Dawkins

July 11th, 2009 by Sergio de Biasi

Como todos por aqui a essa altura provavelmente já estão cansados de saber, eu sou 110% ateu. Porém, ou talvez coerentemente, sou radicalmente contra aceitar acriticamente as pregações de quem quer que seja, incluindo – e aliás, principalmente – as que parecem confirmar as coisas que me agradam ou que eu gostaria que fossem verdade.

Dentro desse espírito, mesmo admirando a paciência e a determinação de Richard Dawkins em enfrentar todos os aborrecimentos decorrentes de buscar combater a religião como agente universalmente catalisador de ignorância, intolerância e fanatismo, não parto do princípio de que tudo o que ele diz seja automaticamente lindo e maravilhoso e certo, nem idolatro sua pessoa, nem tenho qualquer vontade de me tornar seu discípulo (nem de ninguém mais, aliás).

Muitas coisas podem ser ditas sobre Dawkins com variável grau de razoabilidade. Pode-se dizer que ele teria se tornado tão intolerante quanto aqueles que critica. Eu não concordo, mas não é uma crítica absurda, e é um risco constante quando se entra num debate acirrado. Pode-se afirmar que ele não conheceria de forma suficientemente profunda as religiões que critica. Eu também não concordo, mas novamente, ter um PhD e prestígio não tornam ninguém automaticamente especialista em tudo, então uma crítica nessa direção não é algo que deva ser descartado sem reflexão. Como essas poderiam ser feitas muitas outras meritórias de consideração.

Agora, dizer que Dawkins seja *burro* decididamente não é uma delas. Não passa nem perto. Suas credenciais acadêmicas e profissionais como pesquisador, professor e escritor são estelares. Criticar Dawkins atirando-lhe o rótulo dé “burro” é tão pueril quanto criticar o papa atribuindo-lhe o mesmo adjetivo. Nenhum dos dois tem nem um pouco de burro, e afirmar o contrário equivale a querer ganhar um debate chamando o oponente de cara de mamão.

Agora, para acrescentar vários níveis de ironia e constrangimento a isso, se o problema é a palavra “provavelmente”, Dawkins foi explicitamente contra ela. Aliás, a campanha dos ônibus não foi inicialmente nem sequer concebida por ele, e sim por uma jornalista inglesa, a qual aliás agiu motivada por achar que os cristãos estavam agindo de forma psicologicamente abusiva ao promoverem incessantemente a idéia de que quem não seguisse os preceitos de sua religião passaria toda a eternidade sendo torturado. Claro, os cristãos podem fazer isso sem problemas e chamar ateus de perversos, maus, pecadores e perdidos. Mas se alguém decide educadamente dizer que as crenças dos cristãos estão erradas – ah, isso é completamente inaceitável. Hipocrisia total, como de costume.

Dawkins acabou apoiando a campanha, por achar que ela tinha mérito, mas declarou explicitamente que na opinião dele seria mais adequado dizer “There is almost certainly no God.”, sendo que o “almost” fica por conta da consideração prudente de que nosso conhecimento e nossa capacidade de intelecção são evidentemente finitos e possivelmente falhos, e que isso representa apenas o melhor que podemos concluir diante do que sabemos. Aliás, note-se que não costuma ocorrer aos católicos modéstia intelectual similar de dizer algo como “Quase certamente há um deus.” ou “Provavelmente deus existe.” E são essas pessoas que vêm falar de discurso dogmático? Por favor.

Sobre a eternidade ser um custo infinito, esse argumento sim é patético e vexaminoso de tão primário. Ora, eu poderia atribuir todo tipo de conseqüência eterna terrível para os mais variados comportamentos e não segue daí que você deva então seguir minhas recomendações na hipótese improvável de eu estar certo. Inclusive religiões diferentes recomendam coisas diferentes, mutuamente exclusivas, e igualmente condutoras à danação. E aí? Essa linha de argumentação é ridícula. O que precisa ser estabelecida é a credibilidade da afirmação que exista uma punição eterna, não o quanto ela seria horrível se fosse real.

E sim, muito objetivamente, as religiões, em particular a católica, aterrorizam as pessoas mais crédulas e emocionalmente vulneráveis com essa ameaça constante de danação se não forem suficientemente submissas e obedientes. Essa preocupação é muito real para uma grande parcela dos atingidos por esse discurso despersonalizante, e atrapalha, sim, terrivelmente que as pessoas simplesmente aproveitem suas vidas e vão vivê-las em paz de acordo com suas consciências. Aliás, eu pessoalmente iria ainda mais longe e acharia ótima uma campanha que dissesse “Deus obviamente não existe. Pare de se submeter aos que dizem representá-lo e siga sua consciência.” Claro que infelizmente quem é capaz de seguir esse conselho não precisa dele.

