Desconstruindo O Poder Masculino

July 30th, 2011 by Sergio de Biasi


Grande parte do movimento feminista se baseia na percepção de que dado que historicamente em um grande número de contextos se espera ou se esperou das mulheres que assumissem uma identidade limitada, oprimida e em alguns casos degradante – uma afirmação com a qual concordo imediatamente – daí podemos concluir que (1) isso seria deliberadamente arquitetado pelos homens e (2) a sociedade como um todo estaria estruturada – sob o comando dos homens, como observado em (1) – não apenas para oprimir as mulheres mas para no processo tornar o papel social do homem algo muito mais conveniente, agradável e condutor ao crescimento e à realização pessoal.

Ambas as afirmações (1) e (2) são absurdamente falsas, como basicamente qualquer homem adulto teve de aprender da forma mais desagradável possível.

Note-se que as afirmações (1) e (2), marteladas por décadas de propaganda como obviedades infalíveis, falsas que sejam foram introjetadas pela maior parte de nós de forma tão profunda que requerem uma considerável dose de pensamento crítico divergente, honestidade  e coragem para serem sequer questionadas. E enquanto isso, nutre-se na mulher média uma raiva difusa que recai sobre todos os homens, uma tensão similar à que se vê em outros contextos devida a grandes ressentimentos raciais, religiosos ou nacionalistas, e que é particularmente perversa justamente por ser coletiva – não adianta argumentar “mas peraí, eu nao fiz nada”. Você é culpado por default, simplesmente por pertencer ao grupo hostilizado. Resta aos homens desculparem-se eternamente por sê-lo. Não que isso seja suficiente, afinal sua perversidade é intrínseca; o máximo que os homens podem almejar é serem tolerados.

Mas reexaminemos as afirmações (1) e (2). Em particular, quão poderosos são realmente os homens? O quanto eles realmente controlam tudo sozinhos? Claro que isso depende de época histórica, e varia de sociedade para sociedade, mas examinemos uma sociedade ocidental moderna há digamos uns 30 ou 40 anos atrás. De fato, é fácil argumentar – diria eu observar – que nesse contexto – como em muitos outros – os homens exibem um poder muito grande sobre as mulheres. Isso é claro ao ponto de não requerer grandes elaborações. Os homens em geral são quem tem uma carreira profissional, trazem dinheiro para casa, ocupam a maior parte dos cargos politicos, jurídicos, acadêmicos, médicos, etc, etc. Então por um lado parece tentador afirmar que nessas circunstâncias a sociedade é determinada pela vontade dos homens.

Prossigamos porém olhando mais detidamente a situação. Certo, os homens têm um grande poder sobre as mulheres. Mas quanto poder neste mesmo contexto as mulheres têm sobre os homens? O quanto da vida de um homem é determinado por considerações sobre como melhor se adequar – para colocar brandamente – a vontades, desejos e ao bem estar do sexo oposto? Pergunte a qualquer homem e ele provavelmente não terá muita hesitação quanto à natureza da resposta.

Essa porém ainda não é, a meu ver, a pergunta certa. Ela implicita e intrinsicamente já compra essa fajuta oposição antagônica entre homens e mulheres. Coloquemos a questão de uma forma um pouco diferente. Certo, em muitos contextos as mulheres podem – justificadamente – argumentar que não têm adequadamente garantida a sua liberdade para expressarem livremente sua identidade, sua sexualidade, para perseguirem seus sonhos, para dizerem o que pensam, para crescerem como seres humanos. Que não é dado a elas suficiente poder sobre si mesmas. Então eu pergunto : e aos homens por acaso é?

Ah, claro, a tentação é dizer que sim. Olhe para um arquétipo qualquer de poder masculino – um general digamos. Ele dá ordens para centenas de homens.

Então pensemos. Qual é o tipo de poder que realmente importa para o nosso crescimento e realização pessoal? É o poder sobre os outros? Ou é o poder sobre si mesmo? Homem ou mulher, pense seriamente sobre essa questão. Um absolutamente não implica no outro. Um policial, um sargento, um motorista de ônibus – todos têm grande poder sobre uma grande quantidade de pessoas, e literalmente muitas vidas estão diariamente em suas mãos. Por acaso isso traz para eles mais liberdade? Ou muito pelo contrário, traz uma responsabilidade enorme com mínima contrapartida?

E se esses exemplos – que evidentemente são os mais realistas e representam a maioria esmagadora dos homens – não servem por não serem suficientemente atraentes, consideremos então outros os mais favoráveis possíveis. Consideremos um alto executivo do setor privado, ou um presidente, ou um ganhador de prêmio nobel. Essas posições historicamente são ocupadas majoritariamente por homens, e certamente estes são “livres” certo? Bem, a não ser que estejamos falando de alguma república das bananas ou de criminosos fraudulentos, absolutamente não. Ganhar um prêmio nobel, ou presidente, ou tornar-se alto executivo do setor privado dá um trabalho absurdo, e na maior parte dos casos provavelmente estraçalha sua vida pessoal e sua liberdade de perseguir livremente paz e realizacão e completude como pessoa. A não ser no casos de seres humanos monomaniacamente motivados além de qualquer medida saudável, ou além do que a maioria de nós é capaz, é muito difícil fazer qualquer uma dessas coisas e ao mesmo tempo perseguir seus outros anseios e desejos que o libertem de ser e sentir-se um ser humano unidimensional.

E para fazer uma pergunta muito politicamente incorreta, quem você acha que no caso geral é mais livre? O presidente, o alto executivo, o ganhador de prêmio nobel… ou suas respectivas esposas?

Mas se assim é, por que os homens – muito mais do que as mulheres – historicamente sempre perseguiram essas carreiras suicidas, que os deixam insensíveis e brutalizados, que os colocam na faixa expressa para um ataque do coração? Por que, muito mais que as mulheres, escolhem os homens ignorarem seus sonhos, seus anseios, seus desejos, sua vontade de aprender violino ou estudar italiano ou escrever um livro… para literalmente se matarem sendo “bem sucedidos” CUSTE O QUE CUSTAR?

Quem acha ou especula que seria porque os homens são por natureza desajustadamente competitivos a ponto de não se importarem com o próprio bem estar, provavelmente nunca foi homem. Não, não é nada disso. Pergunte a qualquer homem. A resposta é muito simples. Os homens fazem isso porque É ISSO QUE SE ESPERA DELES. Assim como de uma mulher se espera tradicionalmente que se case com um provedor e vá para o lar cuidar da casa e dos filhos e do marido, de um homem se espera tradicionalmente que seja um provedor e adote uma família para patrocinar e então vá lá à luta e vença a qualquer custo ou morra tentando para prover segurança  e meios para esta família. Sem desculpas, sem perdão, sem choraminguelas.

E note, eu não estou com isso dizendo que essas expectativas sociais sejam internalizadas primordialmente como um senso de dever premente ou sentimento de culpa implacável (embora de fato ambos de fato façam parte do quadro). A questão é mais brutal e mais pragmática do que dilemas de consciência. Um homem que não atinja certas expectativas simplesmente não é enxergado como um candidado aceitável para companheiro e marido e terá extrema dificuldade em atrair uma parceira estável ou de qualidade. Quantos homens queriam *mesmo* ter ganho dez troféus, ou quinze promoções, ou um milhão de dólares… e quantos o fazem porque percebem ou imaginam que sem isso jamais serão percebidos como aceitáveis? Muito se fala por exemplo sobre homens em alguns contextos ganharem salários maiores do que as mulheres. Agora, experimente ser homem e *não* ganhar um salário maior que sua companheira e veja o quanto isso no caso padrão impactará quanto respeito ela terá por você. Esse é o outro lado desse tipo de estatística. Os homem são premidos a fazerem *o que for necessário* para atender a esse tipo de expectativa, e muito freqüentemente isso se dá não através da manipulação ou opressão dos outros e sim se matando de tanto trabalhar. Os homens freqüentemente escolher se auto-oprimirem para se tornarem socialmente aceitáveis, precisamente como as mulheres historicamente o fizeram.

Agora vejamos, se por um lado se pode dizer que o papel tradicional da mulher é objetificante e perverso, pelo menos ele é genericamente atingível. As expectativas que se têm sobre a mulher média são medidas em termos mais ou menos absolutos – que mantenha uma certa aparência, apresente um certo comportamento, etc. Não se espera tanto que uma mulher seja dominante socialmente ou esteja no topo de qualquer pirâmide competitiva. É possivel uma mulher ser uma “boa” esposa, atraente e satisfatória e socialmente competente segundo os padrões tradicionais, simultaneamente a todas as outras esposas do bairro também o serem. Em outras palavras, não se mede o valor de uma mulher por competência em conquistar uma posição socialmente “alfa”. Uma sala cheia de top models é uma sala cheia de top models. Já uma sala cheia de presidentes imediatamente implica uma hierarquia. Um homem precisa ser competitivo e assertivo e sob algum aspecto conquistar ascendência social se quiser ser percebido como bem sucedido, atraente e respeitável. Então se por um lado grande parte dos homens estará perfeitamente disposto a avaliar uma mulher pelo que ela é e não por qual posição social ocupa ou o que os outros pensam dela, por outro lado um homem precisa atingir objetivos que *por definição* estão acessíveis a apenas uma pequena porcentagem dos homens. Não há como *todos* serem ao mesmo tempo líderes. Os homens são colocados numa posição impossível na qual precisam competir por um número limitado de vagas para aceitabilidade social. Não é surpreendente que isso gere comportamentos agressivos e brutalizantes. Certo, é nossa bagagem genética e evolutiva, mas se por um lado isso talvez maximize a robustez dos nossos genes e coisa e tal, por outro lado causa imensa infelicidade a todos. Está na hora de questionar isso tudo, assim como se questionou o papel social tradicional da mulher – para o qual aliás também é fácil encontrar várias justificativas que se biologicamente válidas são completamente fajutas e perversas do ponto de vista existencial e humano.

Então vejamos, o fato de que o papel social tradicional e arquetipicamente esperado – exigido! – da mulher seja efetivamente opressivo e degradante não implica (1) que isso seja automaticamente uma conspiração masculina nem (2) que o papel social tradicional e arquetipicamente esperado – exigido! – do homem seja menos opressivo ou degradante. Aliás, muito pelo contrário. Historicamente, os homens estavam presos na mesmíssima arapuca que as mulheres. Seria excelente homens e mulheres poderem contar uns com os outros para ambos desafiarem certas estruturas sociais obsoletas, absurdas e deprimentes.

Ao invés disso, porém, a situação que vivemos atualmente é de que as mulheres conseguiram – e justificadamente, e ainda bem – lutar já com bastante sucesso contra esse papel tradicional que historicamente limitava suas possibilidades de se tornarem seres humanos completos e realizados. Hoje elas têm muito mais opções do que antes. Mas e quanto aos homens? Ora, os homens avançaram muito pouco em questionar tudo isso. Dos homens ainda se espera o perverso e opressor “take it like a man”.

