Marx Disfarçado

October 20th, 2009 by Sergio de Biasi

Marx Disfarçado
Refletindo Sobre O Apodrecimento.
Mais Divertido Que Observar Pássaros.

Por Fred Reed
Tradução de Sergio de Biasi
( “Marx in Disguise”, texto #151 em Fred on Everything )


(Nota do Tradutor : Em certas passagens, tenha em mente o leitor que o artigo foi escrito tendo como contexto os Estados Unidos; infelizmente, a identificação de nossos similares nacionais não é muito difícil de fazer.)


Seguindo o princípio de que a lepra é mais divertida se você compreender por que seus dedos estão caindo, permitam-me alguns pensamentos sobre Karl Marx, suas tolas teorias, e nossa queda em uma versão Disney delas.

O Marxismo é um amontoado estúpido, quase comicamente errado de besteiras sem sentido criado por um homem que tinha pouca compreensão da humanidade, de política ou de economia. Trata-se de um economista cujas teorias invariavelmente levam ao empobrecimento. Como indício de grandeza, isso soaria bastante ineficaz. Ele é um personagem importante pelo mesmo motivo que o mosquito da dengue – pelo dano causado mais do que pelo exercício da inteligência.

(Tenham um pouco de paciência. Esta não é um linchamento pré-cozido de tudo o que for de esquerda. Há um sentido vindo mais adiante.)

Ademais, os erros de Marx não foram em detalhes. Foram fundamentais. Por exemplo, ele esperava que os trabalhadores se unissem. Ao invés disso, a primeira guerra mundial mostrou que, com regularidade monótona (e talvez sabedoria duvidosa), suas lealdades ficaram com seus países. Ele pensou que a revolução viria nas nações industrializadas com proletários adequados. Ao invés disso, ela veio primeiro em países agrícolas atrasados, e nunca veio de fato onde ele esperava. Ele pensava que os economias européias nunca dariam origem às democracias liberais que hoje parecem ser o que todo mundo quer. Elas deram.

Em resumo, ele era um lunático. Ele foi, entretanto, ou um lunático que avaliou corretamente a manipulabilidade dos congenitamente raivosos, ou simplesmente sortudo. Ninguém, em tempo algum, foi responsável por tanta morte e brutalidade quanto Karl Marx. Não era o que ele tinha em mente, pelo menos não conscientemente, de qualquer modo. Mas foi o que ele causou.

É o que os marxistas sempre causam. Com previsibilidade perfeita, os estados marxistas são estados policiais. O principal traço do paraíso dos trabalhadores é o de que todos os trabalhadores querem ir embora, e precisam ser mantidos lá com metralhadoras e minas terrestres. Em países divididos como a Coréia, temos algo que se aproxima de um experimento de laboratório. A Coréia do Sul é uma potência industrial de alta tecnologia. Na Coréia do Norte, eles comem grama e, ocasionalmente, uns aos outros. Se a Coréia é um exemplo geográfico, a China é um temporal: assim que começou a abandonar o marxismo, começou a progredir.

O marxismo é comprovadamente um desastre. E os marxistas sabem disso. História elementar não é um segredo.

Tudo isso seria apenas de interesse acadêmico se o mesmo espírito, sob outros nomes, não estivesse tão intensamente ativo na América hoje. Nós o vemos em uma variedade de disfarces. Quando a Rússia praticava a censura, nós chamávamos isso de “censura”. Aqui, chamamos de “politicamente correto”. Continuamos tendo que olhar sobre nossos ombros antes de dizer as coisas erradas. A diferença é… qual? Na Rússia, os marxistas pregavam a luta de classes. Aqui eles pregam multiculturalismo. A diferença é… qual? Os Russos, impedidos de falar abertamente, circulavam os samizdat. Aqui temos a internet. A diferença, além da eficiência, é… qual?

