Desconstruindo O Poder Masculino

July 30th, 2011 by Sergio de Biasi


Grande parte do movimento feminista se baseia na percepção de que dado que historicamente em um grande número de contextos se espera ou se esperou das mulheres que assumissem uma identidade limitada, oprimida e em alguns casos degradante – uma afirmação com a qual concordo imediatamente – daí podemos concluir que (1) isso seria deliberadamente arquitetado pelos homens e (2) a sociedade como um todo estaria estruturada – sob o comando dos homens, como observado em (1) – não apenas para oprimir as mulheres mas para no processo tornar o papel social do homem algo muito mais conveniente, agradável e condutor ao crescimento e à realização pessoal.

Ambas as afirmações (1) e (2) são absurdamente falsas, como basicamente qualquer homem adulto teve de aprender da forma mais desagradável possível.

Note-se que as afirmações (1) e (2), marteladas por décadas de propaganda como obviedades infalíveis, falsas que sejam foram introjetadas pela maior parte de nós de forma tão profunda que requerem uma considerável dose de pensamento crítico divergente, honestidade  e coragem para serem sequer questionadas. E enquanto isso, nutre-se na mulher média uma raiva difusa que recai sobre todos os homens, uma tensão similar à que se vê em outros contextos devida a grandes ressentimentos raciais, religiosos ou nacionalistas, e que é particularmente perversa justamente por ser coletiva – não adianta argumentar “mas peraí, eu nao fiz nada”. Você é culpado por default, simplesmente por pertencer ao grupo hostilizado. Resta aos homens desculparem-se eternamente por sê-lo. Não que isso seja suficiente, afinal sua perversidade é intrínseca; o máximo que os homens podem almejar é serem tolerados.

Mas reexaminemos as afirmações (1) e (2). Em particular, quão poderosos são realmente os homens? O quanto eles realmente controlam tudo sozinhos? Claro que isso depende de época histórica, e varia de sociedade para sociedade, mas examinemos uma sociedade ocidental moderna há digamos uns 30 ou 40 anos atrás. De fato, é fácil argumentar – diria eu observar – que nesse contexto – como em muitos outros – os homens exibem um poder muito grande sobre as mulheres. Isso é claro ao ponto de não requerer grandes elaborações. Os homens em geral são quem tem uma carreira profissional, trazem dinheiro para casa, ocupam a maior parte dos cargos politicos, jurídicos, acadêmicos, médicos, etc, etc. Então por um lado parece tentador afirmar que nessas circunstâncias a sociedade é determinada pela vontade dos homens.

Prossigamos porém olhando mais detidamente a situação. Certo, os homens têm um grande poder sobre as mulheres. Mas quanto poder neste mesmo contexto as mulheres têm sobre os homens? O quanto da vida de um homem é determinado por considerações sobre como melhor se adequar – para colocar brandamente – a vontades, desejos e ao bem estar do sexo oposto? Pergunte a qualquer homem e ele provavelmente não terá muita hesitação quanto à natureza da resposta.

Essa porém ainda não é, a meu ver, a pergunta certa. Ela implicita e intrinsicamente já compra essa fajuta oposição antagônica entre homens e mulheres. Coloquemos a questão de uma forma um pouco diferente. Certo, em muitos contextos as mulheres podem – justificadamente – argumentar que não têm adequadamente garantida a sua liberdade para expressarem livremente sua identidade, sua sexualidade, para perseguirem seus sonhos, para dizerem o que pensam, para crescerem como seres humanos. Que não é dado a elas suficiente poder sobre si mesmas. Então eu pergunto : e aos homens por acaso é?

Ah, claro, a tentação é dizer que sim. Olhe para um arquétipo qualquer de poder masculino – um general digamos. Ele dá ordens para centenas de homens.

Então pensemos. Qual é o tipo de poder que realmente importa para o nosso crescimento e realização pessoal? É o poder sobre os outros? Ou é o poder sobre si mesmo? Homem ou mulher, pense seriamente sobre essa questão. Um absolutamente não implica no outro. Um policial, um sargento, um motorista de ônibus – todos têm grande poder sobre uma grande quantidade de pessoas, e literalmente muitas vidas estão diariamente em suas mãos. Por acaso isso traz para eles mais liberdade? Ou muito pelo contrário, traz uma responsabilidade enorme com mínima contrapartida?

