O Indivíduo » Uncategorized ../../../. Porque só o indivíduo tem consciência Tue, 02 Aug 2011 04:56:23 +0000 en hourly 1 http://wordpress.org/?v=3.1.3 Palestra Inaugural do Grupo de Estudos da Escola Austríaca ../../.././2011/03/26/palestra-inaugural-do-grupo-de-estudos-da-escola-austriaca/ ../../.././2011/03/26/palestra-inaugural-do-grupo-de-estudos-da-escola-austriaca/#comments Sat, 26 Mar 2011 05:44:25 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=2447

Reproduzo abaixo pedido de divulgação que recebi por email (boa sorte à iniciativa!).

Oi Sergio,
Tomamos conhecimento do teu blog o “O Indivíduo” que divulga idéias libertárias, liberais e similares a da Escola Austríaca.
Somos um grupo de jovens entusiastas da liberdade que começamos um Grupo de Estudos da Escola Austríaca (GEEA) aqui em São Paulo desde novembro de 2010. Já estamos com 40 pessoas e iniciando formalmente as atividades do grupo com a palestra “O que é a Escola Austríaca?”, que será ministrada pelo Hélio Beltrão, fundador do Instituto Mises Brasil.

Ela ocorrerá na terça (29/03) às 11:15, na sala G1 na FEA-USP, São Paulo – SP.

Segue também o link do post sobre a palestra no Blog do nosso grupo:
http://escola-austriaca.blogspot.com/2011/03/palestra-o-que-e-escola-austriaca.html

Se possível, gostaríamos de pedir que tu divulgasse no teu blog para que mais pessoas soubessem dessa mensagem de Liberdade.

Abraços Austríacos e Libertários,
Einstein do Nascimento
Grupo de Estudos da Escola Austríaca (GEEA)

Aproveito para linkar alguns dos textos aqui arquivados relacionados com libertarianismo, liberalismo e similares…

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The Blessed Will Not Care What Angle They Are Regarded From ../../.././2011/03/09/the-blessed-will-not-care-what-angle-they-are-regarded-from/ ../../.././2011/03/09/the-blessed-will-not-care-what-angle-they-are-regarded-from/#comments Wed, 09 Mar 2011 19:53:29 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=2408

The blessed will not care what angle they are regarded from,
Having nothing to hide.

W.H. Auden (1948), “In Praise of Limestone
(O texto completo pode ser encontrado aqui.)

Eu não me recordo quem disse uma vez que maturidade moral é na verdade algo muito simples, e se resume ao seguinte – sua vida, suas escolhas e sua perpepção de você mesmo devem ser tais que você não teria problemas em contar o que você fez hoje de tarde ao jantar à noite com a sua família.

Simples que pareça quando colocado desse jeito, isso é dificílimo de atingir, por uma coleção de motivos.

Um dos motivos mais fortes é que existe uma pressão social absurda, opressiva e freqüentemente beirando ou mesmo atingindo o coercitivo para que nos submetamos ao usual, ao banal, ao mediano sem supresas, enfim, para agirmos de forma que não surpreenda ninguém nem os tire de suas zonas de conforto. Para grande parte das pessoas que encontramos diariamente, moralidade é não fazer nada que as deixe desconfortáveis, e se você fizer – mesmo que seja descobrir a cura do câncer – a reação será na direção genérica de “temos que fazer uma lei para proibir isso”. Infelizmente, porém, o status quo é vezes demais injusto, desumano, indesejável ou inequivocamente errado aos olhos de sua própria consciência. Então daí surge uma escolha moral fundamental – devo fazer o que eu sinto que é certo, ou devo fazer o que os outros esperam que eu faça comprando (espera-se) com isso reconfortante anuência e aceitação, mas traindo minha própria consciência?

Note-se, esse dilema não surge apenas na direção de você ser impedido de fazer o que quer. Ele não surge apenas na reacão negativa que busca reprimi-lo confontacionalmente. Ele surge também, não raro de forma muito mais poderosa e eficaz – justamente porque mais sutil – no constante reforço positivo de comportamentos desprezíveis. Afinal, o que poderia estar errado com uma atitude que gera aplausos e contentamento em todos ao seu redor, certo? A resposta é : absolutamente tudo. Assim como a verdade não é decidida por democracia, integridade ética está subordinada a ser coerente com o que VOCÊ sente que seja o correto. Fazer subservientemente o que mandaram sem questionar não o torna uma fortaleza de integridade, e sim uma ferramenta eficiente – que pode estar a serviço tanto do mais sublime progresso da humanidade quanto da mais destrutiva psicopatia. Um ser humano se torna moralmente (e, diria eu, também intelectualmente) maduro quando percebe que é possivel ele estar certo quando todo mundo acha que ele está errado mas também – e isso é muito mais difícil – quando percebe que e possivel ele estar errado quando todo mundo acha que ele está certo.

Só que se por um lado ter a humildade e o realismo autocrítico de perceber que mesmo nossas certezas mais absolutas podem estar completamente erradas é saudável e coisa e tal, , por outro isso não deve ser usado como desculpa conveniente para não termos posições nem atitudes sobre coisa alguma.

O que nos leva à seguinte frustrante dificuldade sobre o caráter das pessoas.

Aqueles que são mais destemidamente “corajosos” em irem contra as normais sociais, em desafiar o saber comum, em confrontar as regras, aqueles que são mais assertivos e proativos e não esperam pela aprovação dos outros antes de agirem, todas qualidades que no contexto certo são inestimáveis e admiráveis, estas pessoas freqüentemente o fazem por todos os motivos errados, e ou são psicopatas totais que não se importam em buscar aprovacão porque não estão nem remotamente preocupados com os outros em qualquer nível ponto, ou são psicopatas na prática – no sentido em que causam imenso mal e destruição – ao elevarem delirantemente sua consciência moral ao nível de holofote infalível e inerrante de verdade ética que precisa ser imposto a todo custo a todos mais. Inclusive eu diria que historicamente muito mais mal já foi feito em nome do bem do que em nome do mal. O psicopata que não está tentando trazer o bem a ninguém senão a si mesmo em geral se concentra em cuidar da sua vida e o mal que faz vem como efeito colateral acidental de buscar o próprio bem. Já o psicopata que acha que vai salvar a humanidade quer ela queira quer não, por quaisquer meios que se façam necessários – este é muito mais perigoso. É pouco realista coordenar um movimento político popular com a plataforma “vamos prender e torturar pessoas aleatórias porque isso me faz sentir poderoso”. Já com “vamos prender e torturar pessoas aleatórias porque essa é a única forma de impedir o colapso da civilização ocidental”, o sucesso é bem mais acessível. Ironicamente, institucionalizar a tortura de pessoas aleatórias é um risco muito maior para a civilização ocidental do que um bando de malucos tentando destruir a civilização ocidental. Se não é precisamente esse tipo de garantia e liberdade que estamos tentando garantir e proteger dos malucos, é o quê então?

Por outro lado, aqueles por “temperança” parecem ser mais conciliadores, gentis e prudentes, aqueles que em princípio aceitam o saber comum, que seguem nominalmente as regras, que são aparentemente passivos e preocupados em ficar esperando pela aprovação dos outros antes de agirem, todas características que no contexto certo são qualidades inestimáveis e admiráveis, estas pessoas também freqüentemente o fazem por todos os motivos errados, e na hora em que é preciso que tomem uma atitude, revela-se que sua prévia inação, muito mais do que derivada de qualquer idealismo ou empatia, fundamentava-se sim em inércia, conveniência e acima de tudo medo e hipocrisia. Tais personalidades podem por vezes ser até mais perigosas do que as abertamente confrontacionais, pois muito mais facilmente passam abaixo do radar do nosso julgamento como essencialmente bem intencionadas, quando na verdade sua pretensa mansidão é apenas uma máscara para uma natureza essencialmente covarde e manipulativa, como brilhantemente ilustrado no personagem Tom em Dogville.

Então ao final nos vemos navegando entre dois pólos extremos e patológicos – de um lado, aqueles que não têm certeza de nada, do outro, aqueles que têm certeza de tudo. E é difícil resistirmos nós mesmos ao apelo de nos juntarmos a um dos lados e ao invés disso convivermos com a responsabilidade duplamente herética de termos apesar das incertezas e das incompletudes uma opinião e uma personalidade. E então os melhores entre nós ficam na superfície muito parecidos com os piores, pois destes herdam tanto a audácia de pensarem por si e em si mesmos quanto o sentimento de responsabilidade inalienável em considerar seriamente as conseqüências de suas escolhas sobre os outros. O que os distingue é essa profunda sinceridade de propósito que à primeira vista pode parecer sutil e arredia a nível puramente retórico mas que fará enorme diferença nas escolhas que serão efetivamente feitas. Não se trata de coragem por coragem ou de mansidão por mansidão. O que distingue um louco destrutivo de um sujeito que mereça ser chamado de corajoso e forte, o que distingue um puxa-saco subserviente de um sujeito que mereça ser chamado de generoso e equilibrado em geral não é primordialmente o seu discurso sobre seus alegados valores e motivos mas sim as conseqüências não ditas mas muito concretas das ações reais que estão efetivamente sendo tomadas. E olhada deste ângulo, a retórica mais linda e espetacular do mundo pode rapidamente se transfigurar numa impostura insustentável.

Diante disso, uma decisão fundamental que cada um de nós precisa tomar em algum momento é, antes mesmo de se vamos ser honestos com os outros, a de se vamos ser honestos com nós mesmos quanto às consequências de nossas próprias ações. Para podermos tomar qualquer decisão moral real ao invés de sobre fantasias delirantes precisamos antes de mais nada sermos honestos com nós mesmos, quem somos, o que queremos, o que estamos buscando, o que estamos dispostos a fazer. E talvez ainda mais problemático do que quebrar publicamente essa “suspension of disbelief” sobre nossa historinha fantástica acerca de quem nós mesmos somos, muito pior que isso na maior parte dos casos pode ser ver essa impostura ser tornada insustentável para nós mesmos. E em algum ponto nessa corda bamba de buscar sustentar uma auto-imagem reconfortante mas basicamente desonesta podemos concluir que não queremos mais nada disso. E para se libertar dessa farsa, é preciso conseguir olhar para a própria fraqueza e impotência e incerteza de frente, aceitá-las sem escamoteações, e decidir o que fazer com isso. Não que isso seja fácil, muito pelo contrário. Mas a partir do momento em que escolhemos encarar de frente quem realmente somos, e a partir do momento em que escolhemos tomar decisões coerentes com isso, e a partir do momento em que abrimos mão da muleta de buscar criar em nós mesmos ou nos outros uma percepção de nós mesmos que não corresponda à realidade de como as coisas de fato são, estaremos então libertos de temer de qual ângulo seremos enxergados.

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O Indivíduo, 13 Anos ../../.././2010/11/19/o-individuo-13-anos/ ../../.././2010/11/19/o-individuo-13-anos/#comments Fri, 19 Nov 2010 15:50:56 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=2317
“Dia da Consciência Negra”
(Crônica de Mário Negreiros)

Eis que hoje “O Indivíduo” faz oficialmente 13 anos de existência.

Muito, mas muito mesmo se passou desde então. Em particular, este site passou por muitas mudanças de formato, de estilo, de provedor, de público, de editores, e de autores. Mas permanece aqui, mesmo que tendo virado um clube do eu sozinho, representado hoje por ninguém mais além de eu mesmo.

Como brinde comemorativo, resgato dos meus arquivos uma das crônicas publicadas na Rádio MEC em 1997 pelo jornalista Mário Negreiros logo após a confusão que se seguiu à publicação do número zero na PUC.

Adicionalmente, listo os dez textos mais lidos ao longo do último ano, em ordem descrecente de número total de acessos  :

  1. Homens e Mulheres
  2. Educação Compulsória e Totalitarismo
  3. Citando Aristóteles
  4. O Discreto Triunfo do Pensamento Marxista
  5. Prioridades Libertárias no Brasil
  6. Definições Políticas
  7. Liberals, Liberais e Libertários
  8. Ciência versus Filosofia
  9. Brasil, uma Nação à Procura de um Destino
  10. Ainda Homens, Mulheres e Sexo

Destaco aí uma presença anual constante nas estatísticas de acesso desde sempre : o texto “Ciência versus Filosofia“, escrito em 1997 e presente no número zero.

Saudações a todos,
Sergio

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Morte por Solidão ../../.././2010/06/15/morte-por-solidao/ ../../.././2010/06/15/morte-por-solidao/#comments Tue, 15 Jun 2010 05:39:54 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=2045 A teoria mais conhecida sobre a queda do mítico, gigantesco, santo e sagrado Império Romano é a de que ele teria sido ao longo de séculos primeiro desestruturado e então literalmente, concretamente, fisicamente destruído por invasões militares bárbaras. Este é um desses factóides enciclopélicos freqüentemente “ensinados” em escolas.

Uma teoria um pouco menos conhecida é a de que não teria sido bem isso que aconteceu. Existem fartos e grandes indícios de que 1) a maior parte dos bárbaros não tinha qualquer interesse em destruir o Império Romano e 2) a desintegração do modo “romano” de viver não está perfeitamente sincronizada com a desintegração do império. Elaboremos.

O fato é que o Império Romano exercia *imenso* fascínio sobre os bárbaros, que em geral queriam tão somente *permissão* para migrar pacificamente para dentro das fronteiras do império em busca, por assim dizer, de uma vida melhor. Queriam aprender a língua (e em grande parte o fizeram, tanto quanto foi possível), queriam adotar as religiões, as instituições, o modo de ser romano. Quem de fato não queria isso eram os cidadãos romanos, que achavam os bárbaros, com seus modos selvagens e aparência pouco “sofisticada”, indignos de ingressar no império. Quer dizer, indignos *exceto* para executar tarefas que os romanos mesmos não queriam mais executar, via pela qual – por exemplo como soldados mercenários – hordas inteiras de bárbaros foram eventualmente assimiladas. Então criou-se uma situação na qual mais e mais bárbaros foram fazendo na prática parte do império romano, até chegar um momento em que simplesmente assumiram o poder de fato. E o que fizeram com isso, resolveram denunciar todos os valores romanos? Não! De forma alguma. Os bárbaros buscaram na maior extensão possível dos seus esforços preservar toda a estrutura política, administrativa e cultural do império, muito depois do último imperador ter sido deposto. Mas não foram bem sucedidos em fazê-lo, e a decadência paulatina de todos esses aspectos se deu irreversivelmente ao longo de grandes períódos de tempo.

Qualquer semelhança com o mundo atual é mera identidade.

Para reforçar o ponto, vamos a uma teoria ainda menos conhecida sobre o que de fato ocorreu. O império romano passou por uma cisão espontânea em dois e o império do oriente durou ainda mais um bom tempo. Qualquer explicação do colapso do império do ocidente tem que levar isso em conta, isto é : o que deu errado no ocidente que fez com que a queda viesse tão antes e fosse tão mais dramática? Bem, uma força que alguns historiadores consideram que se deveria levar em conta é que os árabes, repentinamente inspirados e unidos pela doce mensagem de paz e amor do corão, decidiram partir da Arábia, invadir o Iraque e então conquistar militarmente todo mundo ao seu redor. Ironicamente, em termos de religião e teologia, os árabes eram bem mais tolerantes que os papólicos, e achavam que cristãos e judeus cultuavam uma forma imperfeita de islamismo que mesmo sendo errada tinha valor suficiente para ser respeitável (ao contrário de todo o resto, que tinha mesmo era que se converter ou morrer; e aliás tentar converter alguém do islamismo para o cristianismo por exemplo seguiu sendo crime passível de pena de morte). Então em um dado momento, após conquistarem um dos maiores impérios da historia, resolveram ficar mais calmos e parar com a farra. Mas a essa altura, muito mais de cultura e civilização estava crescentemente sendo preservado no império árabe do que na Europa. Por que? Uma possivel explicação é que a riqueza do império romano em geral e da Europa em particular era enormemente dependente de impostos e de comércio. Ao perder acesso às rotas através do Mediterrâneo e dos territórios agora em mãos dos Árabes, os restos moribundos do império romano no centro da Europa, mesmo não tendo sido completamente subordinados aos árabes, perderam completamente sua viabilidade econômica, enquanto o império do oriente ainda persistiria por séculos. O problema não seria então basicamente militar, ou cultural, mas econômico.

Recapitulemos então as idéias que levantamos até agora sobre a desintegração do império romano.

A) O império romano teria se desintegrado diante de derrotas militares
B) O império romano teria se desintegrado diante de decadência e descaraterização cultural
C) O império romano teria se desintegrado diante de se ter tornado economicamente inviável

Vamos agora à piéce de résistance : as teorias mais modernas sobre o colapso do império romano.

