Chantagem Emocional

June 28th, 2011 by Sergio de Biasi

Sue : I suppose you don’t have any shrinks at Walkabout Creek.
Michael : No, back there if you got a problem you tell Wally. And he tells everyone in town, brings it out in the open, no more problem.

Entre os diversos experimentos altamente perturbadores sobre comportamento social que eu conheço em psicologia estão os que seguem a linha de pesquisa inicialmente explorada por Milgram na década de 60. Para quem não conhece, vale a pena ler uma descrição mais detalhada. Mas em resumo, o resultado é na direção de concluir que o ser humano médio está preparado para sem qualquer coação e sem qualquer remorso praticar os atos mais cruéis e desprezíveis desde que acredite estar seguindo intruções diretas de uma figura de autoridade.

As conseqüências para política, religião, educação, e na verdade em praticamente todas as esferas da existência humana são gigantescas.

Mas eu quero aqui me concentrar em discutir um contexto específico em que esse fenômeno se manifesta de forma a meu ver particularmente perversa, que é o do tratamento psicanalítico (e similares).

Quando um indivíduo decide buscar um terapeuta para discutir suas questões psicológicas, suas angústias existenciais, suas neuroses, seus problemas emocionais, ele se coloca em uma posição bastante vulnerável. Note-se, mesmo sem questionarmos a validade científica ou médica de psicanálise e similares, a maior parte dos pacientes se vê na mesma situação na qual nos descobrimos quando levamos o carro a um mecânico sem termos qualquer noção de como um carro funciona por dentro – que é de que em algum momento somos confrontados com ter que escolher confiar que o mecânico sabe o que está fazendo. Claro, não tomamos essa decisão cegamente – mas quase sempre também não a tomamos com base em conhecimento profundo do assunto. Usamos critérios basicamente circunstanciais para fazê-lo, usamos aparências e inferências para escolher ou não aceitar o terapeuta como uma figura legítima de autoridade sobre certos aspectos da mente humana e sobre os caminhos apropriados para atingirmos saúde mental e emocional.

A questão porém já começa do fato de que definir saúde mental e emocional é altamente problemático. Será que um psicopata perfeitamente feliz e realizado com seu comportamento deve ser classificado como num estado psiquiatricamente patológico? Ou simplesmente como um perigo objetivo aos outros? Será que alguém que decida permanecer com seu cônjuge alcoólatra devido a sentimentos de amor e fidelidade deve ser classificado como autodestrutivo e masoquista? Ou pelo contrário, como idealista e nobre? E se o cônjuge não for alcoólatra mas sofrer um acidente de carro e ficar paraplégico? Alguém que escolha voluntariamente e sem qualquer coação ficar e passar uma vida inequivocamente infeliz ao lado do cônjuge deve ser classificado como emocionalmente perturbado? E se a pessoa estiver *feliz* com essa escolha, deve então ser classificada como delirante? Alguém que *condene* essa escolha deve ser aplaudido, desprezado, ou simplesmente respeitado? Alguém que anseie ser capaz de tais atos de desprendimento deve ser considerado nobre, ingênuo, doente, ou simplesmente portador de uma personalidade?

Espero que com esses poucos exemplos – seria muito fácil construir mais – esteja claro que “saúde mental” dificilmente pode ser reduzido a “felicidade pessoal” sem esbarramos em sérios problemas.

Infelizmente, porém, existe modernamente uma tendência bastante forte de encarar saúde mental exatamente desta forma, isto é – se o sujeito é capaz de funcionar socialmente, e está feliz com seus próprios estados mentais, então como regra geral está tudo bem. Ao diagnosticar grande parte dos distúrbios emocionais e de comportamento como patológicos ou não, grande atenção é dada a como tais comportamento e estados mentais de fato afetam o bem estar – objetivo e/ou percebido – do paciente, e quaisquer determinações de patologia são em grande parte assim relativizadas. Então se eu sinto uma necessidade incontornável de lavar as mãos 10 vezes antes de sair de casa enquanto canto “parabéns pra você” mas estou perfeitamente feliz com isso e isso não prejudica em nada a minha rotina, então boa sorte para mim. Por outro lado se eu me sinto compelido a executar exatamente o mesmo ritual mas isso me causa imensa angústia e perturba minha capacidade de chegar nos meus compromissos a tempo e eu não sei administrar essa idiosincrasia como parte de uma rotina funcional, então eu tenho um problema.

