Homens e Mulheres

December 19th, 2009 by Sergio de Biasi

IMG_7279Banca de jornal politicamente incorreta no JFK

Toda vez que vou ao terminal 8 do JFK sinto vontade de escrever sobre uma banca de jornal que lá existe e que inocentemente divide suas revistas em “men’s interests” e “women’s interests”. Eis que finalmente o faço, e para colocar o leitor a par do que estou falando, convido a um exame mais detido da foto acima (clique aqui para uma versão em alta resolução).

Antes de qualquer elaboração crítica, tomada de posição ideológica, desconstrução sociológica ou análise semiótica, comecemos por simplesmente examinar tão objetivamente quanto possível o que ali está. Quais são os assuntos considerados “interesses de homem” e quais são os considerados “interesses de mulher”?

Em ordem de prioridade, interesses de homem, como percebidos pelo gerente da banca :

  • Mulher pelada pseudo-chique
  • Mulher pelada nao tão chique
  • Mais mulher pelada que nunca é demais
  • Praia
  • Futebol
  • Pescar
  • Ficar em forma e com saúde
  • Ficar em forma e musculoso. Tenha ótimo sexo esta noite.
  • Finanças
  • Ser preto
  • Guerra
  • Terrorismo
  • Finanças e Política Internacional (Brasil na capa!)
  • Crise econômica
  • Baseball
  • Reflexões sociológico-existenciais
  • Finanças e crise econômica
  • Educação superior
  • Finanças
  • Mais finanças
  • Ainda mais finanças
  • Reflexões sociológico-existenciais (de novo)
  • Carros caros
  • Ficar em forma
  • Carros esporte
  • Turismo
  • Ir pro meio do mato com uma mochila e um canivete
  • Golfe
  • Mais golfe
  • Carros inacreditáveis

Contraste-se com isso, em ordem de prioridade, interesses de mulher, como percebidos pelo gerente da banca :

  • Sapatos. Aparência. Onde comprar coisas com desconto.
  • Decoração e como preparar um jantar ou dar uma festa.
  • Receitas culinárias  e onde comprar coisas com desconto.
  • Moda.
  • “Saúde” (entre aspas porque, convenhamos, “como consertar um metabolismo quebrado?”)
  • Ficar em forma, emagrecer.
  • Saúde, emagrecer, emagrecer, emagrecer!
  • Emagrecer. Comida. Emagrecer. Comida.
  • Casar. Ser noiva. Vestido de noiva. Buquê de noiva. Noivas.
  • Fofocas. Meu casamento de sonhos.
  • Como cuidar da casa. Como compras coisas com desconto.
  • Ser preta.
  • Ser preta.
  • O que mulheres casadas felizes não devem fazer. Como cuidar da sua aparência seja qual for sua idade.
  • Fofocas sobre pessoas famosas.
  • Mais fofocas sobre pessoas famosas.
  • Ficar em forma, emagrecer (de novo).
  • Ainda mais fofocas sobre pessoas famosas.
  • Ainda mais fofocas sobre pessoas famosas que nunca é demais.
  • Aparência. Moda. “Sexo e amor”. Como parece mais sexy.
  • Sapatos. Bolsas. Moda. Aparência.
  • Bolsas baratas. Aparência. “Como mudar sua vida.”
  • Aparência. Como cuidar da sua beleza sem gastar dinheiro.
  • Como cuidas da sua pele. Como cuidar da sua aparência sem gastar dinheiro.  Como fazer seu cabelo parecer sexy.
  • Produtos de beleza. Cabelo.
  • Beleza. Ficar em forma.
  • Ficar em forma, emagrecer.
  • Aparência.
  • Ficar em forma. Emagrecer. Dieta para melhorar sua vida sexual.

Certo. Agora, vamos pensar sobre o que isso significa.

Para começar, eu gostaria de observar que com alta probabilidade o gerente da banca não tem qualquer intenção ou mesmo interesse em usar de sua classificação das revistas como instrumento de propaganda, lavagem cerebral ou opressão ideológica. Me parece bem mais razoável supor que quase – ou totalmente – ingenuamente ele buscava facilitar a homens e mulheres mais rapidamente encontrarem o que procuram. Então desliguemos a hipocrisia e os muxoxos afetando indignação e consideremos se tem algo de realmente incorreto com essa avaliação, ou se o que realmente nos incomoda – para quem essa foto incomoda – é essa de fato ser a realidade.

Sinceramente, quais as chances de um homem comprar uma Marie Claire? E quais as chances de uma mulher comprar uma Golf Digest?

Note-se, a disparidade não termina na seleção feita pelo gerente da banca. Os editores das revistas também sabem qual e seu público e selecionam o conteúdo de acordo. Então ao olharmos para essa cena o que realmente nos incomoda é o desconfortável abismo que existe entre os desejos, aspirações, sonhos e objetivos de homens e mulheres. Queríamos que isso fosse diferente, que não fosse assim, que pudéssemos olhar juntos na mesma direção, porque de certa forma queremos coisas um do outro. Queremos que nossos desejos sejam complementares ou pelo menos compatíveis. Mas ao mesmo tempo em que queremos coisas um do outro, as coisas que tentamos oferecer em troca não são as que o outro quer. É como entrar no açogue e tentar comprar um quilo de carne pagando com um saco de arruelas enferrujadas. E então o açogueiro responder que não tem qualquer interesse em arruelas enferrujadas e que aliás a carne não está à venda mas se você lhe der seu braço direito ele te fornecerá fotos de cachorros fofinhos. E então você dizer “Não, não, não tenho qualquer interesse em foto de cachorros fofinhos, me dê então aqueles pregos tortos ali no canto.” O diálogo é surreal e bizarro porque os interesses e necessidades de um são completamente alienígenas para o outro. As coisas que o outro quer de nós, não é que não esteja em nosso poder oferecer, mas nos confunde que o outro dê tanto importância ao que consideramos banal, e diminuta importância ao que consideramos essencial.

Entre várias observações que eu poderia fazer sobre as capas das revistas, note-se o seguinte padrão nos interesses listados acima. As mulheres fazem um esforço enorme para serem desejadas, para parecerem sexy, para cuidarem de sua aparência, para serem socialmente aptas, para se casarem, para basicamente fazerem tudo que possivelmente terá como resultado previsível… ter um homem, provavelmente vários, querendo muito ter sexo com elas. Por outro lado e paradoxalmente, não demonstram nem remotamente a mesma quantidade de disposição a (ou evidência de) reciprocar esse interesse e desejo. Então elas gastam um esforço enorme e grande parte de seu tempo, dinheiro e preocupação em serem atraentes, e em grande parte e primordialmente através de sua aparência… quando nem sequer está listado entre seus interesses e considerações prioritárias efetivamente ter sexo. Por que alguém faria isso tudo, se não for para efetivamente ter sexo? O leitor pode tirar suas próprias conclusões.

Agora, antes que me acusem de ser sexista, vejamos o lado masculino. Os homens, por outro lado, querem gastar quase zero de tempo e esforço em cuidar de sua aparência, em serem socialmente aptos, em serem atraentes, em ficar tentando entender o que poderia tornar sua imagem mais sexy. E ao mesmo tempo, seu primeiro e mais prioritário interesse é ter acesso a sexo. Agora me digam, como e em que termos pretendem ter acesso a sexo com essa atitude? O leitor pode tirar suas próprias conclusões.

Então em resumo, na capa de uma revista feminina a manchete é algo do tipo “como parecer sexy”, isto é, como fazer com que um homem queira ter sexo com você (mas de fato ter sexo é uma consideração decididamente secundária, e possivelmente nem sequer o ponto ou objetivo). Enquanto isso, na capa de uma revista masculina a manchete é algo (literalmente) do tipo “como ter sexo hoje, esta noite”, isto é, como fazer para de fato ter sexo com uma mulher (mas ela sequer estar atraída por você é uma consideração decididamente secundária, e possivelmente nem sequer o ponto ou objetivo). A diferença de paradigma é brutal. Mas em comum há que ambas as estratégias parecem absolutamente alucinadas, incompreensíveis e revoltantemente autocentradas.

Aliás, nas capas de revistas “para mulheres” há… mulheres. E nas capas de revistas para homens há… homens. Quer dizer, com a notável exceção das revistas eróticas para homens, as quais são tão socialmente inaceitáveis que precisam ser escondidas… embora figurem antes de todos os outros interesses. Então é assim, as mulheres não têm nenhum interesse no que os homens pensam ou em fazê-los felizes… mas querem ser desejadas por eles. E os homens não têm nenhum interesse no que as mulheres pensam ou em fazê-las felizes… mas querem ter acesso sexual a elas. Note-se, a maior parte dos artigos e manchetes, para ambos os sexos, não são do tipo “como posso fazer uma mulher feliz” ou  “como posso fazer um homem feliz” e sim universalmente “como faço para conseguir o que eu quero”. Então embora ambos os gêneros tendam a ter em suas mãos as ferramentas para atender às necessidades biológicas, psicológicas, emocionais e afetivas um do outro, esse enorme potencial de satisfação mútua permanece em grande parte inexplorado, fechado a cadeado por uma atitude egoísta, perdedora e miópica de “apenas as minhas necessidade importam”.

Evidentemente estou aqui falando de tendências e médias, e pessoas reais desviam disso em diversos graus.

Mas como tendência, o homem médio provê serviços afetivos absolutamente medíocres às suas parceiras. Age de forma quase autista e não faz qualquer esboço de tentativa de aprender como agradá-las emocionalmente, ou mesmo de entender quais são as suas necessidades; em geral, inclusive, legítimas e profundas necessidades psicológicas de suas parceiras são tratadas como inconvenientes a serem tanto quanto possível contornados ou ignorados.

Da mesma forma, a mulher média provê serviços sexuais absolutamente medíocres aos seus parceiros. Não faz qualquer esboço de tentativa de aprender como agradá-lo na cama, ou mesmo de entender quais são as suas necessidades; em geral, inclusive, legítimas e profundas necessidades psicológicas de seus parceiros são tratadas como inconvenientes a serem tanto quanto possível contornados ou ignorados.