Nossos marxianos domésticos são jornalistas, acadêmicos, profissionais raciais, multiculturalistas, feministas radicais e educadores. A maior parte deles não dispõe de inteligência ou formação para saber o que estão ajudando a fazer. (Acho que a expressão é “inocentes úteis”.) Os líderes, como por exemplo nas universidades, de fato sabem. Eles são menos letais que Lênin e Trotsky, mas sua direção é a mesma.

A chave para compreendê-los está no reconhecimento de que o marxismo não é um sistema, mas um sentimento : uma hostilidade sombria, implacável e vingativa contra a sociedade ao redor. Seus devotos são devotos do ódio. Isso distingue claramente o marxismo do socialismo democrático europeu normal. Pode-se debater se, digamos, a Suécia é socialista demais ou se não é socialista o suficiente. Contudo, o socialismo sueco não é intrinsecamente perverso. O marxismo é.

Em seu coração estão (1) um desejo do controle total sobre tudo, incluindo o pensamento, (2) uma disposição a impor a obediência através de absolutamente quaisquer meios, (3) uma despreocupação com a realidade econômica e portanto com o bem-estar material e (4) um desprezo pela humanidade (“as massas”). Trata-se simplesmente de ressentimento politizado, voltado não para ajudar os desfavorecidos mas para atingir os bem-sucedidos.

Agora, pessoas que visceralmente percebem o que está acontecendo freqüentemente querem debater com nossos marxianos. É um erro. A economia não é um assunto matematicamente verificável. Sendo a política também imprecisa, é fácil argumentar a favor ou contra qualquer posição até que o debate se dissolva em um lamaçal. Pode-se facilmente construir uma defesa do comunismo, assim como do nazismo, da democracia, do catolicismo, do ateísmo, ou da pedofilia.

Ao invés disso, você tem de se lembrar de quem eles são, de o que eles são. Eles são pessoas que querem destruir a civilização ao seu redor.

Isso explica alguns fatos que poderiam de outra forma parecer contraditórios. Por exemplo, as feministas radicais, muito marxianas em espírito, denunciam discriminações imaginárias contra as mulheres na América, mas dizem muito pouco sobre as mutilações compulsórias do clitóris em países africanos e islâmicos. Isso não faz nenhum sentido se você acredita que elas querem beneficiar as mulheres. Faz total sentido se seu objetivo é criar divisões com vistas a destruir a América.

Ou repare como a extrema esquerda fala incessantemente sobre os maus-tratos a que estão sujeitos os negros na América, mas quase universalmente não exige tais providências, como uma melhor educação, que poderiam ajudar os negros. Por que? Porque (1) eles não se importam realmente com os negros, exceto como ferramentas políticas e (2) se os negros prosperassem, eles se juntariam à classe média e deixariam de ser convenientemente divisivos.

Similarmente, para crianças latinas nossos marxianos advogam educação bilingue, a qual tem um registro comprovado de prejudicar o aprendizado do inglês. Por que? Latinos que falassem inglês fluente acabariam por se casar com pessoas chamadas Ferguson e se tornariam americanos. Fim da linha para a luta de classes.

Portanto, é por isso que os marxianos, em todos os lugares invariavelmente denunciando a opressão, invariavelmente a praticam. Não há qualquer contradição. Eles não fazem qualquer objeção à opressão. Ela é central para seus propósitos. (Cite um país marxista que não seja opressor.) Denunciá-la é somente politicamente útil.|

A última coisa que eles querem é que países atrasados floresçam e se tornem democracias liberais.

Taticamente, eles estão em terreno sólido na América. Os Estados Unidos sempre tendo sido bem-sucedidos em assimilar grupos, os marxianos precisaram reverter o processo de forma a ter luta de classes. Eles não puderam utilizar o usual proletariado pois este havia se movido para a classe média. Conseqüentemente, precisaram promover ou inventar novas divisões. Eles o fizeram. Funcionou.