Então se por um lado tradicionalmente não era aceitavel para uma mulher dizer “olha só, preciso que você tome conta das crianças hoje porque eu tenho uma reunião de trabalho” ou “eu quero fazer pós-graduação então vou passar o dia todo na universidade por cinco anos”, e isso foi questionado e em grande parte abandonado, por outro lado hoje continua sendo majoritariamente inaceitável para um homem dizer “meu projeto de vida é ficar em casa tricotando e vendo novela e varrendo o chão e fazendo comida para as crianças, você se vira aí para arranjar dinheiro”, ou “bolas, perdi meu emprego, não vou poder contribuir para o orçamento familiar por uns meses, falou?” Ao contrário, se você entra em alguma residência e está faltando dinheiro para comida, para quem tradicionalmente se virarão os olhares de reprovação – quando não de acusação? Para o homem, evidentemente! Se você está buscando um cônjuge para se casar, de qual parceiro tradicionalmente se espera que seja a responsabilidade de prover condições financeiras para uma união? Do homem, claro! E a qual parceiro se dá hoje a liberdade de escolher entre ficar em casa buscando exploratoriamente seu crescimento pessoal subjetivo *ou*, a seu critério, buscar uma carreira profissional pragmatica? Pra mulher, é claro!

Se você acha completamente absurdo dizer para uma mulher que se ela não restringir sua existência a uma mistura caricatural de reprodutora com empregada doméstica com com boneca inflavel então ela é incapaz, egoísta, perversa e socialmente inaceitável, eu concordo com você que é absurdo mesmo. E que isso seja absurdo é atualmente cada vez menos incontroverso. E ainda bem.

Mas nesse caso, não venha então achar razoável que digam para um homem que se ele se recusar a resumir e restringir sua existência a uma mistura caricatural de provedor com guarda-costas com dildo ambulante então ele seria incapaz, egoísta, perverso e socialmente inaceitável. E perceba que esse papel masculino tradicional é tão opressivo e despersonalizante para o homem quanto o tradicional feminino é para a mulher.

Chantagem Emocional

June 28th, 2011 by Sergio de Biasi

Sue : I suppose you don’t have any shrinks at Walkabout Creek.
Michael : No, back there if you got a problem you tell Wally. And he tells everyone in town, brings it out in the open, no more problem.

Entre os diversos experimentos altamente perturbadores sobre comportamento social que eu conheço em psicologia estão os que seguem a linha de pesquisa inicialmente explorada por Milgram na década de 60. Para quem não conhece, vale a pena ler uma descrição mais detalhada. Mas em resumo, o resultado é na direção de concluir que o ser humano médio está preparado para sem qualquer coação e sem qualquer remorso praticar os atos mais cruéis e desprezíveis desde que acredite estar seguindo intruções diretas de uma figura de autoridade.

As conseqüências para política, religião, educação, e na verdade em praticamente todas as esferas da existência humana são gigantescas.

Mas eu quero aqui me concentrar em discutir um contexto específico em que esse fenômeno se manifesta de forma a meu ver particularmente perversa, que é o do tratamento psicanalítico (e similares).

Quando um indivíduo decide buscar um terapeuta para discutir suas questões psicológicas, suas angústias existenciais, suas neuroses, seus problemas emocionais, ele se coloca em uma posição bastante vulnerável. Note-se, mesmo sem questionarmos a validade científica ou médica de psicanálise e similares, a maior parte dos pacientes se vê na mesma situação na qual nos descobrimos quando levamos o carro a um mecânico sem termos qualquer noção de como um carro funciona por dentro – que é de que em algum momento somos confrontados com ter que escolher confiar que o mecânico sabe o que está fazendo. Claro, não tomamos essa decisão cegamente – mas quase sempre também não a tomamos com base em conhecimento profundo do assunto. Usamos critérios basicamente circunstanciais para fazê-lo, usamos aparências e inferências para escolher ou não aceitar o terapeuta como uma figura legítima de autoridade sobre certos aspectos da mente humana e sobre os caminhos apropriados para atingirmos saúde mental e emocional.

A questão porém já começa do fato de que definir saúde mental e emocional é altamente problemático. Será que um psicopata perfeitamente feliz e realizado com seu comportamento deve ser classificado como num estado psiquiatricamente patológico? Ou simplesmente como um perigo objetivo aos outros? Será que alguém que decida permanecer com seu cônjuge alcoólatra devido a sentimentos de amor e fidelidade deve ser classificado como autodestrutivo e masoquista? Ou pelo contrário, como idealista e nobre? E se o cônjuge não for alcoólatra mas sofrer um acidente de carro e ficar paraplégico? Alguém que escolha voluntariamente e sem qualquer coação ficar e passar uma vida inequivocamente infeliz ao lado do cônjuge deve ser classificado como emocionalmente perturbado? E se a pessoa estiver *feliz* com essa escolha, deve então ser classificada como delirante? Alguém que *condene* essa escolha deve ser aplaudido, desprezado, ou simplesmente respeitado? Alguém que anseie ser capaz de tais atos de desprendimento deve ser considerado nobre, ingênuo, doente, ou simplesmente portador de uma personalidade?

Espero que com esses poucos exemplos – seria muito fácil construir mais – esteja claro que “saúde mental” dificilmente pode ser reduzido a “felicidade pessoal” sem esbarramos em sérios problemas.

Infelizmente, porém, existe modernamente uma tendência bastante forte de encarar saúde mental exatamente desta forma, isto é – se o sujeito é capaz de funcionar socialmente, e está feliz com seus próprios estados mentais, então como regra geral está tudo bem. Ao diagnosticar grande parte dos distúrbios emocionais e de comportamento como patológicos ou não, grande atenção é dada a como tais comportamento e estados mentais de fato afetam o bem estar – objetivo e/ou percebido – do paciente, e quaisquer determinações de patologia são em grande parte assim relativizadas. Então se eu sinto uma necessidade incontornável de lavar as mãos 10 vezes antes de sair de casa enquanto canto “parabéns pra você” mas estou perfeitamente feliz com isso e isso não prejudica em nada a minha rotina, então boa sorte para mim. Por outro lado se eu me sinto compelido a executar exatamente o mesmo ritual mas isso me causa imensa angústia e perturba minha capacidade de chegar nos meus compromissos a tempo e eu não sei administrar essa idiosincrasia como parte de uma rotina funcional, então eu tenho um problema.

Isso tudo parece muito razoável e flexível e coisa e tal e inclusive foram considerações como essas – em grande medida substituindo o temível e opressivo critério de “normalidade” – que levaram ao questionamento e eventual – bem vindo – repúdio da classificação de diversos comportamentos estatisticamente desviantes – por exemplo homossexualidade – como sendo supostamente merecedores de um diagnóstico patológico para o qual devemos desenvolver um “tratamento”. Afinal de contas, ter um QI de 140 ou ser capaz de compor sinfonias é muito mais raro do que ter tendências homossexuais e ninguém vê necessidade de encontrar “curas” para isso.

Esse paradigma porém, útil e benéfico que seja para questionar a perversa identificação entre desvio e patologia, esbarra em sérias limitações quando buscamos usá-lo como único critério para diagnóstico e tratamento. Revisitemos variações dos exemplos acima apresentados. Suponhamos que alguém procure um terapeuta e diga “Meu cônjuge sofreu um acidente de automóvel e ficou paralítico e desde então eu tenho estado muito infeliz. Essa relação não tem mais como satisfazer profundas aspirações que eu tenho para o resto da minha vida e eu não quero permanecer nela. Porém eu me sinto profundamente comprometido em ficar, me parece uma traição inaceitável simplesmente ir embora. Que devo fazer?”

Naturalmente que a maioria absoluta dos terapeutas não responderá com sugestões assertivas sobre qual caminho seguir. Ao invés disso, buscará “auxiliar” o paciente no processo de autoinvestigação de suas possibilidades, de seus desejos, de seus motivos, de suas necessidades, etc. E a expectativa – ou pelo menos o objetivo – é de que o paciente se tornará então progressivamente mais capaz de tomar por si mesmo decisões progressivamente mais centradas e mais coerentes tanto com realidades externas como internas, sejam quais forem. Parece bastante razoável.

Só que em primeiro lugar, é uma ficção total esperar ou mesmo sugerir que o terapeuta não tenha, sim, uma – forte – opinião sobre o que o paciente deveria fazer, e é uma ficção em cima dessa ficção achar que seja possível esconder essa opinião. Aliás, muito pelo contrário – ao buscar reprimir ou ocultar sua própria opinião sobre o que o paciente deveria fazer, o terapeuta passará a expressar seus sentimentos e julgamentos sobre o assunto de forma subliminar e o resultado será um “diálogo” manipulativo e farsesco, no qual os – indeléveis e indisfarçáveis – estados mentais do terapeuta permanecerão ostensivamente presentes como subtexto que contorna o senso crítico sem que jamais o paciente tenha uma oportunidade honesta de desafiá-los abertamente. Inclusive na maior parte das vezes o paciente, em busca da aprovação do terapeuta, articulará tais idéias jamais verbalizadas pelo terapeuta como sendo suas próprias, grande parte das vezes acreditando sinceramente que o sejam.

Por um lado, de fato esse fenômeno pode ser usado como “ferramenta terapêutica” para induzir pacientes a questionarem posições e estados mentais que jamais questionariam diante de um ataque direto, e a considerar idéias que parecem ameaçadores demais se apresentadas explicitamente. Por outro lado, quando induzimos qualquer um a desligar seu senso crítico e criamos uma situação na qual previsivelmente a busca de aprovação tornará o paciente vulnerável a dizer basicamente qualquer coisa, a autenticidade do processo como jornada de auto-descoberta se torna altamente questionável, e a distinção de pura e simples lavagem cerebral fica perigosamente nebulosa.

Mais muito pior e mais danoso do que ser uma ficção total que o terapeuta seja neutro é o próprio projeto – falhado que seja – de pretender ser “neutro”. Note-se, ao validar essencialmente *quaisquer* decisões que um paciente tome, desde que sejam “equilibradas”, desde que promovam o “bem-estar” do próprio paciente dentro dos limites do civilizadamente aceitável, estamos basicamente promovendo o mais profundo egoísmo. Sim, egoísmo civilizado e sofisticado e moderníssimo – mas egoísmo assim mesmo. Então se um homem diz “estou infeliz no meu casamento, vou deixar minha mulher e meus dois filhos e recomeçar minha vida sem o fardo de ter essas restrições a minha independência”, se uma filha diz “vou internar minha mãe num asilo porque está muito chato cuidar dela”, se uma esposa diz “meu marido perdeu o emprego e está muito deprimido, isso está muito incômodo, acho que vou dizer que estou saindo de casa”, todas essas proposições partem do princípio geral de que A FELICIDADE DOS OUTROS NÃO É MINHA RESPONSABILIDADE. Aceita-se a premissa de que prejudicar ativamente os outros não é civilizado, mas sair do seu caminho para proteger o bem estar dos outros já é pedir demais. Eles que cuidem de si mesmos. E o terapeuta acaba em muitas circunstâncias provendo precisamente a validação necessária para o paciente, sufocando protestos de sua própria consciência, introjetar essa atitude como saudável e positiva.

Ao que eu afirmo : essa posição é tão cheia de problemas éticos que se precisa de explicação a explicação provavelmente será inútil.

Para começar, genericamente, acreditar seriamente na idéia de que se não é sua culpa então não é seu problema demonstra sério retardamento moral.

