Recebi recentemente de um leitor um comentário com algumas perguntas relacionadas aos fundamentos das minhas posições sobre moral, ética, liberdade e etc. Infelizmente (por limitações práticas de tempo) não posso dar longas respostas a todas as perguntas, mas elas são suficientemente interessantes que eu queira dar respostas curtas, e convidar os leitores a pensarem o que eles mesmos responderiam.
Notem que eu não estou aqui tentando colocar os fundamentos de um sistema filosófico axiomático e sim responder brevemente às perguntas para expor a direção genérica na qual vão minhas posições.
Olá Sérgio! [Gostaria de] fazer algumas perguntas que (…) acredito serem úteis para compreender melhor seu ponto de vista no tocante à série de questões que vc tem abordado nos últimos posts e comentários.
1- Para você, existem atitudes certas ou erradas (moral ou eticamente falando)?
Eu tenho duas respostas para essa pergunta.
Uma é a nível racional, científico, objetivo, e essa resposta é : tudo indica que NÃO. Aliás, do ponto de vista de lógica, não me parece que a questão sequer faça muito sentido. Mesmo admitindo que houvesse um deus (para o que não vejo qualquer evidência) e que ele tivesse decretado que “X é certo”, como saber que deus é bom sem um critério externo do que é bom? Então nem sequer isso funciona. Então objetivamente, para mim a resposta é NÃO.
Outra resposta é a nível emocional e instintivo. Apesar de racionalmente achar que não existe certo ou errado, emocionalmente eu sinto muito fortemente que certas coisas são certas e outras erradas. Eu não acredito que seja plenamente possível justificar logicamente o meu sistema de valores, mesmo que haja uma certa coerência. Eu acho que ele pode ser parcialmente explicado como conseqüência de vantagens evolutivas, mas isso é uma explicação causal e não realmente justifica filosoficamente eu acreditar nisso, e nem é o meu motivo pessoal para acreditar no que acredito em termos de valores – as causas evolutivas se manifestam como repulsa instintiva a certas atitudes e comportamentos e atração por outros e não como uma série de argumentos armazenados no meu cérebro. E não poderia ser de outra forma, porque não existe motivo lógico para sobreviver e se reproduzir. Se não for instintivo e automático, não será escolhido por ser “a coisa lógica a fazer”. Quem não tinha dentro de si esse impulso morreu sem deixar descendentes.
2- Em caso de resposta afirmativa, o que define uma atitude como certa ou errada?
Essa é a pergunta de um milhão de dólares.
Objetivamente, nada. Para mim não existe, objetivamente falando, certo ou errado.
Subjetivamente, porém, me parece que se formos ser 100% francos, são os nossos sentimentos. O que é insuportavelmente arbitrário. Mas é a realidade. E naturalmente existem sentimentos mais e menos sofisticados. Minha posição pessoal é que cada um deve ser tanto quanto possível deixado em paz pela sociedade para fazer suas próprias escolhas. Isso inclui retirar liberdades de quem está usando sua liberdade para retirar liberdades dos outros à força, o que leva a um monte de problemas e contradições que nem sempre têm respostas lógicas ou óbvias. Não vejo nenhuma forma de transformar essa noção libertária genérica numa lógica teoria consistente do que seja certo e do que é errado. No fundo mesmo tem a ver sentimentos, não com a razão.
Coloquemos assim : eu tenho noções muito fortes de que certas coisas sejam certas ou erradas, mas não acho que se formos até os fundamentos exista uma justificativa lógica, matemática, cristalina para elas. Posso argumentar muito logicamente no caso de partirtmos de certos fundamentos em comum como “é ruim matar seres humanos”, que geralmente até existem, mas se alguém perguntar “por que não?” até chegar em questões realmente fundamentais, não há uma boa resposta.
3 –A que vc se refere quando fala em “vida humana”?
Essa é mais uma dessas questões fundamentais. :-) Para mim o mais importante e especial e definidor de um ser humano é sua consciência. Mas isso é algo arredio e difícil até mesmo de conceituar, quanto mais medir. E mesmo em termos genéricos, infelizmente tanto o início como o final dessa consciência são altamente discutíveis. Me parece claro que não haja algo que se possa chamar de “consciência” logo após a concepção, mas isso vai gradualmente se tornando cada vez menos óbvio à medida em que a gestação progride. Na outra ponta, então em ser humano em coma / com alzheimer / após um derrame não seria mais um ser humano? Então me parece que a história passada de uma consciência também tem importância. Mas e alguém que nasce com síndrome de Down ou algo assim? É um ser humano? Etc.
O problema é que apesar de haver coisas além das quais não há dúvida, as fronteiras são, novamente, se formos ser francos, arbitrárias. Seria ótimo se moral e ética fossem disciplinas matemáticas nas quais pudéssemos fazer um experimento de determinar o que é certo e errado, mas não são. Então nos resta escolher de acordo com nossa consciência e viver com os resultados.
4 – Existe um critério de razoabilidade para definir algo como “vida humana”?O que define algo como “vida humana”? (chamo de “critério de razoabilidade” a motivos lógicos/racionais não fundados meramente em estados afetivos e/ou volitivos)
Para mim, em última análise, não. Vida humana é o que concordarmos em chamar de vida humana. Isso não quer dizer, porém, que eu não tenha opiniões sobre o que deve ser tratado como vida humana e o que não deve. Mas em última análise não acho que exista uma resposta objetiva para esta pergunta.