Brancos contra pretos foi uma linha de falha obviamente útil que a extrema esquerda não inventou mas que cultivou cuidadosamente. Abrir a fronteira do sul significou importar uma classe divisiva. Colocar mulheres contra homens também foi notavelmente bem sucedido. Empurrar os homossexuais para a hostilidade forneceu ainda mais um ressentimento utilizável. O terrorismo emocional praticado contra garotos de escola (“polícia-e-ladrão-é-violento”), leis contra certas formas de discurso consideradas “ofensivas”, a punição da não-conformidade (através por exemplo da perda do emprego) são todas versões mais brandas das práticas soviéticas. Até agora.

Nós, eu penso, não faremos nada sobre isso. Lepra e docilidade são uma combinação infeliz. Mas interessante.

Fred Reed é colunista do Washington Times.
Leia seus artigos em FredOnEverything.net

Dirigindo Para Nova York

September 26th, 2009 by Sergio de Biasi

Depois que me mudei para New Jersey, tive que comprar um carro. Exatamente ao contrário do que ocorre na cidade de Nova York, não dá pra fazer nada aqui sem dirigir.

Aliás, alguns comentários sobre New Jersey. Todo mundo aqui chama Nova York de “The City”. Isso no começo me confundiu um pouco. Tipo perguntar “onde eu consigo comprar essa peça?” e ouvir a resposta “ah, para encontrar isso você vai ter que ir à cidade”. Er, cidade? Que cidade? Nova York, naturalmente. Qual outra? :-)

E logo que eu cheguei, em uma das recepções que houve para recém contratados pela universidade, estava eu conversando com alguns legítimos cidadãos born and raised in New Jersey e comentei : “Well, I suppose now I’ll start to see the real America.” e eles unanimamente responderam “No way, New Jersey is not the real America. New Jersey is just weird.” :-)

Enfim, se transportarmos o conceito de sete maravilhas do mundo para os EUA, há alguns candidatos óbvios, mas um que talvez escape aos estrangeiros é a New Jersey Turnpike. Por ela passa basicamente o grosso do tráfego entre Nova York e o resto dos EUA a oeste, o que a torna uma das autoestradas mais movimentadas do mundo. Construída em tempo recorde no começo da década de 50, é considerada por muitos a estrada que serviu de modelo para o sistema de highways americanas, que poderia em si mesmo ser candidato coletivamente para uma das sete maravilhas dos EUA e que foi responsável por moldar e definir muito da cultura e da personalidade do país. É uma estrada literalmente monumental.

Dirigindo na New Jersey Turnpike

Enfim, começamos apresentando um vídeo no qual eu estou saindo de uma das service areas e entrando na turnpike. Está quase amanhecendo, e é uma das horas de maior movimento, com um tráfego intenso indo em direção a Nova York para o expediente de trabalho. Infelizmente o tempo está meio chato e eu tenho que ficar usando o limpador de para-brisas para impedir que meu vidro fique embaçado pelo lado de fora. Em alguns momentos é possivel observar 6 pistas de tráfego completamente tomadas de carros até onde a vista pode alcançar. E vocês acham que estamos andando devagar? De forma alguma. Neste vídeo, apesar dos carros todos estarem andando extremamente próximos um dos outros, a velocidade oscila entre 120 a 140 km/h! Isso apesar do limite ser oficialmente de 65 mph, o que eu rapidamente descobri após me mudar para cá que é total ficção.

Dirigindo na Goethals Bridge

Se eu estivesse indo a Manhattan, eu poderia simplesmente seguir em frente e entrar na cidade através do Lincoln Tunnel ou da George Washington Bridge (ou ainda do Holland Tunnel). Mas eu estava indo para o JFK, que fica no Queens, então não fazia sentido passar por dentro de Manhattan. Ao invés disso, o melhor caminho é pegar a Goethals Bridge, a qual é, bem, basicamente um lixo obsoleto de 1928 que se fala em demolir e substituir há anos, mas que apesar disso é muito importante, pois é como se dirige de New Jersey para Staten Island. E por que alguém quereria ir a Staten Island? Bem, eu diria que a resposta número um é “para evitar o tráfego de Manhattan”. :-) Staten Island não é exatamente o mais interessante dos cinco boroughs da cidade de Nova York. :-)

Ok, após cruzar Staten Island, finalmente chegamos não diretamente no Queens, mas no Brooklyn. Como Staten Island é uma ilha (oh!), precisamos atravessar outra ponte para fazer isso. E a ponte em questão é a esta sim imponentíssima Verrazano Bridge, que quando inaugurada era a maior ponte suspensa do mundo.