Isso tudo parece muito razoável e flexível e coisa e tal e inclusive foram considerações como essas – em grande medida substituindo o temível e opressivo critério de “normalidade” – que levaram ao questionamento e eventual – bem vindo – repúdio da classificação de diversos comportamentos estatisticamente desviantes – por exemplo homossexualidade – como sendo supostamente merecedores de um diagnóstico patológico para o qual devemos desenvolver um “tratamento”. Afinal de contas, ter um QI de 140 ou ser capaz de compor sinfonias é muito mais raro do que ter tendências homossexuais e ninguém vê necessidade de encontrar “curas” para isso.

Esse paradigma porém, útil e benéfico que seja para questionar a perversa identificação entre desvio e patologia, esbarra em sérias limitações quando buscamos usá-lo como único critério para diagnóstico e tratamento. Revisitemos variações dos exemplos acima apresentados. Suponhamos que alguém procure um terapeuta e diga “Meu cônjuge sofreu um acidente de automóvel e ficou paralítico e desde então eu tenho estado muito infeliz. Essa relação não tem mais como satisfazer profundas aspirações que eu tenho para o resto da minha vida e eu não quero permanecer nela. Porém eu me sinto profundamente comprometido em ficar, me parece uma traição inaceitável simplesmente ir embora. Que devo fazer?”

Naturalmente que a maioria absoluta dos terapeutas não responderá com sugestões assertivas sobre qual caminho seguir. Ao invés disso, buscará “auxiliar” o paciente no processo de autoinvestigação de suas possibilidades, de seus desejos, de seus motivos, de suas necessidades, etc. E a expectativa – ou pelo menos o objetivo – é de que o paciente se tornará então progressivamente mais capaz de tomar por si mesmo decisões progressivamente mais centradas e mais coerentes tanto com realidades externas como internas, sejam quais forem. Parece bastante razoável.

Só que em primeiro lugar, é uma ficção total esperar ou mesmo sugerir que o terapeuta não tenha, sim, uma – forte – opinião sobre o que o paciente deveria fazer, e é uma ficção em cima dessa ficção achar que seja possível esconder essa opinião. Aliás, muito pelo contrário – ao buscar reprimir ou ocultar sua própria opinião sobre o que o paciente deveria fazer, o terapeuta passará a expressar seus sentimentos e julgamentos sobre o assunto de forma subliminar e o resultado será um “diálogo” manipulativo e farsesco, no qual os – indeléveis e indisfarçáveis – estados mentais do terapeuta permanecerão ostensivamente presentes como subtexto que contorna o senso crítico sem que jamais o paciente tenha uma oportunidade honesta de desafiá-los abertamente. Inclusive na maior parte das vezes o paciente, em busca da aprovação do terapeuta, articulará tais idéias jamais verbalizadas pelo terapeuta como sendo suas próprias, grande parte das vezes acreditando sinceramente que o sejam.

Por um lado, de fato esse fenômeno pode ser usado como “ferramenta terapêutica” para induzir pacientes a questionarem posições e estados mentais que jamais questionariam diante de um ataque direto, e a considerar idéias que parecem ameaçadores demais se apresentadas explicitamente. Por outro lado, quando induzimos qualquer um a desligar seu senso crítico e criamos uma situação na qual previsivelmente a busca de aprovação tornará o paciente vulnerável a dizer basicamente qualquer coisa, a autenticidade do processo como jornada de auto-descoberta se torna altamente questionável, e a distinção de pura e simples lavagem cerebral fica perigosamente nebulosa.