5 – Em que consiste o valor da “vida humana”? Existe um critério de razoabilidade para definir o valor da “vida humana”? Qual?
Objetivamente, valor nenhum. É só um aglomerado de atómos numa certa configuração.
Subjetivamente, imenso. Mas isso é basicamente uma parcialidade fortíssima minha baseada entre outras coisas em eu ser um ser humano. Não acho que exista qualquer critério razoável para definir o valor de uma vida humana. Eu pessoalmente acho que uma vida humana tem enorme valor, mas não acho que em última análise exista qualquer justificativa lógica para isso. Os argumentos sobre isso tem muito a ver com sentimentos e instintos. Não que isso os nulifique, como querem alguns; sem instintos e sentimentos não haveria motivo para fazer absolutamente nada. Mas você perguntou sobre critérios basicamente fundamentados em lógica e razão. Eu acho que para ver valor na vida humana é preciso dar alguns passos para o lado e considerar outras coisas além da razão.
6– Você fala bastante em “liberdade”. O que é liberdade para vc?
Ok, vou tentar capturar isso numa definição genérica. Num contexto social, liberdade para mim é eu não ser deliberadamente impedido por outros de fazer algo que de outra forma eu teria recursos para fazer, nem forçado por outros a fazer algo que voluntariamente não faria. É eu ser basicamente deixado em paz para fazer minhas própria escolhas sem ser forçado por outros a fazer ou a não fazer algo.
Naturalmente que não dá para ter liberdade total em sociedade, porque as liberdades de todos nós conflitam entre si, etc.
7 – Você também parece dar muito valor a esta liberdade. Existe um critério de razoabilidade para este valor? Qual?
Nenhum critério. Eu gostaria de ter uma resposta do tipo “ah, isso é evidentemente o certo pois…”, mas se eu for 100% implacavelmente honesto comigo mesmo, não há tal resposta. O que não significa que seja uma posição aleatória, apenas que se formos cavar suficientemente fundo, não existe realmente um motivo “lógico”. Eu poderia dizer que a liberdade a meu ver maximiza a felicidade das pessoas, mas por que maximizar a felicidade das pessoas seria bom? Além disso, será que maximiza mesmo? Talvez todo mundo ser lobomotizado maximizasse a felicidade das pessoas. Mesmo que fosse o caso, eu seria contra. Então eu posso até falar sobre meus motivos, mas não acho que seja, se cavarmos suficientemente fundo, uma posição logicamente justificável. É como se você me pedisse para explicar por que eu acho um pôr-do-sol bonito. Eu poderia discorrer longamente sobre isso, mas no fundo não há é algo lógico.
8 – É possível haver situações onde a coação é legítima? O que se dá nesses casos, caso existam, que justifica a coação?
Na minha opinião (feitas todas as ressalvas prévias sobre a subjetividade dos fundamentos desta posição), sim, e entre as principais justificativa para fazê-lo eu colocaria quando uma pessoa começa a agir em franco desrespeito à liberdade, à integridade física ou à propriedade de outros.
9 – Você fala bastante em “verdade”. Como vc definiria a verdade?
Ok, uma primeira aproximação do que eu penso seria mais ou menos assim : verdade é aquilo que é real independentemente dos sentimentos ou preconceitos de quem está observando. Então você pode perguntar o que é “real”, naturalmente, e entramos num labirinto semântico sem saída.
10 – Você também parece dar muito valor a esta verdade. Existe um critério de razoabilidade para este valor? Qual?
Nenhum. :-) Para mim não existe em última análise critério de razoabilidade para nenhum valor. :-) Mesmo que você me provasse por A+B que a média dos seres humanos é mais feliz acreditando em coisas que não são verdade (algo que eu discordo que seja o caso, mas admitindo como hipótese), mesmo assim eu não gosto da idéia.
Agora, eu de fato tendo a achar que conhecer a verdade ao invés de ilusões dá a um ser humano mais recursos para tomar decisões que maximizem sua felicidade assim como o bem que ele é capaz de realizar ao interagir com o mundo.
11 – Respostas reformáveis podem orientar uma práxis de consequências irreformáveis? “Por que” ou “em que condições”?
Não sei se essa pergunta é muito boa. Ou melhor ela até é, pois levanta uma questão fundamental; o que não é muito bom é o pressuposto implícito na pergunta de que exista outra possibilidade. O caso é que a rigor todas as respostas são em princípio reformáveis, e todas as práxis são em princípio de conseqüências irreformáveis. Portanto, a questão não é tanto se “podem” tanto quanto perceber que nós não temos escolha : temos continuamente que tomar decisões irreformáveis com base em critérios arbitrários, incompletos e mutáveis. E isso, novamente, é muito frustrante. Mas a decisão de adotar por uma questão de princípio critérios “irreformáveis” tende a levar apenas a ilusões e erros ao invés de esclarecimento e sabedoria. É saudável mudar de idéia quando se percebe que estava errado. E acreditar – ter certeza! – que nunca se estará errado como forma de resolver essa questão é o fundamento universal da intolerância e do fanatismo.