Isso já seria perverso como ideologia adotada espontaneamente, mas ao incentivar dentro de uma relação de autoridade a noção de que seria um comportamento saudável e condutor ao equilíbrio emocional desligar-se do sentimento de que somos SIM éticamente responsáveis pela felicidade dos outros, o terapeuta dá permissão ao paciente para desconectar-se de sua humanidade, para caminhar essencialmente em direção à psicopatia, uma permissão que empiricamente – e não só nos experimentos de Milgram, mas em muitíssimo outros contextos, desde nazismo até inquisição – tem um enorme poder de transformar pessoas de outra forma decentes em robôs indiferentes diante das mais impressionantes manifestações de sofrimento humano. Então eu estar mencionando terapeutas aqui é quase acidental; é apenas a forma como isso ocorre em círculos abastados ocidentais pós-modernos. Qualquer figura de autoridade serviria potencialmente para produzir o mesmo efeito; apenas esta é uma que convencionamos aceitar como tal diante da falência da legitimidade de outras.

Agora, o tipo de terapeuta ao qual me refiro não para em advogar, por vezes até mesmo explicitamente, e com literalmente essas palavras, que “a felicidade dos outros não é sua responsabilidade”, como se fosse uma grande e profunda revelação mística. Uma à qual qualquer um vulnerável e confuso e em sofrimento muito facilmente sentirá grande tentação de se agarrar. Afinal, enxergar-se como moralmente implicado no bem estar e na felicidade de outros de fato é uma enorme responsabilidade. Só que a pergunta – originalmente e deliberadamente retórica – “por acaso sou guarda de meu irmão” é já em si mesma um triunfo de desonestidade. O grande alívio produzido por quem venha lhe dizer vindo de uma posição de autoridade que a resposta poderia ser “não, você não é” explora o medo e as fragilidades emocionais de um ser humano em sofrimento da forma mais vil. Essa arquetípica situação nos remete à cena crucial de “A Última Tentação de Cristo” em que ele, pregado na cruz, sofrendo absurdamente, e agonizante, diz “Meu pai, por que me abandonaste?”… para então ver descer do céu um anjo que diz “Você já sofreu o suficiente, já fez o seu trabalho… não precisa seguir adiante, desça da cruz, vai ficar tudo bem…” E Cristo, confuso, em choque, mas imensamente aliviado, desce da cruz e vive uma existência vazia de significado na qual assiste tudo aquilo por que lutou desmoronar em pedaços. E eventualmente, prestes a morrer de velhice, percebe que traiu a si mesmo e à sua consciência, e que o suposto anjo era o demônio (o qual evidentemente é muito mais sedutor vestido de anjo e pregando que ao fazermos o que nós é conveniente estaremos fazendo a coisa certa).

Não, o tipo de terapeuta ao qual me refiro não para em simplesmente promover essa atitude psiquicamente desestruturante na qual pessoas basicamente saudáveis são encorajadas a agirem psicopaticamente, a acreditarem que o mais fácil e conveniente e superficialmente vantajoso para elas mesmas seria o saudável e correto. Não, junto com as idéias fornecem-se alguns mecanismos mentais para justificar e sustentar essa charada, dado que qualquer pessoa normal sente um instintivo desconforto com a idéia de que a felicidade dos outros não seria sua responsabilidade. Buscar “superar” e “desconstruir” e renegar esse desconforto como simplesmente neurótico e pouco saudável é um objetivo perverso que porém infelizmente parece ser um dos grandes triunfos da “modernidade”.

E então como sustentáculo dessa perversidade promovem-se noções como a de que apelar para a empatia, os sentimentos, a humanidade dos outros seria intrinsecamente desonesto e inaceitável. Que seria no pior caso hipócrita e mentiroso, e no melhor caso possível, de extremo mau gosto e manipulativo. Que olhar para alguém e dizer “Mas você não vê o quanto está me magoando?” não só não serviria como argumento como denotaria uma tentativa do interlocutor de usar contra você os seus próprios neuróticos e indesejáveis sentimentos de responsabilidade pela felicidade alheia. “Como você ousa me fazer sentir mal por minhas ações causarem o seu sofrimento?!” O truque de prestidigitação ética é desqualificar automaticamente qualquer apelo à sua consciência como chantagem emocional.

Claro, alguém que de fato invente motivos delirantes para se sentir ofendido ou magoado pelas mais inócuas ações alheias, ou que se coloque deliberadamente em posição autovitimizante imaginada ou real, e então venha tentar usar isso como forma de instigar sentimentos injustos de culpa e responsabilidade nos outros está de fato abusando da compaixão alheia. Mas em muitos outros casos o sofrimento dos outros é real e a responsabilidade não é uma fabricação. Se você encoraja alguém, digamos, a largar seu emprego e se mudar para o Alasca para casar com você e aí quando você chega lá a pessoa diz “Ah, sinto muito, mudei de idéia, a gente se vê por aí, valeu? Vai embora e não enche o saco.”, exclamar diante disso “Peraí, isso não é razoável, você não vê a posição em que está me colocando?” não é uma reação imatura, ou manipulativa, ou inadequada, muito pelo contrário.

Além disso, embora seja perfeitamente legítimo considerarmos nossos próprios interesses como crucialmente importantes, existe aí uma medida e uma escala. Se os seus menores e mais fúteis interesses consistentemente se sobrepõem aos mais profundos e essenciais interesses alheios, sinto informar, mas você é um psicopata. A idéia de que os seus próprios interesses em quaisquer circunstâncias tenham total precedência sobre quaisquer interesses alheios torna qualquer noção de responsabilidade ética risível. Na verdade, diria eu, o fundamento mais essencial de qualquer ética que eu considere não perversa está precisamente no principio de que seu próprio bem estar *não* tem precedência sobre quaisquer outras considerações.

Então por mais que apelos à consciência e à solidariedade e à sua responsabilidade com o bem estar alheio de fato se prestem a farsas e manipulação, querer classificá-los em bloco – especialmente quando você está diretamente implicado – como “chantagem emocional”, isso sim é que é no mínimo hipócrita e no pior caso psicopático. E querer reprimir em si mesmo os próprios sentimentos espontâneos de solidariedade como neuróticos, e comprar a idéia de encarar qualquer tentativa de suscitá-los como manipulativa, tudo isso leva ao mais destrutivo egocentrismo solipsista. O qual, por outro lado, naturalmente, não só não é logicamente incompatível com a felicidade pessoal, mas mesmo que fosse, este seria um argumento meramente utilitário. Então, no final das contas, como sempre, é uma escolha. É uma escolha sobre que tipo de pessoa você quer ser, e que tipo de universo você quer ajudar a construir.

Atração Não É Uma Escolha

May 13th, 2011 by Sergio de Biasi

Blue Footed Booby Mating Dance

No vídeo acima, o pássaro menor é um macho que busca impressionar a fêmea. Ele está seguindo sua programação genética. A fêmea também. Nesta espécie, isso é feito levantando e abaixando os pés e abrindo e fechando as asas. Ao final, ele é rejeitado. Em sendo esse um resultado recorrente, seus genes desaparecerão da face da Terra. Seja lá o que ele estiver fazendo, tenderá a se tornar menos comum. É simples assim. Para nós, talvez pareça patético e arbitrário. Quão diferente porém seria a opinião de um alienígena olhando para nossos próprios rituais de acasalamento?

Evidentemente, como humanos, com todo o nosso gigantesco (sem ironias, pelo menos em comparação com um pássaro) potencial para o pensamento abstrato, queremos naturalmente acreditar que somos melhores do que isso. Que podemos tomar “decisões” menos malucas (existencialmente falando) do que escolher o parceiro com os pés mais azuis, ou no nosso caso, com os maiores peitos, os lábios mais vermelhos, ou segundo quaisquer outros atributos igualmente irrelevantes sob qualquer critério minimamente transcendente. O fato é que não podemos. Repita comigo : atração não é uma escolha. Pense sobre esta frase, leia de novo, reflita sobre ela. Pense sobre as implicações.

Atração não é uma escolha.

Claro, até certo ponto com muita determinação, obstinação e persistência temos um certo grau de controle sobre o que fazer diante disso. E de fato, é saudável conseguir pensar sobre este assunto em termos de que logicamente falando não precisamos seguir cegamente nossa programação genética. Mas se por um lado nossa programação genética nos permite um certo jogo de cintura sobre como agir, continua estando essencialmente além do nosso poder de deliberação determinar certos parâmetros fundamentais com os quais nos defrontamos quase como condições dadas, impostas a nós por processos fora do nosso controle, mesmo que tenham origem em nós mesmos. De certa forma, descobrimos quem somos não tanto por instrospecção direta quanto por convivermos 24 horas por dia conosco e termos acesso ao que ocorreu em toda uma variada gama de circunstâncias. O que achamos que nossa versão idealizada favorita de nós mesmos deveria querer não deve ser confundido com o que se formos honestos observamos que efetivamente queremos.

Blue-footed Booby dance

O problema é que o que efetivamente queremos intensamente e o que (se tivermos um mínimo de bom senso) percebemos que seria “bom” para nós por uma série de critérios diverge enormemente em grande parte das situações. E do ponto de vista científico e lógico é perfeitamente esperado que assim seja. O que é bom para a perpetuação e disseminação dos nossos genes não precisa ser o que é bom para esta gigantesca colônia de genes que chamamos de ser humano. De fato, do ponto de vista estritamente pragmático, quase sempre buscar a reprodução é um investimento enormemente deficitário de tempo, energia e de outros recursos que poderiam  ter sido empregados em prol de nossa segurança e conforto. Por que o fazemos então? Ora, fácil – aqueles que não o fazem cometem suicídio filogenético e não deixam descendentes propensos a ter comportamento similar.

E assim como o comportamento genérico de querermos autodestrutivamente espalharmos nossos genes não precisa coincidir e freqüentemente não coincide com o que melhor serviria à nossa autopreservação ou mesmo sobrevivência, o mesmo ocorre no processo de escolha dos parceiros junto aos quais concretamente implementar esse impulso. Claro, temos livre arbítrio e coisa e tal para fazermos o que quisermos ao escolhermos nossos parceiros. Mas o que vezes demais é subestimado além do limite do delirante é o quanto o que *queremos* não está lá exatamente sob o nosso controle. Aliás, em grande parte dos casos, não temos nem sequer um grau muito profundo de instrospecção sobre *o quê* de fato queremos, mesmo quando se tratam de desejos e impulsos fortíssimos. Então começamos a inventar todo tipo de explicação maravilhosamente sofisticada para dar conta do que estamos fazendo quando de fato estamos – por vezes transparentemente para quem olha de fora – simplesmente fazendo exatamente o que queremos. Apenas que não escolhemos o que queremos e nem sabemos ao certo o que é. Tal é a irônica condição do livre arbítrio humano.