Dirigindo em Nova York

July 11th, 2009 by Sergio de Biasi

Quando eu me mudei para Nova York, uma das providências que eu tomei foi vender meu carro e não comprar outro. Em Nova York, ter um carro não é apenas desnecessário. É inútil. Além de um aborrecimento constante.

Aliás, um parêntesis aqui. Quando digo Nova York quero dizer Manhattan. Que é a imagem internacional que as pessoas fazem de Nova York. Mas a cidade na verdade é muito mais do que isso, assim como o Rio de Janeiro é muito mais do que, digamos, a Zona Sul e a Barra. E nem todas as regiões da cidade são, digamos, igualmente bem consideradas socialmente. Dizer por exemplo que você mora no Queens ao invés de em Manhattan tornará você instantaneamente intocável em certos contextos sociais. Eu poderia fazer comparações, mas acho que cada um pode inventar as suas. O fato é que existe um fator “ugh” instantâneo e claríssimo quando se diz para um habitante de Manhattan que você habita no Queens. É como se você sofresse um rebaixamento instantâneo e incontornável de status. Do tipo “ah, ok, eu tinha pensado que você fosse gente”. Nas primeiras vezes em que eu observei esse fenômeno eu nem sequer entendi o que estava acontecendo. Posteriormente ficou mais claro que era isso mesmo.

Mas enfim, voltando à inutilidade de ter um carro em Nova York. Em primeiro lugar, o metrô vai a absolutamente todos os lugares. É o maior sistema de metrô do mundo e funciona 24 horas. E pelo menos na década atual, perfeitamente seguro. Então não é preciso ter um carro para ir a lugar algum. E na verdade, se você tentar ir aos lugares de carro durante o horário comercial, em geral só vai se aborrecer enormemente, porque o trânsito é caótico e intenso. Aí você chega onde queria ir e absolutamente não há lugar para estacionar. Ou melhor, há se você pagar um absurdo para deixar o carro num estacionamento.

Algumas vezes depois que cheguei em Nova York, eu ainda não tinha percebido exatamente a realidade exposta acima, e ao me ver atrasado para algum compromisso pensei : “Vou tomar um táxi!”. Tentar essa estratégia se mostrou duplamente instrutivo. Em primeiro lugar, porque quase invariavelmente cheguei nos lugares onde queria ir mais *tarde* do que se tivesse pego o metrô. Em segundo lugar, porque andar de táxi em Nova York é absolutamente surreal. Os motoristas *sempre* são imigrantes que não sabem falar inglês direito, não sabem onde fica *nada*, e não raro agem de forma bizarra e/ou agressiva.

Depois de alguns anos em Nova York, porém, mudei-me para New Jersey, que é mais ou menos a Niterói de Nova York. Fica logo ali do lado, dá pra ver do outro lado da água, e dá pra chegar lá de barca.

Em termos automobilisticos, New Jersey é mais ou menos o oposto de Nova York. É completamente impossível não ter um carro. Às vezes eu sinto que aqui é preciso ter um carro até para ir no banheiro. Até a farmácia tem um estacionamento próprio e para fazer qualquer coisa que não seja comprar pão é preciso pegar a auto-estrada. Então naturalmente comprei um carro.

Recentemente calhou porém que eu fui a um jantar em Nova York. Então fui dirigindo, e no processo dirigi de cima a baixo em Manhattan. Aproveitei para registrar algumas cenas na ida e na volta, as quais coloco abaixo.

Nesta primeira seqüência começo ainda mais ou menos no meio de Manhattan, andando ao long da rua 40 depois de sair do Lincoln Tunnel (Aliás, isso foi outra coisa que demorou muito para eu acostumar : grande parte do tempo, não tem essa de rua fulano de tal, é rua 12 paralela à rua 13 cortadas por avenida 3 paralela à avenida 4. Pragmatismo total.) Enfim, eu dirijo para o leste, passo a Madison e então dobro à esquerda onde tem um elevado meio incrível que contorna a Grand Central Station. Com isso eu pego a Park Avenue para o norte, que é onde eu quero chegar; estou indo para o Upper East Side. Notem como é chatíssimo dirigir em Nova York; eu fico parando quase o tempo todo. Perto do final dessa seqüência eu passo na frente do Waldorf-Astoria.

Nesta segunda seqüência eu continuo na Park, mas bem mais ao norte. Nada de realmente interessante acontece.

Ok, agora eu estou voltando pra casa depois do jantar, dirigindo pela Lexington. O trânsito está bem melhor do que mais cedo. Eu vou seguindo por um tempo para o sul e então entro à direta na rua 34, que é a que eu preciso tomar para chegar de volta no Lincoln Tunnel. Logo fica possível ver o Empire State Building, que fica na esquina da 34 com Quinta Avenida, à minha esquerda. Um pouco depois disso, eu cruzo a Browaday e passo do lado da Macy’s do Herald Square, que pode ser vista à minha direita. Continuo para o oeste até chegar a Nona Avenida, e então dobro à direita para pegar a entrada do túnel. Finalmente, entro no túnel, onde passo a dirigir debaixo d’água sob o rio Hudson, que separa Nova York de New Jersey.