Mais muito pior e mais danoso do que ser uma ficção total que o terapeuta seja neutro é o próprio projeto – falhado que seja – de pretender ser “neutro”. Note-se, ao validar essencialmente *quaisquer* decisões que um paciente tome, desde que sejam “equilibradas”, desde que promovam o “bem-estar” do próprio paciente dentro dos limites do civilizadamente aceitável, estamos basicamente promovendo o mais profundo egoísmo. Sim, egoísmo civilizado e sofisticado e moderníssimo – mas egoísmo assim mesmo. Então se um homem diz “estou infeliz no meu casamento, vou deixar minha mulher e meus dois filhos e recomeçar minha vida sem o fardo de ter essas restrições a minha independência”, se uma filha diz “vou internar minha mãe num asilo porque está muito chato cuidar dela”, se uma esposa diz “meu marido perdeu o emprego e está muito deprimido, isso está muito incômodo, acho que vou dizer que estou saindo de casa”, todas essas proposições partem do princípio geral de que A FELICIDADE DOS OUTROS NÃO É MINHA RESPONSABILIDADE. Aceita-se a premissa de que prejudicar ativamente os outros não é civilizado, mas sair do seu caminho para proteger o bem estar dos outros já é pedir demais. Eles que cuidem de si mesmos. E o terapeuta acaba em muitas circunstâncias provendo precisamente a validação necessária para o paciente, sufocando protestos de sua própria consciência, introjetar essa atitude como saudável e positiva.

Ao que eu afirmo : essa posição é tão cheia de problemas éticos que se precisa de explicação a explicação provavelmente será inútil.

Para começar, genericamente, acreditar seriamente na idéia de que se não é sua culpa então não é seu problema demonstra sério retardamento moral.

Isso já seria perverso como ideologia adotada espontaneamente, mas ao incentivar dentro de uma relação de autoridade a noção de que seria um comportamento saudável e condutor ao equilíbrio emocional desligar-se do sentimento de que somos SIM éticamente responsáveis pela felicidade dos outros, o terapeuta dá permissão ao paciente para desconectar-se de sua humanidade, para caminhar essencialmente em direção à psicopatia, uma permissão que empiricamente – e não só nos experimentos de Milgram, mas em muitíssimo outros contextos, desde nazismo até inquisição – tem um enorme poder de transformar pessoas de outra forma decentes em robôs indiferentes diante das mais impressionantes manifestações de sofrimento humano. Então eu estar mencionando terapeutas aqui é quase acidental; é apenas a forma como isso ocorre em círculos abastados ocidentais pós-modernos. Qualquer figura de autoridade serviria potencialmente para produzir o mesmo efeito; apenas esta é uma que convencionamos aceitar como tal diante da falência da legitimidade de outras.

Agora, o tipo de terapeuta ao qual me refiro não para em advogar, por vezes até mesmo explicitamente, e com literalmente essas palavras, que “a felicidade dos outros não é sua responsabilidade”, como se fosse uma grande e profunda revelação mística. Uma à qual qualquer um vulnerável e confuso e em sofrimento muito facilmente sentirá grande tentação de se agarrar. Afinal, enxergar-se como moralmente implicado no bem estar e na felicidade de outros de fato é uma enorme responsabilidade. Só que a pergunta – originalmente e deliberadamente retórica – “por acaso sou guarda de meu irmão” é já em si mesma um triunfo de desonestidade. O grande alívio produzido por quem venha lhe dizer vindo de uma posição de autoridade que a resposta poderia ser “não, você não é” explora o medo e as fragilidades emocionais de um ser humano em sofrimento da forma mais vil. Essa arquetípica situação nos remete à cena crucial de “A Última Tentação de Cristo” em que ele, pregado na cruz, sofrendo absurdamente, e agonizante, diz “Meu pai, por que me abandonaste?”… para então ver descer do céu um anjo que diz “Você já sofreu o suficiente, já fez o seu trabalho… não precisa seguir adiante, desça da cruz, vai ficar tudo bem…” E Cristo, confuso, em choque, mas imensamente aliviado, desce da cruz e vive uma existência vazia de significado na qual assiste tudo aquilo por que lutou desmoronar em pedaços. E eventualmente, prestes a morrer de velhice, percebe que traiu a si mesmo e à sua consciência, e que o suposto anjo era o demônio (o qual evidentemente é muito mais sedutor vestido de anjo e pregando que ao fazermos o que nós é conveniente estaremos fazendo a coisa certa).