Triste forma dos gêneros se relacionarem, um com a chave da felicidade do outro na mão mas incapaz de libertá-la, enquanto tenta agressivamente tomá-la das mãos do outro.

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Um comentário adicional que eu gostaria de fazer é como a mulher média não ter a menor noção, não tem a mais remota idéia, não tem a sombra de um vestígio de um vapor de um sopro de uma pista de quão diferente é sua experiência social da de um homem.

A mulher média, bastando para isso não ser grotescamente repulsiva, rotineiramente desperta o interesse sexual / emocional /afetivo / psicológico de uma boa fração dos homens que encontra. Se for um pouco acima da média, de quase todos. Mas para despertar de pelo menos alguns, na maior parte dos casos, basta exclusivamente ser mulher. Basta ser mulher e entrar num ambiente, e pelo menos alguns homens estarão instantaneamente receptivos e interessados. Na verdade não precisa sequer entrar num ambiente – basta ter nome de mulher e já passa a usufruir imediatamente de suas arquetípicas prerrogativas femininas ao interagir com homens, mesmo que virtualmente. A mulher média conhece – mesmo que não se dê conta do quanto – o sentimento de ser rotineiramentem, diariamente, gratuitamente desejada. Talvez ela não tenha na maioria dos casos qualquer interesse recíproco, e talvez em casos acima da média isso se torne até mesmo inconveniente. Mas o fato é que a mulher média vive num constante ruído de fundo de ser desejada como mulher. Simplesmente está lá, e é para ela uma parte tão integral do universo que nem se dá mais atenção, ou nunca chegou sequer a ser explicitamente percebido como algo que poderia não estar lá.

Já para um homem médio, ser desejado é uma experiência longe de cotidiana, trivial ou descartável. Pouquíssimos são os homens que ocupam a posição de serem automaticamente, gratuitamente, diariamente desejados ao interagirem socialmente. A mulher média provavelmente ficaria muito chocada e surpresa se pudesse ser colocada no papel social de um homem e então experimentar diretamente quão radicalmente diversa é a posição masculina. A quantidade de frustração sexual / social / afetiva que o homem médio tem que aprender a administrar é muitíssimo além do que a quase totalidade das mulheres remotamente pode imaginar.

O efeito que essa disparidade de experiências tem sobre a psique de ambos os sexos, assim como sobre a interação entre eles, é imenso.

Cripto-totalitarismo

December 16th, 2009 by Sergio de Biasi

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Placa de trânsito nos EUA
Segunda feira, 6 da tarde, quero descarregar meu caminhão.
Posso estacionar aqui?

cript(o)-
[Do grego kryptós]
1.=’escondido’, ‘oculto’, ‘obscuro’.

Quando somos oprimidos por um sistema que nos impõe regras cristalinamente draconicanas como “está imposto toque de recolher, quem for encontrado fora de sua residência após as 6 da tarde será sumariamente executado”, fica claro (1) que algo opressivo está ocorrendo para começar e (2) como articular de que opressão gostaríamos de nos libertar.

As pessoas porém não gostam muito de serem oprimidas, e tendem a reagir. Tudo bem, sistemas totalitários são baseados na força e não precisam realmente de justificativas, mas mesmo que estejamos no comando de um sistema convictamente e desavergonhadamente totalitário, existem formas mais fáceis e mais difíceis de fazer as coisas, e bem, nem que seja por motivos puramente pragmáticos, é em geral conveniente fazer da forma mais fácil. Afinal de contas, mesmo que não haja escrúpulos em usar de coerção, continua custando recursos. Enfim, balas e soldados custam dinheiro. E se não estamos num sistema desavergonhadamente totalitário, por mais fortes motivos ainda precisamos de usar subterfúgios quando queremos assim mesmo adotar políticas opressivas.

Assim sendo, uma das providências mais fundamentais que todos os sistemas com tendências totalitárias buscam tomar é transformar a percepção da opressão de forma que ela passe despercebida ou pareça justificada. Isso pode ocorrer de muitas formas, desde sugestões sutis e subliminares, até a mais descarada manipulação da linguagem, como repetir ad nauseam slogans do tipo “Liberdade é Servidão” ou resolver chamar empregos sem carteira assinada de trabalho escravo. Outro exemplo de como pode ocorrer é inundando o imaginário popular com a noção de que os atos opressivos são na verdade absolutamente essenciais e inevitáveis para prevenir alguma grande catástrofe, repelir algum inimigo perigosíssimo, ou atingir algum objetivo promovido como tão fantasticamente belo e auto-evidentemente desejável que o próprio ato que questionar os meios usados para atingi-lo é suspeito. Uma outra forma, particularmente eficaz e cruel, é promover a introjeção, pelo grupo oprimido, da sua identidade como inferior, e merecedor de opressão. Os oprimidos, carregados de culpa e eviscerados de sua auto-estima, passam a acreditar que são mesmo uma droga e assim docilmente ou mesmo avidamente aceitam a opressão, chegando em certos casos mesmo a idolatrar e idealizar seus opressores.

Mas existem outras formas de implementar políticas extremamente opressivas que são especialmente úteis em regimes políticos nos quais não se pode ser escancaradamente totalitário. Essas se baseiam em alterar a percepção do ato opressivo não através de propaganda ou atuando no campo da retórica como nos casos acima, mas através de uma reformulação do ato em si mesmo, dando a ele uma forma oculta e críptica. A estas formas chamarei de cripto-totalitarismo. Elas consistem em promover políticas que têm exatamente (ou até piores) efeitos que a opressão direta, mas que são sentidos de forma indireta e convoluta, e que mesmo quando se percebe que algum tipo de opressão está ocorrendo, pode não ser imediatamente óbvio a quem responsabilizar ou o que precisa ser mudado. Adicionalmente, pela sua própria natureza, tal estratégia minimiza a necessidade de dispender esforços num discurso que mascare a natureza opressiva do ato. Pelo contrário, tal discurso em geral é até contraproducente posto que o truque de prestidigitação consiste precisamente em a opressão ocorrer de uma forma tão obscura que passe desapercebida; melhor não chamar a atenção para que o ato sequer possa ser interpretado como opressivo. Tentar justificá-lo somente levantará a questão de sequer haver algo que precise ser justificado.

Uma forma de cripto-totalitarismo é tomar medidas cujas conseqüências lógicas inevitáveis são opressivas mas não são imediatamente óbvias.

Um exemplo clássico é o seguinte. Todo governo historicamente relevante até hoje se financiou direta ou indiretamente através do confisco de recursos dos seus governados / súditos sob a forma de impostos. Suponhamos que um governo supostamente democrático / representativo queira confiscar uma porção ainda maior dos recursos da população sob sua influência / autoridade, mas que a receptividade a isso seja (compreensivelmente) baixa ou inexistente. Suponhamos que mesmo que o tal governo pudesse aprovar uma medida desse tipo, não deseje passar pelo desgaste político e de popularidade em fazê-lo. O que historicamente muitos governos fazem nesse caso? Ora, é fácil. Imprimem mais dinheiro. Note, para que isso sequer seja possível, é necessário já termos chegado num estágio de sofisticação (ou diriam alguns desvirtuação) da economia tal que 1) as transações econômicas não sejam mais realizadas utilizando diretamente commodities de valor mais ou menos universal e 2) a emissão de dinheiro nem sequer em tese esteja limitada, lastreada ou associada a algum tipo de recurso ou realidade tangível. Satisfeitos esses requisitos, e estando o governo diretamente no controle da emissão de moeda corrente, ele pode então financiar o próprio déficit literalmente imprimindo mais dinheiro. Porém, como qualquer um com noções básicas de economia já teve oportunidade de apreciar, isso inevitavelmente resulta na depreciação do valor do dinheiro, significando que na prática este é simplesmente um método convoluto… de o governo transferir para si uma fração de todos os recursos que estiverem investidos (concreta ou virtualmente) naquela moeda. Hoje em dia  esse tipo de situação é tão universalmente reconhecida como problemática que é praticamente um consenso ser essencial retirar do governo a prerrogativa de emitir quantidades ilimitadas de moeda correnta (e para isso existem diversas soluções, uma delas sendo a criação de um banco central “independente”). Note-se que o confisco realizado pela emissão descontrolada de moeda é tão real quanto digamos um aumento de imposto sobre a renda; apenas ele é mais sutil, e também mais perverso na medida em que ocorre sem a possibilidade de resistência.

Esse método porém é tão desgastado que não pode mais realmente ser chamado de cripto-totalitarismo, dado não ser mais de forma alguma obscuro. Mas ele ilustra o princípio : tomar medidas nas quais aparentemente nenhum direito está sendo cassado, nada está sendo confiscado, ninguém está sendo roubado… e no entanto na prática é exatamente isso que está acontecendo.

Outro exemplo clássico, mas que por algum motivo até hoje não tem suas conseqüências tão universalmente enxergadas por todos quanto o prévio (embora já seja claramente discutido a nível por exemplo da WTO), é a concessão de “subsídios” para “estimular” ou “proteger” certas atividades na economia. Novamente, a princípio parece que se está “dando” algo, então como isso pode ser opressivo? Ora, o governo não tem uma máquina de gerar recursos magicamente do nada, então todo ato – e gasto – do governo é na verdade um uso do poder coercitivo para nos forçar a fazer algo. Por vezes isso pode ser justificado; mas nunca devemos nos esquecer de que é o que está acontecendo. Então quando o governo subsidia, digamos, os plantadores de cana-de-açúcar através de descontos nos impostos, e então subseqüentemente a produção de álcool, e finalmente a venda de álcool combustível, talvez a maior parte das pessoas não sinta que está sendo oprimida ou coagida a fazer nada. Agora imagine se ao invés disso o governo dissesse : quem comprar carro a gasolina receberá uma multa toda vez que encher o tanque. E aliás, quando não encher também. A única forma de resgatar parte do valor dessa multa é comprando álcool. Aí já não pareceria tão lindo, né? Só que isso é precisamente o que está acontecendo, apenas de uma forma convoluta. Subsídios são uma forma de tortuosa de multar quem não consumir certos produtos ou serviços.