Neste última seqüência, eu termino de atravessar o túnel e saio em New Jersey. De brinde para os espectadores eu fico meio que cantando por alguns momentos durante uma parte do “Let There Be Love” do Oasis. Uma grande curva para a esquerda e Manhattan pode ser vista brevemente ao longe, já do outro lado do rio. Nada de particularmente interessante acontece, e eu prossigo dirigindo em direção à New Jersey Turnpike, que quero pegar para ir para o meio de New Jersey. Dá pra ver umas placas indicando que estou chegando na turnpike perto do fim do vídeo.

Vem Chegando o Verão

May 1st, 2009 by Sergio de Biasi

Para quem viu o texto anterior com tudo cheio de neve, aqui está o mesmo trecho de estrada como está agora.

Acima, primavera

E para efeito de comparação, aqui vai o resto da coleção.

Acima, inverno

Acima, outono

Finalmente, de brinde, aqui está a universidade de Columbia na mesma época no ano passado…

Primavera em Nova York

Inverno Para Principiantes

April 27th, 2009 by Sergio de Biasi

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Ao ar livre tudo rapidamente congela

Agora que o inverno está acabando por aqui mais uma vez eu me lembro de como não é a única rotina possível tudo estar sempre congelado e ser necessário um sobretudo para ir até a esquina comprar um jornal.

Uma das – várias – experiências inesperadas que eu tive pela primeira vez depois de me mudar para cá foi tentar sair com o carro de manhã e descobrir que a porta não abria. Destrancar, puxar a maçaneta, quebrar uma camada de gelo em pedaços no processo e… nada. Nem chance de a porta abrir. Então olhei com mais cuidado e percebi que não era só a maçaneta. O carro inteiro estava coberto por uma camada de gelo, enclausurado numa caixa transparente feita de gelo. Ah, mas para isso, claro, todo mundo carrega um raspador de gelo, certo? E eu prevenido que sou havia comprado um! Que estava lamentavelmente dentro do carro. Bem, fui até a esquina e comprei *outro* raspador de gelo e quebrei o gelo em volta da porta inteira até ser possível abri-la pensando quão bizarro aquilo era.

Vejam que tempo lindo

E quando está nevando, é necessário ter algo – idealmente uma espécie de vassourinha – para tirar a neve dos vidros do carro antes de começar a dirigir. E novamente, claro, eu prevenido que sou, eu comprei a vassourinha adiantadamente. E aí quando você vai pro estacionamento várias vezes vê os outros ocupados cavando seus carros da neve antes de poderem sair. Pois bem, depois de fazer isso algumas vezes um dia eu estava dirigindo e fui parar num sinal e plooooooooooffffff ! Tomei um susto enorme e meu para-brisas estava de repente todo coberto. Ocorreu que eu não havia tirado a neve do *teto* do carro e quando eu parei ela escorregou toda pra frente. Mais uma pra ir aprendendo.

Pássaro pensando “Ué, cadê o lago?”

Evidentemente todos os prédios e todos os carros são aquecidos, mas então o que acontece é que quando a gente entra num prédio rapidamente fica com calor se continuar com todas as roupas que estava antes. Então fica um bota-e-tira roupas contínuo, e a coisa mais comum do mundo é ver luvas perdidas no chão, porque as pessoas tiram as luvas, colocam no bolso do sobretudo, e elas caem.

Canibalismo Socialmente Chique

April 23rd, 2009 by Sergio de Biasi

Uma das minhas maiores críticas à religião é o quanto (com raras exceções como certas variações do budismo) ela não só encoraja como literalmente exige do sujeito que desligue o seu senso crítico e a sua consciência e siga cegamente o que os líderes religiosos proclamam.

Muitos religiosos talvez se levantem para dizer que não é nada disso, que a religião é compatível com o senso crítico e com a consciência individual, etc, mas eu estou cansado de argumentar esse ponto. Não, não é. Para se juntar a quase qualquer religião, você tem que prometer que vai acreditar cegamente no que algum (ou alguns) líder religioso disser. Por exemplo, se você resolver se juntar à religião muçulmana, você tem que acreditar no que Maomé disse, como interpretado por Ulemás e coisas parecidas. Se seu senso crítico e sua consciência disserem que pensando bem sobre tal e qual ponto Maomé estava errado, nada feito. Quem está errado é você.