Dirigindo na Verrazano Bridge

Meu Olho Esquerdo

September 23rd, 2009 by Sergio de Biasi

Pra ele parar com esse negócio de ser esquerdo

Meu olho esquerdo olha para o mundo de um ponto de vista oposto ao direito. Olha para as mesmas coisas, mas estranhamente não vê as mesmas coisas. As coisas que ele vê não lá realmente estão. Pelo menos não do jeito que ele as vê. Do que lhe é apresentado, ele apenas tem acesso a uma versão míope, desfocada, astigmática  e toma essas imagens distorcidas e fantasmáticas por verdadeiras. Meu olho direito não é perfeito, mas nada que um bom óculos não dê jeito. Com a devida prudência, ele enxerga o mundo ao meu redor com suficiente correção para permitir uma vida normal e produtiva. O resto é comigo. Mas meu olho esquerdo? Bah, meu olho esquerdo me engana e me trai. Meu olho esquerdo me aprisiona num mundo de ilusões. Que sorte eu tenho de ter meu olho direito. Mas cansei de ser pelo outro ludibriado. Que enxergue direito ou se cale. Que ele queira ver de outro ponto de vista, me dar novas perspectivas, não é esse o problema. Isso é bom, e apreciado, e bem vindo. Mas que não me conte mentiras. Quero os meus dois olhos direitos.

2A+B. CustomVue Visx OS (aberrations)

À Esquerda : Assim não dá
À Direita : Ok, com isso dá pra conviver

Experimentos na Arte da Diferenciação : O Jornal O Indivíduo e o Conflito da PUC

September 22nd, 2009 by Sergio de Biasi

A repercussão da distribuição de “O Indivíduo” na PUC em 1997 não pode ser entendida ou explicada diretamente a partir do conteúdo da publicação original. Muito pelo contrário, para quem conhece a repercussão mas não o seu pretenso agente causador, o sentimento mais provável ao ter acesso ao material original é de incompreensão e estarrecimento. A reação foi absolutamente desproporcional e grande parte do tempo até mesmo desconectada da ação a que pretensamente se opunha. Uma análise coerente do episódio requer dar alguns passos para trás e perceber as forças culturais, intelectuais e sociais que se apropriaram do incidente para então usá-lo como veículo para suas agendas, no processo dando ao jornal dimensões, relevância e significado que absolutamente não tinha (não em si mesmo, pelo menos).

Ironicamente, essa reação, muito mais do que o texto ou mesmo o incidente original na PUC, acabou de fato tornando o episódio genuinamente relevante, pois para começar criou questões reais, entre elas de liberdade de expressão. Mas o impacto se estendeu muito além mesmo disso. O jornal serviu como elemento polarizador e focalizador de grupos sociais em conflito ideológico, contribuindo para que tais grupos se colocassem publicamente e assumissem sua identidade de uma forma mais explícita do que até então. Dessa forma, o jornal acabou sendo veículo para uma catarse de tensões latentes que preexistiam e que o jornal original, em termos objetivos, absolutamente não tinha relevância suficiente para causar. E cumpriu esse papel ao servir como ponto de referência em torno do qual construir uma identidade e um argumento. O jornal inspirou alguns a assumirem publicamente suas posições, algo sempre mais fácil de realizar quando tais opiniões ganham uma face pública, que malgrado simbólica e imperfeita, seja reconhecível como sendo “umas das opções disponíveis”. Da mesma forma, inspirou outros a tomá-lo como exemplo a ser combatido, como bode expiatório para toda uma série de posições e comportamentos que se pretendia tornar socialmente inaceitável.

