“Religion is based … mainly upon fear … fear of the mysterious, fear of defeat, fear of death. Fear is the parent of cruelty, and therefore it is no wonder if cruelty and religion have gone hand in hand … My own view on religion is that of Lucretius. I regard it as a disease born of fear and as a source of untold misery to the human race.”
-Bertrand Russell
Com o risco de chover no molhado e voltar a um tema requentado e excessivamente debulhado a ponto de ficar chato, voltemos ao tema do ateísmo. Ao escrever esse tipo de texto considero que estou (espero estar) prestando um serviço de utilidade pública ao me dar ao trabalho de explicar o que deveria ser abundantemente óbvio. Mas se não é óbvio para certas pessoas intelectualmente honestas e que buscam a verdade, então de fato é muito importante que alguém escreva sobre o assunto, nem que seja para dar apoio moral a quem olha para certas coisas e pensa “mas peraí, isso não faz nenhum sentido” e no entanto acaba por questionar o próprio julgamento diante da ausência de pensamento divergente e idéias discordantes no universo social no qual habita.
Enfim, a motivação desta vez é a seguinte. Volta e meia recebo mensagens de leitores afirmando que tal ou qual resposta a um de meus textos sobre ateísmo merece comentários, que apresenta argumentos sólidos, que desconstrói completamente o que eu falei e coisa e tal. Em geral eu já conheço as tais respostas, e não comentei nada porque são muito fraquinhas e não acrescentariam absolutamente nada ao debate. No entanto, como eu coloquei, talvez o que seja absolutamente óbvio para mim não o seja para alguns leitores, e existe uma pequena chance de que nem todos eles tenham se fechado hermeticamente a argumentos e a pensar criticamente sobre o assunto. Então, assim sendo, lá vai.
A primeira resposta que vou comentar está publicada aqui : Refutando um ateu
Essa resposta já começa muitíssimo mal ao anunciar que vai usar um fomato inspirado no disputatio medieval. Repito aqui o que já disse diversas vezes. Existe uma diferença brutal e grotesca entre reverenciar o intelecto de pessoas brilhantes do passado que foram capazes de ver muito adiante de seu tempo versus citá-las literalmente ou achar acriticamente que os métodos e idéias que eram revolucionariamente geniais há séculos atrás ainda o sejam pelos padrões de hoje.
Enfim, a resposta em questão se refere ao meu texto Ateísmo Para Principiantes.
A resposta começa por fazer a seguinte afirmação sobre o meu texto :
1) É possível fazer uma analogia entre Deus e o Papai Noel. São duas crenças, e de mesmo grau.
Já nesta primeira frase, a desonestidade (ou alternativamente a obtusidade) do autor fica clara. Absolutamente não afirmei isto colocado acima, e muito pelo contrário, escolhi Papai Noel ao invés de Zeus ou Horus como exemplo especificamente porque é razoavelmente incontroverso (exceto para quem é maluco ou não tem absolutamente nada melhor para fazer) que Papai Noel não exista de fato. Apesar disso, caso fosse contra a lei não acreditar em Papai Noel ou caso eu fosse regularmente atacado por questionar essa crença, discutir a existência de Papai Noel cresceria muito em relevância, e é esse tipo de reação e posição que caracteriza os ateus, não em geral um arcabouço filosófico maior em comum. Eu estou nesta parte do texto discutindo a falta de unidade ideológica entre ateus, não se a crença em deus é filosoficamente equivalente à crença em Papai Noel.
Mas então, ironicamente ao extremo, a resposta prossegue para afirmar :
NEGAÇÃO: O argüente constrói um “boneco de palha” do Deus cristão. O Deus cristão não é um mito, é o ser infinito e necessário. Não consta que Papai Noel seja um ser infinito, mas sim um ser contingente e ficcional.
Ora, santas ironias. Isso de dizer que eu estou construindo uma equivalência entre deus – e veja só, especificamente o deus cristão, que eu nem sequer menciono, afinal ateus não acreditam em NENHUM deus, não só no cristão – isso sim é um ridículo boneco de palha. Esta parte do meu texto nem sequer discute se deus existe ou não, e sim o fato de que crer ou não crer em deus não são posições sustentadas por grupos com perfis similares de unidade ideológica.