E se esses exemplos – que evidentemente são os mais realistas e representam a maioria esmagadora dos homens – não servem por não serem suficientemente atraentes, consideremos então outros os mais favoráveis possíveis. Consideremos um alto executivo do setor privado, ou um presidente, ou um ganhador de prêmio nobel. Essas posições historicamente são ocupadas majoritariamente por homens, e certamente estes são “livres” certo? Bem, a não ser que estejamos falando de alguma república das bananas ou de criminosos fraudulentos, absolutamente não. Ganhar um prêmio nobel, ou presidente, ou tornar-se alto executivo do setor privado dá um trabalho absurdo, e na maior parte dos casos provavelmente estraçalha sua vida pessoal e sua liberdade de perseguir livremente paz e realizacão e completude como pessoa. A não ser no casos de seres humanos monomaniacamente motivados além de qualquer medida saudável, ou além do que a maioria de nós é capaz, é muito difícil fazer qualquer uma dessas coisas e ao mesmo tempo perseguir seus outros anseios e desejos que o libertem de ser e sentir-se um ser humano unidimensional.

E para fazer uma pergunta muito politicamente incorreta, quem você acha que no caso geral é mais livre? O presidente, o alto executivo, o ganhador de prêmio nobel… ou suas respectivas esposas?

Mas se assim é, por que os homens – muito mais do que as mulheres – historicamente sempre perseguiram essas carreiras suicidas, que os deixam insensíveis e brutalizados, que os colocam na faixa expressa para um ataque do coração? Por que, muito mais que as mulheres, escolhem os homens ignorarem seus sonhos, seus anseios, seus desejos, sua vontade de aprender violino ou estudar italiano ou escrever um livro… para literalmente se matarem sendo “bem sucedidos” CUSTE O QUE CUSTAR?

Quem acha ou especula que seria porque os homens são por natureza desajustadamente competitivos a ponto de não se importarem com o próprio bem estar, provavelmente nunca foi homem. Não, não é nada disso. Pergunte a qualquer homem. A resposta é muito simples. Os homens fazem isso porque É ISSO QUE SE ESPERA DELES. Assim como de uma mulher se espera tradicionalmente que se case com um provedor e vá para o lar cuidar da casa e dos filhos e do marido, de um homem se espera tradicionalmente que seja um provedor e adote uma família para patrocinar e então vá lá à luta e vença a qualquer custo ou morra tentando para prover segurança  e meios para esta família. Sem desculpas, sem perdão, sem choraminguelas.

E note, eu não estou com isso dizendo que essas expectativas sociais sejam internalizadas primordialmente como um senso de dever premente ou sentimento de culpa implacável (embora de fato ambos de fato façam parte do quadro). A questão é mais brutal e mais pragmática do que dilemas de consciência. Um homem que não atinja certas expectativas simplesmente não é enxergado como um candidado aceitável para companheiro e marido e terá extrema dificuldade em atrair uma parceira estável ou de qualidade. Quantos homens queriam *mesmo* ter ganho dez troféus, ou quinze promoções, ou um milhão de dólares… e quantos o fazem porque percebem ou imaginam que sem isso jamais serão percebidos como aceitáveis? Muito se fala por exemplo sobre homens em alguns contextos ganharem salários maiores do que as mulheres. Agora, experimente ser homem e *não* ganhar um salário maior que sua companheira e veja o quanto isso no caso padrão impactará quanto respeito ela terá por você. Esse é o outro lado desse tipo de estatística. Os homem são premidos a fazerem *o que for necessário* para atender a esse tipo de expectativa, e muito freqüentemente isso se dá não através da manipulação ou opressão dos outros e sim se matando de tanto trabalhar. Os homens freqüentemente escolher se auto-oprimirem para se tornarem socialmente aceitáveis, precisamente como as mulheres historicamente o fizeram.