Não, o tipo de terapeuta ao qual me refiro não para em simplesmente promover essa atitude psiquicamente desestruturante na qual pessoas basicamente saudáveis são encorajadas a agirem psicopaticamente, a acreditarem que o mais fácil e conveniente e superficialmente vantajoso para elas mesmas seria o saudável e correto. Não, junto com as idéias fornecem-se alguns mecanismos mentais para justificar e sustentar essa charada, dado que qualquer pessoa normal sente um instintivo desconforto com a idéia de que a felicidade dos outros não seria sua responsabilidade. Buscar “superar” e “desconstruir” e renegar esse desconforto como simplesmente neurótico e pouco saudável é um objetivo perverso que porém infelizmente parece ser um dos grandes triunfos da “modernidade”.

E então como sustentáculo dessa perversidade promovem-se noções como a de que apelar para a empatia, os sentimentos, a humanidade dos outros seria intrinsecamente desonesto e inaceitável. Que seria no pior caso hipócrita e mentiroso, e no melhor caso possível, de extremo mau gosto e manipulativo. Que olhar para alguém e dizer “Mas você não vê o quanto está me magoando?” não só não serviria como argumento como denotaria uma tentativa do interlocutor de usar contra você os seus próprios neuróticos e indesejáveis sentimentos de responsabilidade pela felicidade alheia. “Como você ousa me fazer sentir mal por minhas ações causarem o seu sofrimento?!” O truque de prestidigitação ética é desqualificar automaticamente qualquer apelo à sua consciência como chantagem emocional.

Claro, alguém que de fato invente motivos delirantes para se sentir ofendido ou magoado pelas mais inócuas ações alheias, ou que se coloque deliberadamente em posição autovitimizante imaginada ou real, e então venha tentar usar isso como forma de instigar sentimentos injustos de culpa e responsabilidade nos outros está de fato abusando da compaixão alheia. Mas em muitos outros casos o sofrimento dos outros é real e a responsabilidade não é uma fabricação. Se você encoraja alguém, digamos, a largar seu emprego e se mudar para o Alasca para casar com você e aí quando você chega lá a pessoa diz “Ah, sinto muito, mudei de idéia, a gente se vê por aí, valeu? Vai embora e não enche o saco.”, exclamar diante disso “Peraí, isso não é razoável, você não vê a posição em que está me colocando?” não é uma reação imatura, ou manipulativa, ou inadequada, muito pelo contrário.

Além disso, embora seja perfeitamente legítimo considerarmos nossos próprios interesses como crucialmente importantes, existe aí uma medida e uma escala. Se os seus menores e mais fúteis interesses consistentemente se sobrepõem aos mais profundos e essenciais interesses alheios, sinto informar, mas você é um psicopata. A idéia de que os seus próprios interesses em quaisquer circunstâncias tenham total precedência sobre quaisquer interesses alheios torna qualquer noção de responsabilidade ética risível. Na verdade, diria eu, o fundamento mais essencial de qualquer ética que eu considere não perversa está precisamente no principio de que seu próprio bem estar *não* tem precedência sobre quaisquer outras considerações.

Então por mais que apelos à consciência e à solidariedade e à sua responsabilidade com o bem estar alheio de fato se prestem a farsas e manipulação, querer classificá-los em bloco – especialmente quando você está diretamente implicado – como “chantagem emocional”, isso sim é que é no mínimo hipócrita e no pior caso psicopático. E querer reprimir em si mesmo os próprios sentimentos espontâneos de solidariedade como neuróticos, e comprar a idéia de encarar qualquer tentativa de suscitá-los como manipulativa, tudo isso leva ao mais destrutivo egocentrismo solipsista. O qual, por outro lado, naturalmente, não só não é logicamente incompatível com a felicidade pessoal, mas mesmo que fosse, este seria um argumento meramente utilitário. Então, no final das contas, como sempre, é uma escolha. É uma escolha sobre que tipo de pessoa você quer ser, e que tipo de universo você quer ajudar a construir.

2 Responses to “Chantagem Emocional”

  1. Juliana says:

    Eu concordo em grande parte com o que você disse sobre psicanalistas, mas paro por aí. De resto, não entendo bem qual é a sua posição. Se você acha que a felicidade dos outros *é* sua responsabilidade, então você acha que, por exemplo, um homem ao perceber que sua esposa tem necessidades contraditórias às dele deve (1) ir embora (2) ceder às necessidades dela ou (3) exigir que ela ceda às dele? A última é a mais egoísta, e infelizmente, a meu ver, é a que a maioria das pessoas costuma seguir.