Quando defrontados então com um relacionamento romântico, todas essas contradições brilham com fulgor máximo. Nós queremos coisas um do outro que não entendemos, não escolhemos e por vezes nem sequer somos capazes de perceber ou admitir ou articular. E possuir um parceiro sexual é algo que ocupa posição de importância privilegiadissimamente suprema na psique humana. Então todos os sentimentos associados a isso são muito fortes. Seria de se esperar que escolhêssemos alguém capaz de ocupar ao nosso lado a posição de amigo e companheiro e que pudéssemos fazer feliz e que nos pudesse fazer feliz. Mas na prática quando confrontados com escolher entre uma ganhadora de prêmio Nobel com extraordinária estabilidade emocional, fisicamente linda e uma maravilha na cama versus uma mulher completamente desequilibrada que nítida e previsivelmente torna tudo ao seu redor um inferno *mas* que segundo os nossos critérios genéticos automáticos de avaliação maximiza a probabilidade de sucesso em fundar novas colônias bem sucedidas para disseminação dos nossos genes… nossos instintos pularão instantânea e fervorosamente na direção da segunda opção. Note-se que nossos instintos não precisam estar certos nem mesmo sobre isso. Eles podem estar fazendo uma escolha pobre e deficiente até mesmo em termos evolutivos. Mas sem essa propensão insufocavelmente irresistivel a ignorar quaisquer outras considerações e colocar todos os nossos recursos emocionais, intelectuais e físicos a serviço de perseguir acasalamento com o parceiro detectado como suspeito – acertadamente ou não – de ser evolutivamente  favorável, nós simplesmente deixamos menos descendentes do que quem não for tão comprometido com este objetivo. Então nossos imperativos categóricos ditados geneticamente até nos deixam grande latitude sobre *como* atingir certos objetivos, mas ao mesmo tempo muito, muito pouca liberdade para escolher quais eles serão, ou mesmo para questioná-los.

 

Blue Footed Booby Mating Dance

Homens Sensíveis

March 29th, 2011 by Sergio de Biasi

Uma das reclamações femininas mais comuns sobre os homens é a de que homens seriam uns brutamontes, insensíveis, incapazes de compreenderem ou de se importarem com os seus (delas) complexos, sutis e delicados sentimentos, ao mesmo tempo em que não expressam ou demonstram o que eles mesmos sentem, agindo a maior parte do tempo como robôs autistas que só pensam em si mesmos.

E eu diria que a maior parte do tempo elas têm total razão.

Mas qual é o caminho que vai dar nisso?

Agora vejamos. Quando eu crescia como criança, e depois como pré-adolescente, e observava como platéia mas ainda não como personagem principal o drama cotidiano dos relacionamentos afetivos de casal à minha volta – e a maior parte das pessoas têm ampla oportunidade de observar pelo menos uma relação desse tipo bem de perto, a de seus pais, mas normalmente muitas mais, entre irmãos e irmãs, outros parentes, amigos, colegas, conhecidos, vizinhos -  eu pensava repetidamente (lembro-me nitidamente) : “Mas como isso é revoltante! A forma como os homens tratam as mulheres é inaceitável! Quando chegar a minha vez farei completamente diferente disso.”

Me parece bastante claro que nem todo homem pensa isso que eu pensei, mas por outro lado (e talvez isso chegue como uma supresa para algumas mulheres, ou talvez não) também me parece muito claro que vários pensam. E os homens que pensam isso, quando chegam na época em que ter um envolvimento concreto com alguém do sexo oposto começa a ser realista, freqüentemente tentam colocar seu idealismo em prática, com a expectativa não apenas de que com isso estarão fazendo a coisa certa, mas de que sua qualidade como bom e confiável companheiro será reconhecida e valorizada.

Deveria haver um curso na escola para avisá-los sobre o inesperado, traumatizante e universal resultado de tentar seguir esse caminho.

O que ocorre com regularidade milimétrica é que do ponto de vista de parceiro sexual em potencial sua tentativa de ser generoso e compreensivo é recebida não apenas com menos falta de entusiasmo do que o esperado, ou mesmo com indiferença. Não, não. Esse tipo de comportamento é recebido com ojeriza absoluta, com nojo e repulsa e, sim, desprezo.

Agora, essa reação é tão inesperada e desconectada de todas as interpretações que fazem algum sentido na mente do jovem homem em formação que na maior parte das vezes ele nem sequer consegue decodificá-la corretamente quando primeiro a encontra (ou em alguns casos mais graves, nunca). Ele tende a pensar “Por que estou sendo tratado deste jeito? Claramente estou fazendo algo errado, mas o quê? Hmm, talvez eu não esteja sendo gentil o suficiente, preciso caprichar mais!” Apenas para verificar que ao “caprichar mais”… a reação negativa se intensifica. Até que ele passa por aquele revolucionário, impressionante, poderosíssimo despertar para a maturidade masculina que é perceber – para sua enorme surpresa e pasmo – que era precisamente o seu esforço para ser gentil que estava causando sua imediata, automática e enfática inegibilidade como parceiro sexual.

O fato é que as mulheres não se sentem nem um pouco atraídas por homens que de fato são sensíveis.

Claro, é muito fácil ser “sensível” ficando todo “revoltado” (ou conversamente cínico e niilista) e tendo atitudes erráticas, incoerentes e destrutivas. Alguém que perde a calma e sai socando todo mundo e impondo sua vontade aos outros, ou que se autodestrói com comportamentos irresponsáveis de todos os tipos deve ter mesmo emoções muito fortes e poderosas, não? Deve ser um sujeito apaixonante e altamente “sensível”, afinal suas emoções sistematicamente sobrepujam de forma espetacular sua deliberação ponderada! Deve se tratar mesmo de uma uma alma indomável, que só segue suas próprias regras – é com ele que eu quero transar! Só que muito mais provavelmente se trata simplesmente de alguém sem qualquer autocontrole ou empatia e que não precisa de nenhuma emoção ou motivo espetacular para agir sociopaticamente.

Já quando um homem se aproxima de uma mulher na qual tem interesse romântico buscando sinceramente ser gentil, e compreensivo, e paciente, e amigo… ah, isso é sistematicamente interpretado como falso, manipulativo, demonstrativo não de equilíbrio mas sim de desespero, não de generosidade mas sim de carência afetiva, não de autoconfiança mas sim de baixo valor social, afinal de contas, por que é que alguém no topo da pirâmide social iria sair do seu caminho para tentar me impressionar? (E naturalmente essas patéticas expressões de “gentileza” não passam de uma tentativa ridícula de me impressionar, certo?) É a síndrome de “Eu não quero fazer parte de nenhum clube que me aceite muito facilmente como sócio.”

E se o sujeito consegue com sua persistência e tenacidade convencer sua interlocutora de que sua gentileza é sincera e espontânea, não afetada e circunstancial, isso de forma alguma melhora a situação. Ser gentil e generoso pode ser muito bem recebido como qualidade desejável no mundo teórico dos julgamentos idealizados – e freqüentemente inclusive é este o discurso feminino – mas na prática e no nível mais institivo, vezes demais escapando mesmo à introspecção da protagonista, é um fracasso total como estratégia reprodutiva.

Por outro lado, se o sujeito não demonstra qualquer tipo especial de gentileza além da civilidade formal básica e demonstra interesse suficiente apenas para estabelecer um canal de comunicação – mas deixando subentendido nas entrelinhas que apenas está fazendo isso porque é do seu interesse e não porque se sinta particularmente obrigado com coisa alguma, aliás muito pelo contrário – então isso é percebido como sendo não só respeitável e poderoso, como atraente. Já um homem espontânea e gratuitamente “bonzinho” é percebido como manipulável e fraco, possivelmente “‘útil” mas certamente não desejável.

Diante disso, é assim tão surpreendente que grande parte dos homens terminem se vendo na situação de ter que escolher fazer ou não esforços deliberados (eu não estou inventando, isso é um tema recorrente) para emular, contra sua natureza e por vezes detestando o papel, o comportamento sexualmente bem sucedido de pessoas que não raro desprezam?

As mulheres em geral se sentem infinitamente mais confortáveis em – e gravitam na direção de – relações baseadas em manipulação nas quais querem sentir que de alguma forma “seduziram” ou “conquistaram” um homem de alto valor ou status social apesar de (na sua percepção das circunstâncias) seu próprio valor ser menor ou questionável. A mulher moderna média, apesar de grande parte das vezes clamar e exigir uma relação de igual para igual (algo em que uma boa parte parte – mesmo que não universamente – dos homens modernos estará facilmente disposto a investir, e com meu apoio e aprovação) muito freqüentemente não está ainda porém psicologicamente pronta ou receptiva a uma relação desse tipo. O discurso “de igual para igual” na prática é completamente assimétrico e realizado como ganhar privilégios e opções sem a correspondente contrapartida em cumplicidade. Acaba virando ser tratada de igual para igual mas com pouquíssima ênfase ou preocupação em tratar de igual para igual. Então se alguns homens das antigas dizem “eu jamais casaria com uma mulher que ganhasse mais dinheiro do que eu” (ou que sequer ouse trabalhar), uma torrente de protestos se segue. Mas se uma mulher moderna diz “eu jamais casaria com um homem que ganhasse menos dinheiro do que eu” (ou que ouse não trabalhar), ninguém parece achar isso remotamente tão problemático. É tão difícil assim de perceber que deveriam ser dois lados da mesma moeda?

Agora, vejam, em plenos 2011, em países de primeiro mundo, um dos gêneros literários mais consumidos é… bem, seja lá que nome vamos dar ao que é publicado pela Harlequin, a maior editora do Canadá, que faz mais de meio bilhão de dólares por ano vendendo títulos como (eu não poderia ter inventado isso) :

De certa forma, ambos os lados merecem um certo crédito pela arapuca genética na qual existencialmente acordam. As mulheres sabem que se elas chegarem para praticamente qualquer homem e disserem “me come agora” ele dirá – ou pelo menos quererá dizer – “claro”. E existem fortes motivos evolutivos para que assim seja. Mas aí as mulheres acabam em grande parte medindo o grau de atração pelo nível de inesperada indeferença que um homem demonstra. Se você conseguir convencer uma mulher de que ela não conseguiu despertar absolutamente qualquer interesse de sua parte em comê-la, ou que você diria “não” por falta de interesse no caso de ela oferecer, então quase imediatamente você se torna atraente – ou pelo menos interessante – e a dita mulher começará a buscar achar formas de fazer você ficar interessado. Claro que no exato momento em que você ficar interessado, por precisamente este motivo, deixará de ser interessante. Então um dos dilemas mais enlouquecedores pelo qual todo homem precisa passar é como demonstrar interesse sem demonstrar interesse. E neste contexto, ser todo sensível é o maior turnoff do mundo. Se for muito bem expressado, ser sensível poderá até gerar interesse como parceiro para tomar conta de uma família mas muito mais dificilmente interesse do tipo “eu preciso que você me coma agora”.

Evidentemente também não é fácil para as mulheres – um homem desesperado provavelmente dirá, fingirá ou mesmo imporá (se puder) qualquer coisa para obter sexo. E a condição hormonal normal de um homem sem acesso a sexo é estar desesperado – então não é surpreendente que as mulheres tendam a sair correndo. Mas por outro lado demonstrar indiferença pode ser – e estimaria eu muito mais freqüentemente é – sintoma de sociopatia e cinismo do que de esplendoroso autocontrole, daí as mulheres acabam vezes demais se envolvendo com – e achando altamente atraentes – precisamente os piores companheiros possíveis.

Em resumo, essa situação acaba sendo problemática para ambos os lados, e é preciso um considerável esforço de introspecção a autosuperação tanto do lado masculino quanto do feminino para fugir da sua programação genética mais tosca em direção a algo um pouquinho mais construtivo.

Palestra Inaugural do Grupo de Estudos da Escola Austríaca

March 26th, 2011 by Sergio de Biasi

Reproduzo abaixo pedido de divulgação que recebi por email (boa sorte à iniciativa!).