Agora vejamos, se por um lado se pode dizer que o papel tradicional da mulher é objetificante e perverso, pelo menos ele é genericamente atingível. As expectativas que se têm sobre a mulher média são medidas em termos mais ou menos absolutos – que mantenha uma certa aparência, apresente um certo comportamento, etc. Não se espera tanto que uma mulher seja dominante socialmente ou esteja no topo de qualquer pirâmide competitiva. É possivel uma mulher ser uma “boa” esposa, atraente e satisfatória e socialmente competente segundo os padrões tradicionais, simultaneamente a todas as outras esposas do bairro também o serem. Em outras palavras, não se mede o valor de uma mulher por competência em conquistar uma posição socialmente “alfa”. Uma sala cheia de top models é uma sala cheia de top models. Já uma sala cheia de presidentes imediatamente implica uma hierarquia. Um homem precisa ser competitivo e assertivo e sob algum aspecto conquistar ascendência social se quiser ser percebido como bem sucedido, atraente e respeitável. Então se por um lado grande parte dos homens estará perfeitamente disposto a avaliar uma mulher pelo que ela é e não por qual posição social ocupa ou o que os outros pensam dela, por outro lado um homem precisa atingir objetivos que *por definição* estão acessíveis a apenas uma pequena porcentagem dos homens. Não há como *todos* serem ao mesmo tempo líderes. Os homens são colocados numa posição impossível na qual precisam competir por um número limitado de vagas para aceitabilidade social. Não é surpreendente que isso gere comportamentos agressivos e brutalizantes. Certo, é nossa bagagem genética e evolutiva, mas se por um lado isso talvez maximize a robustez dos nossos genes e coisa e tal, por outro lado causa imensa infelicidade a todos. Está na hora de questionar isso tudo, assim como se questionou o papel social tradicional da mulher – para o qual aliás também é fácil encontrar várias justificativas que se biologicamente válidas são completamente fajutas e perversas do ponto de vista existencial e humano.

Então vejamos, o fato de que o papel social tradicional e arquetipicamente esperado – exigido! – da mulher seja efetivamente opressivo e degradante não implica (1) que isso seja automaticamente uma conspiração masculina nem (2) que o papel social tradicional e arquetipicamente esperado – exigido! – do homem seja menos opressivo ou degradante. Aliás, muito pelo contrário. Historicamente, os homens estavam presos na mesmíssima arapuca que as mulheres. Seria excelente homens e mulheres poderem contar uns com os outros para ambos desafiarem certas estruturas sociais obsoletas, absurdas e deprimentes.

Ao invés disso, porém, a situação que vivemos atualmente é de que as mulheres conseguiram – e justificadamente, e ainda bem – lutar já com bastante sucesso contra esse papel tradicional que historicamente limitava suas possibilidades de se tornarem seres humanos completos e realizados. Hoje elas têm muito mais opções do que antes. Mas e quanto aos homens? Ora, os homens avançaram muito pouco em questionar tudo isso. Dos homens ainda se espera o perverso e opressor “take it like a man”.

Então se por um lado tradicionalmente não era aceitavel para uma mulher dizer “olha só, preciso que você tome conta das crianças hoje porque eu tenho uma reunião de trabalho” ou “eu quero fazer pós-graduação então vou passar o dia todo na universidade por cinco anos”, e isso foi questionado e em grande parte abandonado, por outro lado hoje continua sendo majoritariamente inaceitável para um homem dizer “meu projeto de vida é ficar em casa tricotando e vendo novela e varrendo o chão e fazendo comida para as crianças, você se vira aí para arranjar dinheiro”, ou “bolas, perdi meu emprego, não vou poder contribuir para o orçamento familiar por uns meses, falou?” Ao contrário, se você entra em alguma residência e está faltando dinheiro para comida, para quem tradicionalmente se virarão os olhares de reprovação – quando não de acusação? Para o homem, evidentemente! Se você está buscando um cônjuge para se casar, de qual parceiro tradicionalmente se espera que seja a responsabilidade de prover condições financeiras para uma união? Do homem, claro! E a qual parceiro se dá hoje a liberdade de escolher entre ficar em casa buscando exploratoriamente seu crescimento pessoal subjetivo *ou*, a seu critério, buscar uma carreira profissional pragmatica? Pra mulher, é claro!