Segue-se então um amontoado de – não há como descrever de outra forma – baboseiras sobre “o ser infinito já foi demonstrado desde Parmênides” :
o Ser infinito já foi demonstrado desde Parmênides, e aqui demonstramos da nossa forma: ou há algo, ou não há nada. Se nada há, nada se questiona, logo algo há, algo é. A este algo, a esta positividade, a esta estabilidade, a metafísica chama de ser. Ou o ser é finito e contingente ou é infinito e necessário. Se é finito e contingente, houve um tempo em que nada houve. Mas do nada absoluto nada pode provir, porque nada não há, o nada não afirma nada, não tem positividade. Logo, o ser é infinito e necessário. Este ser infinito e necessário é o Deus cristão.
Este parágrafo é um amontoado de palavras em busca de um significado. Metade dos termos não têm qualquer significado minimamente rigoroso ou aplicável de qualquer forma útil, e saltos inacreditáveis são dados mesmo que aceitemos a “lógica” interna do “raciocínio”. Chegamos aqui num ponto em que, sinceramente, nem adianta explicar. Isso aí acima é um monte de besteiras. São coisas como esta que fizeram a metafísica perder sua credibilidade. Não que eu pessoalmente ache que ela não tenha importância ou lugar na filosofia ou mesmo na ciência moderna, mas isso aí é só uma chutação total sem qualquer rigor.
Vou me concentrar portanto em uma parte do argumento que é a menos delirante, embora ainda respondida de forma equivocada, que é : Como resolver o legítimo e profundo problema metafísico de que existe qualquer coisa? Por que existe algo ou invés de nada? Esse é o problema que de fato precede todos os outros e que está na base de grande parte das tentativas de construir uma teologia que parta de (ou pelo menos respeite) lógica e razão. Só que dessa questão não resolvida, vezes demais se parte então para postular alguma “causa primeira” com todo tipo de propriedades arbitrárias e que magicamente não requer ela mesma uma explicação, geralmente com pseudo-justificativas do tipo “ela sempre existiu”. Ora, se é para postular que algo sempre existiu e que por isso não precisaria de explicação (que já é evidentemente uma enrolação, mas aceitando esse argumento) então nesse caso vamos postular que o universo sempre existiu, ou que as leis da física sempre existiram, e que as leis físicas são logicamente necessárias do jeito que são, embora ainda não tenhamos entendido o motivo. Isso é muito mais metafisicamente satisfatório do que criar entidades com propriedades fantásticas que não temos nem remotamente condições de determinar ou justificar.
Enfim, a resposta parte então para as seguintes afirmações sobre o trecho seguinte do meu texto :
Proposições contidas
1) Religiosos em geral não duvidam de suas posições, acreditam estar certos.
2) Ateus, pelo contrário, são céticos sobre quase tudo. A única certeza deles é a de que Deus não existe.
3) É incontornável o fato de que alguém está certo e alguém está errado.
Mais uma vez, essas afirmações só podem ser explicadas por desonestidade ou obtusidade. Em primeiro lugar, a afirmação (1) não foi originalmente feita por mim, e sim precisamente pelo texto que estou criticando. Mas isso colocado, eu de fato acho que muitos religiosos parecem – não raro anunciam abertamente – assumir uma posição perfeitamente acrítica e dogmática diante de suas crenças. Mas seja como for, e seja quão críticos e ponderados alguns religiosos sejam antes de chegarem às suas conclusões, grande parte deles – e isso depende em parte da religião específica – de fato aceita argumentos baseados em autoridade, tradição ou revelação como perfeitamente válidos.