Isso não só gera uma deturpação patológica do senso individual de ética como faz com que as pessoas sejam forçadas a viver num mundo esquizofrênico em que seu modelo de mundo não tem nada a ver com a realidade concreta enquanto seus atos e escolhas de fato ocorrem na realidade concreta. Enquanto as pessoas estão só achando que estão falando com seus antepassados no centro espírita isso ainda pode parecer mais ou menos inofensivo, mas quando começam a querer se curar de câncer com operações espirituais deixa de ser engraçado.

Somando as duas coisas – viver num mundo de fantasia e seguir cegamente as intruções dos líderes religiosos sobre moralidade – resulta em que é possível induzir uma pessoa seriamente religiosa a fazer praticamente qualquer coisa, por mais grotesca que seja, e ela o fará não só acreditando que era a coisa certa a fazer, como que era absolutamente necessária.

Então num contexto religioso vários comportamentos que em outras circunstâncias seriam encarados como no mínimo estranhos e em vários casos francamente patológicos tornam-se não só aceitáveis como normais e até virtuosos. Aí repentinamente condenar à morte uma mulher que foi estuprada (por ter tido sexo sem ser casada) torna-se um ato moralmente justo e necessário. Não que seja impossível esse tipo de situação acontecer sem religião; sempre haverá pessoas com preconceitos absurdos querendo realizar atrocidades. Mas a religião provê um arcabouço cultural e psicológico para validar e incentivar tais aberrações, dizendo “não olhe para este ato de violência em si mesmo, enxergue como o significado transcendente dele num contexto maior é na verdade positivo”. Daí as pessoas saem a fazer coisas que sem a validação provida pela religião muitas vezes elas mesmas encarariam como altamente duvidosas.

Imagine por exemplo se eu propusesse uma religião com as seguintes características. Periodicamente nós vamos nos reunir num ritual em que encenaremos canibalismo enquanto simultaneamente usamos drogas. Como parte do ritual, seremos informados e lembrados sobre que opinião devemos ter sobre determinados assuntos. Ter opiniões contrárias não é uma opção; estaremos literalmente sendo instruídos sobre qual deve ser a nossa opinião, como revelada diretamente pelo criador do universo aos nossos líderes religiosos, e reportada a nós por um líder religioso presente, e como parte do ritual pode-se pedir de nós que declaremos solenemente que de fato acreditamos nessas verdades sobre as quais fomos instruídos. Deixar de seguir as conseqüências lógicas de tais opiniões, ou mesmo conhecê-las, porém, não é o que realmente se pede de nós. Se formos extensamente ignorantes sobre em que deveremos acreditar e mesmo se agirmos de forma precisamente contrária, tudo estará bem, desde que reafirmemos nossa convicção de que acreditamos que essas são as opiniões certas. Não existe crime maior, porém, do que questionar essas opiniões; é parte fundamental do sistema de pensamento desta religião que não seguir cegamente seus líderes indica uma falha moral absolutamente indesculpável, imperdoável e intolerável que será punida pelo criador do universo com, literalmente, tortura por toda a eternidade, ou mesmo com tortura e morte neste mundo nos casos em que houver poder político para tanto.

Eu poderia continuar, mas acho que já está bem ilustrado. O que eu disse acima, evidentemente, descreve alguns aspectos de um subconjunto dos rituais praticados na religião católica. Uma parte substancial do que ela faz e ensina seria encarado com horror e repúdio se apresentado em qualquer outro contexto. Mas doses maciças de lavagem cerebral e de pretender oferecer respostas a questões fundamentais para as quais não existe realmente uma resposta conseguem tornar socialmente aceitável que pessoas sob outros aspectos normais e razoáveis se reunam semanalmente para encenar canibalismo.

Nuvens de Palavras

April 21st, 2009 by Sergio de Biasi

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Para quem não conhece, existe um site / projeto / programa chamado Wordle que toma listas de palavras – que podem ser extraídas automaticamente de um site – e produz imagens com base na freqüência relativa das palavras. O resultado é surpreendentemente interessante e esteticamente agradável. Por exemplo, para oindividuo.org, o Wordle produziu a imagem acima, que acho que de alguma forma representa um instantâneo da minha personalidade.

Sobre a Futilidade de Querer Ser o Outro

April 17th, 2009 by Sergio de Biasi

Escrevo este texto em parte motivado por este texto aqui (que agora está aqui) do Pedro no qual ele diz que

O “parisiense” é uma abstração. É melhor e mais vantajoso querer ser Baudelaire do que querer mostrar-se “parisiense”.

Sobre isso, eu comento o seguinte.