Se você acha completamente absurdo dizer para uma mulher que se ela não restringir sua existência a uma mistura caricatural de reprodutora com empregada doméstica com com boneca inflavel então ela é incapaz, egoísta, perversa e socialmente inaceitável, eu concordo com você que é absurdo mesmo. E que isso seja absurdo é atualmente cada vez menos incontroverso. E ainda bem.

Mas nesse caso, não venha então achar razoável que digam para um homem que se ele se recusar a resumir e restringir sua existência a uma mistura caricatural de provedor com guarda-costas com dildo ambulante então ele seria incapaz, egoísta, perverso e socialmente inaceitável. E perceba que esse papel masculino tradicional é tão opressivo e despersonalizante para o homem quanto o tradicional feminino é para a mulher.

4 Responses to “Desconstruindo O Poder Masculino”

  1. Liliana says:

    Não se esqueça de que hoje em dia esta opressão vale para a mulher também. Talvez até pior. Além de sucesso profissional, trabalhar pra caramba, tem que ser linda, magra, bronzeada, sem celulite e estrias, sem rugas, cabelo liso ao extremo e sem fios brancos, sarada e ainda cuidar da casa e dos filhos. Em 24 h dá para fazer tudo? E ai daquela que diga que não quer ter filhos / marido para ter sucesso profissional.

    Qualquer um que fuja do papel que se espera dele é criticado. Seja lá quem for.

    • Que a sociedade freqüentemente espera coisas absurdas das mulheres eu concordo sem hesitar. Mas isso já vem sendo repetidamente ressaltado abundantamente pelas mais variadas fontes. O que eu acho que por vezes fica insuficientemente considerado é que o papel do homem não se torna por causa disso automaticamente um passeio no parque, aliás muito antes pelo contrário. E veja, “sucesso profissional” é algo que a mulher em grande parte *escolhe* ter, é um estresse em grande parte auto-imposto. Não é o caso em geral que se espere que a mulher seja patologicamente bem sucedida profissionalmente, ou que um homem só aceite se casar com uma mulher que seja tão bem sucedida que ele possa escolher trabalhar ou não. Essa por outro lado é mais ou menos a condição default da mulher. Sim, qualquer um que fuja do papel que se espera dele sofrerá um tratamento desagradável da sociedade. Concordo. Meu ponto é precisamente que isso vale também para os homens. E mais, que eles estão em atualmente – pelo menos nas sociedades ocidentais – atrás das mulheres em questionar o quanto isso é opressivo.

      Saudações,
      Sergio

  2. Liliana says:

    Muitas dessas imposições são mais da família do que da sociedade. Ai do filho que chegue para o pai e diga que quer ser bailarino, por exemplo. Homem que é homem não gosta de ballet, diz o pai.

    Muitas mulheres trabalham por imposição dos pais e não por vontade própria.

    Ambos os pais trabalhando muito. E quem cuida dos filhos? A creche, a babá, os avós, a escola? Não vejo isso com bons olhos.

    • Bem, da família da sociedade, dos amigos – tudo isso é verdade. Meu ponto é que não é um sexo contra o outro e sim o meio social tentando forçar o indivíduo – de ambos os sexos – a se adequar na base da marretada a papéis caricaturais predefinidos.

      Concordo com você que esse negócio de todo mundo trabalhar o tempo todo e não haver investimento não apenas nos filhos, mas tambem na vida pessoal, no casamento, no crescimento pessoal – tudo isso é perverso. É preciso haver mais equilíbrio. É preciso que ambos o homem e a mulher consigam ter carreiras na medida do que seja economicamente necessário e profissionalmente recompensador sem que isso faça com que se tornem estranhos para suas próprias famílias. Isso é brutalizante tanto para mulheres quanto para homens.

      Saudações,
      Sergio

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