Então eu cuidadosamente passei a descrever que isso distingue a mim, eu, pessoalmente, do religioso padrão. Note-se, eu *não* acho, nem defendi, que a minha posição pessoal seja representativa de todos os ateus ou mesmo dos ateus em geral. Mutíssimo pelo contrário; eu repetidamente argumento que não existe posição filosófica ou ideológica unificada entre os ateus, e que essencialmente a única coisa que os *une* numa categoria – absolutamente não a única coisa em que acreditam – é não acreditarem em deus. Então descrever o que eu disse como sendo o enunciado em (2) é uma falsificação total; não só não é o que eu disse como é oposto ao que eu disse em vários aspectos. Se o autor realmente depreendeu honestamente algo como o que está em (2) do meu texto isso é algo que beira o analfabetismo funcional e é risível (ou conversamente altamente apropriado) que vá querer então construir um debate escolástico (entre si mesmo e um exército de bonecos de palha). No texto original, eu sublinho veementemente a questão de que nem todos os ateus rejeitam a idéia de deus pelos mesmos motivos, e que variam enormemente em suas crenças e ideologias. Esse é um dos principais temas do texto inteiro. Eu não acho nem afirmei que a maior parte dos ateus seja “cetico sobre quase tudo”, e aliás nem que *eu mesmo* seja cético sobre quase tudo – o que eu afirmei foi o que o tipo de argumento que eu aceito como legítimo exclui vários dos tipos de argumento que o religioso médio aceita como legítimo. Mas eu de fato aceito muitos argumentos concretos como legítimos e em muitos fatos como solidamente estabelecidos (o que não quer dizer que não possam ser legitimamente questionados, apenas que é preciso que sejam apresentados contra-argumentos de força suficiente). Apenas não aceito que crença em fatos deva ser decidida com base em tradição, revelação ou autoridade, como ostensivamente grande parte dos religiosos abertamente faz.
Em resumo, é simplesmente ridícula a afirmação de que eu teria dito, seja sobre “os ateus”, seja sobre mim mesmo, que “a única certeza deles é de que deus não existe”. Isso não tem absolutamente nada a ver com qualquer coisa que eu tenha dito. Muitos ateus inclusive são ridiculamente pouco críticos, e divergem dos religiosos apenas por acreditarem em autoridades (ou fantasias) diferentes. O autor da resposta segue porém não só partindo dessas premissas absolutamente absurdas sobre o que eu teria dito como procede mais uma vez a construir argumentos tão completamente delirantes que não há nem o que comentar. Eu posso me munir de paciência e me aventurar a refutar afirmaçoes como “o Sol gira em torno da Terra”, que estão completamente erradas, mas que pelo menos fazem sentido e nas quais há concebivelmente motivos para acreditar. Mas não há paciência que se justifique para afirmações do tipo “já que o Sol gira em torno da Terra seu magnetismo animal aquece a aura da atmosfera terreste e provoca permutações astrais”. É esse o nível do discurso com o qual nos defrontamos aqui. Não existe sequer o que refutar. São Tomás de Aquino provavelmente teria vergonha de se ver citado num contexto como esse, e *certamente* retiraria grandes partes das coisas que escreveu se pudesse ter acesso à lógica, à filosofia e a ciencia modernas. Argumentar no século 21 com base nas categorias metafísicas e na estrutura lógica que prevaleciam na escolástica medieval é RIDÍCULO.
Sobre a proposição (3), eu *de fato* a coloco – é incontornável o fato de que alguém está certo e alguém está errado. E tanto quanto é possível decodificar do festival de confusão mental no trecho da resposta que se segue, o autor afirma exatamente o mesmo que eu, embora por vias altamente tortuosas – que é inescapável que exista uma verdade necessária, e que se discordamos sobre características irrenconciliáveis da sua natureza última, um dos dois lados está inescapavalmente errado. Agora, repetidamente dizer “e essa verdade necessária é o deus cristão” é simplesmente patético, dado que “o deus cristão” envolve um grande conjunto de características que de forma alguma decorrem automaticamente do simples princípio metafísico de que é preciso haver no fundamento de tudo uma verdade necessária. Essa “verdade necessária” poderia envolver um deus, três deuses, infinitos deuses, ou zero deuses. Minha posição pessoal é que tudo indica que envolva zero deuses, não que eu negue o princípio metafísico de que a verdade, em algum nível de abstração, é necessária.
Do mesmo trecho do meu texto são “extraídas” as seguintes proposições :
4) Ateus em geral fundamentam seus argumentos; religiosos em geral não.
5) Religiosos em geral aceitam argumentos de autoridade, tradição e revelação, enquanto um ateu os rechaça.
6) A fé não é uma boa base para um sistema de crenças.