Para quem não estava no Rio de Janeiro à época, é difícil relatar a dimensão do episódio. Eu queria ter mais registros do que tenho. Não foi apenas “um assunto”. Foi “o” assunto durante algumas semanas. Todos os dias havia novas notícias, cartas, editoriais e colunas de opinião na grande imprensa, na televisão, no rádio referenciando “O Indivíduo”. E não estou falando de “notinhas”. Estou falando de primeira página. Estou falando de páginas inteiras em jornais de grande circulação. Literalmente ligava-se o rádio numa estação qualquer e pessoas estavam sendo entrevistadas na rua para que dessem sua opinião sobre o jornal. A maioria absoluta das quais, evidentemente, não o havia lido, e não fazia a menor idéia do que nele efetivamente havia, mas que estava ciente de seu multifacetado significado (ou pelo menos de sua percebida relevância) no imaginário comum  O  jornal estava servindo como coringa simbólico para uma discussão coletiva sobre certos valores. E isso tem pouco a ver com a relevância do texto original, que se por um lado apresenta idéias que podem ser consideradas controversas, por outro lado não são idéias particularmente originais ou revolucionárias, e que não foram veiculadas de forma nem remotamente ameaçadora, violenta, ou perigosa. Literalmente quatro estudantes da PUC se juntaram, colocaram suas idéias no papel, e distribuíram o resultado no campus. Considerando o evento em si, não há qualquer justificativa objetiva para a magnitude da reação que isso acabou por desencadear. Mas fica bem mais fácil de explicar se observarmos que juntar-se a um debate público que já existe e capturou a atenção coletiva é bem menos complexo do que conseguir com sucesso iniciar um para começar.

Mas para que a surrealidade do que estou dizendo não acabe por levar o leitor à conclusão de que eu só posso estar exagerando, aqui está um link para uma tese de doutorado defendida em 2001 que discute o assunto. Aliás, discute de forma surpreendentemente livre de distorções e desinformacão, especialmente considerando que nunca fomos contactados ou diretamente entrevistados pela autora. O título da tese é “O Desafio Multiculturalista no Brasil: a economia política das percepções raciais“. Divirtam-se. :-)

Breve Relato De Um Atentado À Inteligência

September 18th, 2009 by Sergio de Biasi

Evidentemente seria preferível que o Álvaro estivesse aqui para falar por si mesmo, mas em sua ausência, reproduzo abaixo o texto que ele escreveu em 1998 descrevendo os rocambolescos eventos que se sucederam à distribuição do número zero de “O Indivíduo” na PUC-Rio em 19 de novembro de 1997.

BREVE RELATO DE UM ATENTADO À INTELIGÊNCIA

Publicado em 05 de janeiro de 1998 por Alvaro Velloso

Texto de palestra proferida em Porto Alegre, 05/01/98

Caros senhores, a julgar pelo noticiário dos últimos dois meses da imprensa carioca, este rapaz que se encontra agora à sua frente é um perigoso fomentador do ódio, um perseguidor das minorias oprimidas, uma grave ameaça ao Estado democrático. Parece descabido, ou até mesmo absurdo? Concordo. Mas vejamos os fatos.

Sérgio Coutinho de Biasi, Pedro Sette Câmara e José Roberto de Barros são três amigos meus, que estudavam comigo na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Conversávamos muito, os quatro, sobre uma estranha homogeneidade do discurso imperante na universidade. A doutrinação “politicamente correta” parecia ter penetrado a fundo no meio em que estávamos e isso nos parecia preocupante, por razões que exporei mais à frente.

Tanto falamos – nesse e em diversos outros assuntos de filosofia, ciência, poesia, etc. – que resolvemos publicar nossas opiniões. Fizemos um jornal chamado “O Indivíduo”.

E aí vem a primeira pergunta: por que o título?

Em primeiro lugar, devo esclarecer que não se trata de defender o individualismo egocêntrico. Infelizmente, a maioria das pessoas vê o mundo segundo as categorias mais infantis e acha que se falamos em indivíduos é porque somos individualistas e se falamos em coletividades somos altruístas.