Oi Sergio,
Tomamos conhecimento do teu blog o “O Indivíduo” que divulga idéias libertárias, liberais e similares a da Escola Austríaca.
Somos um grupo de jovens entusiastas da liberdade que começamos um Grupo de Estudos da Escola Austríaca (GEEA) aqui em São Paulo desde novembro de 2010. Já estamos com 40 pessoas e iniciando formalmente as atividades do grupo com a palestra “O que é a Escola Austríaca?”, que será ministrada pelo Hélio Beltrão, fundador do Instituto Mises Brasil.

Ela ocorrerá na terça (29/03) às 11:15, na sala G1 na FEA-USP, São Paulo – SP.

Segue também o link do post sobre a palestra no Blog do nosso grupo:
http://escola-austriaca.blogspot.com/2011/03/palestra-o-que-e-escola-austriaca.html

Se possível, gostaríamos de pedir que tu divulgasse no teu blog para que mais pessoas soubessem dessa mensagem de Liberdade.

Abraços Austríacos e Libertários,
Einstein do Nascimento
Grupo de Estudos da Escola Austríaca (GEEA)

Aproveito para linkar alguns dos textos aqui arquivados relacionados com libertarianismo, liberalismo e similares…

The Blessed Will Not Care What Angle They Are Regarded From

March 9th, 2011 by Sergio de Biasi

The blessed will not care what angle they are regarded from,
Having nothing to hide.

W.H. Auden (1948), “In Praise of Limestone
(O texto completo pode ser encontrado aqui.)

Eu não me recordo quem disse uma vez que maturidade moral é na verdade algo muito simples, e se resume ao seguinte – sua vida, suas escolhas e sua perpepção de você mesmo devem ser tais que você não teria problemas em contar o que você fez hoje de tarde ao jantar à noite com a sua família.

Simples que pareça quando colocado desse jeito, isso é dificílimo de atingir, por uma coleção de motivos.

Um dos motivos mais fortes é que existe uma pressão social absurda, opressiva e freqüentemente beirando ou mesmo atingindo o coercitivo para que nos submetamos ao usual, ao banal, ao mediano sem supresas, enfim, para agirmos de forma que não surpreenda ninguém nem os tire de suas zonas de conforto. Para grande parte das pessoas que encontramos diariamente, moralidade é não fazer nada que as deixe desconfortáveis, e se você fizer – mesmo que seja descobrir a cura do câncer – a reação será na direção genérica de “temos que fazer uma lei para proibir isso”. Infelizmente, porém, o status quo é vezes demais injusto, desumano, indesejável ou inequivocamente errado aos olhos de sua própria consciência. Então daí surge uma escolha moral fundamental – devo fazer o que eu sinto que é certo, ou devo fazer o que os outros esperam que eu faça comprando (espera-se) com isso reconfortante anuência e aceitação, mas traindo minha própria consciência?

Note-se, esse dilema não surge apenas na direção de você ser impedido de fazer o que quer. Ele não surge apenas na reacão negativa que busca reprimi-lo confontacionalmente. Ele surge também, não raro de forma muito mais poderosa e eficaz – justamente porque mais sutil – no constante reforço positivo de comportamentos desprezíveis. Afinal, o que poderia estar errado com uma atitude que gera aplausos e contentamento em todos ao seu redor, certo? A resposta é : absolutamente tudo. Assim como a verdade não é decidida por democracia, integridade ética está subordinada a ser coerente com o que VOCÊ sente que seja o correto. Fazer subservientemente o que mandaram sem questionar não o torna uma fortaleza de integridade, e sim uma ferramenta eficiente – que pode estar a serviço tanto do mais sublime progresso da humanidade quanto da mais destrutiva psicopatia. Um ser humano se torna moralmente (e, diria eu, também intelectualmente) maduro quando percebe que é possivel ele estar certo quando todo mundo acha que ele está errado mas também – e isso é muito mais difícil – quando percebe que e possivel ele estar errado quando todo mundo acha que ele está certo.

Só que se por um lado ter a humildade e o realismo autocrítico de perceber que mesmo nossas certezas mais absolutas podem estar completamente erradas é saudável e coisa e tal, , por outro isso não deve ser usado como desculpa conveniente para não termos posições nem atitudes sobre coisa alguma.

O que nos leva à seguinte frustrante dificuldade sobre o caráter das pessoas.

Aqueles que são mais destemidamente “corajosos” em irem contra as normais sociais, em desafiar o saber comum, em confrontar as regras, aqueles que são mais assertivos e proativos e não esperam pela aprovação dos outros antes de agirem, todas qualidades que no contexto certo são inestimáveis e admiráveis, estas pessoas freqüentemente o fazem por todos os motivos errados, e ou são psicopatas totais que não se importam em buscar aprovacão porque não estão nem remotamente preocupados com os outros em qualquer nível ponto, ou são psicopatas na prática – no sentido em que causam imenso mal e destruição – ao elevarem delirantemente sua consciência moral ao nível de holofote infalível e inerrante de verdade ética que precisa ser imposto a todo custo a todos mais. Inclusive eu diria que historicamente muito mais mal já foi feito em nome do bem do que em nome do mal. O psicopata que não está tentando trazer o bem a ninguém senão a si mesmo em geral se concentra em cuidar da sua vida e o mal que faz vem como efeito colateral acidental de buscar o próprio bem. Já o psicopata que acha que vai salvar a humanidade quer ela queira quer não, por quaisquer meios que se façam necessários – este é muito mais perigoso. É pouco realista coordenar um movimento político popular com a plataforma “vamos prender e torturar pessoas aleatórias porque isso me faz sentir poderoso”. Já com “vamos prender e torturar pessoas aleatórias porque essa é a única forma de impedir o colapso da civilização ocidental”, o sucesso é bem mais acessível. Ironicamente, institucionalizar a tortura de pessoas aleatórias é um risco muito maior para a civilização ocidental do que um bando de malucos tentando destruir a civilização ocidental. Se não é precisamente esse tipo de garantia e liberdade que estamos tentando garantir e proteger dos malucos, é o quê então?

Por outro lado, aqueles por “temperança” parecem ser mais conciliadores, gentis e prudentes, aqueles que em princípio aceitam o saber comum, que seguem nominalmente as regras, que são aparentemente passivos e preocupados em ficar esperando pela aprovação dos outros antes de agirem, todas características que no contexto certo são qualidades inestimáveis e admiráveis, estas pessoas também freqüentemente o fazem por todos os motivos errados, e na hora em que é preciso que tomem uma atitude, revela-se que sua prévia inação, muito mais do que derivada de qualquer idealismo ou empatia, fundamentava-se sim em inércia, conveniência e acima de tudo medo e hipocrisia. Tais personalidades podem por vezes ser até mais perigosas do que as abertamente confrontacionais, pois muito mais facilmente passam abaixo do radar do nosso julgamento como essencialmente bem intencionadas, quando na verdade sua pretensa mansidão é apenas uma máscara para uma natureza essencialmente covarde e manipulativa, como brilhantemente ilustrado no personagem Tom em Dogville.

Então ao final nos vemos navegando entre dois pólos extremos e patológicos – de um lado, aqueles que não têm certeza de nada, do outro, aqueles que têm certeza de tudo. E é difícil resistirmos nós mesmos ao apelo de nos juntarmos a um dos lados e ao invés disso convivermos com a responsabilidade duplamente herética de termos apesar das incertezas e das incompletudes uma opinião e uma personalidade. E então os melhores entre nós ficam na superfície muito parecidos com os piores, pois destes herdam tanto a audácia de pensarem por si e em si mesmos quanto o sentimento de responsabilidade inalienável em considerar seriamente as conseqüências de suas escolhas sobre os outros. O que os distingue é essa profunda sinceridade de propósito que à primeira vista pode parecer sutil e arredia a nível puramente retórico mas que fará enorme diferença nas escolhas que serão efetivamente feitas. Não se trata de coragem por coragem ou de mansidão por mansidão. O que distingue um louco destrutivo de um sujeito que mereça ser chamado de corajoso e forte, o que distingue um puxa-saco subserviente de um sujeito que mereça ser chamado de generoso e equilibrado em geral não é primordialmente o seu discurso sobre seus alegados valores e motivos mas sim as conseqüências não ditas mas muito concretas das ações reais que estão efetivamente sendo tomadas. E olhada deste ângulo, a retórica mais linda e espetacular do mundo pode rapidamente se transfigurar numa impostura insustentável.

Diante disso, uma decisão fundamental que cada um de nós precisa tomar em algum momento é, antes mesmo de se vamos ser honestos com os outros, a de se vamos ser honestos com nós mesmos quanto às consequências de nossas próprias ações. Para podermos tomar qualquer decisão moral real ao invés de sobre fantasias delirantes precisamos antes de mais nada sermos honestos com nós mesmos, quem somos, o que queremos, o que estamos buscando, o que estamos dispostos a fazer. E talvez ainda mais problemático do que quebrar publicamente essa “suspension of disbelief” sobre nossa historinha fantástica acerca de quem nós mesmos somos, muito pior que isso na maior parte dos casos pode ser ver essa impostura ser tornada insustentável para nós mesmos. E em algum ponto nessa corda bamba de buscar sustentar uma auto-imagem reconfortante mas basicamente desonesta podemos concluir que não queremos mais nada disso. E para se libertar dessa farsa, é preciso conseguir olhar para a própria fraqueza e impotência e incerteza de frente, aceitá-las sem escamoteações, e decidir o que fazer com isso. Não que isso seja fácil, muito pelo contrário. Mas a partir do momento em que escolhemos encarar de frente quem realmente somos, e a partir do momento em que escolhemos tomar decisões coerentes com isso, e a partir do momento em que abrimos mão da muleta de buscar criar em nós mesmos ou nos outros uma percepção de nós mesmos que não corresponda à realidade de como as coisas de fato são, estaremos então libertos de temer de qual ângulo seremos enxergados.

Homem, Sexo Frágil

January 26th, 2011 by Sergio de Biasi

Suicide rates (female)

 

Suicide rates (male)

Recentemente eu estava discutindo uma estatística apontando que os homens universalmente se suicidam mais do que as mulheres (um fato sociológico repetidamente observado e essencialmente incontroverso) e eu sugeri diante disso que ser homem não é tão bom assim e que ao contrário do que se possa por vezes querer fazer crer não decorre automaticamente do fato que as mulheres sofrem com questões específicas do seu gênero que os homens não sofram também com as questões específicas ao seu. E que, no balanço total, ser homem não seja lá esse passeio no parque que algumas ideologias querem pregar.

As reações que recebi ao expressar esse tipo de pensamento foram variadas, mas algumas foram tão exageradamente agressivas que despertaram meu interesse. Por que é um tabu tão grande sugerir que talvez o “poder” dos homens não seja assim tão grande? Por que é que qualquer estatística social colocando as mulheres numa posição desfavorável tende a ser automaticamente interpretada como sintoma de opressão, enquanto que as que colocam os homens como vítima ou prejudicado tendem a ser ou ignoradas ou “explicadas” como resultado de uma suposta irresponsabilidade / violência / estupidez  endêmica tipicamente masculina?