Novamente, o autor da reposta confunde completamente em (4) o que eu afirmo sobre *mim* como sendo algo que eu estaria afirmando sobre todos os ateus, algo que eu digo com todas as palavras que não é o caso. Mas mesmo tomando como descrição do que teria dito sobre mim, é completamente absurda. Eu não disse que os religiosos não fundamentam seus argumentos, apenas que quase a totalidade deles aceita como argumentos válidos categorias de argumentos que eu absolutamente não aceito como tal.
E sim, a primeira parte de (5) é não só ontensivamente e admitidamente verdadeira como em grande parte das religiões, uma exigência formal. Quando a isso ser diferente para os ateus em geral, mais uma vez – eu *não* acho que todos os ateus pensem igual a mim, e isso é um dos principais pontos do meu texto. Inúmeros ateus estão perfeitamente felizes em aceitar autoridade, tradição ou mesmo revelação, apenas divergem dos religiosos sobre quais autoridades, tradições ou revelações consideram legítimas.
Sobre (6), o único ponto sobre o qual o autor realmente diz algo novo, finalmente – embora mais uma vez de forma convoluta – se coloca algo que parece com um argumento que vale a pena considerar, que é o seguinte : a fé é um elemento indispensável em qualquer sistema de crenças. Esta não é uma afirmação absurda, mas sobre ela eu tenho duas observações.
A primeira observação é que apesar de não ser absurda, ela é falsa. É perfeitamente possível produzir todos tipo de afirmações cuja verdade é logicamente necessária sem que isso envolva qualquer tipo de fé. É perfeitamente possível ter crenças que não dependam de qualquer suposição arbitrária. Certo, é verdade que derivações lógicas partem de conjuntos de axiomas. Porém não há nada de errado com o conjunto vazio como ponto de partida, e é simplesmente errado concluir que dele nada podemos derivar. É verdade que deste ponto de partida somente poderemos construir teorias tautologicamente equivalentes ao conjunto vazio, mas se vamos argumentar que nosso universo está fundamentado em última análise em verdades logicamente necessárias, nosso objetivo último deveria ser precisamente explicar como é possível derivar o universo inteiro do conjunto vazio – um projeto altamente ambicioso que talvez nunca seja possível realizar completamente. Mas não, a fé não é necessária para “qualquer” sistema de crenças.
A segunda observação é que mesmo que aceitemos que nem todo sistema de crenças requeira fé, algúem poderia observar que quando lidando com conhecimento incompleto e limitado, como é a condição humana, talvez necessitemos de dar alguns saltos de fé para podermos tomar decisões úteis. A fé seria então necessária para uma grande parte dos sistemas de crenças com aplicabilidade prática. Agora veja, o fato de que é preciso por vezes supor como verdade algo que não conseguimos estabelecer como logicamente necessário não significa então que vamos sair acreditando em qualquer coisa, ou que todos os sistemas para escolher crenças sejam equivalentes. Certo, é claro que é possível que todas as nossas percepções sejam falsas, que seja tudo um sonho, uma simulação de computador, um delírio. Do ponto de vista *estritamente* lógico, o fato de que o sol nasceu rigorosamente todos os dias desde que nascemos não torna sequer mais provável que ele vá nascer amanhã. Mas para ter uma vida que faça sentido, e tomar alguma decisão ao invés de ficar atolado num pântano metafísico, você tem que escolher acreditar em alguma coisa – por exemplo que o Sol vai de fato nascer de novo amanhã. Eu aceito este argumento. Mas não decorre daí que “então o sistema de crenças X está certo”, aliás muito pelo contrário – o que se está argumentando é precisamente que nenhum sistema de crenças desse tipo – que exija saltos de fé – é logicamente justificável.