Eu entendo perfeitamente sob que métrica querer ser Baudelaire é melhor do que querer ser parisiense. Qualquer um pode, em princípio, ser parisiense, sem precisar para isso realmente de grandes méritos ou sequer realmente grandes esforços. Mude-se para Paris e fique lá tempo suficiente. Se o sujeito não for uma ostra e um retardado completo (tá, nem todo mundo vai atender a esse pré-requisito, mas se ele for atendido), ele vai aprender francês, e conhecer a cidade, e eventualmente poder com pleno direito ser chamado de parisiense, mesmo que tenha nascido em Novosibirsk. E daí? Se for uma mera questão de “status” ou deslumbramento com sentir-se por osmose identificado com Baudelaire – e é entre muitos outros motivos de pessoas como Baudelaire que vem o status de ser parisiense – então é como achar que se você comprar muitos livros ficará automaticamente culto. Então, em resumo, eu entendo sim a futilidade de querer ser “parisiense” ou similares.

Por outro lado, e é aí que vem a minha observação, querer tornar-se Baudelaire não me parece um objetivo melhor. Note-se, tornar-se parisiense pelo menos é um objetivo atingível (tanto quanto seja possível capturar a abstração do que seja ser parisiense). Mas tornar-se Baudelaire não é. É fisicamente impossível tornar-se, no sentido literal, Baudelaire. (Isso me lembra “Quero Ser John Malkovich“, uma original parábola sobre querer ser o outro.)

Então a única forma coerente de entender essa afirmação é como metáfora. Não é tornar-se Baudelaire, e sim Baudelariano, à altura de Baudelaire, ou como Baudelaire. Mas aí começamos a escorregar para o mesmo tipo de abstração que é a de ser “parisiense”. Quem julga ou como medir se somos suficientemente “como Baudelaire”? E que tipo de similaridades estamos buscando? Certamente não se trata de vestir as mesmas roupas ou ter a mesma aparência. Provavelmente também não se trata de ter o mesmo caráter ou acreditar nas mesmas idéias. Será que é escrever no mesmo estilo? Provavelmente também não. Imagino que seja mais na direção genérica de escrever com a mesma qualidade. Ou ter o mesmo impacto na cultura humana. E a esse ponto já não abstraímos o Baudelaire a ponto de não restar mais do que um fiapo do ser humano Baudelaire? Já não se torna algo tão abstrato quanto, bem, como querer ser parisience? Afinal, quem quer ser “parisiense” no fundo anseia pela identificação genérica com tudo que Paris represente, inclusive Baudelaire. E se nos é permitido argumentar que não é por motivos fúteis sobre Baudelaire, me parece muito razoável que se possa argumentar que não seja por motivos fúteis sobre ser parisiense. Ou será que por acaso o próprio Baudelaire era parisiense pra ficar contando vantagem? Alías, da mesma forma, poderíamos argumentar que Baudelaire era Baudelaire só para poder ficar contando vantagem.

Então, se por um lado dar excessiva importância a poder dizer “eu sou parisiense” me parece fútil, sem dúvida, por outro lado isso é mais ou menos acessório e periférico aos fundamentos mais profundos da personalidade de uma pessoa. Já querer ser Baudelaire me parece que leva a problemas mais graves. Tornar-se Baudelaire exige um comprometimento mais profundo, e um maior grau de cirurgia mental. Tudo isso para atingir um objetivo tão fútil quanto querer ser parisiense.

Diante disso eu digo que não, nós não temos que querer ser parisienses, ou Baudelaire, ou Shakespeare, ou Einstein, ou iguais a quem quer que seja. Embora existam de fato pessoas que podem servir de referência cultural, científica, moral e sob outros aspectos, querermos “ser como elas” é um péssimo caminho. Nós temos que ser é nós mesmos, e o melhor que conseguirmos ser de acordo com nosso julgamento e com nossa consciência. No processo, se formos muito bem sucedidos, é muito provável que acidentalmente nos tornemos parisienses, Baudelarianos, Shakesperianos, Einstenianos e muito mais. Mas isso tudo como acidente e efeito colateral de sermos nós mesmos, de buscarmos ser o melhor que nós mesmos podermos ser.

Querer ser o outro, por outro lado, nos distancia de nossas reais potencialidades e nos coloca perseguindo fantasmas, e buscando frustradamente, esquizofrenicamente, mesquinhamente, futilmente, algo que só só o outro pode ser. Muito melhor é fazer as pazes com quem você é e tentar exercer essa inalienável função da melhor e mais plena forma que você conseguir.

The Atheists Are Revolting

April 4th, 2009 by Sergio de Biasi

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Este é o muito bem sacado título de um livro mais ou menos recente de um sujeito chamado Nick Gisburne.


Nick Gisburne : God is not love. God is threats.

Nick Gisburne, para quem nunca ouviu falar, resolveu um dia começar a postar vídeos no YouTube falando sobre ateísmo. Rapidamente ele conquistou uma grande audiência. Porém, junto com a grande audiência, começou a sofrer ameaças de religiosos, que passaram a usar de uma série de artifícios para tentar remover sua conta do YouTube. Finalmente, num episódio que nunca ficou perfeitamente bem explicado, sua conta foi permanentemente banida por causa de um vídeo que cita passagens do corão. O motivo oficial dado pelo YouTube foi violação de copyright na trilha sonora que ele usou no vídeo.