Mas essa é apenas uma das modalidades de cripto-totalitarismo. Uma outra via muito eficaz consiste em escrever leis ininteligíveis, obscuras e confusas, criar infinitos níveis administrativos e jurisdições, e cultivar tal profusão de regras que no final das contas ninguém sabe exatamente o que é prescrito e mandado pela autoridade vigente. Isso tem múltiplas conseqüências perversas. Uma das piores é provavelmente permitir – em geral intencionalmente! – uma inaceitável elasticidade no uso de arbítrio da autoridade vigente sobre como aplicar a lei. Paralemente, mesmo quando não há abuso desse arbítrio, outra conseqüência é criar – novamente, em geral intencionalmente! – uma constante insegurança do cidadão comum quanto a estar numa posição legalmente segura e sustentável. Isso é extremamente opressivo, posto que dessa incógnita vulnerabilidade evidentemente deriva uma onipresente e contínua hesitação em criticar ou questionar o governo ou as autoridades vigentes. De forma geral, não haver regras absolutamente claras, públicas e suficientemente simples sobre o que é ou não permitido é profundamente danoso às instituições.

Uma outra forma de cripto-totalitarismo que complementa as regras do jogo serem incompreensíveis é criar leis e regras claramente fora da realidade que teoricamente se aplicam a todos, mas que proíbem ou penalizam atividades tão amplamente disseminadas, exercidas e aceitas pela sociedade em geral que é ridiculo esperar que sejam seguidas.  Considere leis como “é ilegal disponibilizar música com copyright na internet sob a pena de pagar cem mil dólares de indenização” ou “é proibido dirigir a mais de 100 km por hora nesta auto-estrada com 1000km de comprimento sob pena de ter sua carteira de motorista confiscada” ou “e proibido fumar certas plantas sob pena de ir pra cadeia”. Claro que é completamente impossível, absurdo e indesejável de fato aplicar e fazer universalmente valerem leis como essas. E olhe que eu não estou inventando; são leis reais. Existem, e são universalmente desrespeitadas, e nada acontece, e ainda bem que nada acontece, ou teríamos que mandar literalmente todo mundo pra cadeia. E antes que alguém diga que outras leis mais razoáveis também são desrespeitadas, esse desrespeito está longe de ser universal ou aceito. Não seria absurdo nem impensável mandar todos os homicidas ou estupradores para a cadeia. Por outro lado seria totalmente inacreditável mandar para a cadeia todos aqueles que fumam maconha. Então coloco aqui outro princípio básico : assim como no caso das leis ininteligíveis, leis cujo destino óbvio é serem universalmente desrespeitadas são profundamente danosas às instituições. São danosas porque por um lado criam uma ambigüidade sobre a legitimidade das instituições, mas também porque novamente, criam – não raro de propósito – oportunidades para exercício inaceitavelmente elástico de arbítrio da autoridade vigente. Se estamos todos acima do limite de velocidade, a polícia pode em princípio parar qualquer carro a qualquer momento. E multá-lo. Mesmo que o motivo real seja não ter ido com a sua cara. Postulo aqui que é indesejável que o estado tenha o poder de fato de multá-lo por não ir com a sua cara. Se somos todos criminosos em potencial, quem é que vai ser besta de criticar o governo?

Concluo observando que uma das várias definições interessantes de totalitarismo é a seguinte : um estado totalitário é aquele no qual tudo que não é obrigatório é proibido. Quando um estado está tentando ser totalitário mas por diversos freios sociais e politicos não pode abertamente sê-lo, ele freqüentemente usa de cripto-totalitarismo para subrepticiamente criar tanto quanto possivel essa situação de fato mesmo que não de direito. Existe algo profundamente errado acontecendo quando um cidadão que quer obedecer a lei não tem certeza de se está conseguindo. Existe algo profundamente errado quando não temos certeza do que é proibido e do que é permitido. Existe algo profundamente errado quando passamos a hesitar em fazer qualquer coisa que não seja obrigatória por medo de que ela seja proibida.

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Clique aqui para ver a versão deste texto publicada no Ordem Livre.

Libertarianismo Zen

December 15th, 2009 by Sergio de Biasi

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Fluxograma para decidir quando mandar alguém pra cadeia.

Estava eu pensando sobre o fluxograma acima (encontrado aqui) e minhas reflexões foram na seguinte direção : o que o brasileiro está tentando com todas as suas forças fazer, em todas as circunstâncias e sobre todos os assuntos, é chegar no “então deixa pra lá”.

No caso acima, por exemplo, me parece que o sujeito decidinte se vê na caixa “houve uma agressão” e então instantaneamente surge a questão em sua mente “qual o caminho mais curto para eu poder deixar isso pra lá”? Se a forma mais simples e rápida de eventualmente chegar no “ok, agora posso esquecer o assunto” for passar pelo “cadeia nele”, então cadeia nele… e agora posso deixar isso pra lá.

Note-se que o sujeito ser culpado ou inocente, a noção de certo ou errado, a melhora da sociedade, princípios filosóficos do significado da existência, tudo isso nem sequer entra na equação. O princípio máximo é : qual o curso de ação que mais rapidamente vai fazer com que parem de me encher o saco?

Isso é algo estereotipicamente brasileiro, e provavemente um dos elementos fundadores da nossa cultura e da nossa identidade. Não que não haja racismo, ou classismo, ou questões sociais, ou pensamentos sobre moralidade, ética, e transcendência. Ou grandes objetivos a serem atingidos no mundo das idéias abstratas. Ah, mas concretamente agir com base nisso é muito exaustivo. Não sejamos chatos. Que tal simplesmente deixar pra lá?

Aliás, quando as pessoas por aqui nos EUA começam a me perguntar sobre o Brasil, eu freqüentemente respondo que se eu tivesse que citar uma característica que mais resume a personalidade do brasileiro é não levar absolutamente nada a sério demais. Ou mesmo muito a sério. Ou mesmo a sério.

Claro, existem exceções, cada pessoa é diferente, etc, mas como povo e como sociedade vai mesmo nessa direção.

Isso tem vantagens e desvantagens.

No caso considerado acima, por exemplo, o resultado é o seguinte. Nos EUA, são assassinadas anualmente aproximadamente 16000 pessoas por ano. Aproximadamente 60% desses assassinatos são “solucionados” de alguma forma, por exemplo com a prisão do assassino. (Note-se que já de saída isso nos leva a uma reflexão sobre quão frágil é a ordem social e quanto ela depende de as pessoas voluntariamente não agirem psicopaticamente se mesmo nos EUA a chance de matar alguém e não acontecer rigorosamente nada com você é da ordem de 40%.) Já no Brasil, são assassinadas aproximadamente… er, 50000 pessoas por ano. São mais de 500 mil pessoas assassinadas de 1996 a 2008. (Aliás, isso também nos leva a uma reflexão sobre quão fora de controle está a situação de segurança no Brasil. Como comparação, durante toda a GUERRA do Vietnam, que durou de 1959 a 1975, na qual havia vietcongs com fuzis e metralhadoras atirando nos americanos… morreram 60 mil soldados americanos.) Mas voltemos ao tópico presente : que se faz sobre isso? Quantos desses crimes terminam com alguém preso, ou pelo menos com algum tipo de resolução que não seja… dar de ombros? Em São Paulo, provavelmente uma das menos brasileiras localidades em nosso país, a polícia se esforcou, se esforçou, e conseguiu nos últimos 10 anos aumentar o índice de solução de homicídios para 48%. Enquanto isso, no Rio de Janeiro, provavelmente um dos locais mais estereotipicamente brasileiros do mundo a polícia resolve… 4% dos casos. Er, quatro por cento? Deixa pra lá, né?

Mas antes que nos apressemos em crucificar incondicionalmente essa característica do brasileiro, observemos : as conseqüências dessa atitude têm também o seu reverso. Em termos de conflitos armados abertos, por exemplo, temos um dos currículos menos sangrentos da história do mundo, e mesmo quando fomos governados por regime militar matamos num período de 20 anos o que a polícia americana, num estado democrático, em tempos de paz, mata em um ano!

Inclusive, voltemos um pouco no tempo. Nosso país ficou independente de seu país colonizador sem qualquer guerra com tudo sendo resolvido em família. Os escravos foram libertados sem que isso tenha sido o resultado de qualquer conflito armado. Depois a república foi proclamada novamente sem que um único tiro fosse disparado.  Etc, etc. Até mesmo o governo militar retirou-se sem qualquer insurreição e simplesmente passou o poder adiante para os civis. Compare-se com eventos similares na história de quase qualquer outro país. Isso quer dizer que não temos epiódios sangrentos em nossa história? Não, até temos, como a guerra do Paraguai, na qual aparentemente a maior causa de mortalidade foi cólera. Mas nunca tivemos nenhuma grande guerra civil, e nossas revoluções, tanto as bem quanto mal sucedidas, em geral envolvem uma meia dúzia de pessoas realmente fazendo alguma coisa.

E não para por aí; no Brasil é possível em geral violar repetidamente e ostensivamente todo tipo de leis e as regras sem que nada realmente ocorra. Por um lado é mais humano, e de uma forma tortuosa cria mais autonomia de decisão individual. Por outro lado, o oposto também vale – se alguém numa posição de autoridade resolver implicar com você, as leis e regras não servirão para protegê-lo, e não adianta argumentar que é inconstitucional ou ilegal ou completamente arbitrário porque farão assim mesmo. E os outros na maior parte dos casos vão simplesmente deixar pra lá.

Então em terra brasilis somos todos meio Zen, acidentalmente semi-libertários, e involuntariamente tolerantes. Mas não exatamente por princípio ou com qualquer coerência, e sim muito mais porque seria muito exaustivo e chato tomar uma atitude. Note-se, não é nem exatamente só uma questão de preguiça; é algo mais profundo. É mais um tipo de ennui tropical com a idéia de fazer de fato alguma coisa sobre qualquer coisa. Daí não é que o governo por vezes não esteja até tentando ser totalitário, seja no caso de uma ditadura de pseudo-direita, seja no caso do criptocomunismo lulático. Mas em ambos os casos acaba prevalecendo o sentimento geral de que bom mesmo é deixar pra lá.