    Eu tenho uma outra opinião sobre se a felicidade dos outros é minha responsabilidade ou não. Se eu não estou feliz, eu não sou capaz de proporcionar felicidade a ninguém. Ter alguém te servindo que claramente está infeliz com aquilo não agrada a *ninguém*. Então, pode até ser que seja minha responsabilidade, mas os *meios* que eu tenho para cumprir esta responsabilidade passam por garantir a minha própria felicidade. Buscar a minha e buscar a do outro não estão em oposição – ainda bem!

    Basta eu me livrar da angústia interna de resolver o momentâneo, de usar a solução gulosa que otimize a felicidade da pessoa que está do meu lado aqui e agora, mas sem me preocupar se isso se sustenta a longo prazo. Me livrando disso, eu posso pensar em soluções mais robustas para a *minha* felicidade, que a longo prazo terminam inevitavelmente por maximizar a felicidade dos outros também. Pode ser que a princípio cause algum desconforto a alguém. Mas é preciso se desprender desse fato e mirar no futuro um pouquinho mais longe, onde você é uma pessoa melhor, e capaz de fazer mais bem do que é hoje.

    Você coloca as coisas muito em preto e branco. Considerar a sua própria felicidade primordialmente não é psicopatia; é a única coisa que você pode fazer. O único critério que você tem. Você não está qualificado para saber o que é melhor para outra pessoa. Já é complicado o suficiente saber o que é melhor para si mesmo.

    Eu sei que isso é um clichê, mas você conhece aquela história da mulher que vendeu o cabelo para comprar uma corrente para o relógio do marido e ele vendeu o relógio para comprar uma escova para o cabelo dela. Isso é o que acontece quando as duas pessoas vivem pensando na felicidade do outro antes de na própria. Ninguém fica feliz de verdade. E este é o *melhor caso*. O pior é quando uma pessoa pensa “eu primeiro” e a outra pensa “você primeiro”. Esse é o tipo de relação sugadora que tantas pessoas têm, onde um efetivamente é dono do outro.

    Em vista disso, eu acho perfeitamente razoável concluir que a única escolha saudável é ambos pensarem “eu primeiro” e lidar com o fato de que nem todas as pessoas são compatíveis com todas as outras. Às vezes, por mais que a gente quisesse ficar com uma determinada pessoa, o certo é se separar, mesmo, e não ficar fazendo mais e mais concessões para “ver se agora dá certo”.

    • Ok, sobre a escolha entre (1), (2) ou (3) no primeiro parágrafo, a minha posição pessoal é none of the above. Coloquemos assim : o que vale para mim tem que valer pro outro também. Então se por um lado numa relacão saudável a felicidade do outro é sim a meu ver em parte minha responsabilidade, o reverso também vale. A minha suposição é de que ambos temos a capacidade de fornecer com um custo administrável coisas que sem a nossa ajuda teriam para o outro custo muitíssimo maior ou mesmo seriam impossíveis de obter. Claro que se o custo for inadministrável para qualquer um dos dois então só resta mesmo a opção (1). Mas o projeto é tentar encontrar uma forma de ambos terem colaborativamente suas necessidades satisfeitas de uma forma que nenhum dos dois esteja fazendo algo inadministrável. Então seria o caso de ambos sentarem e honestamente conversarem sobre suas necessidades e ambos cederem o suficiente para que seja possível chegar a um plano viável. Claro que um pré-requisito para isso fazer qualquer sentido é haver honestidade e confiança – assim como autoconhecimento e maturidade – suficientes para cada um entender minimamente do que precisa, o que é capaz de dar, e ser franco sobre isso. Então para fazer referências às opções apresentadas, seria uma espécie de compromisso negociado e voluntário e mutuamente benéfico – se isso for possível – entre (2) e (3).

      Note, e eu quero deixar isso abundantemente claro – é um contrato. Ninguém “tem” que fazer nada, e apelar para a ética ou a moralidade ou a tradição para dizer que o outro tem a “obrigação” de fazer qualquer coisa, para “exigir” que o outro faça qualquer coisa, é como abordar uma pessoa aleatória “exigir” que ela venda seus sapatos para você. Não interessa você argumentar que está oferecendo um preço justo ou mesmo vantajoso; é prerrogativa livre da pessoa concordar ou não.