Os homens não só cometem mais suicídios como genericamente morrem mais cedo e levam vidas que por uma grande coleção de critérios são mais tensas, infelizes e perigosas do que as mulheres. A questão é : por quê? Querer dizer que é porque são uns idiotas é tão perverso quanto querer sem nem olhar as evidências afirmar que uma vítima de estupro provavelmente provocou o ataque. E se vamos olhar mais de perto, vemos que grande parte dos homens não se mata de tanto trabalhar porque ache dinheiro ou sucesso assim tão intrinsecamente importantes. Eles fazem isso porque, estatisticamente, acham que têm a obrigação e o dever de colocar o pão na mesa de suas famílias. Porque sentem-se responsáveis, como homens, por pagar as contas, e por zelar pelo bem estar material e segurança física de sua esposa e filhos, e não podem esperar encontrar uma esposa para começar se não o fizerem. Enfim, porque nisso – e em muitos outros aspectos – são prisioneiros de um gender role que não escolheram e sobre o qual não têm controle.

Agora vejamos, é absolutamente óbvio que o gender role tradicional feminino inclui uma grande coleção de aspectos opressivos. Eu não estou de nenhuma forma questionando isso. O que eu estou sim questionando é que isso implique que o gender role tradicional masculino não possa ser igualmente opressivo para um homem. Só que se por um lado nas últimas décadas houve um avanço enorme em conscientizar a todos, a começar pelas próprias mulheres, mas depois disso a sociedade em geral, de que certos aspectos do gender role tradicional feminino precisam ser questionados e em vários casos superados, não houve um despertar similar nem um movimento correspondente pelo lado masculino para se libertar dos aspectos opressivos do seu gender role tradicional.

Um dos motivos para isso ter ocorrido desta forma é que os movimentos feministas caíram na armadilha de acreditar e então bradar exaustivamente que se as muheres estão sendo vitimizadas, então deve haver um grupo opressor, e este só pode ser os homens. Ora, como se mulheres não oprimissem mulheres, e homens não oprimissem homens, e pessoas não oprimissem a si mesmas. O problema de libertar as mulheres da camisa de força de cumprir certos papéis incondicionalmente foi então em grande parte associado a lutar contra os homens e antagonizá-los. Essa atitude porém ignora completamente o fato de que, como mencionado, o papel tradicional masculino também é opressivo, e é incentivado e perpetuado com igual fervor por homens e mulheres, assim como o papel feminino. Todos perdem com essa falsa e fradulenta representação das relacões tradicionais entre homens e mulheres como sendo uma desprovida de problemas para algum dos lados. O fato histórico é que tradicionalmente se espera que ambos os sexos cumpram papéis desumanizantes e opressivos, e as mulheres, por diversos motivos, começaram a transicionar antes dos homens para uma situação mais justa e humana, algo tornado possível por enormes progressos culturais e tecnológicos (dificilmente poderíamos nos dar a esse luxo para qualquer dos sexos se nossa primeira prioridade fosse não morrer de fome no meio da selva).

O que vivemos hoje, porém, é uma situação na qual as mulheres já conseguiram ganhar uma quantidade considerável de opções que antes não estava disponível para elas, libertando-se parcialmente de seu gender role, enquanto que dos homens ainda se espera que cumpram sem reclamar basicamente os mesmos e opressivos papéis tradicionais de sempre. E quando isso é sequer mencionado, as reações freqüentemente incluem indignação revoltada. Como assim os homens ousam querer questionar seu papel tradicional? Pois têm mais é que questionar mesmo, assim como as mulheres questionaram o seu.

O fato é que por uma coleção enorme de critérios, o resultado dessa liberação assimétrica é que em muitas sociedades modernas é o homem que hoje é disparadamente o sexo frágil, o sexo menos em controle de sua própria vida e de sua própria identidade, o sexo com menos opções profissionais e afetivas, o sexo mais vitimizado por todo tipo de violência e indignidade, o sexo que é mandado para morrer em guerras e depois abandonado pela sociedade para mendigar pelas ruas. Os homens estão, nas sociedades modernas, muito mais vulneráveis do que as mulheres, e tradicionalmente um homem sequer pedir por socorro ou protecão é considerado indigno e vergonhoso. Não é surpreendente então que os homens se matem aproximadamente muito mais do que as mulheres em quase todas as sociedades. Se eu mostrasse uma estatística dizendo que as mulheres americanas (ou alguma etnia, ou classe econômica, ou qualquer outro grupo social) se matam 5 vezes mais do que os homens, isso não seria automaticamente interpretado como significativo de que alguma grande violência está sendo cometida contra este grupo? Por que é então quando se mostra uma estatística deste tipo mostrando os homens como vitimizados a reação é um dar de ombros ou mesmo querer achar uma explicaçao para culpá-los por isso? Isso equivale a mostrar uma estatística de que um determinado grupo social apresenta escolaridade muito abaixo da média geral e alguém concluir “ah, isso só pode ser porque eles são burros e preguiçosos mesmo”. Sinto muito, não é aceitável. É uma droga ser mulher e sentir uma enorme pressão para se enquadrar num gender role tradicional destrutivo e vitimizante? Sim, é, e eu apoio isso ser questionado. Mas isso não ocorre porque “os homens” conspirem para que ocorra, isso é uma estrutura perpetuada pela sociedade como um todo, e cuja perversidade de forma alguma afeta somente as mulheres. É também uma droga ser um homem num papel tradicional de homem. Ambos os sexos precisam se libertar disso, e precisam da ajuda um do outro para fazê-lo.

Dentro de uma unidade familiar padrão (que com certeza vem se alterando, mas ainda arquetípica) a quantidade de responsabilidade que um homem médio sente depositada sobre seus ombros é imensa. É sobre ele que é colocada a expectativa de fazer o que for necessário para garantir a existência de recursos materiais para a subsistência de sua família. É para ele que se voltam os olhares de reprovação e censura se não há comida na mesa. E espontaneamente, o homem médio sente fortissimamente o dever, o chamado, o imperativo de proteger objetivamente a sua família da privação e da necessidade, de pegar um porrete e suicidamente ir lá dar pauladas no urso que ronda a caverna. Claro que isso é uma forma completamente diferente de cuidar dos entes queridos comparada com trocar fraldas ou dar conforto afetivo, uma forma menos yin e mais yang, mas não venham me dizer que os homens sejam menos abnegados que as mulheres em cuidar de sua família; isso é tão capenga quanto dizer que a função yin que as mulheres exercem seria menor ou menos importante, ou que todas as mulheres espontaneamente a exerçam direito. Assim como evidentemente há homens que também não fazem sua parte direito, mas me parece extremamente injusto – e condescendente – dizer que as mulheres seriam por isso vítimas ou “mais abnegadas”. Espera-se delas que expressem sua abnegacão de uma forma diferente, mas tradicionalmente não se espera menos dos homens. Só que sim, de fato, após ir lá dar pauladas no urso e enfrentar o frio e o vento e a neve, o homem freqüentemente volta pra casa pra ser recebido como um estranho, como um veterano de guerra, como o samurai que após salvar a vila se torna indesejável por sua dureza e calosidade, as mesmas qualidades previamente indispensáveis e salvadoras quando foi necessário enfrentar uma realidade ameaçadora.

E não se deve subestimar a quantidade de solidão a que um homem típico é submetido. Se você, como mulher, acha que o homem médio não é muitíssimo mais solitário, nem recebe ordens de grandeza menos atenção do que uma mulher média, e se você acha que essas coisas não causam um impacto profundíssimo em sua felicidade, é porque você provavelmente não mede quão radicalmente diferente é a experiência social de um homem típico comparada com a de uma mulher típica. Se você está olhando desde o ponto de vista de uma mulher, você está acostumada a receber um certo nível básico de gentileza e atenção em qualquer ambiente social no qual ingresse. Talvez você suponha automaticamente que seja assim para todas as pessoas. Eu estou tentando trazer à sua atenção que absolutamente não é. A experiência que um homem típico tem entrando num bar, numa festa, numa sala de aula, enfim, em qualquer ambiente social, é *completamente*, *radicalmente*, *abissalmente* distinta da que uma mulher tem. Espera-se que *ele* tome a iniciativa, que *ele* seja interessante e divertido, que *ele* faça algo para demonstrar proativamente o seu valor, que *ele* faça as coisas acontecerem. Ninguém se sente obrigado a ser espontaneamente gentil com um homem, ou a pensar no seu bem estar, ou fica se oferecendo para fazer todo tipo de favores e dar presentes só por ele existir. Esse tipo de generosidade e afetividade básica e gratuita que dá a um ser humano a sensação de que é aceito e querido em algum nível fundamental é reservada pela sociedade a crianças e mulheres. Dos homens se espera que “take it like a man”.

Agora, querer enxergar os homens caricatural e unidimensionalmente como opressores e as mulheres como vítimas abnegadas e indefesas requer fechar os olhos para uma enorme fatia da realidade.  Como se dos homens também não se exigisse abnegação! Só para começar, os homens também cuidam *sim* de filhos, esposas e pais idosos, só que em geral se concentram em fazê-lo fornecendo recursos e segurança material. É absurdamente injusto colocar seu papel como inferior ao da mulher por isso. Também acho injusto colocar como superior, mas querer inverter as coisas e colocar como inferior é ir longe demais. Mas mesmo fora da família e na sociedade em geral, se por um lado mulheres escolhem profissões nas quais se dedicam a cuidar dos outros de uma forma afetiva e yin, os homens se dedicam a cuidar dos outros de uma forma agressiva e yang. São as mulheres que estão lá dando comida da boca dos idosos e das crianças, e isso tem sim enorme valor humano, mas enquanto isso são os homens que entram em prédios em chamas para salvar as pessoas de morrerem carbonizadas, com risco real de sua própria vida! Os homens sentem um chamado tão real e abnegado quanto as mulheres para cuidarem dos outros, só que as formas que eles encontram de fazer isso são diferentes das que as mulheres encontram. Eu acho extremamente injusto dizer que os homens não pensem nos outros, ou que eles não tenham capacidade ou vocação para abnegação. Note, reitero que em nenhum momento eu estou dizendo que o valor dos papéis que as mulheres arquetipicamente buscam (ou seja a elas imposto) tenha valor menor do que os que os homens arquetipicamente buscam (ou seja a eles imposto), mas estou sim defendendo que inverter a equação incorre no mesmo tipo de julgamento generocêntrico cego e chauvinista de que as mulheres buscam modernamente se defender. Então eu não estou defendendo que o papel – tanto em princípio quanto na prática – que as mulheres se sentem chamadas (ou coagidas) a cumprir seja fácil ou florido. Mas o dos homens também não é.