O livro foi lançado não muito tempo depois, e é uma coleção de ensaios despretensiosos e relativamente bem humorados sobre religião e ateísmo. O título na minha opinião é uma pérola, que não dá para traduzir direito para o português : “The Atheists Are Revolting”, que em inglês pode ser lido tanto como “Os Ateus São Revoltantes” quanto como “Os Ateus Estão Se Revoltando”.

Questionando Os Fundamentos

March 31st, 2009 by Sergio de Biasi

Recebi recentemente de um leitor um comentário com algumas perguntas relacionadas aos fundamentos das minhas posições sobre moral, ética, liberdade e etc. Infelizmente (por limitações práticas de tempo) não posso dar longas respostas a todas as perguntas, mas elas são suficientemente interessantes que eu queira dar respostas curtas, e convidar os leitores a pensarem o que eles mesmos responderiam.

Notem que eu não estou aqui tentando colocar os fundamentos de um sistema filosófico axiomático e sim responder brevemente às perguntas para expor a direção genérica na qual vão minhas posições.

Olá Sérgio! [Gostaria de] fazer algumas perguntas que (…) acredito serem úteis para compreender melhor seu ponto de vista no tocante à série de questões que vc tem abordado nos últimos posts e comentários.

1- Para você, existem atitudes certas ou erradas (moral ou eticamente falando)?

Eu tenho duas respostas para essa pergunta.

Uma é a nível racional, científico, objetivo, e essa resposta é : tudo indica que NÃO. Aliás, do ponto de vista de lógica, não me parece que a questão sequer faça muito sentido. Mesmo admitindo que houvesse um deus (para o que não vejo qualquer evidência) e que ele tivesse decretado que “X é certo”, como saber que deus é bom sem um critério externo do que é bom? Então nem sequer isso funciona. Então objetivamente, para mim a resposta é NÃO.

Outra resposta é a nível emocional e instintivo. Apesar de racionalmente achar que não existe certo ou errado, emocionalmente eu sinto muito fortemente que certas coisas são certas e outras erradas. Eu não acredito que seja plenamente possível justificar logicamente o meu sistema de valores, mesmo que haja uma certa coerência. Eu acho que ele pode ser parcialmente explicado como conseqüência de vantagens evolutivas, mas isso é uma explicação causal e não realmente justifica filosoficamente eu acreditar nisso, e nem é o meu motivo pessoal para acreditar no que acredito em termos de valores – as causas evolutivas se manifestam como repulsa instintiva a certas atitudes e comportamentos e atração por outros e não como uma série de argumentos armazenados no meu cérebro. E não poderia ser de outra forma, porque não existe motivo lógico para sobreviver e se reproduzir. Se não for instintivo e automático, não será escolhido por ser “a coisa lógica a fazer”. Quem não tinha dentro de si esse impulso morreu sem deixar descendentes.

2- Em caso de resposta afirmativa, o que define uma atitude como certa ou errada?

Essa é a pergunta de um milhão de dólares.

Objetivamente, nada. Para mim não existe, objetivamente falando, certo ou errado.

Subjetivamente, porém, me parece que se formos ser 100% francos, são os nossos sentimentos. O que é insuportavelmente arbitrário. Mas é a realidade. E naturalmente existem sentimentos mais e menos sofisticados. Minha posição pessoal é que cada um deve ser tanto quanto possível deixado em paz pela sociedade para fazer suas próprias escolhas. Isso inclui retirar liberdades de quem está usando sua liberdade para retirar liberdades dos outros à força, o que leva a um monte de problemas e contradições que nem sempre têm respostas lógicas ou óbvias. Não vejo nenhuma forma de transformar essa noção libertária genérica numa lógica teoria consistente do que seja certo e do que é errado. No fundo mesmo tem a ver sentimentos, não com a razão.

Coloquemos assim : eu tenho noções muito fortes de que certas coisas sejam certas ou erradas, mas não acho que se formos até os fundamentos exista uma justificativa lógica, matemática, cristalina para elas. Posso argumentar muito logicamente no caso de partirtmos de certos fundamentos em comum como “é ruim matar seres humanos”, que geralmente até existem, mas se alguém perguntar “por que não?” até chegar em questões realmente fundamentais, não há uma boa resposta.

3 –A que vc se refere quando fala em “vida humana”?