      Agora veja, isso é como eu acho que deveria ser. Eu concordo plenamente que a maioria absoluta das pessoas faz (3) sem muita – ou nenhuma – hesitação, e então a relação se baseia em “como eu posso melhor forçar / manipular / chantagear o outro para que ele me dê o que eu quero comigo dando o mínimo possível em troca”. Eu afirmo que mesmo fatorando ressalvas éticas, esse é um modelo idiota e subótimo para se relacionar com os outros. Mas aí é o dilema do prisioneiro : precisamente porque esse modelo é subótimo e imbecil e seria totalmente absurdo segui-lo, você pode esperar que o outro *não* vá segui-lo, logo você pode esperar que o outro se importe com seu bem estar, logo a estratégia racional é ser egoísta porque só um idiota não o seria – mas se todos o forem é vantajoso ser a exceção. Então todos resolvem ser a exceção e caímos numa solução absurdamente subótima na qual *todos* são muito mais infelizes do que se fossem um pouco menos egoístas.

      Sobre o que você diz no segundo parágrafo, bem, é como a máscara de oxigênio no avião – primeiro você precisa conseguir respirar para depois poder ajudar qualquer um. Até aí concordo. Porém meu ponto é que não raro as trocas entre agentes são da seguinte natureza. Eu faço algo por você que para mim custa x mas que para você tem benefício 10x. Então nesta troca em particular eu cedi, e perdi, e não ganhei nada. Eu perdi x e você ganhou 10x. Mas numa relação continuada de confiança mútua, mais adiante possivelmente surgirá uma situação na qual o reverso será verdade : surgirá a oportunidade para um troca que terá para você custo x e que para mim terá benefício 10x. Claro, evidentemente que se eu não puder arcar com custo x e isso for me destruir, não é uma opção. Mas se for administrável arcar com esse custo, então esse é um excelente INVESTIMENTO para ambos. Pensar cegamente “ah, mas eu estou perdendo x e você está ganhando 10x, então não vou fazer” é totalmente míope. Claro, nem todas as pessoas são capazes de fazer trocas desse tipo com você de forma mútua, e eu não estou defendendo que um dos lados fique repetidamente perdendo x e o outro ganhando 10x “porque afinal de contas não custa nada pra você”. Mas esperar que fazer a felicidade do outro sempre passe por no mesmo processo e imediatamente fazer algo que vá te deixar feliz é perder enormes oportunidades para benefício mútuo. Então isso vale MESMO quando existe oposição – desde que exsta lucro líquido. A idéia de que “eu só vou fazer o que eu quiser” é como querer que o sujeito do McDonald’s ache lindo fazer sanduíches para você e esteja cozinhando porque te servir é maravilhoso e não porque você esteja dando dinheiro. E ficar revoltado por “bleh, ele deveria me dar um sanduíche porque eu estou com fome e não porque eu estou pagando”. De certa forma a minha visão é ainda mais pragmática e realista do que a sua. :-) Tipo, vamos falar sério. :-) Eu quero x, você tem x. Você quer y, eu tenho y. Eu não quero te dar y. Você não quer me dar x. Mas por outro lado se eu quero x muito mais do que você não quer me dar x e se você quer y muito mais do que eu não quero te dar y, então nós dois combinamos voluntariamente você me dá x e eu te dou y e ambos saem mais felizes do que antes. Se fechar em “mas eu não quero dar x” é míope. Colocar ideologia no meio e achar que está sendo oprimido porque não está fazendo o que quer é jogar fora toda a idéia de mercado.

      Sobre o terceiro parágrafo, pois é, eu estou dizendo justamente que a solução gulosa freqüentemente não é a globalmente ótima, mesmo que possa ser localmente a mais racional do ponto de vista de cada agente. Isso é precisamente o ponto do dilema do prisioneiro. E eu acho que relações de longo prazo fazem sentido como um projeto colaborativo em comum com vantagens objetivas e não como uma missão mística a ser preservada a todo custo.