Estudos arqueológicos recentes mostraram um fenômeno estranho ocorrendo ao longo de um grande período de tempo : despopulação espontânea. A cidade de Roma em seu auge pré-medieval chegou a possuir da ordem de um milhão de habitantes. Então progressivamente, o que se observou foi uma queda da população, um descréscimo contínuo. Quinhentos mil, cem mil, etc. Isso não ocorreu somente em Roma; ocorreu em grande escala. Um grande número de construções romanas foram encontradas desertas, desocupadas, sem que isso tenha sido o resultado de algum grande cataclisma ou invasão. Poder-se-ia pensar que isso teria sido o resultado de algum tipo de migração para o campo, mas existem várias evidências de que não seja o caso. Como grupo biológico, os romanos simplesmente pararam de se reproduzir. Um dos motivos por que isso passou despercebido como idéia por tanto tempo ao se pensar sobre o assunto é o quão contraintuitivo soa que uma das civilizações aparentemente mais bem sucedidas do mundo tenha resolvido voluntariamente entrar em apoptose. Então mesmo quando as pistas estavam lá o tempo todo, elas freqüentemente foram interpretadas como conseqüência e não como causa. Mas um acúmulo cada vez maior de fatos leva a crer que a despopulação não seria então uma *conseqüência* da decadência, e sim sua causa. Então não seria o caso de que os bárbaros, ou os árabes, ou os vikings ou ninguém mais  teria destruído a cultura romana de fora para dentro ou expulsado geograficamente os romanos de onde se encontravam. Tais grupos apenas ocuparam o vácuo deixado por uma civilização que desapareceu por crescente falta de gente.

O mais irônico, ou assustador, ou informativo (dependendo do ponto de vista que assumirmos) é que esse é precisamente o fenômeno que observamos *hoje* nas nações mais “desenvolvidas” do mundo. Ao atingirem o auge da “sofisticação”… tornam-se biologicamente estéreis, inférteis, cometem suicídio filogenético. Seus representantes simplesmente param de se reproduzir e o vácuo resultante é entao ocupado por populações nas quais ainda queima a chama primitiva, selvagem e renovadora de “eu quero produzir mais indivíduos da minha espécie”. E sem isso, sem esse fogo biológico primordial, sem essa vontade irracional de se conectar genuinamente a outros seres humanos e com isso produzir novas vidas e cuidar delas ao invés de se preocupar primordialmente apenas com o próprio nariz e com joguinhos estúpidos de apostar a própria sobrevivência e felicidade na impostura de querer se fingir sofisticado demais para ser um primata, sem isso nenhuma civilização do mundo, por mais culturamente avançada, por mais intelectual, tecnologicamente, economicamente pujante que seja, por mais militarmente poderosa que tenha se tornado, pode sobreviver.

O grande, sagrado, santo, mitológico império romano não morreu por falta de poder militar, decadência cultural, ou mesmo colapso econômico. Todos esses fenômenos de fato ocorreram, mas foram conseqüências, não causas. Não, o império romano morreu por falta de gente. O império romano morreu de solidão.

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Einstein Esteve Aqui ../../.././2010/05/28/einstein-esteve-aqui/ ../../.././2010/05/28/einstein-esteve-aqui/#comments Fri, 28 May 2010 15:52:50 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=2004 Fuld Hall
The Institute for Advanced Study at Princeton

Eis que por uma seqüência imprevista de eventos eu acabei indo visitar o Institute for Advanced Study na cidade de Princeton. Talvez isso não signifique muito para quem não seguiu carreira acadêmica e não fica muito impressionado em andar pelos mesmos caminhos onde Einstein e Gödel passeavam juntos. Mas para mim é impressionante finalmente ver a lareira ao lado da qual algumas das conquistas mais importantes do pensamento humano foram discutidas e desvendadas, e ver o escritório onde Einstein trabalhava.

Einstein

O instituto é atípico (era mais ainda quando foi fundado) no sentido em que não é exatamente uma instituição acadêmica padrão. Ele não tem alunos, ou laboratórios, nem dá diplomas de coisa alguma. Ele também não vende, contrata ou dirige a pesquisa de nenhum de seus membros. Nao se trata, portanto, nem de uma instituição de ensino, nem exatamente de uma instituição de pesquisa. É uma instituição, como diz o nome, de estudos avançados. A idéia é que algumas das melhores e mais brilhantes mentes que puderem ser encontradas serão convidadas a se juntarem ao instituto para então serem deixadas em paz para pensarem… no que quiserem.

Ironicamente, ao longo dos anos, foi repetidamente observado que essa proposta não é necessariamente a mais produtiva em termos de resultados científicos. Vários cientistas acima de qualquer suspeita, como por exemplo Richard Feynman, observaram que toda essa liberdade, que em princípio permitiria aos gênios explorarem suas idéias sem as amarras dos compromissos usuais, acabaria na prática gerando ao invés disso estagnação e paralisia. Segundo Feynman, é preciso um certo grau de urgência e de problemas sendo atirados no seu colo para manter a mente ativa e produzindo.


Andando aleatoriamente pelo Institute for Advanced Study

Seja como for, algumas das mentes mais brilhantes do mundo de fato passaram pelo instituto. O número de vagas permanentes, porém, é bastante limitado; a maior parte dos pensadores recebe apenas posicões temporárias e são periodicamente substituídos.

O local inteiro, embora extremamente agradável e confortável, não é muito grande nem arquiteturalmente impressionante. De fato a impressão é a de que este seria o resultado de um monte de matemáticos se juntando e decidindo “ok, precisamos de uns prédios aqui”. Seu significado porém é imenso, e de certa forma essa simplicidade e despojamento nos fazem apreciar e entender ainda mais profundamente a escala de valores e a personalidade daqueles que ali trabalham. Nada de colunas neoclássicas de mármore com 30 metros de altura, nada de prédios com ângulos impossíveis revestidos de vidro e aço, nada de arabescos ou gárgulas. Não estamos aqui para impressionar ninguém. Estamos aqui para pensar.

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Yankee Doodle

As forças confederadas estavam plenamente cientes do avanço do exército inimigo e, não tendo qualquer intenção de ceder terreno, tomaram posições defensivas para a batalha. Os dois exércitos se encontraram em 30 de dezembro de 1862, quando as forças do norte, estacionadas em alguns pontos a menos de um quilômetro do exército confederado, cessaram seu avanço e iniciaram os preparativos para uma grande ofensiva no dia que se seguiria.


I Wish I Was In Dixie

Todos os soldados ali presentes sabiam precisamente o que se seguiria. Ou melhor, sabiam que haveria uma batalha; absolutamente não sabiam qual seria o resultado, quem venceria, se ainda estariam vivos ao fim do próximo dia ou se jamais veriam novamente seus lares, suas esposas, seus filhos, seus pais, se jamais retornariam à cidade onde haviam nascido. Tanto quanto sabiam, sua vida poderia acabar ali, seus corpos pisoteados, abandonados, esquecidos  e enterrados numa vala.

Caiu a noite e como muitas vezes ocorria em situações similares, ambos os lados começaram a se preparar não apenas logisticamente mas também psicologicamente para a batalha. As bandas de cada exército começaram a tocar hinos e marchas exaltando o patriotismo e o caráter regional de cada exército. Eles estavam tão próximos, porém, que as bandas podiam ouvir claramente umas às outras, e começaram a competir entre si. Uma banda do exército do norte, por exemplo, tocaria Yankee Doodle, ao que uma banda do sul responderia em seguida com Dixie. Isso se prolongou por vários turnos, até que em um dado momento, uma das bandas começou a tocar Home, Sweet Home.


Home, Sweet Home

Agora vejam, esta música era popular em ambos os exércitos e não exaltava nenhum dos dois lados. Ao invés disso, falava do significado do lar, da terra natal, e de estar entre  as pessoas que você ama :

Mid Pleasures and palaces though I may roam,
Be it ever so humble, there’s no place like home;
A charm from the sky seems to hallow us there,
Which, seek through the world, is never met with elsewhere. Home.

Diante disso, as bandas do lado oposto começaram a se juntar à mesma canção, e os soldados de ambos os exércitos, prestes a se assassinarem mutuamente, começaram todos a emocionadamente cantar juntos. Em pouco tempo, estavam unidos pelos exatos mesmos sentimentos de saudade, fraternidade e humanidade, pelos mesmos sentimentos de amor por tudo o que prezavam e de medo diante de tudo o que estava por vir. Uma união insustentável, numa situação insustentável, um momento surreal de encontro no qual todas as profundas raízes, crenças e desejos comuns entre ambos os lados nesta luta fratricida foram trazidos à tona. Cantando juntos no meio da noite quase puderam esquecer que o tempo passava inexoravelmente e que ao amanhecer tudo seria diferente. Ao longo da noite, pouco a pouco as bandas foram parando até reinar o silêncio.


Home, Sweet Home

No dia seguinte, milhares de soldados morreram numa que foi uma das batalhas mais sangrentas de uma guerra que ainda se prolongou por mais dois longos anos.

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Não é minha culpa, não é meu problema ../../.././2010/05/15/nao-e-minha-culpa-nao-e-meu-problema/ ../../.././2010/05/15/nao-e-minha-culpa-nao-e-meu-problema/#comments Sat, 15 May 2010 21:41:24 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1973 Uma das respostas mais convenientes para a omissão diante do mal, geralmente pronunciada com incontida satisfação com a própria argúcia, é : NÃO É MINHA CULPA, NÃO É MEU PROBLEMA.

Aqueles que acham este raciocínio uma fortaleza de lógica e um respeitabilíssimo princípio moral parecem (seja genuína ou hipocritamente) não perceber quão ridiculamente mal disfarçada esta é, despida de sofismas e maquiagens, simplesmente uma afirmação de que NÃO ME AFETA, NÃO É MEU PROBLEMA.

Por esse raciocínio,  se você está passeando sozinho na praia e então observa um bebê abandonado na areia, você pode perfeitamente pensar “eu não causei isso, eu não tenho nada a ver com isso, vou continuar caminhando, não é minha culpa, não é meu problema”. Se você trabalha varrendo o chão para uma companhia que produz antibióticos e descobre por acaso que por um erro de administração um lote inteiro estragou mas eles vão vendê-lo assim mesmo para não perder milhões, você pode perfeitamente pensar “eu não causei isso, eu não tenho nada a ver com isso, não é minha culpa, não é meu problema”. Se você vê está dirigindo numa estrada à noite, observa um atropelamento com fuga do motorista deixando uma vítima agonizante no asfalto, você pode perfeitamente pensar “eu não causei isso, eu não tenho nada a ver com isso, não quero me envolver com isso, vou continuar dirigindo, nao é minha culpa, não é meu problema”. Se você trabalha numa concessionária servindo café e nota que está sendo apresentado a um cliente um orçamento de serviços para seu carro que são flagrantemente desnecessários e desonestamente superfaturados para substituir peças que estão funcionando perfeitamente além de qualquer dúvida, você pode perfeitamente pensar “eu não causei isso, eu não tenho nada a ver com isso, não é minha culpa, não é meu problema”.

Ou você pode escolher fazer alguma coisa sobre o assunto.

Percebam, escolher não fazer nada é também uma escolha, é também uma ação, é também uma iniciativa com significado ético. Mesmo que você possa argumentar que não foi o causador original de um certo resultado, e que talvez nem sequer o desejasse, isentar-se diante da injustiça, da maldade, do que você sabe que está errado e incorreto, calar-se diante da mentira, omitir-se diante da opressão, assumir calado seu papel no que você sabe que é uma farsa e uma impostura, tudo isso é sim transbordante e pleno de implicações éticas. E não fazer nada certamente afeta o outro, especialmente quando você está numa posição privilegiada para mudar o curso dos eventos. Então sim, mesmo que não seja sua “culpa”, suas ações – ou omissões – continuam tendo conseqüências e significado.

Muitas vezes somos confrontados com situações que não criamos mas sobre as quais no entanto temos poder de agir, de interferir. Não interessa de quem é a “culpa” de aquela situação existir, ela está ali e requer que você faça uma escolha sobre como vai reagir diante dela. Se você acha realmente que não ter causado a situação o isenta de qualquer responsabilidade ética, então você perdeu completamente o ponto e o espírito do que significa ética. Se sua única preocupação é “Será que alguém poderá vir a me culpar por isso?”, então transparentemente você está preocupado apenas com você mesmo. Ética não é levar em conta que se você fizer algo errado isso poderá ter conseqüências para você. Até um psicopata convicto se preocupa com isso. Ética é se preocupar com como o resultado das suas ações e escolhas vão afetar o OUTRO.

Claro, você pode aí observar : tá, ok, o fato de não ser minha “culpa” não resolve automaticamente a questão. Mas seja por ação direta ou por omissão, dirá talvez você, continua não sendo “seu problema”, no sentido em que você não aceita como responsabilidade sua zelar pelo bem estar dos outros. Você pode honestamente perguntar : por que eu deveria me preocupar com a consequência das minhas ações sobre os outros, seja ou não por omissão? Por que eu deveria me preocupar se ao buscar ativamente um benefício para mim mesmo e ao cuidar dos meus próprios interesses causo diretamente a desgraça do outro se isso não me afetar diretamente e se não houver pragmaticamente a expectativa de quaisquer represálias ou conseqüências para mim? Chegamos então ao verdadeiro fundamento da questão, que é que para alguns (muitos, possivelmente a maioria) o bem estar dos outros não é realmente seu “problema”. Mas note, esta é justamente a questão central da ética. O que você está realmente perguntando, nesse caso, é : por que deveria eu me importar com os outros, ou com agir eticamente, ou com o fato de que minhas escolhas afetam a felicidade dos seres humanos à minha volta? Por que o bem estar dos outros seria “meu problema”?

Colocada desse jeito, pelo menos é uma questão um pouco mais honesta. E eu não tenho nenhuma resposta irresistível para ela. Eu não tenho absolutamente nenhum argumento filosófico, lógico, científico ou de nenhuma outra ordem que realmente demonstre que a única posição razoável, aceitável, coerente ou justificável seja a de considerar sim o bem estar dos outros. Eu gostaria de ter, e muitas grandes mentes ao longo da história dedicaram imenso esforço para articular um motivo, mas a verdade mesmo é que não há. É essencialmente uma escolha, uma escolha com profundas implicações sobre quem somos e como viveremos nossas vidas, mas ainda assim basicamente uma escolha. Eu poderia dizer que você será infeliz com essa escolha, ou que será eventualmente punido, ou que não está sendo fiel ao seu coração, ou dar um monte de outros argumentos que, bem, refletem muito mais o meu sistema de valores do que a estrutura da realidade. Em geral, nenhuma dessas conseqüências é necessariamente verdade, especialmente se você conhecer a si mesmo e agir de forma minimamente inteligente. Ou seja, é perfeitamente possível e realista ser um patife desprezível e viver uma vida muito feliz. Inclusive, se isso não fosse verdade, não haveria qualquer dilema ou escolha a fazer.

Claro, existem milhões de motivos para escolher não aceitar essa responsabilidade, mesmo quando você a percebe como sendo de alguma forma justificada. Fazer a coisa certa pode ser custoso, inconveniente, desagradável. Agora, vejam – fazer a coisa certa quando ela coincide com os seus interesses é fácil. Difícil é fazê-lo quando ela os prejudica. Escolher fazer a coisa que você percebe como certa em casos nos quais isso vai contra os seus interesses é penoso e complexo, mas isso sim é agir eticamente.

Note, não estou dizendo aqui que devemos ser todos mártires no sentido de colocar o valor do bem estar dos outros acima do nosso e nos autodestrurimos no altar da “etica”. Eu tenho uma prerrogativa tão legítima de valorizar meu próprio bem estar quanto os outros, e eu acho muito natural e correto que em havendo conflito direto de interesses, eu valorize meu próprio bem estar mais do que o de o de um sujeito aleatório. Mas existe uma diferença enorme, gigantesca entre eu TAMBÉM considerar o meu bem estar como importante e eu considerar APENAS o meu bem estar como importante. É preciso buscar um equilíbrio aí. Mas se ao invés disso você considera o seu bem estar tão mais acachapantemente valioso do que o de todos mais que um pequeno e fútil benefício para si mesmo valha a extrema miséria e infelicidade alheia e você está perfeitamente feliz e satisfeito com isso, então meus parabéns, você é um sociopata.

Sim, você tem nas suas mãos a escolha de ser ou não o protetor de seu irmão e não apenas de si mesmo. Você é perfeitamente livre para optar. E isso só faz com que por mais forte razão ainda escolher não o ser, não enxergar como imperativa a responsabilidade e o dever de o ser, que isso seja uma posição estalante de significado.