Brasil, Uma Nação À Procura De Um Destino

December 12th, 2009 by Sergio de Biasi

 

 

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O Brasil na capa da Convenience Store News!

Estava eu fazendo uma visita à loja de conveniência na esquina da minha casa quando notei entre as revistas à venda uma com o Cristo Redentor e uma bandeira do Brasil na capa. Bem, eu tive que ir verificar do que se tratava, e era uma inesperada revista chamada “Convenience Store News” com um artigo de capa sobre… o Brasil!

A manchete era sobre como a economia brasileira está com todas as cartas na mão para passar por um período de grande crescimento e finalmente transicionar de economia emergente a economia de verdade no cenário mundial. Porém, logo complementa que isso pode ser impedido por uma situação de corrupção, socialismo, impostos e políticas ambientais fora de controle. Eu perguntei ao gerente da loja se a revista estava à venda (afinal nem sequer havia preço na capa) e ele disse que a revista na verdade era dele e estava junto com as outras por engano, mas que ele já havia lido e que eu podia ficar com ela se quisesse. Eu fiquei. Examinar o artigo, de autoria do editor da revista, que aproveitou uma visita ao Brasil para escrever sobre a situação do mercado nacional para lojas de conveniência e brevemente sobre o país em geral, acabou me levando a certas reflexões. Uma versão pode ser encontrada aqui.

Vejam o que o editor da revista encontrou para gostar sobre o Brasil :

Brasil na Convenience Store News, Likes

Pois então, o mais importante sobre o Brasil, quinta maior área do mundo, quinta maior população do mundo, localização de seis entre as cem maiores metrópoles do mundo é… praia, guaraná, e caipirinha. Sério. Brasil, eterno país do futuro, impávido colosso deitado eternamente em berço esplêndido, é a hora de mostrar tua cara. Ou será que essa *é* a nossa cara? A noção que o americano médio tem do Brasil é um montão de bundas cercadas de bandidos por todos os lados. Não é surpreendente. Aqui em New Jersey, metade dos alunos de pós-gradução do departamento de ciência da computação de todas as melhores universidades de pesquisa é… indiano ou chinês. Mesmo os chineses que não são suficientemente, digamos, sofisticados para ingressar num programa de pós-graduação vêm pros EUA e aqui abrem seus próprios negócios, como as estereotípicas lavanderias. Mas e os brasileiros? Cadê? Bem, majoritariamente servindo de… peões. Ou empregadas domésticas. Ou nos casos mais bem sucedidos garotas de programa. Ou meia dúzia de modelos famosas. Como isso foi acontecer?

O Brasil está muito timidamente representado nos programas de pós-graduação americanos, ao contrário das outras nações emergentes, que estão maciçamente, abundantemente, ostensivamente presentes. Em parte isso é por causa das políticas alucinadas e xenofóbicas do governo federal brasileiro que tomado de nacionalismo ufanista delirante crescentemente reza pela cartilha de que estudar numa universidade americana é uma frescura desnecessária dada a existência de cursos “equivalentes” em território nacional. Encaram educação superior como uma “commodity” comparável a minério de ferro ou soja; tudo igual e intercambiável. E quem mesmo assim teimosa e antipatrioticamente insiste em consumir o produto estrangeiro deve ser miopicamente forçado a todo custo a depois voltar para unir-se aos doutores que fazem concurso para gari. Agora me diga : quais países conseguiram formar uma elite intelectual e podem agora exibir universidades de pesquisa reconhecidas entre as melhores do mundo… e qual país continua patinando na irrelevância acadêmica?

O que nos leva à questão de que muito mais relevante que a política do ministério da educação é o fato de que o intelectual sério brasileiro, do qual desesperadamente precisamos, não tem fora de posições criadas artificialmente lugar em nossa sociedade, e muitas vezes encontra no exílio a única forma de obter reconhecimento do seu valor. Não que exista qualquer risco de um brasileiro ser estereotipicamente identificado como intelectual. Não, não. Carnaval, futebol, jiu-jitsu, capoeira, são essas as produções culturais brasileiras reconhecidas no exterior. Ah, claro, e bossa-nova, mas dessa é preciso explicar aos americanos que os próprios brasileiros há muito não gostam mais. Infelizmente não é uma caricatura; é uma percepção perfeitamente legítima do que de fato gera interesse. Pensar não está entre as atividades mais prestigiadas na terra em que se plantando tudo dá. A noção mais ou menos dominante é de que pensar não serve para nada. É para isso que se quer que alguém pensante volte? Agora, como é que isso foi acontecer?

A questão é que num ambiente em que as regras mudam o tempo todo de forma imprevisível e ininteligível, em que estratégias de longo prazo são impossíveis, em que recompensas e punições artificiais importam infinitamente mais do que produtividade, eficiência ou organização, em que a atividade empresarial é tratada pela lei como excentricidade de rico, em que um diploma de engenheiro serve para passar em concursos e não para entender como a realidade funciona… bem, num contexto como esse então realmente pensar não serve para nada. Não adianta entender qual a forma mais segura, barata, rápida e eficiente de construir uma ponte se o governo for dizer que daquele jeito não pode e de qualquer forma quem vai construir é o meu sobrinho.

Os burocratas olham para as deficiências da produção acadêmica brasileira e após décadas continuam apegados a estratégias que a essa altura já sabemos empiricamente que não funcionam. Um dos erros mais essenciais é tentar consertar a situação olhando apenas para o próprio sistema acadêmico. Então se acha que tudo será resolvido dando mais bolsas, construindo mais universidades, buscando maximizar o número de publicações, aumentando o número de pessoas com diplomas de pós-graduação. Só que tudo isso só vai criar doutores varrendo a rua e dirigindo táxis se não houver quem os empregue fora da academia.

Agora, é claro que precisamos de doutores para ter universidades de pesquisa. Mas se o único emprego possível para doutores for dar aula numa universidade, uma parte substancial das pessoas qualificadas para serem doutores – precisamente as mais empreendedoras – não vão querer enterrar sua vida nisso. E além disso todo esse “conhecimento” acadêmico não estará sendo usado para nada – o que só tornará ainda mais frustrante a carreira acadêmica para aqueles que realmente têm vocação para isso. É preciso ver que as melhores univesidades de pesquisa do mundo existem num contexto, e não à margem da sociedade em que se inserem. Elas estão cercadas de empresas de alta tecnologia que empregam engenheiros – e mestres, e doutores  – não para ficarem dando aulas mas para de fato usarem seus conhecimentos. É esse o ambiente que atrai as melhores mentes do mundo, aquelas que querem de fato desvendar os mistérios do universo e não apenas produzirem artigos para impressionar uma agência de financiamento do governo. O próprio título de mestre nos EUA é em geral considerado profissionalizante – você o obtém para voltar ao mercado, não para ficar na academia. É no Brasil que existe a noção de que a única função de obter um título de mestre é basicamente seguir carreira acadêmica. Quem quer isso nos EUA vai fazer logo um doutorado. As ultra-melhores universidade de pesquisa nos EUA muitas vezes sequer oferecem programas de mestrado. Agora, que mercado de trabalho existe no Brasil para pessoas com mestrado em física, ou química, ou matemática? Por que alguém faria isso no Brasil senão para passar o resto da vida… repetindo para outros o que aprendeu, ao invés de USAR este conhecimento?

Ao prosseguirmos achando que vamos resolver tudo formando ainda mais e mais doutores sem eles terem qualquer perspectiva profissional real, conseguimos não só não ter mais empresas de alta tecnologia, como no processo ajudamos a escangalhar também o sistema acadêmico. Mas o que fazer então? Bem, como em geral, a primeira e mais importante providência que o governo pode tomar é a de NÃO ATRAPALHAR, e não se meter. Infelizmente esta é uma noção quase alienígena ao governo brasileiro.

O governo brasileiro precisa deixar as pessoas em paz para se associarem livremente para fundar empresas. Precisa parar de regular tudo e de criar encargos que incidem desde o primeiro momento quer haja lucro ou não. Quantas pessoas teriam um blog se fosse preciso ter uma licença do governo, se fosse preciso seguir um manual de regras bizantino sobre o conteúdo, e fosse preciso fazer relatórios mensais e ter um diploma de blogueiro? Aliás, o governo brasileiro precisa também se libertar do ranço corporativista suicida de querer exigir diplomas para o exercício das mais absurdas profissões. E precisa tornar claras e simples as obrigações fiscais das empresas. Etc, etc, etc…

O que nos leva de volta ao artigo original que encontrei na revista na loja de conveniência. Vejamos o que o editor da revista encontrou para *não* gostar sobre o Brasil :

Brasil na Convenience Store News, Dislikes

Realmente, tem coisas que a gente só percebe  plenamente o quão opressivas e absurdas são quando elas são removidas. Os outros pontos listados são muito relevantes e até haveria o que dizer sobre eles, mas  o que me bateu mais forte foi a situação de segurança no Brasil. Eu me lembro quando me mudei do Rio para Nova York e meu primeiro e mais intenso sentimento ao andar nas ruas foi de respirar aliviado e diria eu, até mesmo surpreso pelo grau em que não era mais necessário ficar o tempo todo olhando por cima do ombro para ver se tinha alguém vindo me roubar. Pessoas usam laptop sentadas no parque, prédios não são cercados de grades, é possível andar na rua às 3 da manhã. A situação de criminalidade e de generalizada exceção à normalidade institucional que prevalece no Rio de Janeiro e em várias outras grandes cidades brasileiras é completamente anômala. Mais uma vez, que incentivo existe para pensar e arriscar empreender se servir de avião para distribuir cocaína é muito mais simples, lucrativo e seguro? Que possibilidade existe de planejar se não existem regras?