A questão é precisamente como escolher entre sistemas de crenças que, a rigor, não podemos justificar logicamente, pelo menos não de forma necessária. E é aí que entra o princípio científico da navalha de Occam – não vamos sair fazendo suposições a não ser que elas acrescentem poder explicativo ao modelo que estamos construindo para buscar explicar os fatos que estamos admitindo como verdadeiros. Os modelos científicos, porém, são de fato admitidamente provisórios e injustificáveis como logicamente necessários. Isso não significa porém que sejam arbitrários. Tomar decisões lógicas com informações incompletas não garante acertos mas não é equivalente a escolher aleatoriamente. Agora, de um ponto de vista mais prático, a principal justificativa para a ciência é que ela FUNCIONA. Como já dizia Einstein, a coisa mais impressionante, maravilhosa e surpreendente sobre o universo é que é possivel entendê-lo. Enquanto a ciência nos deu reatores nucleares, naves espaciais e computadores, os modelos de como a realidade funciona baseados em teologia e similares não foram capazes de concretamente explicar, prever ou esclarecer absolutamente NADA, em nenhum nível, físico, metafísico, psicológico ou de nenhuma outra ordem. A realidade simplesmente NÃO FUNCIONA do jeito que as investigações teológicas prescrevem, descrevem ou prevêem e isso ao longo da história é repetidamente e facilmente observável. A principal função cumprida pelas crenças religiosas é criar um falso, ilusório e pernicioso conforto diante das questões para as quais se formos honestos não temos resposta satisfatória.
“What men really want is not knowledge but certainty.”
-Bertrand Russell
Agora, novamente, eu admito que do ponto de vista estritamente lógico é perfeitamente possível que, digamos, quem esteja certo mesmo seja a Igreja da Cientologia e Xenu tenha explodido bilhões de pessoas com bombas atômicas. Mas isso para mim é tão realista e verossímil quanto Jesus ressuscitando pessoas ou nossa” alma” voltando encarnada num sapo. Não existe absolutamente qualquer evidência a favor de nenhuma dessas coisas, e entre algo que repetidamente faz previsões extraordinariamente confiáveis, mesmo que essa previsões tenham em parte sido obtidas por tentativa e erro e não por deducão rigorosa, versus um outro sistema de crenças que faz todo tipo de afirmações delirantes sobre a realidade que nunca se observam em lugar algum, eu sinto muito, eu fico com o primeiro. Inclusive diante da impossibilidade de deduzir logicamente como o universo funciona, a grande força da ciência é justamente ter a humildade de admiti-lo e estar disposta a constantemente mudar de idéia quando suas previsões falham – que é muitíssimo mais do que se pode dizer da quase totalidade das crenças religiosas. Então pode ser o caso de que talvez amanhã toda a ciência como atualmente consta dos jornais acadêmicos pare completamente de funcionar, e comece a chover sapos e anjos desçam do céu, mas nesse caso os cientistas serão metodologicamente obrigados a reverem seus conceitos sobre como o universo funciona. Novamente, ao contrário de grande parte dos religiosos, que mesmo diante de montanhas de evidências, aferram-se a crenças imutáveis e inamomíveis usando (quando se dispõem a tanto) de argumentos como esse de que “a fé é um elemento incortornável de qualquer sistema de crenças”. Bolas, mesmo quando é, não significa então que seja igualmente razoável sair acreditando em qualquer coisa.
“The trouble with the world is that the stupid are cocksure and the intelligent are full of doubt.”
-Bertrand Russell
O que nos leva finalmente de volta à minha afirmação original : a fé nao é uma boa base para um sistema de crenças. Se formos chamar de fé qualquer crença que não pudermos estabelecer como verdade logicamente necessária, então de fato em várias circunstâncias teremos que sustentar crenças deste tipo se não quisermos ficar paralisados num atoleiro existencial. Mas isso não significa que a fé seja necessariamente a *base* do meu sistema de crenças, não no sentido de que seja o fator preponderante ou mais significativo. Se alguém for argumentar que é a fé que torna meu sistema de crenças possível, e por isso é sim a base dele, eu observo que não, ela *não* torna meu sistema de crenças logicamente justificável; de fato, nada pode fazê-lo, não no atual estágio em que estamos no entendimento da realidade. A fé é apenas um quebra-galho, um tapa-buracos para o fato de que eu não sei tudo. Mas certas suposições se revelam mais úteis e mais esclarecedoras e com maior poder preditivo do que outras, e eu acho desejável preferir essas suposições às outras. Então, nesse sentido, as suposições são completamente arbitrárias enquanto as conclusões não são, e é pelas conclusões que eu julgo a qualidade das suposições. Os religiosos tendem a inverter isso completamente e insistir em suposições engessadas e imutáveis, tomando portanto a fé como base de seus sistemas de crenças, ao invés de fazerem exatamente o oposto – escolher as suposições não justificáveis que vão fazer com base no quanto as suas conseqüências parecem ser compatíveis com a realidade de fato observada.