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Como Fazer Amigos e Influenciar as Pessoas ../../.././2010/05/11/como-fazer-amigos-e-influenciar-as-pessoas/ ../../.././2010/05/11/como-fazer-amigos-e-influenciar-as-pessoas/#comments Tue, 11 May 2010 07:25:23 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1965 Dale Carnegie foi um dos precursores do gênero atual de livros de auto-ajuda e similares. Como vários autores desse tipo, uma grande parte de seu impacto e de sua influência se derivou de sua popularidade em meios corporativos, nos quais gerenciar e extrair algo convincentemente parecido com “resultados” de pessoas absurdamente incompetentes e obtusas e/ou induzir e manipular todo tipo de pessoas a agirem contra sua felicidade pessoal, contra sua consciência e contra seus interesses é uma questão sempre presente (a isso usualmente se chama “liderança”).

Seu livro mais popular, um grande best-seller publicado em 1937 e  vendido até hoje, se chama Como Fazer Amigos e Influenciar as Pessoas.

No primeiro capítulo do livro, ele diz logo de saída algo nas seguintes linhas :

Se você for tirar apenas uma lição deste livro, apenas uma única, e for se lembrar de apenas uma recomendação prática para empregar no seu trato cotidiano com os outros e que maior impacto terá em auxiliá-lo a fazer amigos e influenciar as pessoas, é esta : NUNCA CRITIQUE NINGUÉM. Não interessa se você estiver coberto de razão, não interessa se você estiver numa posição de autoridade, não interessa se você souber ensinar à pessoa criticada como fazer o certo, não interessa se você puder consertar o problema (conserte sem criticar ninguém, ou não faça nada), não interessa se você tiver a solução para todos os problemas do mundo e os meios para implementá-la e souber exatamente que são os culpados e responsáveis. Nada disso interessa. Se você quiser fazer amigos e influenciar as pessoas, nunca critique ninguém. Nunca condene, nunca reclame, e nunca, nunca, nunca critique ninguém, por nenhum motivo, em nenhuma circunstância. [Talvez a essa altura o leitor que me conhece esteja se peguntando : Sergio, tem certeza de que você leu este livro? :-) ]

Existe toda uma coleção de motivos para ele dar esse conselho, e sem querer simplesmente atirar no mensageiro e descartar a relevância do que está sendo dito, eu diria que o que mais profundamente me irrita nesse conselho não é Dale Carnegie tê-lo enunciado, e sim o fato de que do ponto de vista estritamente pragmático existem excelentes motivos para ele dar esse conselho. Note-se, dizer que Maquiavel descreve estratégias moralmente questionabilíssimas para gerir um estado não é em si argumento para dizer que elas não funcionem (no sentido de atingir os objetivos propostos). Então se o conselho de Dale Carnegie causa extrema repulsa (e deveria, a meu ver) em pessoas com uma espinha dorsal moral (algo, admito, exageradamente raro), o problema não está exatamente com Dale Carnegie, porque ele não está delirando. O problema está com uma sociedade na qual existem fortíssimos motivos para isso ser oferecido como conselho.

Uma parte do problema é que a absoluta maioria das pessoas, apesar de todos os seus patéticos esforços para parecerem e convencerem como socialmente relevantes, é na verdade portadora de egos feitos de isopor pintado e chafurdam na mais infantil fragilidade emocional. Então se você as critica, ou aponta seus erros, imediatamente se desestruturam e têm reações aleatórias, entre as quais comumente e previsivelmente estarão atacá-lo usando recursos ao seu dispor. Então evidentemente já daí não é do seu interesse criticar ninguém.

Adicionalmente, do ponto de vista intelectual, a absoluta maioria das pessoas também navega na mais obscura confusão mental, e não tem qualquer critério minimamente coerente de verdade ou necessidade lógica. Nesse paradigma, qualquer um afirmar qualquer coisa é igualmente válido, e opiniões refletem apenas ideologias, sentimentos, preconceitos ou interesses e nada mais. Uma boa parte da humanidade efetivamente toma decisões dentro desse paradigma. Então evidentemente se você critica alguém, isso será percebido não como uma possível observação de um fato, os quais afinal de contas não existem, e sim como um ataque pessoal, movido por intenções desconhecidas mas especulativamente perversas.

Num nível um pouco mais sofisticado, existe adicionalmente a questão de que do ponto de vista moral a maioria absoluta das pessoas simplesmente nem sequer está lá. Ou melhor, para ser mais preciso – do ponto de vista ético, a maioria absoluta das pessoas nem sequer está lá. Do ponto de vista moral está lá até demais – para a quase totalidade das pessoas, importa imensamente o que os outros pensam, inclusive importa infinitamente mais – diria eu quase sempre exclusivamente – o que os outros vão pensar, e só isso. Já o que de fato é “certo” ou “errado” é menos do que irrelevante; não é sequer considerado como uma categoria. Entre os mais modernosos, pruridos de consciência chegam a ser explicitamente tratados como uma deficiência a ser expurgada em nome de mais perfeitamente verem atendidos seus interesses “práticos”.

Finalmente, existe um aspecto mais insidioso (bem, não sei se mais insidioso – certamente é particularmente decepcionante para mim) disso tudo que é o seguinte. Existem pessoas que olham pra isso tudo e com variável grau de intensidade são capazes de perceber que é o que está acontecendo, e sentem visceralmente que isso não é bom. O que elas fazem então, quase universalmente? Bem, decidem que pensar no assunto é doloroso demais e buscam polianicamente a todo custo não pensar nisso. Note, não é que busquem não se desanimar com isso, ou ter uma atitude construtiva diante disso. Buscam literalmente não pensar nisso.

E para isso, claro, não faltam argumentos  para se auto-enganar : Não vai adiantar nada. Nada pode ser feito. Deixe de ser chato, o que você está tentando provar. Para com isso. Não seja intolerante. A vida é assim mesmo. Etc, etc. Em outras palavras VAMOS TODOS COMBINAR NÃO PENSAR NO ASSUNTO. Vamos todos fingir que habitamos num mundo encantado diferente do real. Ninguém critica ninguém e ufa, todos podemos confortavelmente seguir razoavelmente em paz não fazendo nada sobre o que sabemos que está errado.

Só que a vida NÃO é “assim mesmo”. A vida é o que nós escolhemos fazer dela. Eu diria que a enorme, gigantesca pressão no sentido de “deixa disso” é em grande parte motivada não apenas pela pretensa defesa da “tolerância” ou “humildade”, mas sim (sombriamente) pelo muito menos nobre motivo de que quem é capaz de ver que tem tantas coisas erradas com o mundo se reconforta ENORMEMENTE no raciocínio de que nada pode ser feito sobre o assunto. E se nada pode ser feito, é aceitável respirar aliviado em sua complacência. Sendo esse o contexto quase universalmente vigente, não é surpreendente que quando alguém se mete a dizer que o imperador está nu, ou pior ainda, a DE FATO tomar uma atitude, isso seja profundamente incômodo, porque desmonta o argumento de que seja impossível / irreal / ineficaz fazer alguma coisa. E se torna ainda mais importante e urgente qualificar o imprudente desviante que se recusa a aderir ao tácito acordo de “vamos combinar que ninguém vai fazer nada e todos dormem tranqüilos” como ingênuo / delirante / maluco / impostor.

Sim, criticar os outros nem sempre é do nosso “interesse”. Aliás, muito freqüentemente não é. O meu ponto é que NEM SEMPRE FAZER O QUE É DO SEU “INTERESSE” É A COISA CERTA.

Alguns dos maiores líderes e maiores inspirações que temos ao longo da história da humanidade o foram justamente por serem grandes, enormes críticos, e foram considerados heróicos justamente por terem tido a coragem de continuar criticando diante de ameaças, e hostilidade, e de ondas maremóticas de “deixa disso”, e desconsiderando o que seria num escopo mais míope e egocêntrico “do seu interesse”. E grande parte das vezes eles pagaram por isso um preço enorme e se tornaram mártires no sentido mais literal da palavra de que terminaram sendo concretamente assassinados. São então retroativamente louvados e endeusados e elevados a irreal status sobre-humano, talvez em grande parte porque isso ajuda a coletividade a se libertar da responsabilidade de tomar ela mesmo uma atitude. Afinal de contas, você não é o Gandhi, né? E esse cara aí reclamando, por acaso acha que é? Como se Gandhi tivesse sido contratado para ser herói, como se ele tivesse ficado sentado esperando por instruções ou aprovação dos outros. Como se ele não fosse antes de tudo um ser humano imperfeito que se auto-escolheu para ser chatíssimo e reclamão e não se calar diante do que percebia como errado.

Gostaria de terminar dizendo – inclusive tendo em mente este último exemplo – que por termos opiniões forte não precisamos nos tornar fanáticos e querer mandar todo mundo para a fogueira, para a cadeia ou para o inferno, nem eu – que fique claríssimo – estou defendendo isso. Mas não ter opinião sobre nada e dizer que tudo é relativo e eu não me comprometo com qualquer julgamento é simplesmente covarde. É um grande, enorme alívio conversar com quem é capaz de assumir posições claras e firmes quando lhe parecem justificadas, e que tenha a decência de se indignar com injustiças e perfídias quando as encontram, ao invés de cinicamente exclamar “ah, é assim mesmo”, ou convenientemente desresponder “quem sou eu para falar qualquer coisa” ou alienadamente conceder “talvez isso seja revolvante, mas essa conclusão é muito desagradável, então eu escolho enfiar os dedos nos ouvidos e gritar LA LA LA LA”.

Pena que tais pessoas sejam tão raras.

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Honra e Dignidade ../../.././2010/05/08/honra-e-dignidade/ ../../.././2010/05/08/honra-e-dignidade/#comments Sun, 09 May 2010 03:44:37 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1962 Algumas pessoas por vezes colocam a questão de como foi possível a Alemanha nazista ocorrer, como foi possível milhões de pessoas simultaneamente ingressarem num empreendimento conjunto de tal perversidade.

Quando eu vejo as pessoas enunciando essa pergunta, na maior parte das vezes eu fico somente irritado, e penso : a resposta é absolutamente óbvia. O motivo é que quase na totalidade das vezes, pessoas como você, que está enunciando esta pergunta, não fariam ABSOLUTAMENTE NADA sobre o assunto se estivessem na Alemanha nazista. É muito fácil *falar* sobre o assunto. Difícil é fazer a coisa certa quando isso pode ir contra os seus interesses. Se você fosse um policial e te mandassem capturar uns judeus para serem mandados para Auschwitz, você diria “não, isso vai contra a minha consciência”? Você pediria demissão do seu emprego? Você faria QUALQUER coisa? Duvido muito, muitíssimo.

Note, eu não estou dizendo que você não DEVERIA fazer nada.

Também não estou aqui dizendo que seria compreensível, justificável, muito humano e aceitável e lindamente desculpável você não fazer nada e simplesmente ficar lá colaborando. Não, não estou dizendo isso. O que estou dizendo é que com altíssimas chances, se você for estatisticamente similar à maioria absoluta das pessoas, apesar de isso ser revoltante, e absurdo, e inaceitável, e de isso tornar você um instrumento do mal, e um canalha, você faria exatamente o que mandassem você fazer.

Claro, depois poderia dizer (caso questionado, não que estatisticamente a pessoa média se importe ou considere com qualquer honestidade  o significado moral das próprias ações) “mas eu estava fazendo igual a todo mundo” ou “eu estava apenas seguindo ordens” ou mesmo chorar lágrimas de crocodilo proclamando profundo arrependimento após o fato, mas evidentemente sem que isso signifique nem remotamente que dada situação similar no futuro você não agiria – agirá – exatamente do mesmo jeito.

Então vejamos, muito se discursa por aí sobre reformar o mundo adotando tal e qual sistema econômico / politico / ideológico / filosófico / religioso. Mas não existe sistema, não existe absolutamente nenhum sistema no mundo, que supere uma multidão de pessoas egoístas, egocêntricas e para quem o próprio umbigo é a única coisa que importa, é a única coisa com a qual são psicologicamente, existencialmente, paradigmaticamente capazes de se importarem. O problema mesmo não é com o sistema ser nazista, ou comunista, ou neonazicatólico. O problema é que quando se trata de se relacionar com pessoas reais ao invés de com pessoas imaginárias, quando se trata de efetivamente considerar o bem estar de pessoas concretas quando este conflita ou compete com o que você mesmo quer, a maioria absolutissima das pessoas não é capaz de se desviar nem milimetricamente do que é cômodo, conveniente e confortável.

Evidentemente que admitir isso abertamente não é uma boa estrategia; dificilmente se conseguirá a colaboração dos outros nesses termos. Nem mesmo Hitler foi aos palanque discursar com o tema “Alemãos! Vamos nos tornar uma nação de assassinos!”. Alias, seu sucesso se deve em grande parte justamente a este *não* ter sido o seu discurso. É preciso chegar com um sorriso e dizendo “eu venho em paz” antes de começar a falar que puxa quem sabe talvez seja uma ótima idéia perseguir homossexuais.

Não que querer preservar a si mesmo seja algo injustificado, vergonhoso ou constrangedor. Essa é a parte com a qual concordo com Ayn Rand. Eu reconheço em todo ser humano a prerrogativa de legitimamente querer preservar sua própria integridade física, emocional, psicológica, moral, e de fazê-lo ostensiva e abertamente, sem pedir desculpas a ninguém.

Agora, em contrapartida – ou aliás, derivado diretamente disso – existe o reconhecimento de que os outros gozam de precisamente a mesma prerrogativa. Claro, podemos muito convenientemente dizer “Ah, isso não é problema meu, que o outro se defenda se puder”. Em outras palavras : “Por acaso sou o guarda do meu irmão?”. Essa é uma resposta completamente covarde, desonesta, hipócrita e vil.

Além disso, existe uma diferença enorme entre ser premido por circunstâncias insuperáveis nas quais não há realmente escolha… e simplesmente fazer o que é conveniente.

Infelizmente, esse parece ser o valor que norteia as (inexistentes) considerações morais da quase totalidade dos seres humanos quando se trata de tomar decisões reais que efetivamente afetam seus interesses. Algumas pessoas chegam a anunciá-lo abertamente, seja com todas as palavras, seja de forma um pouco mais críptica ao dizerem que “veja bem, o auto-interesse racional é a forma mais eficaz de promover o bem estar de todos blah blah blah”. Esse argumento, além de ser matematicamente, logicamente, objetivamente falso e falho (o auto-interesse racional facilmente leva a situações sub-ótimas de infelicidade geral e está longe de ser uma panacéa), é na maior parte das vezes simplesmente desonesto; é com freqüência demais só uma lenga-lenga para pseudo-justificar um comportamento egoísta e narcisista.

Não que os defensores de outras ideologias se saiam muito melhor; estejam eles discursando contra a opressão burguesa ou a favor da glória de deus, quando se trata de efetivamente considerar o seu papel efetivo na sociedade, o efeito que têm nas pessoas reais à sua volta, o resultado concreto de suas ações… o que de fato fazem com mecânica e previsível regularidade é o que é conveniente, confortável, cômodo para si mesmos. São quase universalmente absolutamente incapazes de abrir mão de uma infinitésima migalha do seu ego para enxergarem o outro quando o outro é de fato um ser humano concreto e real ao invés de uma multidão amorfa de seres humanos imaginários num mundo imaginário à qual estão fazendo uma enorme quantidade de bem imaginário.

Mas muitas vezes não se chega nem ao estágio de passar uma maquiagem ideológica nas barbaridades movidas pelo mais descarado egoísmo. Especialmente no cotidiano das ações já introjetadas como aceitáveis e comuns, honra e dignidade simplesmente não fazem parte da equação. Qualquer coisa é aceitável desde que não haja conseqüências. Deixar de fazer algo percebido como vantajoso para si mesmo por pruridos de consciência é em geral enxergado antes de mais nada como suspeito. Afinal de contas o ser humano médio não consegue realmente sequer conceber, dado seu próprio visceral, patológico, intransponível egosímo, que você *de fato* se importe com ele ou com os outros; então busca decriptar e decodificar seus “reais” motivos como algo mais  compreensivelmente (para ele) perverso e manipulativo.

Caso porém se cogite que você efetivamente talvez possivelmente esteja incompreensivelmente buscando promover o bem alheio, você será classificado em algum lugar entre maluco e ingênuo, e instado a parar imediatamente, tanto por quem por conveniência interessa o seu bem (afinal de contas você terá menos valor para eles se “desperdiçar” seus recursos ajudando os outros) quanto pelos seus pares (afinal de contas uma farsa é uma farsa e não vamos estragá-la mostrando o que faria alguém que *de fato* quisesse fazer as coisas direito).

Eu poderia até aceitar esse tipo de argumento vindo de quem supostamente está preocupado com meu bem estar como um objetivo em si se isso viesse acompanhado de outras ações que não consistissem apenas em me instar a parar de “desperdiçar” recursos que eu poderia estar empregando para beneficiá-los. Mas tais pessoas, também, demonstram espetacular consistência em não ter meu bem estar em mente quando isso não lhes traz algum benefício direto.