Essa é mais uma dessas questões fundamentais. :-) Para mim o mais importante e especial e definidor de um ser humano é sua consciência. Mas isso é algo arredio e difícil até mesmo de conceituar, quanto mais medir. E mesmo em termos genéricos, infelizmente tanto o início como o final dessa consciência são altamente discutíveis. Me parece claro que não haja algo que se possa chamar de “consciência” logo após a concepção, mas isso vai gradualmente se tornando cada vez menos óbvio à medida em que a gestação progride. Na outra ponta, então em ser humano em coma / com alzheimer / após um derrame não seria mais um ser humano? Então me parece que a história passada de uma consciência também tem importância. Mas e alguém que nasce com síndrome de Down ou algo assim? É um ser humano? Etc.

O problema é que apesar de haver coisas além das quais não há dúvida, as fronteiras são, novamente, se formos ser francos, arbitrárias. Seria ótimo se moral e ética fossem disciplinas matemáticas nas quais pudéssemos fazer um experimento de determinar o que é certo e errado, mas não são. Então nos resta escolher de acordo com nossa consciência e viver com os resultados.

4 – Existe um critério de razoabilidade para definir algo como “vida humana”?O que define algo como “vida humana”? (chamo de “critério de razoabilidade” a motivos lógicos/racionais não fundados meramente em estados afetivos e/ou volitivos)

Para mim, em última análise, não. Vida humana é o que concordarmos em chamar de vida humana. Isso não quer dizer, porém, que eu não tenha opiniões sobre o que deve ser tratado como vida humana e o que não deve. Mas em última análise não acho que exista uma resposta objetiva para esta pergunta.

5 – Em que consiste o valor da “vida humana”? Existe um critério de razoabilidade para definir o valor da “vida humana”? Qual?

Objetivamente, valor nenhum. É só um aglomerado de atómos numa certa configuração.

Subjetivamente, imenso. Mas isso é basicamente uma parcialidade fortíssima minha baseada entre outras coisas em eu ser um ser humano. Não acho que exista qualquer critério razoável para definir o valor de uma vida humana. Eu pessoalmente acho que uma vida humana tem enorme valor, mas não acho que em última análise exista qualquer justificativa lógica para isso. Os argumentos sobre isso tem muito a ver com sentimentos e instintos. Não que isso os nulifique, como querem alguns; sem instintos e sentimentos não haveria motivo para fazer absolutamente nada. Mas você perguntou sobre critérios basicamente fundamentados em lógica e razão. Eu acho que para ver valor na vida humana é preciso dar alguns passos para o lado e considerar outras coisas além da razão.

6– Você fala bastante em “liberdade”. O que é liberdade para vc?

Ok, vou tentar capturar isso numa definição genérica. Num contexto social, liberdade para mim é eu não ser deliberadamente impedido por outros de fazer algo que de outra forma eu teria recursos para fazer, nem forçado por outros a fazer algo que voluntariamente não faria. É eu ser basicamente deixado em paz para fazer minhas própria escolhas sem ser forçado por outros a fazer ou a não fazer algo.

Naturalmente que não dá para ter liberdade total em sociedade, porque as liberdades de todos nós conflitam entre si, etc.

7 – Você também parece dar muito valor a esta liberdade. Existe um critério de razoabilidade para este valor? Qual?

Nenhum critério. Eu gostaria de ter uma resposta do tipo “ah, isso é evidentemente o certo pois…”, mas se eu for 100% implacavelmente honesto comigo mesmo, não há tal resposta. O que não significa que seja uma posição aleatória, apenas que se formos cavar suficientemente fundo, não existe realmente um motivo “lógico”. Eu poderia dizer que a liberdade a meu ver maximiza a felicidade das pessoas, mas por que maximizar a felicidade das pessoas seria bom? Além disso, será que maximiza mesmo? Talvez todo mundo ser lobomotizado maximizasse a felicidade das pessoas. Mesmo que fosse o caso, eu seria contra. Então eu posso até falar sobre meus motivos, mas não acho que seja, se cavarmos suficientemente fundo, uma posição logicamente justificável. É como se você me pedisse para explicar por que eu acho um pôr-do-sol bonito. Eu poderia discorrer longamente sobre isso, mas no fundo não há é algo lógico.

8 – É possível haver situações onde a coação é legítima? O que se dá nesses casos, caso existam, que justifica a coação?

Na minha opinião (feitas todas as ressalvas prévias sobre a subjetividade dos fundamentos desta posição), sim, e entre as principais justificativa para fazê-lo eu colocaria quando uma pessoa começa a agir em franco desrespeito à liberdade, à integridade física ou à propriedade de outros.

9 – Você fala bastante em “verdade”. Como vc definiria a verdade?

Ok, uma primeira aproximação do que eu penso seria mais ou menos assim : verdade é aquilo que é real independentemente dos sentimentos ou preconceitos de quem está observando. Então você pode perguntar o que é “real”, naturalmente, e entramos num labirinto semântico sem saída.

10 – Você também parece dar muito valor a esta verdade. Existe um critério de razoabilidade para este valor? Qual?