A mulher moderna média numa sociedade ocidental provavelmente não tem em geral idéia da quantidade de questões das quais ela está protegida e que o homem médio tem de lidar diariamente ao interagir com o mundo. Se ela pudesse passar qualquer período de tempo na identidade de um homem, compreenderia bem melhor várias das coisas aparentemente bizarras que os homens fazem.  A maioria dos homens não vai sair por aí dizendo isso abertamente porque os coloca numa posição muito vulnerável, mas o homem médio é muito mais solitário do que a mulher média. As mulheres estão acostumadas a receberem um certo nível básico de carinho e atenção praticamente incondicionais só por existirem. Similar ao que quase todos nós recebemos quando crianças. Mas os homens crescem e de repente descobrem que a reação social padrão, se eles não tomarem a iniciativa, tornou-se ninguém mais querer ter nada a ver com eles. A condição default do homem padrão é um isolamento atroz que só é superado com muita perseverança. E somado a isso encontram-se inundados de hormônios que gritam, berram, exigem acesso a sexo. Acho que a mulher média não tem a mais remota idéia do quanto é desagradável para um homem típico não ter acesso a sexo. Mas olhe em volta e veja os sintomas – veja do que os homens são capazes para obter acesso a sexo. Então sim, o homem moderno é basicamente um ser fadado à solidão e geneticamente assolado por uma dor medonha… a qual por outro lado essencialmente qualquer mulher do mundo tem o poder quase místico de fazer passar. Então quando achar que um homem está sendo bruto, ou caótico, ou agressivo, ou mandão… tente entender quão complexo é ser um homem, e ao mesmo tempo quão fácil é fazê-lo feliz, e quão imensamente grato ele ficará se você escolher cuidar dele usando com amor e generosidade recursos simplíssimos ao alcance de qualquer mulher do mundo. Ambos os sexos precisam tratar o outro com gentileza e estarem atentos às necessidades e aspirações que a sociedade tradicionalmente exige serem reprimidas em nome de se conformar ao seu gender role. Ambos os sexos precisam de ajuda para fazê-lo. Está na hora de os homens começarem a recebê-la também.

Verdades Absolutas

December 1st, 2010 by Sergio de Biasi

The truth is out there.
Mulder

Para qualquer pessoa que já tenha pensado seriamente sobre o assunto por mais de 30 segundos, espero que esteja abundantemente claro que a afirmação de que “não existem verdades absolutas” é completamente ridícula e indefensável e deveria provocar risos constrangidos ao acabar de ser pronunciada. Para quem não pensou sobre isso por mais de 30 segundos, aponto que essa afirmação claramente se autodestrói diante da pergunta “Ok, e essa afirmação é uma verdade absoluta ou relativa?”. Então ou existem verdades absolutas ou não existem; se elas não existem, então isso seria em si mesmo uma (inconcebível) verdade absoluta, e portanto a única alternativa logicamente viável é a de que elas existem, e com um exemplo de brinde : “Existem verdades absolutas.”

Mas ok, talvez essa verdade seja um pouco excessivamente auto-referencial e o leitor não esteja plenamente convencido de sua relevância. Precisamos de critérios e exemplos melhores para o que vamos chamar de verdade.

Com o risco de ser tautológico, eu diria que a verdade é precisamente aquilo que não varia dependendo de em quê a gente acredita.

Paremos agora para observar mais cuidadosamente por que essa afirmação, ao invés de o que pode parecer superficialmente um truísmo, contém na verdade as sementes de um conceito filosófico fundamental. Uma tautologia é, na linguagem popular (que segue a acepção usada em retórica), uma afirmação na qual reescrevemos uma outra afirmação usando diferentes palavras com o mesmo significado. Então por exemplo “o elefante preto” e “o paquiderme negro” significam a mesma coisa. (Suponhamos para efeito deste argumento que não exista ambigüidade quanto à interpretação dessas sentenças.) Então se eu digo que “existe um paquiderme negro se e somente se existe um elefante preto” eu estou dizendo algo que é patentemente verdadeiro, de fato absolutamente verdadeiro, mas por outro lado permanece de certa forma completamente vazio de conteúdo, no sentido em que não me diz nada sobre o mundo, dado que a rigor isso é apenas uma reafirmação de que “existe um elefante preto se e somente se existe um elefante preto”. Note-se que sem recorrer a nenhum conceito muito misterioso já esbarramos aqui na existência de mais afirmações sobre cuja verdade podemos ter certeza absoluta. Isso pode ser transformado em algo perfeitamente rigoroso usando lógica matemática, e se as tautologias tecnicamente não levam automaticamente a novas afirmações sobre propriedades do mundo que antes desconhecíamos, elas nos levam a novas formulações dessas propriedades. Mas talvez o leitor ainda esteja insatisfeito – se esse é o único tipo (ainda auto-referencial) de verdade absoluta que conseguimos demonstrar, será difícil ir muito longe.

Então chegamos aqui a um ponto menos óbvio que eu quero levantar. Digo acima “na linguagem popular” porque em lógica matemática uma tautologia é algo sutilmente diferente. Em lógica matemática, uma tautologia é algo que é sempre verdade não interessa de quais hipóteses você parta. Então é claro que as equivalências lógicas como descrita acima são todas exemplos de tautologias. Se eu consigo mostrar que a afirmação X é apenas uma forma de reescrever a afirmação Y, então é claro que “a afirmação X é verdade se e somente se Y é verdade” será uma (trivial) verdade absoluta.  Porém, esse não é o único tipo de tautologia possível. Se eu afirmo por exemplo que “ou existe um elefante preto ou não existe um elefante preto” isso também é uma tautologia, e uma verdade absoluta, mas não é a afirmação de uma equivalência lógica. E da mesma forma, se eu digo “se existe um elefante preto então existe um elefante” temos aqui uma implicação lógica um pouco mais sofisticada, que é também uma tautologia e uma verdade absoluta. Em outras palavras, podemos não saber absolutamente nada sobre se X é verdade ou sobre se Y é verdade mas mesmo assim sabermos que X implica Y é uma verdade absoluta.

Agora notemos que em nenhum desses casos conseguimos escapar de algum tipo de auto-referência. Coloco então que isso é mais ou menos inevitável; a não ser que assumamos algo como axioma, como verdadeiro por princípio, tudo o que seremos capaz de provar será sobre a verdade absoluta de implicações lógicas obrigatórias dadas certas suposições – às quais teremos que nos referir quando tirando conclusões. E de fato, isso é tudo o que podemos esperar provar com certeza absoluta. Então a auto-referência, ou recursão, está no centro da verdade ou mais precisamente no centro de tudo o que podemos esperar realmente conhecer com certeza. Esse é um conceito absolutamente fundamental em lógica matemática, em teoria da computação, e em filosofia : o de que as verdades que nos são objetivamente acessíveis são precisa e exatamente as que podem ser descritas recursivamente.

Mas voltemos ao conceito original. Quando eu afirmo que a conjectura X é de fato verdade, eu estou precisamente dizendo que X não depende de quais hipóteses você está partindo. Já concluímos que tais proposições de fato existem. A questão é, como identificá-las, e serão todas elas triviais? (no sentido em que sejam todas óbvias ou pelo menos demonstráveis). E meio supreendentemente, quando tentamos aprofundar formalmente este conceito, e aplicá-lo de forma mais geral a todo tipo de proposição que poderíamos fazer sobre o mundo, concluímos que há verdades que, apesar de serem absolutas – isto é, verdadeiras não interessa de quais hipóteses você parta – não é possível demonstrar que tais proposições sejam verdadeiras! E este fato pode ser formalmente demonstrado como sendo uma verdade absoluta!

Isso e outras considerações nos levam à necessidade de uma nova palavra para descrever conclusões logicamente corretas – e portanto obrigatórias, verdadeiras, e que não dependem da opinião de ninguém. Estas não são no caso geral exatamente as mesmas conclusões que podem ser obtidas apenas (“tautologicamente”, no sentido retórico) reescrevendo afirmações para obter outras, um fato que veio como enorme surpresa para lógicos e matemáticos quando primeiro demonstrado. Claro que quando podemos de fato reescrever uma afirmação para obter outra, então a necessidade de implicação lógica fica patente. Mas repito, existem casos em que a implicação lógica inexoravelmente existe mas não pode ser obtida através de dizer a mesma coisa com outras palavras! Ou seja, existem verdade que apesar de absolutas, nos são inacessíveis (no sentido em que apesar de serem verdades absolutas não podermos ter certeza absoluta de que de fato sejam verdade absoluta). Damos então a tais afirmações (i.e. que efetivamente correpondem à realidade dos fatos quer saibamos provar ou não) o nome de “válidas“.
É exatamente nesse ponto em que a força da afirmação “a verdade é precisamente aquilo que não varia dependendo de em quê a gente acredita” brilha com força total. Em primeiro lugar, isso já seria uma observação interessante mesmo que todas as verdades fossem tautológicas – afinal, nem sempre é imediatamente óbvio quando Y pode ser obtido através de reescrever X com outras palavras. Mas vai muito mais longe do que isso. O fato é que mesmo dentro de modelos perfeitamente bem determinados e explicitamente conhecidos, é impossível determinar tudo o que deveria ser necessariamente verdade dado aquilo em que acreditamos.

Uma outra forma de colocar a afirmação acima é : já que a verdade não pode depender daquilo em que acreditamos, “a verdade é aquilo em que somos logicamente forçados a acreditar quando não acreditamos em nada a priori”. Poderíamos concluir apressadamente disso que nenhuma conclusão pode ser tirada do nada, mas dessa objeção já demos conta logo no começo, isso é claramente falso. Poderíamos então concluir um pouco menos apressadamente que somente conclusões triviais podem ser tiradas do nada, tornando a frase acima bem menos interessante apesar de verdadeira, mas o fato é que isso também não é verdade. O que de fato ocorre é que existem verdades absolutas que não dependem da opinião de ninguém mas ao mesmo tempo comprovadamente não existe nenhuma forma de enumerar todas elas ou sequer de determinar com certeza, no caso geral, se uma determinada afirmação é uma delas.

Por um lado, isso pode parecer meio desanimador. Por outro lado, no final das contas, como seres humanos, nós nunca temos acesso direto ao que “realmente é” e ao invés disso temos somente acesso àquilo em que acreditamos. Então talvez o fato de que a verdade não dependa do que acreditamos seja precisamente o que nos dá alguma esperança da possibilidade de conhecermos qualquer coisa. Mais do que isso, a verdade é o que nos une a todos, em todas as nossas diferentes crenças, sentimentos, histórias e acidentes de percurso. A verdade, não a fé, a revelação, a tradição ou o instinto é o que há realmente em comum entre todos nós, entre todas as nossas consciências, entre todas as nossas individualidades. Infelizmente, determinar o que é de fato verdade é algo extraordinariamente complexo, e na maior parte dos casos, literalmente impossível. Então toda essa profunda identidade existencial subjacente que une todos os seres do universo permanece apenas latente e apenas esporadicamente pressentida enquanto nos reduzimos a brigar até a morte para defendermos nossos preconceitos preferidos. E e aí que é preciso dar dois passos para trás e transcender o que sabemos ou pensamos saber e olhar para tudo aquilo que é verdade mas nunca conseguiremos demonstrar ou conhecer. Segue sendo verdade assim mesmo, e agir como se só o que entendemos existisse é uma atitude que está segura, demonstravelmente, universalmente, garantidamente equivocada.

O Indivíduo, 13 Anos

November 19th, 2010 by Sergio de Biasi


“Dia da Consciência Negra”
(Crônica de Mário Negreiros)

Eis que hoje “O Indivíduo” faz oficialmente 13 anos de existência.

Muito, mas muito mesmo se passou desde então. Em particular, este site passou por muitas mudanças de formato, de estilo, de provedor, de público, de editores, e de autores. Mas permanece aqui, mesmo que tendo virado um clube do eu sozinho, representado hoje por ninguém mais além de eu mesmo.