Então eu pergunto – onde estão as exceções? Onde estão as pessoas capazes de desenvolverem relações sólidas e generosas, relações baseadas em “vamos de fato cuidar uns dos outros”? Sejam onde estiverem, estão se escondendo espetacularmente bem.

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Desconstruindo Adesivos ../../.././2010/04/01/desconstruindo-adesivos/ ../../.././2010/04/01/desconstruindo-adesivos/#comments Thu, 01 Apr 2010 14:25:54 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1943 Adesivos observados na traseira de um carro em New Jersey
(Clique na imagem para ter acesso a uma versão maior)

Estava eu dirigindo quando observei no carro da frente a imagem reproduzida acima. Fiquei então pensando sobre se todos os adesivos teriam sido colados pela mesma pessoa ou se se trataria de uma amálgama de várias personalidades.

Particularmente constrastante me parecem os dois da coluna da esquerda. Aliás, uma análise semiótica do peixe com pernas em particular é especialmente interessante, mas acho que os leitores que concordam com isso são capazes de fazê-la eles mesmos. :-) A questão é : como que debaixo dele aparece então um adesivo com o texto “I Believe In Magic”? Entre as várias interpretações possíveis, podemos ter a que eu já mencionei : foram ali colocados por pessoas diferentes. Uma outra possível interpretação, porém, é que ele deva ser entendido no sentido metafórico; se foram colados pela mesma pessoa, me parece o mais provável.

Note-se na extrema direita a repetição de um adesivo com um texto que eu já tinha visto antes, gostado, e até mencionado aqui. De fato, a linha comum entre todos esses adesivos, exceto o da esquerda embaixo, parece ser a da defesa do pensamento crítico independente. Mas nesse caso, novamente, como interpretar o adesivo na extrema esquerda embaixo?

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Um comentário adicional : existe alguma forma decente de se referir em português a “bumper stickers”? “Adesivos” me parece genérico demais, “decalques” me parece coloquial de menos. Eu não consegui pensar em nada que me deixasse realmente satisfeito. Isso me levou a uma reflexão adicional : a desnecessidade de uma palavra para se referir a um certo conceito é provavelmente indicativa da (falta de) importância do conceito numa certa cultura; pensei então se bumper stickers são uma tradição americana muito mais do que uma tradição brasileira, e de fato me parece que são. O que isso significaria? Seria uma das causas disso que o americano médio faça questão de afirmar sua individualidade mais do que o brasileiro médio? Isso em si dá todo um outro tema. Eu diria que de fato muitos americanos parecem fazer questão absoluta de esfregar sua individualidade na cara dos outros, mesmo quando não estão se defendendo de nenhuma ameaça externa. Os americanos muitas vezes parecem passar do ponto em que se sentem confortáveis em terem uma personalidade para ingressar numa região em que a ostentam quase agressivamente.

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Esse tipo de movimento já existe nos EUA há algum tempo, mas no Brasil (pelo menos até onde eu saiba) é algo mais ou menos recente. Fui então examinar alguns sites como o Gays de Direita e o Q-Libertários e rapidamente encontrei neles levantadas questões que desviam de forma bastante interessante das mais estereotipicamente associadas a movimentos gays. Por exemplo, no Gays de Direita são defendidas (entre outras) as seguintes posicões :

  • Questionamento da caracterizacão do perfil do comportamento homofóbico no Brasil como descrito por uma parte dos movimentos gays. Observação de que se examinamos por exemplo mais detidamente os casos de assassinato de homossexuais listados por ONGs como manifestação violenta de homofobia, verificamos que muitos foram cometidos por outros homossexuais. Não seria o caso de rever a metodologia dos levantamentos que buscam documentar homofobia? (Note : o site positivamente e abundantemente não questiona que tal manifestação violenta efetivamente exista, e aliás pelo contrário, prega revolucionariamente uma resistência proativa e independente ao invés de passiva e paternalista contra ela.)
  • Questionamento da conveniência de políticas e programas sociais para “conscientizar” a populacão sobre homossexualismo em sociedades relativamente seguras para os homossexuais. Observação de que diversos movimentos gays ao redor do mundo parecem concentrar seus esforços muito mais na direção de buscar “criminalizar a homofobia” em países onde ela absolutamente não é uma politica oficial do que em se esforçar para combater de forma eficaz a homofobia oficial em países onde ela de fato o é.
  • Questionamento de que seja automaticamente absurdo ou homofóbico que as forças armadas considerem inadequado admitirem indivíduos de comportamento estereotipicamente homossexual para posições de comando e combate.
  • Questionamento de que haja incompatibilidade intrínsenca entre ser cristão e ser gay.
  • Como já citado acima, questionamento de uma politica passiva e paternalista de defesa da integridade física dos gays.

Agora, notemos : alguns desses pontos já foram e são levantados por organizações políticas “de direita” muito pouco simpáticas aos movimentos gays. A novidade está em eles serem levantado por movimentos gays. Existiria alguma contradição nisso?

Bem, comecemos por observar que a rigor existem motivos mais ou menos óbvios para gays se identificarem com certos aspectos do movimento liberal em geral e libertário em particular. Afinal, uma grande parte do sentido politico dos movimentos gays está em ver asseguradas certas liberdades pessoais e certos direitos civis fundamentais. Infelizmente, tem sido uma tendência (que eu regularmente critico) entre muitos libertários contemporâneos concentrarem excessivamente (por vezes quase dogmaticamente) suas preocupações e arcabouço filosófico em liberdades econômicas. É para mim uma distorção que libertarianismo de um lado e liberalismo econômico clássico do outro tenham se tornado quase sinônimos aos olhos de grande parte da percepção pública e muitas vezes até mesmo entre seus próprios proponentes. Essa forte tendência, equivocada que seja, é porém muito real, e acabou criando a situação de fato de que os defensores de liberdades econômicas, tradicionalmente associados à “direita”, vezes demais pouco ou nada fazem para defender certas liberdades civis em outras esferas, e muito pelo contrário, freqüentemente buscam mesmo cerceá-las.

Isso porém é, para mim, como já coloquei, uma distorção, e seria muito natural e desejável que um movimento verdadeiramente libertário abraçasse junto com a causa da liberdade econômica e de certas garantias fundamentais ao direito de propriedade uma postura mais ampla de defesa de outros tipos de liberdade individual que (a meu ver) absolutamente não podem ser resumidas ou condensadas à esfera das relações econômicas. Então sob este aspecto eu vejo a aparente contradição entre ser gay e ser de direita como na verdade circunstancialmente criada por uma necessidade inconscientemente auto-imposta de classificar movimentos politicos segundo categorias preestabelecidas que são imensamente mais arbitrárias do que normalmente estamos dispostos a conceder. Mas dentro de uma postura libertária que parta de primeiros princípios, me parece absolutamente coerente um movimento que lute simultaneamente por uma diversidade de direitos individuais que englobe simultaneamente a liberdade econômica e a liberdade de identidade sexual. Então, em resumo, certamente não vejo nada de intrinsecamente problemático no conceito de “gays de direta” se por “direita” entendermos a direção política genérica de defender a primazia de certos direitos individuais, em particular liberdades econômicas, e em especial em oposição a ideologias e posições políticas mais coletivizantes.

Inclusive, ao refletir sobre a questão, me pareceu cada vez mais que o verdadeiro e mais interessante conflito aqui ilustrado não está entre gays versus direita, e sim mais amplamente entre grupos que se percebem como oprimidos e aqueles que percebem como sendo seus opressores. Existe uma tendência de chamar tais grupos de “minorias”, mas eu considero esse termo altamente equivocado e problemático; nem toda minoria é oprimida (consideremos os ricos) e nem todos os grupos que em certos contextos se percebem como oprimidos podem ser razoavelmente chamados de minoria (consideremos os pobres). Aliás, mais amplamente, os grupos que se percebem como oprimidos não apenas não precisam necessariamente ser numericamente uma minoria, também não precisam estar em desvantagem econômica, intelectual ou por nenhum outra medida particular. O que eles têm em comum é a percepção que de alguma forma estão sendo injustamente “excluídos” como grupo de algum tipo de privilégio ou direito, de que estão sendo alvo de algum tipo de opressão discriminatória.

Existe uma enorme coleção de motivos pelos quais um grupo pode vir a se encontrar nessa posição, mas vou me concentrar aqui nos diferentes tipos de reação. E vou começar por fazer uma observação altamente politicamente incorreta, que se aplica ainda mais fortemente aos casos em que a opressão é real (como freqüentemente é) ao invés de imaginada : Oppresed people suck. Diante da opressão, uma reação indigna e despersonificamente mas absolutamente compreensível e comum é a mais completa submissão e servilismo. Isso pode se dar por puro pragmatismo, mas bem mais problemático do ponto de vista psicológico é conseguir resistir ao raciocínio de que “se eu estou sendo oprimido, eu devo ser mesmo uma droga”. Não devemos porém ignorar que complementar a esse, e um pouco mais sutil em sua indesejabilidade, mas também extremamente danoso, é o raciocínio “se eu estou sendo oprimido, tudo em meus opressores é uma droga”. Ambas são armadilhas conceituais das quais pode ser muito difícil se desapegar. O resultado é que é muito raro um grupo oprimido que ingresse num processo de auto-afirmação conseguir se libertar de uma retórica reativa na qual ironicamente se autodefina em relação ao grupo enxergado como opressor ao invés de como portador de uma identidade legitimamente distinta. É muito difícil remover de si mesmo o câncer da identidade de “vítima”.

Porém, observe-se que exceto nos casos patológicos em que se possa seriamente argumentar que ser alvo de vitimização tenha sido uma posição ativamente buscada, não sou eu que me escolho fazer vítima; é o meu opressor. Ser vítima é algo que sou circunstancialmente; ser opressor é uma livre escolha. Então essa relaçao é muito mais intrinsecamente parte da identidade do opressor do que da minha. É muito, muito difícil atingir individualmente esse grau de segurança porém, e se libertar do opressor como definidor da essência de quem eu sou. Mas sem fazê-lo, introjetamos a opressão e a tornamos parte de nossa própria identidade; ela deixa de necessitar do opressor para fazer parte da nossa psique. Um grupo (ou indivíduo) que queira verdadeiramente se libertar de sua condição de oprimido precisa portanto lutar não apenas contra as fontes e causas objetivas de opressão, mas tambem se libertar de sua identidade de vítima. Precisa se sentir confortável com suas idiosincrasias e com o fato de que possivelmente tenha concretamente uma identidade distinta e *independente* da do grupo percebido como opressor (onde independente não precisa significar nem idêntica e nem oposta).

Infelizmente, alguns grupos que se percebem como oprimidos correm, em busca de auto-afirmação reacionária, a cega e automaticamente rejeitar todo e qualquer valor ou característica do grupo enxergado como opressor. Meus opressores ouvem a essa tipo de música? Vou me recusar a fazê-lo. Vestem certo tipo de roupa? Idem. Seguem certo tipo de religião? Idem. Exemplos disso não são difíceis de instanciar.

Complementarmente, outros grupos que se percebem como oprimidos correm a fazer o exato oposto, e em busca de auto-afirmação, digamos, usurpatória, passam a cega e automaticamente adotar todo e qualquer valor e característica do grupo enxergado como opressor. Ignorando suas próprias especificidades, suas próprias necessidades e suas próprias aspirações, e muitas vezes agindo contrariamente a elas, buscam reagir à opressão emulando a identidade do grupo percebido como opressor. Meus opressores são insensíveis e violentos? Então eu também serei. Agem de forma egoísta e narcisista? Então farei o mesmo. Colocam o sucesso profissional acima de considerações emocionais? Vamos lá. Exemplos desse tipo também não são difíceis de instanciar.

O resultado é que tais grupos continuam se definindo em termos de seus opressores, passando então tragicamente a oprimirem a si mesmos ao tomarem para si a tarefa de ativamente negarem sua própria e legítima identidade.

Me parece portanto extremamente saudável que os movimentos gays ou quaisquer outros movimentos de grupos que se percebam como oprimidos caminhem na direção de eliminar a condição de “vítimas” como fundadora de sua identidade, por mais que isso possa ser psicologicamente difícil (ou politicamente inconveniente), e que ao invés disso consigam eles mesmos elaborarem e perceberem como legítimas e perfeitamente aceitáveis suas próprias características, pensem os outros o que quiserem. Claro, resta então a luta para serem deixados em paz para assumirem pacificamente essa sua identidade, mas a identidade em si mesma não deve ser reativa, e não deve ter a percepção da sua legitimidade baseada na aprovação dos opressores. Libertar-se internamente da necessidade de buscar aprovação dos opressores como pré-condição para se sentir confortável com sua própria identidade é um passo absolutamente gigantesco. Perto dele, libertar-se da opressão objetiva é quase comparativamente fácil.

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Um comentário final. É mais ou menos fácil (ou deveria ser) enxergar a absurdidade de países como a Uganda que *hoje* consideram leis impondo nada menos que pena de morte para homossexuais. E pelo menos aqui deste lado do Atlântico, soa muito bizarro que em sociedades inteiras o sexo fora do casamento seja punido da mesma forma. Gostaria porém de convidar o leitor a voltar o foco do seu julgamento crítico para algo muito mais difícil de avaliar objetivamente : nós mesmos. O fato é que apesar de todos os progressos e pretensa modernidade de que usufruimos nas sociedades ocidentais atuais, não apenas homossexualidade mas sexo em geral ainda é algo extensamente regulamentado, regulado, reprimido, perseguido, censurado, escondido. Existe ainda toda uma infinidade inclusive de *leis* alucinadas e profundamente opressivas regulando comportamento sexual em sociedades que em princípio encaramos como “modernas” e “livres”. A intensidade e extensão desse controle são enormemente subestimadas e subpercebidas como conseqüência auto-reforçante da artificial limitação de experiências a que estamos sujeitos em decorrência de sua própria existência.

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Onde Os Hidrantes Têm Antenas ../../.././2010/03/01/onde-os-hidrantes-tem-antenas/ ../../.././2010/03/01/onde-os-hidrantes-tem-antenas/#comments Tue, 02 Mar 2010 00:37:49 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1922

Hidrante com antena

Uma das coisas que notei ao me mudar para cá, apesar de prosaica, foi crescendo na periferia da minha consciência como incômoda pelo sua inexplicabilidade. Estou falando do fato de que aqui os hidrantes têm antenas.

Ok, pode ser que no final das contas nem seja tão inexplicável assim, mas a questão é que eu nunca tinha visto hidrantes com antenas antes, e embora eu já tenha desenvolvido várias teorias sobre o assunto, o fato é que eu não sei com segurança para que servem.

Naturalmente um dos primeiros pensamentos que surge é que sejam realmente antenas no sentido mais tecnológico, que sirvam para receber e/ou transmitir algum tipo de informação. Divertida que seja essa idéia, isso não parece nem um pouco provável.

A segunda hipótese genérica é que sirva para tornar os hidrantes mais fáceis de achar / localizar / ver. Mas como é que alguém não veria um hidrante? Não é como se fosse algo discreto para começar. Então eu fiquei pensando sobre situações em que isso seria útil. Meu primeiro pensamento foi o de carros estacionados na frente do hidrante e tornando ele pouco visível, mas isso não apenas é ilegal como a antena não ajudaria tanto assim. Então eu pensei que talvez fosse para evitar colisões com o hidrante estacionando o carro. Afinal, especialmente com as SUVs americanas, objetos baixos não são visíveis a curta distância. Mas isso também não me pareceu muito razoáve; o hidrante fica na calçada e não no meio-fio.

Outro hidrante com antena

Minha hipótese atual veio com as recentes tempestades de neve. Talvez a antena seja para o caso de se o hidrante ficar completamente soterrado (algo não improvável numa nevasca) você continuar conseguindo encontrá-lo através da antena. Não sei se é esse o real motivo, mas foi a melhor hipótese que conseguir bolar até agora.

Seja como for, no processo de tentar achar uma resposta acabei achando este site aqui dedicado a fotos de hidrantes. O qual, aliás, com data de 22 de janeiro de 2006 mostra um hidrante com antena em Illinois, a qual parece provocar surpresa também em quem ali postou a foto.

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For All Good Things Must Come To An End ../../.././2010/02/17/for-all-good-things-must-come-to-an-end/ ../../.././2010/02/17/for-all-good-things-must-come-to-an-end/#comments Wed, 17 Feb 2010 20:50:42 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1875

Quem visitou hoje oindividuo.com talvez tenha sido tomado de surpresa. Eu já estava ciente, conversara com o Pedro sobre o assunto, e já fazia algum tempo que ele expressava insatisfação com diversos aspectos de “O Indivíduo”, desde o início pessoalmente traumático, passando por uma mitologia criada em torno do tema com a qual ele não se identifica nem quer ser compelido a encarnar, até uma evolução de idéias sobre o que significa e o que se pretende afirmar no final das contas com esse tal Indivíduo com artigo definido singular. Aliás, uma parte da mudança tem precisamente o propósito de deixar de vez para trás certas posicões. Mas evidentemente a melhor referência para explicar suas razões é o próprio Pedro.