Enfim, o artigo que motivou este texto é tão interessante pelo que é quanto pelo que ele não é. O próprio fato de ele existir é interessante. Alguém escreveria um artigo como esse sobre a Coréia do Sul, por exemplo? Dizendo que ela está “à beira de um grande salto” e que há incerteza se ela o dará? Não, ela já o fez! Agora vejam, no ranking mundial, a Coréia do Sul é por volta da décima quinta em tamanho, enquanto o Brasil é por volta da décima. Só que a área do Brasil é de oito milhões e meio de quilômetros quadrados, enquanto que a da Coréia do Sul é de… er, cem mil. Como isso é possivel? E note-se, a Coréia evoluiu rapidamente para essa posição, basicamente entre os anos 60 e 80, transmutando-se de um país fundamentalmente inexpressivo, repetidamente ocupado por potências estrangeiras, e dividido por guerras, para uma das maiores economias do mundo.

Agora, enquanto a Coréia se ocupava em saltar do terceiro para o primeiro mundo, o Brasil estava sendo governado pelo governo militar que com o motivo / desculpa / explicação de nos salvar dos comunistas tomou o poder na marra (aliás, com considerável mesmo que não unânime apoio popular, diga-se de passagem) e… pôs-se enigmaticamente a estatizar tudo e a implementar um plano de “crescimento” 110% keynesiano com o pé fundo no acelerador dos gastos.

A política econômica consistia em pegar dinheiro emprestado de outros países, e quando a farra de crédito internacional acabou, ela transformou-se em, er, basicamente imprimir dinheiro, honrando-nos com uma inclusão nos livros-texto de economia como exemplo clássico de hiperinflação e do que não se deve fazer. Note-se que o gravíssimo fenômeno de hiperinflacão é comumente associado a guerras e outros acontecimentos similarmente drásticos que forçam ou são apresentados como justificativa para o governo passar a gastar muito, muito, muito, mas muuuito mais do que dispõe. Nós podemos nos orgulhar de termos conseguido produzir isso sem que estivéssemos gastando o dinheiro para salvar o país de nenhuma catástrofe iminente.

Paralelamente, a xenofóbica política de comércio exterior incluía por exemplo substituir e minimizar importações a qualquer custo. Isso foi culminar em grotesquidões como a maravilhosa lei de reserva de mercado de informática de 1984, que teve como um de seus principais resultados absolutamente destruir qualquer possibilidade do Brasil ser internacionalmente competitivo nesta área. Outro resultado foi atrasar e encarecer a informatização da economia brasileira. Quanto às empresas “fomentadas” por essa política absurda e desastrosa? Consistiam em comprar peças no exterior e montar nacionalmente cópias toscas de projetos estrangeiros por preços inacreditáveis. Implodiram todas assim que a reserva de mercado acabou.

Enfim, veio a Nova República e coisa e tal, algumas heterodoxias bizarras foram tentadas, e surrealmente uma boa parte da reversão dessas alucinações para seguir em direções mais ortodoxas somente se deu sob figuras esquerdófilas.  Aliás, sublinhemos este ponto. Isso é realmente muito surreal. O governo militar, supostamente de “direita”, foi extremamente estatizante e obstruiu inacreditavelmente o livre comércio. Levaram o país à falência, cansaram de brincar e passaram a batata fervente da inflação fora de controle adiante. Então Sarney, previamente líder do partido pró-governo militar, resolveu que a solução para a inflação era… proibir os preços de aumentarem (!). E incentivou a população a chamar a polícia se visse algum preço aumentar. Seria engraçado se não tivesse de fato acontecido. Mas eis que então surge Collor, e tendo majoritário apoio popular no papel de oposição ao socialismo lulático, resolveu literalmente… confiscar a maior parte do dinheiro da economia, num dos planos econômicos mais inconstitucionalissimamente absurdos de todos os tempos. Incompreensivelmente, foram Itamar Franco, então Fernando Henrique, e finalmente o Lula que retornaram a políticas fiscais e financeiras minimamente ortodoxas, as quais foram infinitamente mais bem sucedidas que os 30 prévios anos de pseudo-direita.

O que nos leva à questão : se é razoável associar a “direita” com neoliberalismo adorador do deus mercado e coisa e tal como querem as esquerdas, onde é que se esconde essa tal temível e assustadora direita no Brasil? Esteja onde estiver, certamente não pode ser reconhecida nessa sucessão surreal de estatólatras que precederam os atuais estatólatras. O único politico que consigo identificar como remotamente liberal no sentido clássico da palavra é Roberto Campos, que apesar de ter sido deputado e senador, estava em tal minoria que nunca conseguiu aprovar nenhuma de suas propostas liberalizantes.

Estaremos hoje em situação melhor? Onde estão os políticos de expressão que lutarão pelas reformas necessárias para permitir que um cidadão qualquer abrir uma empresa seja, do ponto de vista institucional, simples, rápido, barato e seguro? Onde estão os intelectuais que defenderão que isso é mais importante do que qualquer plano estatal para “incentivar” o crescimento ou “proteger” certas indústrias? Onde estão os brasileiros que dirão “chega” para essa concepção de estado que nos mantêm aprisionados eternamente em berço esplêndido?

 

Novamente Motoqueiros Na Minha Janela

December 11th, 2009 by Sergio de Biasi


Voltam os motoqueiros um ano depois

Há um ano, eu publiquei um vídeo no qual uma enorme procissão de motoqueiros passava pela minha janela. E não é que exatamente um ano depois aí estão eles de novo? Dessa vez eu percebi mais rapidamente o que estava acontecendo e consegui gravar um trecho maior. Agora me digam, tem algo de especial no dia 15 de novembro que todos os motoqueiros do universo queiram comemorar?

Esquilos

December 10th, 2009 by Sergio de Biasi


Esquilo na Universidade de Columbia em Manhattan

Eu já comentei antes o quanto certos aspectos simples da vida cotidiana por aqui nos supreendem ao divergirem inesperadamente do que estamos acostumados.  Uma dessas pequenas coisas são os esquilos. No Brasil, estamos acostumados a ver pombos em todas as praças, e é tudo muito normal e comum. Mas aqui existem esquilos. Eles estão em toda a parte, e andando pelas ruas, praças, estacionamentos. Inclusive em Nova York. Claro que é preciso haver árvores ou um mínimo de verde, e você provavelmente não vai dar de cara com um esquilo no topo do Empire State assim como não vai encontrar um pombo dentro de uma loja do Rio Sul. Mas eles estão por aí, e fazem parte do cenário.


Esquilos na Universidade de Princeton
(começando aos 50 segundos do vídeo)

Princeton

December 9th, 2009 by Sergio de Biasi


Universidade de Princeton num dia ensolarado

Universidade de Princeton. Que mais se pode dizer? Para quem não sabe, uma das universidade mais importantes do mundo. Não dá pra ver direito nestes vídeos, mas a atmosfera é de um Academic Theme Park, se jamais houve um. Alunos andam de um lado para o outro, muitos. O que faz uma grande universidade? Serão os prédios? As pessoas? A tradição? O dinheiro? A sorte? Como se cria um lugar como Princeton? Se um governo ou uma sociedade organizada decide criar um lugar como esse, o que deve fazer? Infelizmente quase a totalidade das nações industrializadas, inclusive as emergentes, parece conhecer respostas pelo menos parciais enquanto o Brasil continua tateando às cegas.


Universidade de Princeton num dia chuvoso

Primeira Neve Do Inverno

December 8th, 2009 by Sergio de Biasi


Nevando em New Brunswick

Mais um ano se passou, as decorações de natal estão em todos os lugares, e por algum motivo bizarro um dos maiores hits que ano após ano sempre toca sem parar é Feliz Navidad. De repente, estou comprando um café, olho pra fora e está nevando sem parar. A primeira vez neste inverno. Isso é algo que realmente muda nestas terras de altas latitudes : estações do ano de fato existem. Eu sempre ficara meio surpreso com a fixação dos americanos com previsão do tempo, mas agora entendo. Aqui é preciso mesmo olhar que temperatura está fazendo lá fora antes de sair de casa. Descuidar disso pode resultar num dia bastante desagradável. Hora de guardar os sapatos no armário e tirar as botas (não cometa o erro de sair com sapatos comuns brasileiros para andar na rua no meio do inverno).

Educação Compulsória e Totalitarismo

December 6th, 2009 by Sergio de Biasi

Os homens nascem ignorantes, não incapazes de pensar. O que os torna incapazes de pensar é a educação.
Bertand Russell

Pedro escreveu recentemente um texto falando sobre o fetiche que existe com educação no Brasil (agora disponível aqui). Eu concordo plenamente com o que ele escreveu, e diria que este na verdade é um mal compartilhado pela maior parte das sociedades ocidentais modernas.  Aceita-se como natural, bom e até desejável a obrigatoriedade, repito, a obrigatoriedade coercitivamente imposta por lei, de todos os “cidadãos” de um país passarem grande parte de dez anos ou mais de suas vidas prestando expediente forçado para ouvir idéias selecionadas pelo governo como convenientes para sua “formação”.

E não apenas isso; não é suficiente (embora isso em si já seria opressivo) ser forçado a demonstrar proficiência no conhecimento de tais idéias, algo que poderia ser facilmente aferido com uma série de exames. E que cada um aprendesse como quisesse, onde quisesse, e com quem quisesse. E prestasse os exames com a idade que quisesse. Não, não, não. Quem se pergunta por que tal solução óbvia não é adotada evidentemente não compreendeu o verdadeiro objetivo do sistema todo. É preciso passar pelo processo. O primordial objetivo da educação compulsória não é ensinar coisa alguma. É destruir a independência de pensamento, é cultivar, instilar e estimular subserviência à autoridade até ela desabrochar em toda a sua glória, é tornar tão doloroso o exercício do senso crítico que se adquira por trauma o instinto quase fóbico de evitá-lo a todo custo. Quando finalmente se consegue atingir esses objetivos, então se dá um diploma ao sujeito e se diz “formamos um cidadão”.

O sistema educacional público americano moderno é uma completa aberração e emprestou várias de suas características de um plano declarado de doutrinação e controle social em massa concebido originalmente na Prússia do século 19. O excelente The War On Kids documenta como atualmente existe formalmente e na prática menos respeito às liberdades civis numa escola pública do que numa prisão.