Na verdade, a nossa idéia é semelhante à expressa no seguinte trecho de Ortega y Gasset (1):

Nadie puede vivirme mi vida; tengo yo por mi propria y exclusiva cuenta que írmela viviendo, sorbiendo sus alborozos, apurando sus amarguras, aguentando sus dolores, hirviendo en sus entusiasmos.

Ora, cabe ao próprio ser humano a responsabilidade por todos os seus atos, inclusive os atos de consciência. Quando dizemos que a juventude ‘pensa’ de determinado jeito, estamos usando uma metáfora, pois quem pensa é cada jovem, individualmente, não a coletividade. Quem deve se responsabilizar pelo que estou dizendo agora sou eu, não a juventude. Se eu dissesse que falo em nome da juventude, estaria falando em sentido figurado, pois em última análise só posso falar por mim mesmo (2). O todo social não tem consciência, nem responsabilidade moral. A consciência surge no próprio indivíduo, da unidade do corpo biológico.

Por isso falamos em indivíduos: é muito vago falar “para a juventude”, “para a classe social”, “para a comunidade acadêmica”. Falamos, sim, para cada um em particular, conclamando cada membro das coletividades a examinar a própria consciência, a fim de questionar as idéias a que tem aderido. Trata-se de um diálogo de consciência a consciência, entre seres humanos que se reconhecem como portadores de conhecimentos pelos quais têm de se responsabilizar não perante o consenso acadêmico ou perante a juventude, mas perante a própria consciência. Perante aquele fundo insubornável de que falava Ortega y Gasset, onde o homem admite para si mesmo, entre quatro paredes, o que não tem coragem de admitir em público.

O nosso convite é para um exame dessa natureza. Para um questionamento daquilo que é dado como certo e inquestionável pela mídia e pela intelligentzia.

Claro que não se trata de individualismo, mas muito pelo contrário: como querer montar uma coletividade verdadeira se não respeitamos a individualidade de cada um? Como querer falar em coletividades que pensam por si só, como se os indivíduos que as compõem não fossem o mais importante? É só do entrecruzamento de consciências, do emaranhado de vidas psíquicas diversas, que pode surgir a coletividade verdadeira.

O individualismo egocêntrico reduz cada indivíduo a uma entidade auto-suficiente sem maior interesse para o resto do mundo. Não é disso que estamos falando. Estamos falando contra o coletivismo inquisitorial, que pretende que todos sigam uma determinada idéia como se ela fosse um dogma inquestionável. Estamos falando contra a adesão irracional a uma idéia sem o devido exame. Somos, enfim, contra o espírito de rebanho de que falava Nietzsche, tendência natural do ser humano. Não queremos tratar com gado: queremos tratar com indivíduos conscientes.

Que não se tome essa “consciência” no sentido político. Não falamos de indivíduos conscientes da mesma forma que falam as esquerdas. Não se trata de conscientizar ninguém da sua condição social ou coisas desse tipo, mas de levar cada um a admitir para si mesmo aquilo que sabe, a analisar as idéias que diz professar à luz do próprio eu, ou do fundo insubornável de que falei acima.

Mas voltemos aos fatos. Com essa linha editorial, francamente avessa a ideologias e ações políticas, o jornal foi sendo elaborado. Cada um de nós escreveu um artigo sobre o tema que lhe conviesse.

O Sérgio escreveu um ensaio defendendo um estreitamento dos laços entre ciência e filosofia; o José Roberto fez um artigo sobre três projetos de lei da deputada Marta Suplicy; eu fiz um artigo sobre Canudos, que questionava o posicionamento ideológico que nubla a mente dos nossos historiadores; e o Pedro trouxe um artigo humorístico ao estilo Agamenon Mendes Pedreira (3), um poema lírico-intimista e um ensaio sobre a Semana de Consciência Negra realizada na PUC algumas semanas antes do jornal.