Enfim, assim sendo, após uma longa história, salvo alguma grande reviravolta, parece justo dizer que pelo menos no momento O Indivíduo, como empreendimento colaborativo, cessou para efeitos práticos de existir, tendo sobrevivido através de diversas encarnações por 13 anos, de 1997 a 2010. Não posso deixar de pensar sobre um trecho do editorial no arqueológico Número Zero que anuncia :

“…nós queremos nos dirigir ao ser humano sozinho, de um para um. Porque é assim que as coisas são. Individuais.”

O que está ironicamente coerente com este eventual destino. O que não quer dizer que eu não apreciasse, e muito, a reunião de idéias divergentes no mesmo local. A tensão cognitiva resultante me parecia ser bem mais fértil do que conflituosa, e estimulava o exame das mesmas questões desde diferentes pontos de vista. E eu, pessoalmente, continuo essencialmente acreditando em certas idéias com as quais o Pedro de alguma forma não mais se identifica, e que me fazem ainda acreditar na propriedade do nome e do conceito por trás de uma franquia nomeada “O Indivíduo”. Tivesse eu mais tempo para escrever e divulgar certas idéias, mais entusiasticamente e cotidianamente o faria. Então aqui permaneço eu, pelo menos por agora, individualmente. E vejamos o que virá daqui pra diante.

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Esta encarnação de O Indivíduo acabou. Atualizem seus feeds e bookmarks. ../../.././2010/02/17/esta-encarnacao-de-o-individuo-acabou-atualizem-seus-feeds-e-bookmarks/ ../../.././2010/02/17/esta-encarnacao-de-o-individuo-acabou-atualizem-seus-feeds-e-bookmarks/#comments Wed, 17 Feb 2010 20:21:01 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1878 (Originalmente publicado em oindividuo.com em 17 de fevereiro de 2010 por Pedro Sette Câmara.)

Para ler os textos de Sergio de Biasi, visite www.oindividuo.org; feed: ../../.././feed/.

Para ler os textos de Pedro Sette-Câmara, visite www.pedrosette.com; feed: http://feeds.feedburner.com/pedrosette.

Tinha pensado em simplesmente deixar um post com o endereço do meu blog e com o do Sergio, mas julguei que receberia muitos e-mails com perguntas; portanto, segue uma resposta oficial.

Hoje penso que não deveria ter ressuscitado O Indivíduo em 2004, após alguns meses sem atualizações. Eu mesmo já não me identificava com diversos assuntos e posturas do site antigo, e hoje isso atingiu um ponto insuportável. O mais importante, penso, é que, apesar de continuar crendo no individualismo cognitivo, isto é, que os atos de inteligência se dão na consciência individual, consigo enxergar em diversas atitudes antigas exatamente aquilo que mais venho denunciando: uma reação puramente mimética ao que se percebe como “a coletividade” mascarada de independência e autonomia, algo como “se todos atacam X, defenderei X”. Qualquer verdade pode ser capturada por essa atitude vingativa e ressentida, e, em vez de dar bons frutos, acaba alastrando um ímpeto destrutivo.

Assim, estou republicando uma seleção (ampla) de meus textos a partir de 2004 em meu blog pessoal. Como agora estou no Blogger, como parte do objetivo é desidentificar-me do passado, e como ainda outra parte é não me ocupar do gerenciamento de um hospedeiro, todos os textos do site antigo foram retirados do ar. Caso você tenha publicado algum texto na fase ancestral de O Indivíduo, posso procurá-lo no meu backup — mas de fato apenas fornecerei os textos a seus autores.

Esta página permanecerá no ar por um período indefinido, ao fim do qual o domínio www.oindividuo.com voltará para Sergio de Biasi, que o criou em 1997.

PSC, 17/02/2010

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Liberdades Teóricas ../../.././2010/01/11/liberdades-teoricas/ ../../.././2010/01/11/liberdades-teoricas/#comments Mon, 11 Jan 2010 20:23:32 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1797 Um dos comentários feitos ao meu texto sobre cripto-totalitarismo foi este aqui.

Ao ler a história relatada no link, eu me lembrei mais uma vez de como uma das lições mais vívidas que tirei do episódio original da distribuição do número zero de “O Individuo”  em 1997 foi precisamente uma grande, grande surpresa sobre como eu estava enganado acerca de quanta liberdade de expressão era concretamente reconhecida e aceita como prerrogativa legítima e inalienável por uma instituição como a PUC-Rio. Esse tipo de surpresa se repete em escalas maiores e menores em todo tipo de contexto, e por vezes nos pega completamente desprevenidos, especialmente quando o discurso vigente é nominalmente de liberdade de idéias.

Só que mesmo quando não existe um órgão ou uma política oficial com o objetivo de censurar o pensamento, é absolutamente impressionante como a liberdade de expressão é pouquíssimo respeitada na maior parte das circunstâncias reais, ironicamente e tristemente em particular nas instituições acadêmicas, as quais ao invés de cumprirem a função de auxiliar e incentivar as pessoas a acordarem para a existência de possibilidades divergentes quase sempre buscam histericamente impedir as pessoas de fazê-lo. A maioria das pessoas cultiva a ilusão de que essa liberdade seja muito maior do que realmente é porque raramente toma o palanque para dizer publicamente qualquer coisa remotamente discordante do que é considerado ideologicamente aceitável. O sentimento mais ou menos geral é de que dispõem dessa prerrogativa em príncípio.

Essa fantasia tende a se esfacelar fragorosamente no momento em que se tenta de fato exercer esse tipo de liberdade, porém. As “autoridades” de plantão repentinamente se revelam muito pouco hesitantes em fisicamente confiscar, censurar, proibir, destruir ou de outras formas impedir a distribuição e divulgação de quaisquer materiais que questionem as posições ideológicas “corretas”, mesmo quando tal distribuição e divulgação é realizada de forma absolutamente pacífica e atendo-se ao nível das idéias e do debate. Cria-se então uma situação surreal na qual a liberdade de pensamento existe “em teoria” e como parte do discurso social, mas na hora da verdade com freqüência se verifica que isso só vale para o que não ofende nem incomoda ninguém. Afinal, quem insiste em falar o que obviamente ofende e incomoda só pode estar de má fé e não vamos tolerar isso, certo?

Ora, liberdade apenas para concordar é evidentemente um oxímoro, e o conceito de liberdade de pensamento e expressão adquire sua relevância precisamente quando aplicado a idéias consideradas revoltantes, erradas, heréticas ou ofensivas. Ele se aplica por excelência exatamente àquilo que preferíamos que não fosse dito. E para quem questiona seu valor, uma folheada nos livros de história revela abundantes exemplos do que acontece quando se começa a caminhar na direção de aceitar que se proíbam as pessoas de pensarem e se expressarem de forma divergente ou estranha à ortodoxia.

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O Discreto Triunfo do Pensamento Marxista ../../.././2010/01/06/o-discreto-triunfo-do-pensamento-marxista/ ../../.././2010/01/06/o-discreto-triunfo-do-pensamento-marxista/#comments Wed, 06 Jan 2010 06:42:16 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1411 GoogleSearchesForKarlMarx.jpgAcima : Buscas no Google por Karl Marx (fonte) (hoje)

GoogleSearchesForAynRand.jpgAcima : Buscas no Google por Ayn Rand (fonte) (hoje)

Já dizia Marx que a religião seria o ópio do povo.

Naturalmente que para substituí-la, inventou o comunismo, que ironicamente (ou nem tanto) cumpre similar função à religião no imaginário humano : isto é, um sistema dogmático de pensamento grupal formador de identidade e pseudo-justificador de ações e crenças que de outra forma a média dos seres humanos normais dificilmente aceitaria como razoáveis, pretensamente com base em objetivos santos ou bons demais para serem questionados.

Com sua malévola invenção, Marx introduziu na cultura humana mais um violentíssimo meme que causou miséria sem fim desde então, exatamente como a religião.  Seu triunfo foi tão grande que mereceu o epíteto de ópio dos intelectuais, dando fortes indícios de que em certos meios a religião é rejeitada não por ser opressiva, e massificante, ou condutora a todo tipo de violências, mas sim por ser percebida como brega e passée, muito ironicamente “coisa de proletário”.

Infelizmente, os efeitos do marxismo sobre o pensamento e a cultura humanas vão muito, muito além de suas teorias sobre economia política e sistemas comunistas. É triste mas patente o quanto vários dos princípios e axiomas postulados por Marx sobre a natureza da sociedade e da existência humana foram inconscientemente aceitos e introjetados por grande parte da intelectualidade  e mesmo das pessoas comuns. Isso é ainda mais frustrante quando observado em pessoas que combatem vigorosamente as conclusões às quais Marx chegou enquanto docilmente abraçando seus pressupostos e arcabouço filosófico.

Uma dessas manifestações está na parcela dos pensadores que acreditam que todos os valores dignos de serem defendidos em sociedade não apenas têm o respeito e garantia da propriedade privada como requisito (algo com que eu tendo a concordar, e que tem profundas implicações) como vão muito além disso e defendem que tais valores são *derivados* do conceito de propriedade privada, e que para explicá-los, sustentá-los ou defendê-los bastaria corretamente garantir a propriedade privada  (algo com o que eu absolutamente não posso concordar, e que também tem profundas implicações que vão muito além da afirmação original). Por falta de um nome melhor, chamarei a essa posição de ultra-liberalismo. (note-se que isso não é o mesmo que anarco-capitalismo, posto que os anarco-capitalistas adicionalmente rejeitam que deva haver uma entidade não-opcional chamada “governo” que tenha o poder de coercitivamente impor o respeito à propriedade privada.)

Muito ironicamente, foi Marx quem introduziu a “revolucionária” idéia de que o homem se reduz às suas relações econômicas, idéia que além de intrinsecamente perversa (por implicar diretamente a natureza fútil, descartável e ilusória de qualquer pretensão a transcendência) não corresponde nem remotamente à realidade de como as coisas efetivamente funcionam em sociedades reais ao longo da história.

Então embora rejeitando radicalmente certas linhas de pensamento sobre o que fazer sobre isso, a posição ultra-liberal mesmo assim introjeta essa que é uma das fundações do paradigma marxista. E disso conclui que a garantia da propriedade privada seria suficiente para produzir uma sociedade na qual certos direitos individuais estariam adequadamente preservados, que todos os outros direitos individuais que naturalmente e separadamente se poderia querer preservar – como liberdade de expressão, direito à vida, liberdade religiosa – estariam todos “protegidos” com recurso apenas ao conceito de propriedade privada. E conversamente crucial, o que não for protegido pelo recurso à propriedade privada não deve ser protegido mesmo.

Em constraste, note-se que o liberalismo clássico à la Adam Smith admite todo tipo de interferências do estado; ele apenas diz que o estado não deve se meter numa grande lista de outras coisas. Na outra ponta do espectro, temos o anarco-capitalismo, para o qual nem sequer a propriedade privada e os contratos devem ser garantidos por uma entidade coercitiva padrão.

Antes que isso comece a soar como se eu estivesse dizendo que cabe ao governo prometer felicidade eterna a todos (como parecem delirantemente e hoje em dia avestruzmente querer os comunistas mais ortodoxos, por exemplo), quero esclarecer que eu sou completamente contra a inflação histérica dos “direitos” de uma pessoa dentro do contrato social adotado por uma sociedade (ou grande parte do tempo simplesmente imposto pelo governo). O próprio termo “direitos humanos” foi seqüestrado pelas esquerdas de forma a significar todo tipo de absurdos, a ponto de soar mal para alguém de tendências libertárias quando se começa a falar em “direitos”. Só que em seu entendimento original e apropriado, “direitos” não são tudo aquilo que uma pessoa deveria ter num mundo ideal no qual todos são perfeitamente felizes (algo que é não só logisticamente mas fisicamente ou mesmo logicamente impossível garantir), e sim aquelas prerrogativas tão fundamentais do indivíduo que não podem ser cassadas, expropriadas ou negadas exceto para proteger a integridade das mesmas prerrogativas em outras pessoas. Se isso não for suficiente para fazê-lo feliz, que pena.

Pois bem, chamando por praticidade tais prerrogativas fundamentais que queremos ver preservadas de “direitos”, como vamos justificá-las dentro do contexto de que propriedade privada seria o valor fundador e primordial? Como vamos justificar por exemplo a proteção da integridade física de seres humanos individuais? Bem, o argumento dos ultra-liberais que defendem a propriedade privada como único valor realmente necessário é : chamemos seu corpo de sua propriedade, e aliás uma de grande valor. Pronto. Como vamos justificar a defesa da liberdade de expressão? Ora, simples, segundo os ultra-liberais : ela é simplesmente a proteção do livre uso dos meios físicos de expressão de sua propriedade. Você naturalmente não tem o “direito” de se expressar usando o New York Times só porque você quer; tem que usar seus próprios meios. Por outro lado se usar seus próprios meios – por exemplo distribuir panfletos no seu quintal para quem estiver passando – ninguém deve poder impedi-lo. Mais uma vez, reduzido à propriedade privada.

E que tal o respeito à liberdade de ir e vir? Bem, este é mais complexo, dado que exige um entendimento mais explícito sobre como deve ocorrer o uso de propriedade alheia. Suponhamos, num mundo ultra-liberal, que não existam estradas públicas; que todas as estradas pertençam a alguém (ou a alguma empresa). Será permissível que repentinamente o dono da rua onde eu moro decida cobrar uma mensalidade de mil dólares para eu utilizá-la? Vamos ainda mais longe; suponhamos que a empresa dona da minha rua decida que por eu estar inadimplente com minhas mensalidades (seja lá qual for o custo), não posso mais usar a rua, e portanto se sair de casa estou invadindo propriedade alheia e posso ser preso. Faz algum sentido estruturar a sociedade desse jeito?

Suponhamos uma outra questão relacionada. Suponhamos, novamente, num mundo ultra-liberal, que todas as fontes de água potável sejam de propriedade privada alheia. Suponhamos então que os fornecedores de água decidam se unir e concluam que seu ponto de lucro ótimo será obtido elevando universalmente o preço para 100 dólares por litro d’água, tendo lucros astronômicos, e deixando morrer de sede quem não puder pagar. Isso é razoável? Deve ser simplesmente permitido ocorrer?

Note-se, quando os ultra-liberais abordam questões como essas, a resposta deles nunca é “ah, não, isso não deve ser permitido pois…” ou “ah, não, nesse caso é legítimo forçar os donos de água a distribuí-la pois…”. Não. O que eles respondem, fiéis a seus princípios, não é que isso não deveria ser coercitivamente impedido. O que eles dão são respostas do tipo  “Isso jamais poderia ocorrer pois…” ou “Essa situação automaticamente se auto-corrigiria pois…” ou “Essa situação não poderia perdurar pois…”. Em outras palavras, o que eles estão dizendo em última instância é que SIM, isso deveria ser permitido. Agora, note-se, argumentar que no longo prazo e em grandes mercados tudo se ajustaria de forma a que situações como essa não possam perdurar por muito tempo, mesmo que seja verdade, talvez continue não sendo aceitável. Talvez a situação não perdure porque por exemplo todos que não podem pagar por água morram de sede.

Existe toda uma variedade de questões com as quais temos que lidar no caso de querermos dar equivalência moral entre um ser humano e uma vaca ou um carro, apenas com maior valor e com a prerrogativa de ter propriedades.

Por coerência, por exemplo, um ultra-liberal deve defender que contratos de escravidão sejam perfeitamente válidos, desde que escolhidos de forma perfeitamente consciente e voluntária. Inclusive grande parte dos ultra-liberais aceita e defende exatamente isso abertamente. Sua liberdade, sua integridade física, seu direito à liberdade de expressão, todos esses direitos humanos considerados fundamentais e inalienáveis em nossas democracias ocidentais modernas seriam em princípio negociáveis. E na verdade os ultra-liberais consideram que privar alguém de negociar tais direitos é na verdade uma expoliação, dado que se está impedindo que o sujeito extraia lucro do uso de um bem de sua propriedade. Inclusive alguns autores argumentam que o trabalho assalariado em grande parte dos casos não é substancialmente distinto de escravidão, aliás pelo contrário, é essencialmente o mesmo tipo de contrato (vender voluntariamente sua liberdade) com menos flexibilidade para você negociar os termos de uso dos seus próprios bens. Enquanto isso, outros argumentam que um ser humano que nasça num mundo no qual para obter acesso aos recursos mais básicos necessários à sua subsistência necessita de assinar um contrato de servidão não é realmente livre. Interessantemente, esse é um dos vários casos em que certas vertentes de anarquismo fanaticamente anti-estatal e de comunismo histericamente totalitário chegam as mesmas conclusões por vias completamente diferentes. Os extremos, como freqüentemente ocorre, se tocam.