Nenhum. :-) Para mim não existe em última análise critério de razoabilidade para nenhum valor. :-) Mesmo que você me provasse por A+B que a média dos seres humanos é mais feliz acreditando em coisas que não são verdade (algo que eu discordo que seja o caso, mas admitindo como hipótese), mesmo assim eu não gosto da idéia.

Agora, eu de fato tendo a achar que conhecer a verdade ao invés de ilusões dá a um ser humano mais recursos para tomar decisões que maximizem sua felicidade assim como o bem que ele é capaz de realizar ao interagir com o mundo.

11 – Respostas reformáveis podem orientar uma práxis de consequências irreformáveis? “Por que” ou “em que condições”?

Não sei se essa pergunta é muito boa. Ou melhor ela até é, pois levanta uma questão fundamental; o que não é muito bom é o pressuposto implícito na pergunta de que exista outra possibilidade. O caso é que a rigor todas as respostas são em princípio reformáveis, e todas as práxis são em princípio de conseqüências irreformáveis. Portanto, a questão não é tanto se “podem” tanto quanto perceber que nós não temos escolha : temos continuamente que tomar decisões irreformáveis com base em critérios arbitrários, incompletos e mutáveis. E isso, novamente, é muito frustrante. Mas a decisão de adotar por uma questão de princípio critérios “irreformáveis” tende a levar apenas a ilusões e erros ao invés de esclarecimento e sabedoria. É saudável mudar de idéia quando se percebe que estava errado. E acreditar – ter certeza! – que nunca se estará errado como forma de resolver essa questão é o fundamento universal da intolerância e do fanatismo.

Everyone Still Loves The Internet

March 31st, 2009 by Sergio de Biasi

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Para quem não sabe, The Pirate Bay é uma organização sueca que cresceu mais ou menos espontaneamente da indignação de um grupo de sujeitos que achavam que o direito de indexar informação disponível na internet deve ser básico e inalienável, e que é impossível restringi-lo e regulá-la sem cair em um monte de bobagens.

Note que isso é diferente de dizer que “eu deve ter a liberdade de colocar o que eu quiser na internet, mesmo que tenha copyright”; essa é uma discussão separada, que eles também levantam. Mas mesmo sem ela, o que eles dizem é “olha só, se está na internet, eu tenho direito de indicar onde está e disponibilizar um link sem precisar ficar com medo de ser processado, perseguido ou censurado”.

Aliás, manter ou não as duas questões separadas têm sido o cerne de grande parte dos debates em torno da legislação sobre o que você pode ou não colocar na internet. Aquele que detêm os direito de “propriedade intelectual” sobre grandes quantidades de obras têm tido uma atitude agressiva de tentar passar como um rolo compressor não só por cima de quem distribui cópias “ilegais” (algo que tem se demonstrado simultaneamente impossível e vastamente impopular) como também de quem simplesmente indexa a existência de tais cópias (algo que além de impopular é muito discutível juridicamente) e até mesmo de quem transmite a informação, como os provedores de acesso (algo que nem sequer é juridicamente defensável, mas que eles fazem assim mesmo enquanto lutam insanamente para tentar alterar as leis). Em outras palavras, eles querem um mundo no qual se eu telefonar para você e disser “ok, vamos assaltar o banco X amanhã” a companhia telefônica pode ser considerada responsável por não estar ouvindo a ligação e não ter feito algo sobre o assunto. Pode ser que o ponto ótimo não seja não haver qualquer tipo de copyright, mas certamente também não é o que entidades como a RIAA e MPAA estão defendendo. Entre um e outro eu prefiro que não exista copyright.

Pois bem, The Pirate Bay está atualmente sendo processada e recentemente houve um julgamento cujo resultado possivelmente trará significativas conseqúências para a liberdade na internet, na Europa e no mundo. Eles são talvez a mais visível entidade no movimento anti-copyright no mundo moderno, e seu destino terá muitas conseqüências. Vivemos numa época em que pela primeira vez na história da humanidade se tornou tecnologicamente possível qualquer pessoa rapidamente divulgar qualquer informação de que disponha essencialmente para todo o resto do mundo, e isso mais ou menos diretamente, sem precisar de grandes somas de prestígio, recursos ou autorizações. Isso é uma mudança potencialmente revolucionária na forma como a cultura se dissemina e é produzida e vivenciada, e seus resultados já estão começando a aparecer. Não tenho certeza de que sequer seja possível preservar o enorme controle ao acesso de bens culturais que houve até então, mas está cada vez mais claro para mim que tentativas nesse sentido acabam descambando para perda de privacidade, de direitos de livre expressão e um estado policial opressivo olhando continuamente por cima do seu ombro. Só posso dizer não, obrigado e desejar sucesso à Pirate Bay.