Não vi nada de perigoso ou estranho em nenhum dos textos, concordando em geral com suas opiniões, com algumas ressalvas ao texto do Sérgio, que me parece excessivamente cientificista, e outras ao do José Roberto, que apresenta argumentos neo-darwinistas. Apesar das ressalvas, não sugeri qualquer mudança. Não me agrada a idéia de mexer em textos alheios, até pela minha própria defesa da individualidade. O nome do jornal não era “O Indivíduo”? Então, que se respeitasse a individualidade de cada um. Eu jamais me arrogaria o papel de censor.

Mesmo assim, ao ser lançado, o jornal causou escândalo. Muitos pareciam se sentir no direito de se arrogar esse papel…

Duas horas depois do início da distribuição do jornal, no dia 19 de novembro, fomos cercados por mais de cinqüenta pessoas que berravam, enfurecidos: NAZISTAS! FASCISTAS!

Todos negavam o nosso direito de fazer um texto humorístico sobre o movimento artístico de alguns alunos da PUC, a “Cambralha”. Todos diziam que o texto sobre a consciência negra era racista. Chegaram a querer colocar contra nós os seguranças da PUC, que são negros, dizendo para eles que defendíamos a raça pura e o extermínio dos negros. Ainda bem que os seguranças não lhes deram ouvidos, pois foi só graças à ação deles que saímos de lá vivos.

Fomos levados a um representante da vice-reitoria comunitária. Ele fez uma leitura dinâmica do jornal, supervisionada por dois representantes da Cambralha, circulou com pilot fluorescente o editorial, os artigos do Pedro e o artigo do José Roberto. Na capa do jornal escreveu: Recomendo Apreensão.

Dito e feito. Alguns minutos depois a segurança tinha ordens expressas de recolher todos os exemplares de “O Indivíduo”. Enquanto isso, a multidão que berrava contra nós e ameaçava queimar os jornais junto com nossos corpos crescia.

O raciocínio é simples: se um sujeito ameaça te matar, isso é uma bobagem. Agora, se um sujeito armado ameaça te matar, é bom você começar a se preocupar. Assim era a situação: o grupo enraivecido de cem alunos ameaçando matar três. (4)

Num determinado momento, um sujeito cuspiu no rosto do Sérgio. Um pouco mais tarde, duas meninas cuspiram no rosto do Pedro, além de outra pessoa lhe ter acertado um soco no rosto, quando ele estava entrando no táxi para sair da PUC. Vale lembrar que essa saída se deu por caminhos tortuosos, pois os seguranças dividavam da possibilidade de nos manter vivos se continuássemos lá dentro. Saímos eu e o Sérgio num táxi e o Pedro em outro, pois tinha se separado de nós para fazer uma prova.

Pouco antes de irmos embora, eu e o Sérgio fomos chamados para uma conversa com o vice-reitor comunitário. Ele estava visivelmente irritado, confessou que não tinha lido o jornal e saiu-se com a seguinte pérola:

— Parece que vocês falaram mal da semana de consciência negra e isso não pega bem, né? Além disso, estamos numa universidade católica…

Nesse momento quem se irritou fui eu, um sujeito normalmente calmo. Respondi que os católicos éramos nós e não aquela turba que saía pela PUC berrando palavras de ordem marxistas. Nesse momento exato, estavam todos reunidos fazendo para nós a saudação nazista.

O vice-reitor não me respondeu e negou veementemente qualquer possibilidade de termos uma audiência com o reitor:

— Ele está analisando o jornal e vocês serão avisados de qualquer providência administrativa a ser tomada contra vocês.

Depois dessa, só nos restava mesmo tomar um táxi.

Aí é que a história começa na imprensa. Enviei o material para o IEE, pois me disseram que ele seria distribuídos aos senhores. Não sei se isso aconteceu, logo, aí vai um breve resumo:

Quem logo assumiu a nossa defesa foi o professor Olavo de Carvalho, cujo seminário de filosofia eu e o Pedro freqüentamos. Ele logo preparou um artigo e enviou a “O Globo” e à “Folha de S. Paulo”. A resposta do diretor de redação do Globo:

— Ah, é aquele jornalzinho nazista?