Aliás, é interessante dar um ou dois passos para trás e notar que na verdade essa visão de mundo na qual escravidão é encarada com naturalidade, por mais que hoje nos pareça, digamos, pouco ortodoxa, foi aceita durante grande parte da história humana como perfeitamente civilizada. É verdade que muitas vezes isso se dava num contexto em que o ingresso na escravidão não era voluntário, contrariando os princípios ultra-liberais, como no caso de prisioneiros de guerra. Mas por outro lado, mesmo algumas formas historicamente aceitas de escravidão involuntária são consideradas perfeitamente legítimas por alguns ultra-liberais, como a coação a trabalhos forçados para pagar dívidas. E existem várias outras formas de contrato de trabalho voluntário que um dia já foram perfeitamente aceitas pela sociedade e que hoje em dia são quase universalmente ilegais e consideradas moralmente inaceitáveis, mas que para um ultra-liberal são perfeitamente legítimas e deveriam ser reintroduzidas, como a indentured serfdom, feudal serfdom, ou mesmo a moderna truck serfdom, esta última permanecendo perfeitamente legal em grande parte dos países. Esse tipo de contrato, porém, mesmo quando perfeitamente voluntário, foi sendo historicamente progressivamente percebido como imoral e abusivo. Isso na verdade nos leva ao centro do paradoxo libertário : se queremos uma sociedade livre, devemos dar às pessoas a liberdade de jogarem voluntariamente fora sua própria liberdade? Mas essa não é a questão central aqui, e sim se a propriedade privada como pilar fundamental da ética é suficiente para preservar os valores morais que grande parte das pessoas gostaria de ver preservado. Eu acho claríssimo que não. O que uma boa parte dos ultra-liberais responde a isso não é que a defesa da propriedade privada preserve sim esses valores, e sim que não preserva mesmo e que essa grande parte das pessoas está equivocada e não tem nada de eticamente errado com escravidão.

Mas não acaba aí; em princípio seria possível fazer um contrato vendendo por exemplo meu coração para transplante (causando minha morte) por exemplo para tirar minha família da pobreza. Ou assinar um contrato abrindo voluntariamente mão de meus direitos políticos (por exemplo comprometer-me a não votar) como condição para trabalhar para uma certa corporação. Ou assinar um contrato abrindo mão da minha liberdade religiosa (por exemplo comprometer-me a não ir mais à igreja no domingo) como condição para fechar um contrato de aluguel de um apartamento. Ou assinar um contrato de servidão sexual pelo resto da vida em troca de casa e comida. Todos esses acordos voluntários são não só aceitos como perfeitamente legítimos por uma boa fração dos ultra-liberais, como é sua proibição que é enxergada como em ultima análise totalitária e perniciosa.

Eu pessoalmente não vejo como isso poderia ser razoável. Para mim, não existe possibilidade de equiparação ética entre coisas e pessoas, que é literalmente o resultado prático dessa forma de estruturar o que seria socialmente aceitável. Claro, um ultra-liberal argumentará “Mas veja bem, então o sujeito não vender seu coração e aí então a família inteira dele, inclusive ele,  morrerem todos de fome e todos os corações irem pro lixo e serem comidos por vermes é de alguma forma *melhor* do que ele vender seu coração e salvar o resto da família da pobreza?” E de fato, é um argumento ao qual é difícil dar uma resposta. Quem somos nós para proteger as pessoas se suas próprias decisões, certo? E se uma pessoa não pode vender seu coração, por que poderia vender, por exemplo, serviços sexuais? Onde está o limite além do qual alguma barreira fundamental foi ultrapassada?

A resposta ultra-liberal é : nenhum. Cada um deve ter livre direito de dispor de si mesmo como achar melhor, e isso inclui o direito de abrir mão do direito de dispor de si mesmo como achar melhor. O que para todos os efeitos é : a pessoa tem o direito de se tornar uma coisa. Só que uma pessoa se tornar uma coisa não é realmente uma possibilidade lógica. Não interessa quantos contratos ela assine, ela continua sendo uma pessoa. E não trata-la como tal é desumanizante não só para ela como para toda a sociedade ao redor. Então para mim não é suficiente que haja uma decisão voluntária para que um contrato seja válido. É preciso também que esse contrato não retire da pessoa certas liberdades fundamentais.

Agora, esse é o meu ponto de vista. Outros podem concordar ou não. Mas seja qual for o caso, note-se que este raciocínio de que tudo no homem possa ser reduzido às suas relações econômicas (e que leva diretamente à legitimação de que o homem possa ser “coisificado”) é precisamente uma das bases paradigmáticas do marxismo, e foi usado como argumento para justificar algumas das maiores barbaridades na história humana. E muitíssimo ironicamente, alguns daqueles que mais ardentemente combatem o comunismo compraram e introjetaram essa mesmíssima idéia.

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Existem ainda outras questões com o ultra-liberalismo e com a idéia genérica de que o livre mercado associado à defesa da propriedade privada se encarregará por tabela de todo o resto, maximizando a liberdade e a felicidade de todos. Para começar, é discutível que de fato o mercado completamente livre de inteferências realmente se auto-regule para maximizar algum tipo de somatório da função utilidade. Além disso, é praticamente um ponto de fé que o que maximiza a produtividade / lucro / utilidade total corresponda a algo que consideraríamos moralmente aceitável algo que maximize a liberdade individual ou mesmo algo que maximize a função utilidade (i.e. a grosso modo felicidade) para o ser humano mediano.

Analisemos esses pontos em mais detalhe.

A questão de se o ultra-liberalismo leva a solucões moralmente aceitáveis foi extensamente discutida na primeira parte do texto, mas só para recolocar sucintamente a questão, considere-se o seguinte exemplo. Talvez se deixarmos tudo ao sabor do livre mercado, pode ser o caso de que a função utilidade total seja maximizada com 10% da população ficando desempregada e literalmente falecendo de fome; talvez isso conserte um excesso de mão de obra circunstancialmente desnecessária e aumente muito a qualidade de vida de todas as pessoas remanescentes. Ou seja, não existe qualquer necessidade lógica de que o que maximiza o somatório da função utilidade seja moral. Estamos dispostos a aceitar isso?

Quanto ao ultra-liberalismo levar automaticamente a uma economia maximamente produtiva, a crise econômica atual dos EUA inspira fortes argumentos contra essa noção. Surpreendendo tanto esquerdas quanto direitas, a crise não foi causada nem pelos bancos malvados explorando a sociedade nem pelo governo malvado oprimindo os nobres e empreendedores bancos. Sim, o governo fez grandes besteiras nessa história toda, mas mesmo dentro do contexto deturpado pela interferência governamental, os bancos tomaram espontaneamente decisões alucinadas. E não foram alucinadas apenas no sentido de egoístas ou ganaciosas; elas foram suicidas e contra seus próprios interesses. Muitos bancos foram à falência por investir zilhões em empréstimos para pessoas que absolutamente e obviamente não tinham como pagar, ou por comprar ou vender produtos financeiros baseados em tais empréstimos. Como isso foi possível? Ora, ocorreu que indivíduos gananciosos dentro das instituições financeiras tiveram lucros fabulosos com tudo isso e foram pra casa rindo com o bolso cheio de dinheiro. Então assim como é contra a lei passar cheques sem fundo (não dá para argumentar “oh mas eu achei que ia ganhar na loteria”), também é muito razoável que haja limites por exemplo para quanto capital um banco pode emprestar sem que tenha lastro para isso, e que outros tipos de transações financeiras sejam reguladas para proteger o público – e os próprios bancos – de fraude e má fé.

Diante dessas observações, e em situações como essa, muitos ultra-liberais mesmo assim ainda retrucam que o sistema em questão não era “verdadeiramente” livre e por isso houve a crise, que o que falta é ainda mais liberdade e aí tais fenômenos seriam evitados. Isso soa tão suspeito quando dizer que União Soviética, Cuba, Coréia do Norte, etc não são “verdadeiramente” ou “suficientemente” comunistas e por isso não funcionaram.

Inclusive há muitas indicações de que a liberdade completamente desregulada, em não havendo qualquer mecanismo coercitivo para mantê-la, é instável e não se automantém. A liberdade irrestrita de mercado tende a se autodestruir indo em várias direções que não necessariamente coincidem com a que maximiza eficiência produtiva, umas das mais óbvias sendo a cartelização. Os ultra-liberais tentam argumentar que “Isso não vai acontecer pois… (insira argumento aqui)” descartando o fato de que em todos os mercados reais quem mais odeia a liberdade de concorrência são as grandes empresas, que se cartelizam em todas as oportunidades possíveis. Na prática, grandes empresas adoram monopólios, tentam construí-los com ou seu a ajuda do governo, e não hesitam em usar seu poder para fixar preços, forçar ou induzir o consumo de produtos que ninguém quer, subverter outros mercados usando o peso de seus recursos financeiros, confundir o consumidor de forma a fazer escolhas subótimas. As grandes empresas têm em geral pouquíssimo respeito pelo conceito de livre competição e livre mercado e buscam tanto possível destruir essas forças ou mantê-las sob administrável controle. Aqueles que realmente têm poder econômico suficiente para influenciar mercados inteiros não raramente buscam obsessivamente restringir a liberdade de escolha individual do consumidor usando de mecanismos completamente artificiais e que por vezes beiram o delirante e/ou abertamente coercitivo se possível.

Aliás, mesmo aceitando que se o mercado for completamente livre ele convergirá para o ponto que maximiza a eficiência econômica e a produção de riqueza, não há qualquer necessidade lógica de que isso simultaneamente maximizará a liberdade individual. Possivelmente o sistema mais economicamente produtivo consista exatamente em dar a menor quantidade possível de escolhas às pessoas.

O que nos leva ao último e mais problemático ponto, que coloca sérios dilemas para quem é libertário : deixadas livres, muitas pessoas escolherão a servidão, e apenas terão liberdade se essa lhes for imposta. Então talvez um sistema que torne a todos servos maximize a felicidade do homem mediano. Ou conversamente, mesmo supondo que o ultra-liberalismo levasse a um sistema moralmente aceitável e que maximizasse a liberdade das pessoas, isso pode não equivaler a maximizar a felicidade individual. A questão é que talvez certas pessoas, possivelmente muitas, sejam mais FELIZES com alguém lhes dizendo o que fazer do que lhes sendo dada livre escolha. Então no final das contas uma sociedade totalitária pode maximizar a função utilidade dessas pessoas, que preferem a “segurança” de um estado que escolhe tudo por elas à aterrorizadora responsabilidade de tomarem suas próprias decisões.

Em resumo, maximizar produtividade, maximizar liberdade e maximizar felicidade podem não ser objetivos convergentes ou mesmo compatíveis. Tratá-los como se estivessem solidamente atrelados de forma que seria possível descartar um e pensar somente nos outros não só não funciona como pode levar a grandes erros.

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Tanja Krämer e a Assombrosa Falta de Autocrítica ../../.././2009/12/30/tanja-kramer-e-a-assombrosa-falta-de-autocritica/ ../../.././2009/12/30/tanja-kramer-e-a-assombrosa-falta-de-autocritica/#comments Wed, 30 Dec 2009 08:08:24 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1698 Tanja olhando meio de lado
pra evitar o espelho

Eis que uma tal de Tanja Krämer resolve novamente escrever sobre mim.

Ela já havia escrito antes, mas este texto dela era tão constrangedoramente superficial e oco de qualquer coisa que parecesse um argumento que nem deu vontade de comentar qualquer coisa. O tipo de texto que certas pessoas escrevem quando acham que estão tão absolutamente certas que isso as isenta de dizer qualquer coisa consistente sobre o assunto – o que ironicamente tende a acontecer precisamente quando elas têm tão poucos argumentos que a solução é atacar o interlocutor ao invés de suas idéias. Achar que o meu texto tivesse qualquer coisa a ver com “eu me basto”, ou com egoísmo, ou com narcisismo, quando o próprio trecho que ela mesma cita (!) diz explicitamente que nós precisamos fazer as pazes com o fato de que há coisas que só o outro pode ser, e nós não, demonstra algo que beira o analfabetismo funcional (ou desonestidade patológica, não que sejam mutuamente excludentes).

Mas então, eis que tomada de revolta com a “porralouquice” do que digo, resolve escrever novamente, desta vez ainda mais explicitamente sobre mim, que ela absolutamente desconhece, mas que aparentemente supõe conhecer através de interpretações, digamos, imaginosas dos meus textos.

Refutar as coisas que ela fantasiou sobre mim seria uma bobagem para todos os envolvidos.

Refutar o que ela escreveu sobre o que eu escrevi já fica um pouco mais relevante, mas não muito, dado o grau de obtusidade (ou desonestidade) com que o texto foi lido.

Ora vejamos, eu escrevo que

Os homens, por outro lado, querem gastar quase zero de tempo e esforço em cuidar de sua aparência, em serem socialmente aptos, em serem atraentes, em ficar tentando entender o que poderia tornar sua imagem mais sexy. E ao mesmo tempo, seu primeiro e mais prioritário interesse é ter acesso a sexo. Agora me digam, como e em que termos pretendem ter acesso a sexo com essa atitude? O leitor pode tirar suas próprias conclusões.

E mais adiante escrevo ainda que

o homem médio provê serviços afetivos absolutamente medíocres às suas parceiras. Age de forma quase autista e não faz qualquer esboço de tentativa de aprender como agradá-las emocionalmente, ou mesmo de entender quais são as suas necessidades; em geral, inclusive, legítimas e profundas necessidades psicológicas de suas parceiras são tratadas como inconvenientes a serem tanto quanto possível contornados ou ignorados.

Disto ela conclui que

Na verdade, ele [o texto] é um produto para homens ressentidos que não conseguem namorar quem eles querem. Claro, a culpa nunca é deles. No caso, é do sistema malvadinho.

Ironicamente, parcialmente ela tem razão : é para eles também. Ó homens ressentidos do mundo, que acham que não têm qualquer responsabilidade em causar seus próprios infortúnios, e que se sentem tentados a dizer que “a culpa é do sistema” : leiam o que escrevi acima e acordem.

Agora, dos trechos acima deduzir que eu estou apoiando essa cegueira? Er, não.

Ocorre que o texto como um todo também é para as mulheres ressentidas do mundo, que acham que todos os seus problemas, de relacionamento ou não, são culpa dos homens. E dessa crítica dona Tanja não gostou nem um pouco. Que audácia, a minha, dizer certas coisas!

Que tal então apontar fatos que contradigam o que eu escrevi? Explicar como algumas das questões que eu levantei não são reais, não correspondem a como as coisas efetivamente ocorrem? Discutir pontos específicos do que eu de fato disse (ao invés de o que ela psicografou) e refutá-los se achar que pode?

Mas não, não. O “argumento” de dona Tanja se resume a “ele é o Power Ranger verde”. E se ele critica a intolerância histérica com qualquer coisa, naturalmente só pode ser porque secretamente quer justificar seus próprios vícios e falhas.

E é ai que a coisa começa a ficar interessante. Como crítica ao que eu escrevi, é só um festival de infantilidades. Mas como instrumento de retórica, começa a valer a pena comentar.

Então vejamos, ela cita um texto que escrevi sobre prostituição. Deixo claro no texto e reitero aqui que não vejo absolutamente qualquer problema moral com prostituição, e que pelo contrário, vejo problemas de várias ordens em criminalizá-la, e defendo que fazê-lo provavelmente causa bem mais mal do que bem à sociedade. Conclusão final aliás igual à qual chega (embora não pelos mesmos caminhos)… São Tomás de Aquino. Pelo raciocínio Tanjático, “Como não concluir que São Tomás de Aquino está advogando em causa própria?”. Ele só pode mesmo ser um perdedor total que se deu ao trabalho de enrolar com um monte de blábláblá sobre teologia quando na verdade o que ele queria mesmo era pegar umas putas.

Essa é uma das estratégias retóricas mais antigas do mundo, e é impressionante como o tempo passa e as pessoas continuam a usá-la. Impressionante mas não surpreendente, já que para certos segmentos da platéia continua tendo lá seu efeito, nem que seja de desviar a atenção do que não se quer ver discutido.

Vai na direção genérica do que disse (acho) Millôr Fernandes traduzindo Arthur Bloch :

1. Se os fatos estão contra você, conteste a lei
2. Se a lei está contra você, conteste os fatos
3. Se os fatos e a lei estão contra você, berre histericamente

Então é como quando um político resolve fazer campanha para acabar com as tolas e perniciosas leis anti-drogas e então tem que enfrentar “acusações” de ser um drogado. É como quando alguém expressa a opinião de que abortos não deveriam ser ilegais e então tem que ficar ouvindo “acusações” de ser “a favor” do aborto. É como quando um menino nos EUA decide que não vai recitar o juramento de fidelidade à bandeira americana até que realmente haja liberdade e justiça para todos, incluindo os gays, e então tem que ficar ouvindo “acusações” de ser gay.