Finalmente, o autor “extrai” do mesmo trecho do meu texto as seguinte afirmações :
7) Acreditar em Deus é uma posição circunstancial, não metodológica ou a priori.
8 ) Para a crença em Deus se justificar, é necessária:a) a comprovação empírica de sua existência.b) uma definição que faça sentido e que apresente evidências
9) Tudo o que não possui comprovação empírica é dotado de um aspeco mitológico.
Quanto a (7), isso não é algo “refutável”; eu estou descrevendo a minha posição pessoal.
Quanto a (8), sim, é claro que é preciso haver uma definição que faça sentido. Não dá para debater se deus existe ou não sem que se apresente uma descrição minimamente consistente sobre de quê estamos falando, algo que a maior parte dos religiosos falha completamente em fazer. Note que se formos levar a sério o fato de que o autor afirma ter “refutado” (8), ele quer então que aceitemos a existência de deus sem qualquer evidência empírica (“comprovação empírica” é uma besteira) e também sem uma definição rigorosa seguida de argumentos sólidos. E a rigor, ele está certo – a mera crença em deus não requer qualquer uma dessas coisas, assim como não o requer a crença em gnomos habitando o centro da Terra. A crença em coisas aleatórias requer apenas a vontade de acreditar.
“I wish to propose for the reader’s favourable consideration a doctrine which may, I fear, appear wildly paradoxical and subversive. The doctrine in question is this: that it is undesirable to believe a proposition when there is no ground whatever for supposing it true.”
-Bertrand Russell
Quanto a (9), isso (como inúmeras outras afirmações) não tem absolutamente nada a ver com qualquer coisa que eu tenha dito.
Enfim, eu poderia prosseguir discutindo ponto por ponto o resto do texto, mas ele é completamente desprovido de conteúdo, de mérito, ou mesmo de evidências de ter sido capaz de sequer entender o que eu disse no meu texto original. Está encharcado de confusão mental e de erros de lógica básica, e é uma perda total do meu tempo ficar “refutando” essa extensa besteirada. Inclusive estou cogitando seriamente parar de fazê-lo até mesmo parcialmente no futuro; qualquer ponto que eu poderia querer ilustrar ao dar corda para esse tipo de coisa já foi extensamente exemplificado no passado, e quem não quiser ver continuará mesmo cego. Infelizmente não tenho qualquer dúvida de que isso será interpretado como “oh, se você não está respondendo é porque ficou sem tem o que dizer / não tem resposta / foram apresentados argumentos irrefutáveis”. Longe disso, longe disso. É apenas que esse tipo de texto longe de serem “refutações muito bem estruturadas”, é só um festival de sandices.
Entre outros exemplos que eu poderia citar : eu escrevo que “se a ciência universal fosse atingida, ela nos diria se deus existe ou não” e o sujeito escreve que eu teria dito que “sem a ciência universal, é impossivel afirmar se deus existe ou não”. Eu digo A => B e o sujeito afirma que eu estou dizendo que ~A => ~B, um erro absolutamente básico de lógica que não se admitiria num estudante iniciante. E essa pessoa quer escrever uma refutação nos moldes de um debate escolástico!
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Uma outra resposta um pouco menos primária pode ser encontrada aqui : O empirismo ateísta na corda bamba
Digo um pouco, mas não muito. Em primeiro lugar, o autor parte já de saída do equivocado princípio de que eu só aceitaria argumentos baseados em observacões sensíveis, e não em princípios lógicos ou necessidades metafísicas. Ora, não é que eu não aceite tais argumentos em princípio – apenas eles não existem. E não me venham com São Tomás de Aquino, Santo Anselmo e outras coisas desse tipo porque o que eles nos dão em termos de argumentos ontológicos é simplesmente ridículo e absolutamente não estabelece necessidade lógica alguma de um deus nos moldes cristãos. Existe uma distância brutal entre argumentar pela necessidade de uma “causa primeira” e dizer “então taí, é o deus cristão”. Chamar as verdades que são logicamente necessárias de “deus cristão” não lhes atribui magicamente nenhuma das inúmeras outras características sustentadas pela teologia cristã, nem exime o autor de justificar tais características. Mas ok, pinçando como pinçou o autor uma afirmação completamente fora de contexto, não é supreendente que sua interpretação esteja facilmente sujeita a distorções.