O sistema brasileiro pode não ser tão grotescamente opressivo, mas é igualmente delirante. Ele é usado para tudo menos para ensinar. Ele é encarado como instrumento de assistência social, como creche, até mesmo como ferramenta de segurança pública ao deixar menores desocupados fora das ruas. Historicamente, no Brasil e em grande parte das outras democracias ocidentais (inclusive nos EUA), um dos maiores objetivos que se pretende declaradamente atingir ao se expandir o currículo obrigatório básico é… retirar artificialmente mão de obra qualificada para fora do mercado de trabalho visando diminuir o desemprego e aumentar os salários! Note-se, isso não são “denúncias” ou teorias conspiratórias. Todos esses motivos são explicitamente discutidos por legisladores e membros do poder executivo ao determinarem política educacional.

Ora, isso já seria inaceitável num sistema de educação que visasse preservar tão somente o “direito” à educação, a possibilidade de acesso à educação. Já seria intolerável num programa cujo financiamento é compulsoriamente sustentando por todos nós, e sobre o qual não temos qualquer controle. Mas a barreira final é ultrapassada quando se aceita bizarramente tornar tal “direito” à educação um que deve ser “exercido” de forma compulsória. Isso é totalitarismo puro e simples, e me parece que deveria ser uma das prioridades de qualquer programa seriamente libertário lutar pela total reversão das políticas públicas que literalmente prevêem o encarceramento de toda a nossa juventude por mais de 10 anos de suas vidas.

Agora, vejamos, quais são as ilusões mesmo assim cultivadas por aqueles que defendem que algum mérito efetivamente educacional se possa salvar de toda essa farsa?

A principal ilusão é de que alguém esteja aprendendo alguma coisa. Mas como se pode verificar conversando com qualquer adulto normal, absolutamente ninguém retém os profundos “conhecimentos” que supostamente são terapeuticamente infundidos nos seus cérebros quando adolescentes. Pergunte a alguém que não seguiu carreira relacionada com química qual a diferença entre um éter e um éster e a resposta provavelmente será um bocejo ou um soco na cara. Pergunte a alguém que não seguiu carreira relacionada com línguas em que século viveu Machado de Assis. Aliás, experimente tentar fazer alguém escolhido no meio da rua confessar em que circunstâncias ocorre crase em português. Com enorme probabilidade a vítima não conseguirá fazê-lo para salvar a própria vida. O sistema educacional é uma falha escandalosamente absoluta. Mas é muito mais grave do que uma monumental perda de tempo para todos os envolvidos, como se isso já não fosse suficientemente sério. É um estrupro mental e moral, e deliberado. Educação compulsória não tem absolutamente nada a ver com ensinar coisa alguma. Educação compulsória na escala e nos moldes atualmente aceitos é nada menos que escravização em massa.

Outro objetivo pretensamente atingido é o de produzir magicamente uma elite intelectual sob demanda. Só que educação não é mágica. Nem todos têm vocação ou competência para serem elite intelectual. E embora possa haver mérito em buscar não desperdiçar a competência daqueles que de fato a têm, não é possível produzi-la artificialmente. Se perguntarmos a um atleta olímpico como ele conseguiu uma medalha de ouro, ele provavelmente responderá que treinou arduamente horas por dia durante muitos anos. Não segue daí que se forçarmos todo mundo a treinar arduamente por anos transformaremos todos em atletas olímpicos. Talvez até revelemos acidentalmente alguns mais, ao enorme custo de produzir uma massa de pessoas desfuncionais que não conseguem entender por que não conseguem correr 100 metros em 10 segundos. É impossivel produzir cientistas em massa usando educação forçada. (Aliás, também é impossivel fazê-lo subornando pessoas aleatórias. No máximo produziremos pessoas que ficarão bastante felizes em serem pagas para encenarem uma farsa.)

Quando Richard Feynman, físico americano ganhador do prêmio nobel, foi convidado a fazer um discurso de despedida após visitar a UFRJ durante alguns meses, ele (causando considerável consternação) declarou que infelizmente o ambiente que ele observara tinha sido universalmente o de pessoas profundamente imbuídas da convicção de que a academia consistia em seguir certos procedimentos e protocolos ao invés de produzir certos resultados. Que havia salas de aula, havia professores, havia alunos, havia cursos, havia seminários, havia títulos, havia publicações. Só não havia mesmo era produção de conhecimento. Que todos pareciam estar participando de um grande ritual coletivo de imitar o que universidades de verdade faziam mas sem entender direito o propósito de tais ações, quais os motivos para elas, e quais resultados elas deveriam produzir. Que era como ver um aparelho de rádio, ficar maravilhado com ele, e então buscar imitá-lo construindo uma réplica de isopor pintado e então não entender por que ele não funciona. Isso foi há décadas. Até hoje, o Brasil, uma das maiores potências econômicas do planeta, não consegue ter sequer UMA de suas universidades na lista das melhores DUZENTAS do mundo! Com toda a sua pompa e circunstância, o Brasil permanece essencialmente um zero à esquerda academicamente falando. Que perca para a França ou a Suíça, vá lá. Mas a Índia, a China, a Coréia do Sul têm universidades entre as primeiras cinqüenta! Eles conseguiram produzir o que nós não conseguimos. Talvez ser efetivamente (ao invés de imaginariamente) colonizado pela Inglaterra ou pelos EUA seja bom no final das contas. Nesse ritmo o Iraque terá uma universidade figurando entre as melhores duzentas do mundo antes do Brasil.

Mais um objetivo pretensamente atingido com educação compulsória é “elevar o nível cultural” do cidadão médio, o que na concepção dos burocratas a cargo do assunto se materializa na proposta esquizofrenicamente alucinada de torná-lo enciclopedicamente competente em assuntos que vão desde dinastias do Egito antigo até calcular determinantes de matrizes, mesmo que seu eventual objetivo na vida seja ser caixa de supermercado. Mesmo quando se torna clara a falha do objetivo de produzir pessoas efetivamente cultas, alguns ainda insistem na idéia de que pelo menos se conseguirá despertar algum tipo de apreciação pela cultura. Apreciação pela cultura? Por favor. Isso é comicamente fadado a um retumbante fracasso, e aliás ainda bem, porque a caricatura padronizada (e muitas vezes factualmente errada) que é forçada goela abaixo dos “alunos” na esperança doentia de produzir um saboroso patê em seus fígados tumorosamente gordos é tudo o que “cultura” não é. O que de fato se produz é confusão, na maior parte dos casos seguida de absoluto desprezo pela verdadeira sofisticação cultural, quase universalmente como resultado desse processo percebida como mera competência na repetição autista de fórmulas sem sentido completamente desconectadas da realidade. Que é o que geralmente se exige e premia nos alunos de uma escola. E infelizmente vezes demais em níveis mais altos de educação. Mesmo quando os assuntos abordados incidentalmente coincidem com as inclinações naturais de algum aluno, eles são explorados de forma arbitrária, caótica e fragmentada, sem qualquer liberdade para exploração independente, e sob um regime de força que destruiria o mais espontâneo dos interesses. É como imaginar que para “despertar” o interesse das pessoas por sexo uma boa estratégia seria coagi-las sob ameaças a transar com pessoas que elas não escolheram enquanto você assiste e então dar notas para sua performance. E depois reclamar das que não tiveram boas notas que não se “empenharam” o suficiente.

Ainda mais um objetivo pretensamente atingido como parte de um plano acadêmico que começa com educação compulsória é catapultar o país para indústrias e mercados de alta tecnologia. Ao invés disso o que produzimos no final de um longo processo são pessoas com doutorado fazendo concurso para gari.  Ora, o (pequeno) mercado para pessoas com doutorado no Brasil é completamente fabricado. Ele se resume à atividade essencialmente subsidiada pelo governo de… produzir mais pessoas com doutorado. Note-se, eu digo isso com a infinita tristeza de quem vê imenso valor na pesquisa básica, e de quem acredita que não se deve deixar o talento de pessoas genuinamente competentes para fazer um doutorado ser desperdiçado. Mas a forma de não desperdiçá-lo não é forçá-las por anos a subempregos e rituais arcanos até se concluir que sofreram o suficiente para ganhar uma licença para submeterem outras vítimas ao mesmo processo. O problema real não é não haver um número suficiente de pessoas com doutorado. Isso talvez fosse o problema se houvesse uma demanda insatisfeta, uma variedade de posições clamando por pessoas com doutorado, posições que só alguém com um doutorado estaria capacitado a ocupar, como projetar microprocessadores de última geração ou desenvolver novos antibióticos, e não houvesse pessoas em número suficiente para ocupá-las.  Mas se fosse esse o problema, a solução simultaneamente simples e benéfica para o país seria a mesma que os Estados Unidos adotam – recrutar as pessoas capazes onde quer que estejam no mundo e trazê-las para ocupar tais posições. Isso não ocorre porque tais posições não realmente existem no Brasil e então formamos doutores incompreensivelmente esperando que por eles existirem automaticamente se porão a gerar alta tecnologia trabalhando para empresas inexistentes. Se queremos empresas de alta tecnologia precisamos primeiro e antes de mais nada parar de atrapalhar, que é geralmente a primeira e mais importante providência que um governo pode tomar. Ao invés disso tornamos algo em princípio tão logisticamente simples como abrir uma sorveteria um inferno burocrático e crivado de encargos suficientes para fazer qualquer um pensar trezentas vezes antes de correr o risco.