10-Year-Old Who Refuses to Say ‘Pledge of Allegiance’
Until Gays Have Full Equality

É como quando os liberais clássicos anunciam que são a favor da manutenção da propriedade privada dos grandes meios de produção e então têm que ouvir “acusações” de que eles querem mesmo é que os pobres morram. É como quando certas pessoas se colocam contra a ação afirmativa… para então terem que ficar ouvindo “acusações” de na verdade serem racistas.

Então vai dar em “Dawkins é burrão” e “Rousseau não pegava ninguém, haha!”. Esse tipo de reação é tola e superficial, mas quase sempre é muito pior do que isso : é desonesta e manipulativa, e costuma indicar a total inexistência de (ou incapacidade de articular) argumentos reais. Se os fatos e a lei estão contra você, berre histericamente.

***************

Só pra completar, sobre o natal : não, dona Tanja, não é uma festa religiosa. É uma festa pagã que comemora o solstício de inverno, que já era comemorada muito antes da cristandade existir, e que muito provavelmente continuará sendo comemorada por muito tempo depois da cristandade ir parar nos livros de história. Evidentemente é muito mais fácil se apropriar de algo que já existe e dizer que foi você que inventou do que convencer todo mundo a mudar seus costumes. Então que beleza, vamos dizer que o dia de ano novo é o aniversário da data em que Moisés achou suas ceroulas perdidas e agora temos uma nova festa religiosa comemorada por bilhões.


Mensagem de natal

Ou opcionalmente podemos acreditar nisso aqui :

A Criancinha-Deus é o pão do céu. O Natal é a nossa salvação, quando as trevas se dobraram ao Menino-Deus (nosso pão do céu).

Realmente é patético o que a religião faz com as pessoas. Leva elas a escreverem coisas delirantes como essa, para então ser usada como desculpa esfarrapada para justificar dizerem com todas as palavras que “Intolerância Implacável é a Verdadeira Bondade” enquanto citam “1984″. George Orwell aplaudiria de pé.

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Tolerância Seletiva ../../.././2009/12/25/tolerancia-seletiva/ ../../.././2009/12/25/tolerancia-seletiva/#comments Fri, 25 Dec 2009 12:55:04 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1658
Mensagem de natal

irreverência
[Do lat. irreverentia.]
Substantivo feminino.
“Desobedecendo e revoltando-se com uma irreverência heróica, funda [Lutero] a liberdade do pensamento” (Ramalho Ortigão, Figuras e Questões Literárias, I, p. 127).

Pedro publicou como mensagem de natal este texto aqui (agora aqui).

No texto, ele diz entre outras coisas que o máximo que se pode esperar razoavelmente dos homens é que tenham boa vontade, não caridade. Que se tivessem caridade, seriam santos, e que não é um papel apropriado para a maior parte de nós se arrogar acusar os outros de não serem santos, dada tanto a dificuldade em sê-lo quanto o fato de que poucos entre nós o somos. E adiciona a isso que a motivação para apontar falhas em outros seria primordialmente a auto-afirmação, e que estarmos corretos em nossas acusações não contradiz ou desmente esse motivo.

Parece em princípio uma mensagem que pretende ser de tolerância e paz e supostamente em defesa da humildade, mas vamos examinar um pouco mais detidamente.

Para começar, como é que alguém que está defendendo precisamente a “boa vontade” em não julgar os outros constrói um argumento para justificar que a paz na terra seja dada apenas àqueles… que têm a tal “boa vontade”? Essa é a essência da eterna contradição do pensamento católico : vamos todos ser fraternos, e humildes, e amigos… exceto claro com quem não concordar conosco, esses julgaremos severissimamente e enviaremos neste e no próximo mundo para as chamas da reprovação. Dizer que é “deus” quem está julgando, ou que é a própria pessoa que escolhe se afastar de deus, são apenas formas convolutas de projetar seu próprio julgamento em uma conveniente entidade externa “para não sujar as próprias mãos de sangue”. Daí um dos motivos mais importantes para se afirmar existência dessa imaginária entidade : lavar das mãos o sangue dos seus próprios julgamentos.

Aliás, a tal “abstenção do linchamento em todas as suas formas” é tudo o que a religião católica (e religiões em sua maior parte) não fazem. Em total constraste com seu discurso de “tolerância” e “paz”, sua prática cotidiana e rotineira é saírem de seu caminho para discursar, transbordando de reprovação e virulência, contra aqueles que ousam ir contra seus “valores” – na verdade uma coleção de regras dogmáticas consideravelmente arbitrárias e temporalmente mutáveis decretadas por Roma.


Que tal mandar as pessoas para o inferno por comerem
carne como demonstração de “tolerância”?

Então se a igreja católica tivesse a tal “boa vontade” de não sair julgando todo mundo da qual fala o Pedro, não se apressaria em mandar pessoas para o inferno por exemplo por suas práticas sexuais, ou por negarem a existência de deus. Ah, mas que ingenuidade a minha – não é a igreja católica que manda ninguém para o inferno, é deus. Mas vejam, regras como esta e muitas, muitas outras – assim como suas exceções – foram efetivamente e na prática promulgadas por Roma como “interpretações” do que seria teologicamente correto. Que conveniente! Posso julgar a todos e nem ao menos sou eu que estou julgando. Eu posso esfregar minhas mãos limpas de sangue e dizer “foi você quem escolheu se afastar de deus”.

Mas a parte mais incrível do argumento – sobre “abster-se de linchamento em todas as suas formas” – é que aparentemente ele não parece se aplicar quando quem está sendo julgado… é quem se arvora na pecaminosa e terrível prerrogativa de julgar os outros. O texto não só julga tais pessoas severamente, como ainda “explica” que qualquer discurso acusatório só pode mesmo ser motivado por auto-afirmação, ser obra do diabo (!), e que estas pessoas, ao contrário dos pecadores normais, que são apenas humanos, não merecem sequer o benefício da dúvida de estarem demonstrando “boa vontade” e são portanto justamente imerecedoras da “paz na terra”. Pois então cumpro a profecia do texto e dirijo a seu autor a acusação semelhante de se colocar, contra seus próprios argumentos, na posição de “anjo vingador” que sim, julga severissimamente aqueles que ousam julgar os outros.

Aliás, essa posição não é nem um pouco surpreendente, pois para a teologia católica, este é o verdadeiro e maior pecado, efetivamente o pecado original que colocou o homem em estado natural de eterna impureza. Não foi genocídio, não foi crueldade, não foi preguiça ou omissão. Não, não. Foi ousar comer do fruto da árvore do bem e do mal e ousar ter um julgamento próprio sobre o que é certo e errado. Foi ousar usar sua própria consciência para tomar decisões. O pecado original e mais grave de todos é o de demonstrar independência de julgamento ético ao invés de submissão subserviente e temerosa à vontade de “deus”, leia-se seus “representantes” na terra. Você pode ser um assassino torturador psicopata estuprador e mutilador de crianças que se 5 minutos antes de morrer declarar sinceramente sua submissão a deus, tudo estara bem e você ira para o céu. Mas se você for uma pessoa bondosa e caridosa e tolerante mas seguir seus próprios critérios e sua própria consciência para isso e morrer negando a existência de deus… irá queimar para sempre no inferno.

A religião dogmática (e a maioria absoluta é) alimenta-se de (e explora, e incentiva) várias fraquezas humanas, entre elas de uma distorção de caráter muito humana que é o desejo de ter as mãos limpas do sangue de julgar os outros, de ter a consciência limpa da terrível carga de decidir por si mesmo o é certo, o que é bom, o que é verdadeiro, de não querer assumir a responsabilidade pelo que jogadas fora todas as racionalizações, desculpas e explicações são suas próprias e inalienáveis escolhas, decisões e julgamentos. Então a religião institucionalizadamente dogmática não apenas tira essa carga de suas mãos como em troca exige explicitamente que você não use seu próprio julgamento. Ela exige nada mais nada menos que quando confrontado com um dilema entre o que sua consciência e melhor julgamento dizem serem certo e bom e o que as autoridades religiosas afirmam ser certo e bom, você deve jogar fora seu julgamento e submeter-se à ortodoxia. O resultado é todo tipo de aberração moral e cognitiva.


Uma amostra do cristalino pensamento
de cristãos fundamentalistas

Esse discurso de que “fazer uma acusação, mesmo que seja verdadeira” seria apenas uma demonstração de “falta de boa vontade” e expressão de uma “necessidade de auto-afirmação” vindo de alguém que está fazendo precisamente isso é no mínimo inconsistente. Mas isso se torna ainda pior e mais preocupante quando chega ao extremo de classificar a irreverência como “falta de boa vontade”. Como é que é? Isso me lembra que uma entre as minhas formas favoritas de definir um governo totalitário é assim : um governo se torna totalitário quando perde seu senso de humor. O próprio ato de criticar em si mesmo se torna então suspeito sinal de “falta de boa vontade”. Mesmo através de piadas, mesmo através de irreverência. Pois eu digo que sentir-se importante demais para ser alvo de irreverência, para ver suas características ridículas ou negativas apresentadas em forma destilada, isso sim é se levar a sério demais. Quando se falsifica o que alguém disse, quando se calunia alguém, quando nos agarramos a repetir qualquer afirmação absurda feita sobre quem queremos criticar, isso sim é falta de boa vontade. Mas irreverência? No sentido de recusar-se a deixar de questionar algo por ser supostamente tão sagrado que não pode ser questionado?  Ora, vejam a citação escolhida pelo Aurélio para ilustrar o significado desta palavra :

irreverência
[Do lat. irreverentia.]
Substantivo feminino.
“Desobedecendo e revoltando-se com uma irreverência heróica, funda [Lutero] a liberdade do pensamento” (Ramalho Ortigão, Figuras e Questões Literárias, I, p. 127).


Religião nos EUA e no mundo

Agora, se a tal “boa vontade” é um misto de verdadeira humildade com o desejo de ver o bem e pressupor o bem, a atitude da igreja católica demonstra extrema falta de boa vontade. Acreditar-se capaz de comunicação direta com deus, seu único legítimo representante no universo, e a única entidade capaz de não só interpretar a vontade divina para decidir o que é um ato “mau” como para intermediar o “perdão” por tais atos… isso não soa muito bom em termos de humildade! Então talvez a boa vontade esteja em pressupor o bem. Mas o fato é que a religião católica enxerga o mal em cada fresta e canto da existência. Ela é tão avessa a pressupor o bem que considera que todos os seres humanos desde a concepção já estão errados mesmo que absolutamente nada tenham feito. Então talvez ela seja boa em reconhecer o bem onde quer que esteja. Mas não; qualquer um que não prometa nominalmente subserviência a seus preconceitos ritualmente dogmatizados, mesmo que calhe de estar fazendo enorme bem, é automaticamente considerado tentado pelo demônio e pelo mal. Então por qualquer critério a igreja católica definitivamente não passa nos critérios apresentados para “boa vontade”.

Então são citados rapidamente os ateus. Ora, os ateus. Aqueles seres incapazes de transcendência que querem reduzir tudo a um componente antropológico. Ou será que querem? As descrições de ateus feitas por religiosos são com freqüência para criticar posições que a maioria dos ateus absolutamente não defende. Eu não “quero” reduzir tudo a um componente antropológico, e na verdade fico freqüentemente frustrado com esse componente vezes demais ir contra o que eu acho que seria certo e bom. Agora, negar a existência e a importância desse componente é simplesmente fugir da realidade.


Por que os ateus não calam a boca?


Theocracy Watch : Dominion Theology

Christian Reconstructionists

Termino com uma discussão do episódio da mulher adúltera, que eu concordo ilustra muito bem toda essa questão. Em primeiro lugar, não concordo que o argumento para não apedrejar a mulher adúltera tenha qualquer coisa a ver com o fato de ela ser inocente. Analisemos a passagem inteira :

Early in the morning he came again to the temple. All the people came to him, and he sat down and taught them.  The scribes and the Pharisees brought a woman who had been caught in adultery, and placing her in the midst they said to him, “Teacher, this woman has been caught in the act of adultery. Now in the Law Moses commanded us to stone such women. So what do you say?” This they said to test him, that they might have some charge to bring against him. Jesus bent down and wrote with his finger on the ground. And as they continued to ask him, he stood up and said to them, “Let him who is without sin among you be the first to throw a stone at her.” And once more he bent down and wrote on the ground. But when they heard it, they went away one by one, beginning with the older ones, and Jesus was left alone with the woman standing before him. Jesus stood up and said to her, “Woman, where are they? Has no one condemned you?” She said, “No one, Lord.” And Jesus said, Neither do I condemn you; go, and from now on sin no more.”

Ou seja, em nenhum momento é questionado que embora em posição essencialmente indefesa e vulnerável, a mulher de fato era culpada da acusação que lhe faziam, e inclusive Jesus a manda embora com a recomendacão de que “de agora em diante não peque mais”. Além disso, a mulher nem sequer tentou se justificar, ou demonstrou qualquer arrependimento. Portanto a mensagem é sim de tolerância, mas não como precaução contra falsas e equivocadas acusações, mas sim de tolerância para com quem de fato errou, e Jesus não exigiu dela promessas de retidão ou ortodoxia moral antes de não condená-la. E nem ao menos faz qualquer sermão exceto recomendar que não peque mais. Então se alguém teve boa vontade nessa história toda foi Jesus, que pressupôs a capacidade para o bem na mulher que não condenou apesar de ela ter de fato errado, que enxergou a capacidade para o bem na multidão que convenceu a não apedreja-la, e que no final foi humilde o suficiente para também não condená-la ou exigir demonstrações de subserviência apesar de estar numa posição de superioridade moral e de tê-la salvo da multidão. Já a multidão, apesar de ter sido instada com sucesso à tolerância, não demonstrou realmente boa vontade; apenas se sentiram vexados pela observação de Jesus que os convidava a examinar sua própria autoridade moral para julgá-la.

Agora, devemos daí concluir que se não somos perfeitos não temos autoridade para julgar ninguém, e que conversamente, se somos, temos autoridade para condenar a todos implacavelmente?

A segunda parte é respondida pela própria história e pela atitude de Jesus, acredito. Nenhuma quantidade de superioridade moral do mundo, verdadeira ou (muito mais provavelmente) suposta nos autoriza a sermos implacáveis, algo de que a igreja católica parece se esquecer completamente. Ele também não a condenou.

Já a primeira parte é precisamente o objeto do texto que comento. Se somos imperfeitos, estaremos então em errados em julgar os outros? Essa é uma pergunta complexa, mas como lindamente construído, desenvolvido e apocalipticocatarticamente resolvido em Dogville, olhar para si mesmo e dizer “eu não me orgulho de agir desse jeito mas que posso fazer, sou humano” é uma desculpa muito pobre. Combinar com aqueles ao nosso redor “eu não te julgarei e você também não me julga, abdiquemos todos entre nós de nossa consciência ética, sejamos todos cúmplices desde que estejamos entre nós ” não é nem a resolução sugerida pela histórica bíblica nem uma solução “tolerante” ou cheia de “boa vontade”, muito pelo contrário; na melhor das hipóteses ela supõe o mal não só como onipresente mas também insuperável. Agora, existe uma grande diferença desde não ser implacável e intolerante até abrir mão de ter uma consciência. Inclusive o filme vai mais longe e considera também a segunda parte, e conclui por apontar que acreditar-se tão superior aos outros que não se pode aplicar a eles os mesmos padrões éticos que aplicamos a nós mesmos é simples e pura arrogância.


The Question


The Answer

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A Tristeza Do Homem Sublime ../../.././2009/12/22/a-tristeza-do-homem-sublime/ ../../.././2009/12/22/a-tristeza-do-homem-sublime/#comments Wed, 23 Dec 2009 00:11:47 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1646
A Tristeza Do Homem Sublime

Alguns dias depois de eu publicar este texto aqui, eis que vejo um post do Pedro intitulado Duas canções para o “homem médio”, segundo ele “exercícios métricos para desanuviar” o clima de “Bolsa-Amor do Ministério da Saúde” produzido pelo meu texto. Por um lado eu acho absolutamente justo que o “homem médio” se sinta frustrado com um sistema no qual  a felicidade seja tão elusiva. Por outro, eu concordo com o Pedro que liberdade para buscar algo não é o mesmo que o estado ou a sociedade garantirem que você vai encontrar. E concordo adicionalmente que se ficamos chateados com as complexidades do comportamento dos outros, devemos antes de lhes atribuirmos toda a responsabilidade por nossas atribulações estarmos preparados para perceber o quão complexas são as nossas próprias necessidades. E precisamos estar, como em tudo o mais, dispostos a fazermos coisas que não queremos fazer para podermos obter resultados que de fato queremos. Isso se chama investimento, e ter autocontrole suficiente para fazê-lo, e para fazê-lo sem ficar fazendo cara feia e beiço é provavelmente umas das marcas mais distintivas de maturidade e equilíbrio emocional.