Mas daí ele passa então a fazer outras afirmações mais genéricas que não têm diretamente a ver comigo, como por exemplo de que “Hoje, o grande inimigo do ateísmo é a ciência mais atual.” Er, não, não é, e no caminho para buscar afirmá-lo o autor faz várias afirmações altamente impróprias. Para começar, a ciencia clássica em si mesma absolutamente não é universalmente baseada no “empirismo”. Muito antes de se falar em teoria da relatividade ou em mecânica quântica, a posição filosófica de positivistas e assemelhados, popular que tenha ficado em um dado momento, sempre foi apenas uma facção entre outras e absolutamente não a posição unânime na comunidade científica.
Adicionalmente, o ateísmo absolutamente também não tem como fundamento filosófico essencial nenhuma reverência ao empirismo. Grande parte – diria eu todos os sérios – pensadores ateus aceitariam prontamente argumentos lógicos ou metafísicos a favor da existência de deus caso lhes fosse apresentado um que considerassem válido. Evidentemente diante disso a atitude científica seria verificar que as conseqüências necessárias desses argumentos de fato se observam (e se não fossem observadas seria razoável concluir que existe um equívoco em algum lugar), mas tais argumentos não seriam rejeitados por princípio, só por não serem “evidências empíricas”. Apenas eles não existem. Claro, se apesar de não haver um argumento lógico sólido desde primeiros princípios alguma observação prática revolucionária fosse feita – e aí entra a parte do meu texto que foi citada – então mesmo assim isso seria um motivo forte para rever a posição ateísta. Mas absolutamente não é o caso de que tais observações sejam necessárias como pré-requisito para a idéia ser considerada seriamente.
Além disso, o ateísmo também não está filosoficamente fundado ou associado nenhuma forma à mecânica clássica como quer fazer crer o autor do texto. Para começar, se quisermos construir o argumento de que a ciência avançada caminha no sentido de desvendar um mundo real que está vastamente distante dos sentidos e que absolutamente não é acessível, mesmo com muito boa vontade, diretamente através de observações “empíricas”, eu não só *concordo* com isso, como não é preciso chegar à mecânica quântica para encontrar exemplos. A presença de hélio no sol, a existência de átomos com núcleos e elétrons, a verdadeira natureza das estrelas como objetos concretos brilhantes a grandes distâncias, a evolução das espécies, a gravitação universal, a verdadeira natureza da luz como oscilação de campos elétricos e magnéticos, tudo isso foi atingido pela mecânica clássica e está muito, muito distante do que se pode chamar exatamente de “empírico”. Claro, observações empíricas foram necessárias para se chegar às teorias correspondentes, mas as teorias vastamente superam as observações e falam sobre a estrutura do real de formas que transcendem imensamente o que é diretamente observável. O que possivelmente a mecânica quântica traz de filosoficamente novo é embaralhar significativamente o conceito de nexo causal, mas isso de forma alguma é impeditivo seja para o empirismo seja para o ateísmo.
Enfim, é simplesmente falso que “um dos principais argumentos do ateísmo” seja o empirismo, ou que a transição de ciência clássica para ciência moderna tenha causado (ou sido forçada por) um abandono do empirisimo, ou que a mecânica quântica ou a ciência moderna de modo geral apresente qualquer problema para o ateísmo. Inclusive é muito irônico e até constrangedor que o autor venha acusar os ATEUS de antropocentrismo enquanto a maior parte das religiões é que defende que o ser humano seja filosoficamente, cosmicamente, metafisicamente algo de profunda relevância para o universo, quiçá o propósito mesmo da sua existência.
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Para recompensar os leitores que tiveram a paciência de chegar até aqui, alguns links divertidos :
Things Atheist Didn’t Do
Still More Things Atheists Didn’t Do
Things Atheists Didn’t Do In 2009 (Part 1)
Things Atheists Didn’t Do In 2009 (Part 2)