E ao gerar doutores varrendo a rua, essa política faz pior do que desperdiçar recursos; ele desvirtua o próprio sistema acadêmico. Uma superoferta de doutores causa uma mistura de superprodução de publicações inúteis com subempregos dentro da própria academia. E isso tudo acaba por distorcer perversamente também o entendimento da academia pelo resto da sociedade. A noção de “democratização” da educação através da educação compulsória é uma das maiores causas da destruição da percepção da atividade acadêmica como algo desafiante, nobre e meritório no imaginário comum. Historicamente grandes cientistas e grandes sábios sempre ocuparam um lugar de honra em todas as sociedades. Mais amplamente do que isso, quando alguém realiza algo percebido como difícil e que exija uma enorme convergência de competência e esforço, nossa tendência natural é admiração e respeito. Sentimos isso por atletas olímpicos, sentimos isso por grandes artistas. Sentimos isso por quem salva uma criança de um incêndio. Ser cientista porém é no imaginário popular algo cada vez mais alienígena e cada vez menos despertador de admiração. Pelo contrário, existe (em particular no Brasil) o sentimento de que quem segue esta carreira não foi competente o suficiente para conseguir um emprego de verdade. Talvez porque grande parte do tempo, pelo menos no Brasil, o emprego não seja mesmo de verdade. O real emprego é participar de uma farsa na qual se dança em torno da fogueira fazendo rituais bizantinos na tentativa de que sejam suficientemente do agrado dos burocratas de plantão para que nos agraciem magicamente com mais verbas. E a esperança dos burocratas de plantão é de que os rituais bizantinos que escolhem financiar agradem suficientemente os deuses da prosperidade científica para que nos tornemos magicamente uma grande potência tecnológica.

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Existe ainda um ponto adicional que quero levantar sobre o ensino básico compulsório.

Não raro quando desesperados diante das evidências da completa falha do sistema de educação compulsória em ter qualquer mérito acadêmico, seus defensores começam então a apelar para dizer que mesmo que o benefício acadêmico seja nulo ou mesmo negativo, existem outros motivos para mantê-lo que não seja mera e aberta doutrinação. E então vem outro dos grandes truísmos sobre educação compulsória. Que ela é importante, não, essencial para o processo de SOCIALIZAÇÃO dos seres humanos em formação. Socialização. Ora, se há um contexto mais artificialmente inadequado à socialização do que a escola, eu desconheço. Trata-se de um ambiente no qual você é na maior parte do tempo proibido e punido por tentar se socializar, ou mesmo por dizer abertamente o que pensa, onde mesmo nos momentos em que a socialização é permitida ela é altamente regulada, no qual você não escolhe livremente com quem você está se socializando, ou quando, ou como, e aliás no qual a estratégia de socialização a você imposta é tão antinatural quanto “Você vai encontrar todo dia às 7 da manhã APENAS com as mesmas dúzias de pessoas precisamente da mesma idade para sentar em silêncio enquanto é forçado a ouvir longos monólogos sobre assuntos que não escolheu. No meio do expediente talvez tenha 30 minutos para falar com quem quiser, mas se tentar beijar alguém, ou discutir com alguém, ou mesmo ir até a esquina tomar um sorvete com alguém, será imediatamente impedido.” Não, não, não. Como experiência socializante, a escola é profundamente quebrada. Conviver somente com sua família seria provavelmente superior, embora MUITO dificilmente essa seria a escolha da esmagadora maioria das pessoas, que ao invés disso preferiria dez mil vezes ir à sua praça, ou clube, ou praia, ou parque, ou igreja e fazer amigos ou perseguir outros interesses pessoais. Inclusive descobrir seu próprio ponto de equilíbrio saudável entre socialização e introspecção, que é algo muito particular e pessoal, não parece muito favorecido por experiências cotidianas forçadas de socialização compulsória.

Claro, para que essa atividade de socialização extra-escolar fosse possível, talvez se fizesse necessária a supervisão de adultos. Mas se é essa a função que os “professores” estão cumprindo, então que seja, e que se deixem as crianças em paz,  e livres para interagir. Se as escolas existem para socializar as crianças, então abandonemos todo esse sistema fascista que impede a socialização e concentremo-nos em construir um ambiente no qual as crianças sejam deixadas livres para explorar de forma suficientemente segura suas possibilidades sociais. E intelectuais. E culturais. E empresariais.

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Clique aqui para ver a versão deste texto publicada no Ordem Livre.

Liberals, Liberais e Libertários

December 3rd, 2009 by Sergio de Biasi

Em sendo a liberdade algo genericamente aceito como em princípio uma boa causa pela qual se lutar, não é supreendente que uma vasta gama de  movimentos políticos, ideologicos e filosóficos com fundamentos e objetivos completamente diversos se definam como defendendo a “liberdade” diante de algum tipo de interferência ou opressão. Então temos desde a teologia da libertação até o liberalismo clássico de Adam Smith, todos defendendo liberdades de algum tipo.

Isso se torna particularmente relevante para aqueles que como eu se identificam genericamente com a causa libertária, posto que existe uma grande variedade de movimentos que se identificam como tal. Vamos aqui discutir então brevemente alguns desses termos e como especificamente “libertário” se encaixa nisso.

Vou começar por colocar minha visão pessoal sobre o assunto. Para mim, quando digo que sou libertário, estou querendo dizer que defendo a idéia genérica de que cada um deve ser em princípio deixado em paz pela sociedade para viver sua própria vida como quiser. Note-se que essa idéia em si mesma, embora modernamente gozando de grande aceitação, é historicamente revolucionária, tanto em termos filosóficos como políticos. Concepções anteriores da condição humana, aliás dominantes em grandes frações do mundo durante grande parte da história humana (inclusive hoje) defendem princípios básicos completamente diferentes e mesmo opostos. Por exemplo, para alguns o homem existe para servir aos outros. Sua função primária é cumprir seu papel na sociedade, e é legítimo exigir dele qualquer esforço – mesmo ceder sua própria vida – nessa direção. Para outros, o homem existe para servir a deus, e novamente, qualquer sacrifício pode dele ser legitimamente exigido no sentido de satisfazer o que se entenda como sendo a vontade de deus.

Para mim, porém, o ser humano individual deve ser tratado mais ou menos como um país em si mesmo e tem certas prerrogativas fundamentais que não devem em princípio serem usurpadas pela sociedade. A discussão de quais exatamente são essas prerrogativas é menos importante a meu ver do que o fundamento de que cada um deve ser em princípio e como regra geral ser deixado em paz pela sociedade para viver sua vida como achar melhor.

Por que “em princípio” e não  “sempre”? Bem, porque a concessão de liberdade irrestrita de ação a um ser humano evidentemente conflita com o exercício da liberdade por aqueles aqueles à sua volta. Então a minha “liberdade” de incendiar a casa do meu vizinho caso eu não goste das opiniões dele não deve ser protegida, aliás muito pelo contrário. Portanto embora o princípio básico seja o de que cada um deve ser deixado em paz para viver como quiser, é preciso que seja deixado em paz não apenas pelo sistema politico, mas também por seus vizinhos, por pessoas aleatórias, e por outros segmentos da sociedade organizada. E para que isso seja atingido, é ironicamente necessário restringir a liberdade de ação de todos esses agentes.

É de como administrar essa exceção – esse essencial conflito de nossa liberdade com a dos outros – que surge uma boa parte das divergências políticas, ideológicas e filosóficas mesmo entre aqueles que concordam com a idéia básica de que o indivíduo deve ser deixado livre para viver sua vida como bem entender. Assim sendo, o problema se torna não exatamente de “como garantir liberdade irrestrita para todos”, algo logicamente impossível para começar, mas sim de “qual sistema político maximiza a liberdade individual”?

E então desde o começo esbarramos em mais problemas. Antes mesmo de discutir como atingir certos propósitos, é problemático decidir o que exatamente estamos tentando atingir. Quando dizemos “maximiza a liberdade individual”, estamos falando de quê? Afinal, estamos nos referindo a grandes grupos de pessoas, de distribuições de liberdade individual. Estaremos falando da liberdade média? Ou talvez do somatório da liberdade conjunta? Ou quem sabe de maximizar a todo custo a menor quantidade de liberdade que aceitaremos que um ser humano tenha? Ou conversamente, de maximizar a maior liberdade teoricamente possível para pessoas individualmente no sistema?

Uma vertente particularmente perversa é : estamos buscando, por uma questão de  “justiça”, equalizar as liberdades, isto é, que elas sejam o mais idênticas que for possível para todos. Apesar de poder parecer conter um certo mérito à primeira vista, ele desmorona imediatamente quando percebemos que tal objetivo pode ser facilmente atingido simplesmente retirando todas as liberdades de todos, ou alternativamente cerceando as liberdades dos mais livres até que fiquem iguais às dos menos livres, algo que vai diretamente e completamente contra o princípio original de que o que estamos tentando atingir é preservar a maior quantidade possível de liberdades para cada pessoa. Ou seja, coloco aqui já um princípio genérico sobre formas que considero aceitáveis de resolver essa questão : podemos discutir sobre qual distribuição de liberdades é melhor, ou como atingi-la, mas extinguir liberdades com o único propósito de equalizá-las sem que isso aumente a liberdade de mais ninguém não tem meu apoio.

O que nos retorna ao ponto fundamental : quando é então afinal de contas justificável retirar liberdades de alguém? Existem duas correntes clássicas de pensamento sobre isso. Uma diz que isso só é aceitável quando o exercício de tais liberdades forem ativamente e ostensivamente prevenir outros de exercerem suas próprias liberdades. E aí evidentemente é preciso todo um julgamento sobre custo e benefício, mas o princípio básico seria de que só devemos restringir a liberdade de alguém nos casos em que isso for necessário para proteger a liberdade de outros.

Uma visão alternativa é a de que e aceitável retirar liberdades de alguém não apenas para proteger as liberdades de outros, mas também para criar liberdades que os outros não teriam de outra forma. A idéia é de que já que se estamos tentanto por exemplo maximizar o somatório da liberdade total, então se retirar 10% da liberdade de 5 pessoas for causar um aumento de 30% na liberdade de 50 pessoas, então isso deve ser feito, mesmo que estas 5 pessoas estivessem simplesmente cuidando de suas vidas e não estivessem interferindo diretamente com a liberdade de ninguém.

Minha visão é de que este último raciocínio pode ser perigosíssimo e levou historicamente a todo o tipo de aberrações. Genericamente eu olho com extrema desconfiança e hesitação para a noção de que a sociedade tenha o direito nos engajar à força em quaisquer projetos voltados para o bem comum. Não interessa quão lindos e bem intencionados tais projetos sejam, quando a interferência na nossa independência de escolha ultrapassa um certo limiar, isso é totalitarismo puro e simples. Infelizmente, para proteger a nossa liberdade individual, eu concordo que certas estruturas precisam de fato ser criadas para preencher o vácuo de poder, e eu não acho que a inexistência total de coerção por instituições mais ou menos centralizadas seja viável. Porém, repito, a primordial função e justificativa para tais instituições é garantir que gângsters não assumam eles mesmos esse papel e imponham então uma organização social que desconsidere as liberdades que quero ver preservadas.