A Tristeza Do Homem Sublime
(versão alternativa)

Comento adicionalmente que ao tal “homem sublime” que se supõe “oprimido pela massa ignara” apenas como forma de responsabilizar a todos menos a si mesmos pelos seus problemas se opõe o “homem admitidamente pecador” que se supõe oprimido por sua insuperável e incontornável natureza torpe apenas como forma… de se eximir da responsabilidade pelas próprias escolhas. O fato de que não somos e não podemos ser perfeitos não é argumento para não buscarmos ser o melhor que pudermos, nem para eximir todo mundo de qualquer responsabilidade de pelo menos tentar ser bom. Dizer “é, eu sou mau mesmo, todos somos, quem disser que não é um impostor” é uma forma muito conveniente de se justificar por não buscar superar a própria ruindade. E se por um lado nem sempre tudo é “culpa do sistema”, por outro lado existem sim, situações nas quais o sistema é opressivo. Agora, mesmo quando isso é verdade, não precisa ser culpa de ninguém, e talvez seja em parte nossa. E mesmo quando baseada em insatisfações legítimas, de fato ficar paralisado nessa visão negativa do mundo no estilo “socorro, estou sendo oprimido” não nos leva muito longe. Então a alternativa a ficar só reclamando é tomar armas contra um mar de problemas, e em opondo-se a eles, sonhar derrotá-los. E não degenerar em ficar choramingando e com isso deixar de fazer o que pode de fato ser feito sobre o assunto. Quanto a isso tenho que concordar. E não me parece que meu texto sugira algo diferente disso. Muito pelo contrário. Mas se para certos paladares falta uma medida extra de desanuviação, sirvamos um pouco on the side.


Now we see the violence inherent in the system!


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Brasil, Uma Nação À Procura De Um Destino ../../.././2009/12/12/brasil-uma-nacao-a-procura-de-um-destino/ ../../.././2009/12/12/brasil-uma-nacao-a-procura-de-um-destino/#comments Sat, 12 Dec 2009 11:04:08 +0000 Sergio de Biasi ../../.././?p=1502  

 

BrazilBreakthroughCoverArticle

O Brasil na capa da Convenience Store News!

Estava eu fazendo uma visita à loja de conveniência na esquina da minha casa quando notei entre as revistas à venda uma com o Cristo Redentor e uma bandeira do Brasil na capa. Bem, eu tive que ir verificar do que se tratava, e era uma inesperada revista chamada “Convenience Store News” com um artigo de capa sobre… o Brasil!

A manchete era sobre como a economia brasileira está com todas as cartas na mão para passar por um período de grande crescimento e finalmente transicionar de economia emergente a economia de verdade no cenário mundial. Porém, logo complementa que isso pode ser impedido por uma situação de corrupção, socialismo, impostos e políticas ambientais fora de controle. Eu perguntei ao gerente da loja se a revista estava à venda (afinal nem sequer havia preço na capa) e ele disse que a revista na verdade era dele e estava junto com as outras por engano, mas que ele já havia lido e que eu podia ficar com ela se quisesse. Eu fiquei. Examinar o artigo, de autoria do editor da revista, que aproveitou uma visita ao Brasil para escrever sobre a situação do mercado nacional para lojas de conveniência e brevemente sobre o país em geral, acabou me levando a certas reflexões. Uma versão pode ser encontrada aqui.

Vejam o que o editor da revista encontrou para gostar sobre o Brasil :

Brasil na Convenience Store News, Likes

Pois então, o mais importante sobre o Brasil, quinta maior área do mundo, quinta maior população do mundo, localização de seis entre as cem maiores metrópoles do mundo é… praia, guaraná, e caipirinha. Sério. Brasil, eterno país do futuro, impávido colosso deitado eternamente em berço esplêndido, é a hora de mostrar tua cara. Ou será que essa *é* a nossa cara? A noção que o americano médio tem do Brasil é um montão de bundas cercadas de bandidos por todos os lados. Não é surpreendente. Aqui em New Jersey, metade dos alunos de pós-gradução do departamento de ciência da computação de todas as melhores universidades de pesquisa é… indiano ou chinês. Mesmo os chineses que não são suficientemente, digamos, sofisticados para ingressar num programa de pós-graduação vêm pros EUA e aqui abrem seus próprios negócios, como as estereotípicas lavanderias. Mas e os brasileiros? Cadê? Bem, majoritariamente servindo de… peões. Ou empregadas domésticas. Ou nos casos mais bem sucedidos garotas de programa. Ou meia dúzia de modelos famosas. Como isso foi acontecer?

O Brasil está muito timidamente representado nos programas de pós-graduação americanos, ao contrário das outras nações emergentes, que estão maciçamente, abundantemente, ostensivamente presentes. Em parte isso é por causa das políticas alucinadas e xenofóbicas do governo federal brasileiro que tomado de nacionalismo ufanista delirante crescentemente reza pela cartilha de que estudar numa universidade americana é uma frescura desnecessária dada a existência de cursos “equivalentes” em território nacional. Encaram educação superior como uma “commodity” comparável a minério de ferro ou soja; tudo igual e intercambiável. E quem mesmo assim teimosa e antipatrioticamente insiste em consumir o produto estrangeiro deve ser miopicamente forçado a todo custo a depois voltar para unir-se aos doutores que fazem concurso para gari. Agora me diga : quais países conseguiram formar uma elite intelectual e podem agora exibir universidades de pesquisa reconhecidas entre as melhores do mundo… e qual país continua patinando na irrelevância acadêmica?

O que nos leva à questão de que muito mais relevante que a política do ministério da educação é o fato de que o intelectual sério brasileiro, do qual desesperadamente precisamos, não tem fora de posições criadas artificialmente lugar em nossa sociedade, e muitas vezes encontra no exílio a única forma de obter reconhecimento do seu valor. Não que exista qualquer risco de um brasileiro ser estereotipicamente identificado como intelectual. Não, não. Carnaval, futebol, jiu-jitsu, capoeira, são essas as produções culturais brasileiras reconhecidas no exterior. Ah, claro, e bossa-nova, mas dessa é preciso explicar aos americanos que os próprios brasileiros há muito não gostam mais. Infelizmente não é uma caricatura; é uma percepção perfeitamente legítima do que de fato gera interesse. Pensar não está entre as atividades mais prestigiadas na terra em que se plantando tudo dá. A noção mais ou menos dominante é de que pensar não serve para nada. É para isso que se quer que alguém pensante volte? Agora, como é que isso foi acontecer?

A questão é que num ambiente em que as regras mudam o tempo todo de forma imprevisível e ininteligível, em que estratégias de longo prazo são impossíveis, em que recompensas e punições artificiais importam infinitamente mais do que produtividade, eficiência ou organização, em que a atividade empresarial é tratada pela lei como excentricidade de rico, em que um diploma de engenheiro serve para passar em concursos e não para entender como a realidade funciona… bem, num contexto como esse então realmente pensar não serve para nada. Não adianta entender qual a forma mais segura, barata, rápida e eficiente de construir uma ponte se o governo for dizer que daquele jeito não pode e de qualquer forma quem vai construir é o meu sobrinho.

Os burocratas olham para as deficiências da produção acadêmica brasileira e após décadas continuam apegados a estratégias que a essa altura já sabemos empiricamente que não funcionam. Um dos erros mais essenciais é tentar consertar a situação olhando apenas para o próprio sistema acadêmico. Então se acha que tudo será resolvido dando mais bolsas, construindo mais universidades, buscando maximizar o número de publicações, aumentando o número de pessoas com diplomas de pós-graduação. Só que tudo isso só vai criar doutores varrendo a rua e dirigindo táxis se não houver quem os empregue fora da academia.

Agora, é claro que precisamos de doutores para ter universidades de pesquisa. Mas se o único emprego possível para doutores for dar aula numa universidade, uma parte substancial das pessoas qualificadas para serem doutores – precisamente as mais empreendedoras – não vão querer enterrar sua vida nisso. E além disso todo esse “conhecimento” acadêmico não estará sendo usado para nada – o que só tornará ainda mais frustrante a carreira acadêmica para aqueles que realmente têm vocação para isso. É preciso ver que as melhores univesidades de pesquisa do mundo existem num contexto, e não à margem da sociedade em que se inserem. Elas estão cercadas de empresas de alta tecnologia que empregam engenheiros – e mestres, e doutores  – não para ficarem dando aulas mas para de fato usarem seus conhecimentos. É esse o ambiente que atrai as melhores mentes do mundo, aquelas que querem de fato desvendar os mistérios do universo e não apenas produzirem artigos para impressionar uma agência de financiamento do governo. O próprio título de mestre nos EUA é em geral considerado profissionalizante – você o obtém para voltar ao mercado, não para ficar na academia. É no Brasil que existe a noção de que a única função de obter um título de mestre é basicamente seguir carreira acadêmica. Quem quer isso nos EUA vai fazer logo um doutorado. As ultra-melhores universidade de pesquisa nos EUA muitas vezes sequer oferecem programas de mestrado. Agora, que mercado de trabalho existe no Brasil para pessoas com mestrado em física, ou química, ou matemática? Por que alguém faria isso no Brasil senão para passar o resto da vida… repetindo para outros o que aprendeu, ao invés de USAR este conhecimento?

Ao prosseguirmos achando que vamos resolver tudo formando ainda mais e mais doutores sem eles terem qualquer perspectiva profissional real, conseguimos não só não ter mais empresas de alta tecnologia, como no processo ajudamos a escangalhar também o sistema acadêmico. Mas o que fazer então? Bem, como em geral, a primeira e mais importante providência que o governo pode tomar é a de NÃO ATRAPALHAR, e não se meter. Infelizmente esta é uma noção quase alienígena ao governo brasileiro.

O governo brasileiro precisa deixar as pessoas em paz para se associarem livremente para fundar empresas. Precisa parar de regular tudo e de criar encargos que incidem desde o primeiro momento quer haja lucro ou não. Quantas pessoas teriam um blog se fosse preciso ter uma licença do governo, se fosse preciso seguir um manual de regras bizantino sobre o conteúdo, e fosse preciso fazer relatórios mensais e ter um diploma de blogueiro? Aliás, o governo brasileiro precisa também se libertar do ranço corporativista suicida de querer exigir diplomas para o exercício das mais absurdas profissões. E precisa tornar claras e simples as obrigações fiscais das empresas. Etc, etc, etc…

O que nos leva de volta ao artigo original que encontrei na revista na loja de conveniência. Vejamos o que o editor da revista encontrou para *não* gostar sobre o Brasil :

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Realmente, tem coisas que a gente só percebe  plenamente o quão opressivas e absurdas são quando elas são removidas. Os outros pontos listados são muito relevantes e até haveria o que dizer sobre eles, mas  o que me bateu mais forte foi a situação de segurança no Brasil. Eu me lembro quando me mudei do Rio para Nova York e meu primeiro e mais intenso sentimento ao andar nas ruas foi de respirar aliviado e diria eu, até mesmo surpreso pelo grau em que não era mais necessário ficar o tempo todo olhando por cima do ombro para ver se tinha alguém vindo me roubar. Pessoas usam laptop sentadas no parque, prédios não são cercados de grades, é possível andar na rua às 3 da manhã. A situação de criminalidade e de generalizada exceção à normalidade institucional que prevalece no Rio de Janeiro e em várias outras grandes cidades brasileiras é completamente anômala. Mais uma vez, que incentivo existe para pensar e arriscar empreender se servir de avião para distribuir cocaína é muito mais simples, lucrativo e seguro? Que possibilidade existe de planejar se não existem regras?

Enfim, o artigo que motivou este texto é tão interessante pelo que é quanto pelo que ele não é. O próprio fato de ele existir é interessante. Alguém escreveria um artigo como esse sobre a Coréia do Sul, por exemplo? Dizendo que ela está “à beira de um grande salto” e que há incerteza se ela o dará? Não, ela já o fez! Agora vejam, no ranking mundial, a Coréia do Sul é por volta da décima quinta em tamanho, enquanto o Brasil é por volta da décima. Só que a área do Brasil é de oito milhões e meio de quilômetros quadrados, enquanto que a da Coréia do Sul é de… er, cem mil. Como isso é possivel? E note-se, a Coréia evoluiu rapidamente para essa posição, basicamente entre os anos 60 e 80, transmutando-se de um país fundamentalmente inexpressivo, repetidamente ocupado por potências estrangeiras, e dividido por guerras, para uma das maiores economias do mundo.

Agora, enquanto a Coréia se ocupava em saltar do terceiro para o primeiro mundo, o Brasil estava sendo governado pelo governo militar que com o motivo / desculpa / explicação de nos salvar dos comunistas tomou o poder na marra (aliás, com considerável mesmo que não unânime apoio popular, diga-se de passagem) e… pôs-se enigmaticamente a estatizar tudo e a implementar um plano de “crescimento” 110% keynesiano com o pé fundo no acelerador dos gastos.

A política econômica consistia em pegar dinheiro emprestado de outros países, e quando a farra de crédito internacional acabou, ela transformou-se em, er, basicamente imprimir dinheiro, honrando-nos com uma inclusão nos livros-texto de economia como exemplo clássico de hiperinflação e do que não se deve fazer. Note-se que o gravíssimo fenômeno de hiperinflacão é comumente associado a guerras e outros acontecimentos similarmente drásticos que forçam ou são apresentados como justificativa para o governo passar a gastar muito, muito, muito, mas muuuito mais do que dispõe. Nós podemos nos orgulhar de termos conseguido produzir isso sem que estivéssemos gastando o dinheiro para salvar o país de nenhuma catástrofe iminente.

Paralelamente, a xenofóbica política de comércio exterior incluía por exemplo substituir e minimizar importações a qualquer custo. Isso foi culminar em grotesquidões como a maravilhosa lei de reserva de mercado de informática de 1984, que teve como um de seus principais resultados absolutamente destruir qualquer possibilidade do Brasil ser internacionalmente competitivo nesta área. Outro resultado foi atrasar e encarecer a informatização da economia brasileira. Quanto às empresas “fomentadas” por essa política absurda e desastrosa? Consistiam em comprar peças no exterior e montar nacionalmente cópias toscas de projetos estrangeiros por preços inacreditáveis. Implodiram todas assim que a reserva de mercado acabou.

Enfim, veio a Nova República e coisa e tal, algumas heterodoxias bizarras foram tentadas, e surrealmente uma boa parte da reversão dessas alucinações para seguir em direções mais ortodoxas somente se deu sob figuras esquerdófilas.  Aliás, sublinhemos este ponto. Isso é realmente muito surreal. O governo militar, supostamente de “direita”, foi extremamente estatizante e obstruiu inacreditavelmente o livre comércio. Levaram o país à falência, cansaram de brincar e passaram a batata fervente da inflação fora de controle adiante. Então Sarney, previamente líder do partido pró-governo militar, resolveu que a solução para a inflação era… proibir os preços de aumentarem (!). E incentivou a população a chamar a polícia se visse algum preço aumentar. Seria engraçado se não tivesse de fato acontecido. Mas eis que então surge Collor, e tendo majoritário apoio popular no papel de oposição ao socialismo lulático, resolveu literalmente… confiscar a maior parte do dinheiro da economia, num dos planos econômicos mais inconstitucionalissimamente absurdos de todos os tempos. Incompreensivelmente, foram Itamar Franco, então Fernando Henrique, e finalmente o Lula que retornaram a políticas fiscais e financeiras minimamente ortodoxas, as quais foram infinitamente mais bem sucedidas que os 30 prévios anos de pseudo-direita.

O que nos leva à questão : se é razoável associar a “direita” com neoliberalismo adorador do deus mercado e coisa e tal como querem as esquerdas, onde é que se esconde essa tal temível e assustadora direita no Brasil? Esteja onde estiver, certamente não pode ser reconhecida nessa sucessão surreal de estatólatras que precederam os atuais estatólatras. O único politico que consigo identificar como remotamente liberal no sentido clássico da palavra é Roberto Campos, que apesar de ter sido deputado e senador, estava em tal minoria que nunca conseguiu aprovar nenhuma de suas propostas liberalizantes.

Estaremos hoje em situação melhor? Onde estão os políticos de expressão que lutarão pelas reformas necessárias para permitir que um cidadão qualquer abrir uma empresa seja, do ponto de vista institucional, simples, rápido, barato e seguro? Onde estão os intelectuais que defenderão que isso é mais importante do que qualquer plano estatal para “incentivar” o crescimento ou “proteger” certas indústrias? Onde estão os brasileiros que dirão “chega” para essa concepção de estado que nos mantêm aprisionados eternamente em berço esplêndido?

 

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