankee Doodle

As forças confederadas estavam plenamente cientes do avanço do exército inimigo e, não tendo qualquer intenção de ceder terreno, tomaram posições defensivas para a batalha. Os dois exércitos se encontraram em 30 de dezembro de 1862, quando as forças do norte, estacionadas em alguns pontos a menos de um quilômetro do exército confederado, cessaram seu avanço e iniciaram os preparativos para uma grande ofensiva no dia que se seguiria.


I Wish I Was In Dixie

Todos os soldados ali presentes sabiam precisamente o que se seguiria. Ou melhor, sabiam que haveria uma batalha; absolutamente não sabiam qual seria o resultado, quem venceria, se ainda estariam vivos ao fim do próximo dia ou se jamais veriam novamente seus lares, suas esposas, seus filhos, seus pais, se jamais retornariam à cidade onde haviam nascido. Tanto quanto sabiam, sua vida poderia acabar ali, seus corpos pisoteados, abandonados, esquecidos  e enterrados numa vala.

Caiu a noite e como muitas vezes ocorria em situações similares, ambos os lados começaram a se preparar não apenas logisticamente mas também psicologicamente para a batalha. As bandas de cada exército começaram a tocar hinos e marchas exaltando o patriotismo e o caráter regional de cada exército. Eles estavam tão próximos, porém, que as bandas podiam ouvir claramente umas às outras, e começaram a competir entre si. Uma banda do exército do norte, por exemplo, tocaria Yankee Doodle, ao que uma banda do sul responderia em seguida com Dixie. Isso se prolongou por vários turnos, até que em um dado momento, uma das bandas começou a tocar Home, Sweet Home.


Home, Sweet Home

Agora vejam, esta música era popular em ambos os exércitos e não exaltava nenhum dos dois lados. Ao invés disso, falava do significado do lar, da terra natal, e de estar entre  as pessoas que você ama :

Mid Pleasures and palaces though I may roam,
Be it ever so humble, there’s no place like home;
A charm from the sky seems to hallow us there,
Which, seek through the world, is never met with elsewhere. Home.

Diante disso, as bandas do lado oposto começaram a se juntar à mesma canção, e os soldados de ambos os exércitos, prestes a se assassinarem mutuamente, começaram todos a emocionadamente cantar juntos. Em pouco tempo, estavam unidos pelos exatos mesmos sentimentos de saudade, fraternidade e humanidade, pelos mesmos sentimentos de amor por tudo o que prezavam e de medo diante de tudo o que estava por vir. Uma união insustentável, numa situação insustentável, um momento surreal de encontro no qual todas as profundas raízes, crenças e desejos comuns entre ambos os lados nesta luta fratricida foram trazidos à tona. Cantando juntos no meio da noite quase puderam esquecer que o tempo passava inexoravelmente e que ao amanhecer tudo seria diferente. Ao longo da noite, pouco a pouco as bandas foram parando até reinar o silêncio.


Home, Sweet Home

No dia seguinte, milhares de soldados morreram numa que foi uma das batalhas mais sangrentas de uma guerra que ainda se prolongou por mais dois longos anos.