Dito isso, consideremos os nomes dados a algumas linhas de pensamento comuns sobre esses assuntos.

Comecemos com “liberal”. Esta palavra tem, em português, uma interpretação padrão diferente da que ocorre no inglês.

Em inglês, quando se fala em “liberal”, isso pode ser entendido de duas formas basicamente opostas : “social liberalism” ou “classical liberalism”. O que já nos leva imediatamente de volta à discussão original sobre como o termo “liberdade” pode ser entendido de formas completamente diferentes. Após a revolução iluminista do século 18, e com um foco tanto do entendimento filosófico do universo quanto das estruturas politicas crescentemente concentrado no  homem, a idéia de preservação das liberdades individuais começou a ganhar cada vez mais importância. Porém, rapidamente surgiu uma discordância sobre como tais liberdades devem ser entendidas e preservadas. Dois caminhos não exatamente opostos mas certamente divergente de pensamento surgiram.

Um deles, o do liberalismo classico, é o de que os esforços na defesa das liberdades individuais devem se concentrar em protegê-la de interferências indevidas. Isso é um tipo de “liberdade negativa” no sentido de que o que deve ser garantido não é que qualquer um terá de fato acesso a qualquer tipo de liberdade, e sim que não será deliberadamente impedido de exercê-la pela sociedade. Os Estados Unidos, ao contrário de quase todas as outras nações modernas do mundo, foram originalmente fundados em princípios que vão mais ou menos nessa direção. Em um de seus mais importantes documentos fundadores, é reconhecida a importância de garantir ao ser humano individual a liberdade de “buscar a felicidade” (algo mais ou menos universalmente aceito atualmente mas revolucionário com relação às concepções de mundo previamente dominantes). Note-se porém o cuidado deliberado de garantir o direito à busca da felicidade, não o “direito” de efetivamente obtê-la, algo que os defensores deste entendimento de liberdade tendem a considerar absurdo, inviável e até mesmo opressivo. Este é o entendimento padrão da palavra “liberal” no contexto de ideologias e movimentos políticos no Brasil.

Já o entendimento alternativo de liberdade vai precisamente nesta direção. Para o liberalismo social, certas liberdades devem ser defendidas de forma “positiva” ou “afirmativa”. Isto é, não é suficiente que se previna que a sociedade interfira coercitivamente com certas liberdades individuais. O raciocínio é de que é inútil ter “em princípio” por exemplo o direito de ir e vir se não se têm de fato o poder de exercê-lo porque o custo dos pedágios é altíssimo. Que é ridículo ter o direito à preservação da própria vida se o custo dos serviços médicos mais fundamentais é completamente inacessível para grande parte da população. A idéia é que embora ninguém esteja entrando na sua casa e atentando ativamente contra sua integridade física, se a sociedade se organiza de uma forma tal que um copo d’agua custe mil dólares, estamos efetivamente negando a uma grande parcela da população o direito à vida. Nos Estados Unidos essa é a conotação automaticamente associada à palavra “liberal” quando usada sem maiores explicações.

Eu, pessoalmente, acredito que levar qualquer uma das duas posições ao extremo NÃO maximiza a liberdade de ação do ser humano individual, que é o que eu realmente gostaria que se buscasse. Segundo o liberalismo clássico (mas note, não segundo por exemplo o anarco-capitalismo), pode ser perfeitamente legítimo por exemplo coercitivamente cobrar impostos para financiar um sistema de polícia que impeça que você seja assassinado ao sair na rua. Estamos falando aqui de destruir certas liberdade para proteger outras liberdades, e até aí estou de acordo. Adicionalmente, concordo plenamente com o liberalismo clássico na posição de que não é aceitável confiscar 50% do salário de todos para prover a todo e cada ser humano o direito, digamos, de viajar para qualquer lugar do mundo que desejar (que seria o caso de destruir certas liberdades para criar outras liberdades).

Consideremos agora outro tipos de liberdade, por exemplo o de acesso à educação e ao conhecimento, ou a alimentação suficiente para não morrer de fome, ou a uma operação de emergência para apendicite aguda. Caso alguém não tenha recursos para estudar, ou para comprar comida, ou para ir ao médico, e esse seja o único impedimento para fazê-lo, isso não é diretamente devido à ação coercitiva de ninguém. No modelo mais ortodoxamente clássico, portanto, que pena, que azar, não é responsabilidade que possa ser legitimamente imposta à sociedade, então eu lamento, mas permaneça ignorante, sem alimentação, ou morra de apendicite. É o que efetivamente se está dizendo.

Eu pessoalmente acho que é necessário haver um equilíbrio entre as duas posições. Devem existir certas proteções para que a interferência da sociedade na minha vida não seja opressiva, e isso é absolutamente fundamental e prioritário. Então se for necessário confiscar 50% do salário de todos para financiar com sucesso o combate à fome, então infelizmente deveremos concluir que não há recursos suficientes para combater a fome com sucesso. Mas se 1% do salário de todos for suficiente para prevenir, digamos, que grandes parcelas da população não possam sequer aprender a ler, então aí eu já acho que o somatório do benefício atingido e tão absolutamente enorme que me parece ser razoável que se aja coercitivamente para retirar um certo grau de liberdade tendo em vista criar outras muito maiores. Mas note-se, desde que se trate de liberdades absolutamente fundamentais, que a relação entre custo e benefício seja exponencialmente favorável, e – talvez o mais importante – que o somatório dessas expoliações voltadas para criar liberdades para outros jamais ultrapasse um certo limiar além do qual inevitavelmente criam um estado totalitário mesmo que produzam os benefícios pretendidos.

Se nos entusiasmamos demais com o liberalismo clássico, protegeremos o indivíduo de interferências excessivas do governo, e talvez até mesmo de ações ilegitimamente coercitivas por outros membros da sociedade, mas deixamos basicamente as portas abertas para todo tipo de vácuo concreto de liberdades ocorrer sem que seja diretamente “culpa” de ninguém em particular, liberdades que facilmente teríamos recursos para criar e garantir e que maximizariam amplamente a liberdade total da sociedade. Não fazê-lo seria motivado apenas por ortodoxia ideológica. Por outro lado, se nos entusiasmamos demais com o liberalismo social, corremos o risco – ou melhor, a certeza – de entrar numa inflação desncontrolada de criação de “direitos” e liberdades que só podem ser garantidos cassando outras liberdades; então mesmo no caso – duvidoso – de que todas essas tais “liberdades” sejam de fato criadas com sucesso, o custo inevitável é o governo se meter opressivamente em todos os aspectos de nossas vidas.

O problema com defender certas liberdades “afirmativamente” é que isso garantidamente resulta na restrição a um certo conjunto de outras liberdades. Isso é feito  supostamente com a justificativa de assegurar outras e com isso maximizar a liberdade total, mas essa conseqüência é incerta, largamente imensurável, e quase sempre profundamente discutível. Eu tendo portanto  a simpatizar bem mais com a visão do liberalismo clássico, e a acreditar que somente certas liberdades absolutamente fundamentais devem ser preservadas ativamente pelo governo. Porém, eu não acredito que esse conjunto de liberdades tão fundamentais que são meritórias de defesa mais ou menos ativa seja completamente vazio. Então, em resumo, eu não me identifico plenamente com nenhuma das duas posições em sua forma mais ortodoxa.

O que nos leva aos libertários. Como disse previamente, eu sou a favor mesmo é de seja lá qual estratégia efetivamente maximizar as liberdades individuais efetivamente disponíveis e exercíveis. Eu não quero ser oprimido nem pelo governo nem pelos meus vizinhos. Mas eu também não quero que gigantescas liberdades potenciais sejam negadas a grandes massas exclusivamente para preservar ao máximo logicamente possível a liberdade de uma fração da sociedade. Mas isso sou eu. Infelizmente, não existe nem de longe uma unidade ideológica entre os libertários, e um significado padrão que se possa oferecer ao termo. Existe todo um espectro de pessoas se chamando “libertárias”, desde os anarco-capitalistas até alguns cujas teses incluem a abolição total da propriedade privada (!). Então de certa forma é muito pouco explicativo alguém se dizer “libertário”.

No Brasil, ainda existe uma divulgação muito pobre das idéias libertárias em todas as suas manifestações e vertentes. O pensamento liberal clássico tem já há um bom tempo um grande número de divulgadores e defensores, assim como o pensamento liberal social. Já o pensamento libertário tem poucos seguidores, defensores e divulgadores. Isso é ilustrado pelo fato de que nem sequer existe um termo suficientemente padrão para dar nome ao pensamento libertário; os termos libertarianismo e libertarismo são os candidatos mais óbvios mas nenhum dos dois possui no Brasil grande penetração, seja na cultura, seja na política.

Uma parte do problema que impede uma maior divulgação da posição libertária é precisamente a mencionada ambigüidade sobre o que ela seria para começar. Uma das maiores inspirações para o pensamento libertário, Ayn Rand, é ao mesmo tempo uma das que mais severamente denunciou aqueles que nos Estados Unidos resolveram tomar para si a bandeira da causa libertária. Mas mesmo estando carregada de confusão e discórdia, a posição libertária goza de substancial importância na cultura americana, uma importância que mesmo minoritária, é decididamente relevante, e provavelmente maior do que em qualquer outro país do mundo.

Ironicamente, um dos fatores que prejudica uma maior sistematização do pensamento libertário é que um de seus fundamentos é dar enorme valor à independência de julgamento, opinião e consciência individuais. Isso faz com que seus proponentes sejam naturalmente repelidos por qualquer sugestão de estabelecer uma ortodoxia ideológica, e acaba prejudicando a divulgação e defesa das idéias que de fato são comuns. Como em vários outros contextos, defender militantemente o pensamento crítico é uma proposta problemática.