      Sobre o quarto parágrafo, eu não acho que seja psicopático considerar seriamente a sua própria felicidade como parte da equação. Isso é perfeitamente legítimo, e é a parte do objetivismo com a qual eu concordo. O problema não é ter auto-estima ou querer se preservar; o problema vem quando isso é a única coisa que você está tentando fazer e o bem estar dos outros passa a ser irrelevante quando não tem qualquer impacto sobre o seu. Isso sim eu chamo de psicopático. Sobre como colaborar para atingir a felicidade alheia, bolas, é claro que isso é complexo, e aprender a fazer isso de forma remotamente competente exige muita comunicação e convivência e diálogo. Daí a relevância das relações de longo prazo. Agora, meu ponto é que alguém que se deu ao trabalho de deliberadamente buscar aprender a fazer você feliz – e que evidentemente tenha os recursos e a competência para tanto – tem o potencial de atingir esse objetivo MUITO melhor e muito mais consistentemente do que uma pessoa escolhida aleatoriamente para uma relação superficial. Interessa aos dois embarcar num projeto deste tipo. Mas sem choraminguelas do tipo “ah eu não quero fazer x”. É claro que não quer, assim como você não quer dar 50 mil dólares para o dono da concessionária. O que você de fato quer é o seu carro esporte. Tá, talvez você não TENHA 50 mil dólares para dar, aí é outra questão. Mas se você tiver, e em troca for receber algo que para você vale 200 mil, então ficar se achando oprimido por estar dando 50 mil é ridículo. Naturalmente que para que isso funcione é preciso estar com alguém que possa e saiba te dar coisas de grande valor e não um fusca. O que novamente nos leva à questão de que ambos se darem ao trabalho de figure out como fazer o outro feliz (ao invés de cada um simplesmente fazer cegamente o que quer e só se der sorte de combinar) é uma estratégia muito mais próxima do ótimo. Hehe na verdade a sua opinião é que é hippie comparada com a minha. :-) Você está dizendo que cada um faz o que quer e se interessar aos outros, ótimo, se não, azar. Eu estou dizendo que faz sentido sair do meu caminho pra fazer algo que de fato deliberadamente interesse aos outros porque com isso conseguirei obter um retorno muito maior para o meu investimento. :-)

      Quanto ao quinto parágrafo, sim, claro, eu conheço a história. Claro, isso não é modelo de como fazer as coisas. Cada um saiu fazendo o que aleatoriamente achava que ia fazer o outro feliz, sem haver diálogo nem planejamento conjunto. Tem que ser realmente um ato de cumplicidade e um contrato – algo negociado e conversado, e não sacrifícios aleatórios. E absolutamente ninguém tem mesmo que ser “dono” de ninguém, não mais do que digamos o seu senhorio ou o seu chefe no trabalho é seu dono. Você entrou num acordo voluntário que teoricamente é benéfico para ambos. Se você aceita restrições específicas à sua liberdade – como de fato aceita ao por exemplo aceitar um emprego – tem que ser porque claramente na sua mente isso te interessa e talvez no somatório até mesmo aumente a sua liberdade ou te dê acesso a coisas que de outra forma não teria acesso. Ficar reclamando que seu senhorio está te oprimindo porque quer receber o aluguel é ridículo. Agora, claor, tem que ser um contrato negociado para benefício de ambos e não um sacrifício ritual aleatório no altar do pseudoaltruísmo autovitimizante.

      Sobre o último parágrafo, eu acho o seguinte. Minha tese é de que uma relação na qual os dois juntos concebem um plano administrável e sempre em aperfeiçoamento para ceder organizadamente e negociadamente de forma a maximizar o lucro total é potencialmente MUITO melhor do que cada um fazer só o que quer e se calhar de coincidir ótimo. PORÉM por vezes pode ser o caso de que as necessidades dos dois sejam incompatíveis e inconciliáveis e um não tenha recursos para de forma administrável dar o que o outro precisa. E de fato é muito complexo decidir quando chegou a hora de desistir de tentar coisas aleatórias para “ver se agora dá certo”. Mas com certeza não acho que seja um dever moral de nenhum casal ficar tentando eternamente custe o que custar aprender a fazer o outro feliz. Por vezes não dá mesmo, e não tem o que fazer. Não acho que devam diante disso passar o resto da vida torturando um ao outro. Infelizmente quanto maior o investimento já feito, mais complexo é deixar tudo para trás. Então vezes demais as pessoas escolhem rather bear those ills we have than fly to others that we know not of.

      Saudações,
      Sergio

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