Como brinde comemorativo, resgato dos meus arquivos uma das crônicas publicadas na Rádio MEC em 1997 pelo jornalista Mário Negreiros logo após a confusão que se seguiu à publicação do número zero na PUC.

Adicionalmente, listo os dez textos mais lidos ao longo do último ano, em ordem descrecente de número total de acessos  :

  1. Homens e Mulheres
  2. Educação Compulsória e Totalitarismo
  3. Citando Aristóteles
  4. O Discreto Triunfo do Pensamento Marxista
  5. Prioridades Libertárias no Brasil
  6. Definições Políticas
  7. Liberals, Liberais e Libertários
  8. Ciência versus Filosofia
  9. Brasil, uma Nação à Procura de um Destino
  10. Ainda Homens, Mulheres e Sexo

Destaco aí uma presença anual constante nas estatísticas de acesso desde sempre : o texto “Ciência versus Filosofia“, escrito em 1997 e presente no número zero.

Saudações a todos,
Sergio

Bem Vindo ao Deserto do Real

October 23rd, 2010 by Sergio de Biasi

Escolhendo a pílula vermelha

What is “real”? How do you define “real”?
–Morpheus

Eu me lembro de quando estava tendo exatamente esta conversa com um cristão amigo meu e ele em algum momento disse : “Ok, mas afinal de contas, o que há de tão especial assim com a verdade?” E foi excelente ele ter sido capaz de colocar a questão de forma tão clara, porque se levada a sério, essa não é uma pergunta lá muito fácil de responder. Eu pessoalmente acho que abrir mão do critério de verdade como requisito fundamental para adotar um sistema de crenças leva a todo tipo de distorções e absurdos, tanto intelectuais quanto éticos, mas de fato é perfeitamente possível tomar – e diria eu, tomar *racionalmente* – essa decisão a partir do momento em que olhamos para a existência humana como algo que absolutamente não (nem de longe!) se resume à racionalidade.

You’ve felt it your entire life, that there’s something wrong with the world. You don’t know what it is, but it’s there, like a splinter in your mind, driving you mad.
–Morpheus

Inclusive eu acho muito mais saudável a posição de adotar sistemas de crenças religiosas com a plena consciência de que não se está com isso em busca da verdade do que a posição mais comum de defender fanaticamente que as crenças religiosas corresponderiam, sim à realidade concreta das coisas. Quanto mais se vai por esse caminho (de querer justificar crenças religiosas como *verdadeiras* ao invés de como confortáveis, convenientes ou úteis) mais bobagens se seguem. Agora, a autocrítica dual a essa é igualmente dolorosa e igualmente incomum : assim como é uma ilusão total querer justificar as crenças religiosas como *verdadeiras*, é uma ilusão total querer justificar não adotá-las apenas com base na “racionalidade”. Note-se, se alguém vem dizer que “é preciso acreditar apenas no que é lógico” e quando questionado sobre “mas afinal de contas por que mesmo?” responde “ora, porque é a única coisa lógica a fazer!”, é duro admitir, mas essa pessoa está sendo tão circular quanto alguém que diz “é preciso acreditar na Bíblia!” e quando questionado sobre “mas por que?” responde “ora, porque está na Bíblia”.

I’m trying to free your mind, Neo. But I can only show you the door. You’re the one that has to walk through it.
–Morpheus

Claro, uma resposta um pouco menos circular seria “Porque assim temos mais chances de acreditar no que é concretamente verdade”. E é precisamente neste ponto que surge o comentário do meu amigo : “Ok, mas afinal de contas, o que há de tão especial assim com a verdade?” E de fato, embora a lógica seja o caminho mais garantido para chegar ao que é verdade, escolher diante disso só acreditar no que é lógico continua dependendo da premissa de estamos de fato tentando chegar à verdade custe o que custar. Só que nossas necessidades mais importante e profundas são completamente ilógicas e injustificáveis para começar; esse fato só não é mais berrantemente óbvio porque existe um onipresente consenso social em aceitá-las como naturais e obviamente dispensadas de explicação, mas a rigor não há qualquer motivo racional ou lógico para viver e não morrer, para crescer e multiplicar, para interagir com outros seres humanos, para proteger sua própria integridade física, ou em resumo para fazer qualquer coisa. Quem não percebe isso, que não se dá conta disso, que não consegue aceitar isso está se auto-enganando em grande escala, sendo ou não religioso.

I didn’t say it would be easy, Neo. I just said it would be the truth.
–Morpheus

A questão toda é piorada pelo fato de que nossos irracionais, ilógicos e em última análise injustificáveis (e por vezes inconstantes, incompreensíveis, contraditórios e por vezes mesmo insondáveis e inacessíveis) instintos, sentimentos e impulsos são apesar disso tudo insufocavelmente e sufocantemente REAIS. Podemos diante disso aceitar que nossas motivações são completamente arbitrárias e abrir mão da ilusão de que sequer faça sentido falar em agir apenas racionalmente (isso seria buscar… o quê?) … ou podemos construir uma fantasia totalmente irracional (religiosa ou não) sobre por que nossos queridos preconceitos e fantasias são na verdade maravilhosamente bem fundamentados… e então agir “racionalmente” dentro do paradigma dessa fantasia. Em qualquer caso, a lógica permanece o melhor guia em termos de estimar o que é real. A questão é que “o que é real” absolutamente não é a única coisa que importa, aliás longe disso. O mundo real é árido e vazio de significado, e profundamente insatisfatório como residência de nossa psique.

Welcome to the desert of the real.
–Morpheus

Então vivemos todos uma escolha fundamental em nossas vidas (muito bem ilustrada na questão red pill versus blue pill) que é a seguinte : vamos escolher aceitar a verdade de que universo funciona como nossa mente racional implacavelmente nos informa que seja mais provável (ou mesmo certo) que seja de fato a realidade das coisas, ou vamos ao invés disso deliberadamente escolher defender crenças e valores que psicologicamente nos tragam conforto, paz e segurança mas que a rigor nosso julgamento racional indica que provavelmente (ou certamente) não correspondam à verdade?

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Mas talvez eu esteja já começando longe demais no argumento. A rigor temos também a opção de não questionar coisa alguma e simplesmente acreditarmos em paradas aleatórias. Inclusive me parece que essa seja a opção da maior parte da humanidade. Mas veja, quando você escolhe acreditar em uma idéia que você ouviu por aí, essa idéia não brotou do chão espontaneamente. Ela foi criada por alguém, e com grandes chances não foi criada por acaso. Existiria a possibilidade de que essa idéia tenha sido criada para te manipular? Mas que grande surpresa! Claro que existe. Pessoas dispostas a acreditar fortemente em idéias sem saberem muito claramente por que estão escolhendo acreditar naquilo são trivialmente, facilmente manipuláveis.

Seja como for, a maior parte das pessoas simplesmente escolhe a pílula azul por default, não porque tenha consciente e deliberadamente refletido sobre o assunto, mas porque nunca sequer chegou a perceber que existe uma escolha. O ser humano médio morre sem ter nunca ter enxergado a prisão cultural e intelectual na qual nasce, sem nunca ter percebido o quanto várias de suas crenças mais arraigadas são completamente arbitrárias e não têm qualquer relação com a verdade, o quanto querer ardentemente que uma coisa seja verdade e ela de fato ser são duas proposições completamente desconectadas.

Like everyone else you were born into bondage. Into a prison that you cannot taste or see or touch. A prison for your mind.
–Morpheus

Infelizmente os mecanismos sociais de controle que buscam manter o ser humano médio nessa prisão são enormes, onipresentes e fortíssimos. Experimente defender opiniões pouco usuais de qualquer tipo em praticamente qualquer grupo social e isso fica instantaneametne óbvio.

Mas existem mecanismos de controle mais deliberados e mais organizados do que a necessidade atávica de impor (e buscar) conformidade manifestada a nível de interações sociais espontâneas. Um deles é o sistema educacional, que da forma como modernamente constituído na maior parte das vezes, parece ter como diretiva mais importante punir, sufocar, destruir, impedir o pensamento criativo crítico independente.

Mas por mais que seja opressivo, o sistema educacional é algo de que a maior parte das pessoas se liberta (pelo menos materialmente) em algum momento. Um outro exemplo muitíssimo mais invasivo e que de fato pretende explicitamente fazer parte de todas as esferas da existência humana é religião. A religião como usualmente organizada é um sistema de impor conformidade que é particularmente perverso e danoso à psique. Sua malignidade deriva precisamente de sua determinação explícita e deliberada em exigir que o ser humano individual abra mão de seu julgamento independente, e mais ainda do que isso, em seu combate vociferante e cáustico a quem tem a audácia de não fazê-lo. O pior pecado imaginável em quase qualquer religião é não se submeter. A principal função e propósito da religião institucionalizada não está em nenhum lugar fora de si mesma, e sim em parasiticamente se auto-perpetuar, usando seres humanos como incautos hospedeiros.

Não que religião seja o único sistema de controle social; diversas ideologias ao redor do mundo cumprem a mesma função, criando sistemas que quanto mais totalitários vão ficando, mais vão se intrometendo em cada mínimo detalhe de nossas vidas. E quanto mais alguém mergulha numa dessas ideologias, em geral mais dependente delas vai ficando, e mais complexo fica dizer que aquilo é tudo um grande delírio, porque é precisamente a natureza dessas ideologias incentivar o ser humano não a ser forte e independente e íntegro e sim fraco e submisso e dependente. E isso não é por acaso – o sucesso dessas ideologias se deve em grande parte precisamente a isso.

But when you’re inside, you look around, what do you see? Businessmen, teachers, lawyers, carpenters. The very minds of the people we are trying to save. But until we do, these people are still a part of that system and that makes them our enemy. You have to understand, most of these people are not ready to be unplugged. And many of them are so inured, so hopelessly dependent on the system, that they will fight to protect it.
–Morpheus

Mas como eu disse no começo, nenhum desses sistemas explícitos porém é realmente necessário para aprisionar pessoas dentro de suas próprias mentes. Aliás, eu diria até que ao se tornarem explícitos, esses sistemas de controle tornam imediatamente claro que existiria uma escolha – desafiar o sistema – mesmo que se tente a todo custo fazer tal escolha soar impensável por repetido condicionamento. E na verdade no final das contas todos esses sistemas – explícitos ou não – dependem crucialmente de que introjetemos seus mecanismos de controle para funcionarem. Esses sistemas todos estimulam os nossos preconceitos e a nossa ignorância como forma de mais facilmente nos manipularem. Mas preconceitos e ignorância – ora, isso é algo que não precisamos de nenhum sistema externo de controle para cultivarmos nós mesmos. E de fato o fazemos em grande escala e espontaneamente, aprisionando a nós mesmos como reféns da nossa burrice, da nossa ignorância, do nosso medo, das nossas neuroses, sem a necessidade de qualquer sistema opressivo externo para ajudar.

Então ao final quem realmente realmente se aprisiona é você mesmo. Não que não haja limitações objetivas para o que podemos atingir e fazer e pensar e realizar, mas as limitações que a realidade física e a sociedade ao redor *concretamente* impõem em geral empalicedem diante das limitações que (muitas vezes incentivados por perversos sistemas externos de controle, mas ainda assim nós) impomos a nós mesmos.

What are you waiting for? You’re faster than this. Don’t think you are, know you are. Come on. Stop trying to hit me and hit me.
–Morpheus