Já a “Folha” publicou uma nota do Olavo na sua edição de domingo daquela semana, relatando o caso como perseguição à liberdade de expressão.

Acontece que, antes disso, na quinta-feira, dia 20, o “Jornal do Brasil” publicou uma notinha que falava em ‘cenas de racismo na PUC-Rio’. No dia seguinte, o assunto ganhava chamada na primeira página do JB e uma matéria em que o reitor da PUC dizia o seguinte:

O jornal mostra um individualismo absoluto e um desprezo pelo coletivo, a começar pelo nome. As posições são reflexo do individualismo de hoje, onde o ser humano perde o sentido de solidariedade.

É difícil descrever o meu espanto.

O vice-reitor dizia, na mesma matéria, que a melhor resposta a nós foi “o próprio repúdio dos colegas”.

Mas não foi tudo: no dia seguinte, a reitoria anunciava, no mesmo JB, que ia nos punir:

As vice-reitorias Acadêmica e Comunitária tomarão as medidas necessárias para que tais fatos não se repitam e para que os autores sejam responsabilizados por sua conduta.

Mas não, isso não foi uma declaração a um jornal. Isso é um trecho de uma carta distribuída via correio a toda a comunidade da PUC, na qual o reitor dizia coisas como:

Os redatores se apresentam como campeões do individualismo e atacam tudo que lhes desagrada. Não quero negar a legítima liberdade de expressão e o pluralismo de opiniões. Porém, não posso concordar com o individualismo que ignora a solidariedade humana e o sentido cristão de fraternidade. Além disso, é completamente inadmissível que, com argumentos falaciosos, se veicule o ódio, o desprezo e a injúria direta contra os que pensam ou agem de modo diferente dos autores do panfleto.

Notaram a contradição? Notaram que ele fala em liberdade de expressão e logo depois nega que nós possamos exercer a nossa? Mais adiante, ele nos acusava de ter ultrapassado as fronteiras do delitivo – em português claro, de cometer um crime. Tanta burrice, tanto fanatismo, tanta incompreensão, tanta malícia no reitor de uma das principais universidades do Rio de Janeiro? As coisas andam mal na educação desse país.

Mas voltando à imprensa: no domingo, dia 23/11, o JB, por algum milagre, resolveu respeitar nosso direito de resposta e publicou uma reportagem do repórter Renato Lemos que mostrava, com fidelidade, a nossa posição, além de publicar o artigo do Olavo que havia sido enviado ao Globo no início da confusão.

As coisas estavam em suspenso, até que o articulista Elio Gaspari publicou um artigo, no Globo e na Folha de S. Paulo, em que defendia o nosso direito à liberdade de expressão, ainda que de forma tímida, aproveitando ainda para recordar um caso ocorrido com comunistas expulsos da PUC em 1962.

Esse artigo deu início a uma nova série de reportagens: uma no Globo, em que a repórter distorceu o sentido das frases do Pedro e entrevistou um advogado que estava preparando – só agora! – um manifesto a favor dos comunistas de 62 e dizia categoricamente (sem ter lido O Indivíduo): “esses meninos são racistas mesmo”. Outra, curtinha, na Folha de S. Paulo, em que a repórter relatava com fidelidade os fatos. E uma na Veja-Rio que era um amontoado de absurdos : dizia, entre outras coisas, que o Sérgio tinha escrito uma carta à reitoria se desculpando pelos excessos do jornal e ainda tinha uma declaração de um frei pedindo direito de resposta contra nós. É uma piada: direito de resposta contra um jornaleco de 400 exemplares de distribuição interna na PUC, por um frei que uma semana antes escrevera um artigo enorme na página de Opinião do JB nos esculhambando, com argumentos falaciosos. Enviamos ao JB uma resposta ao artigo do frei, mas quem disse que eles publicaram? Como também não publicaram a carta do escritor Antonio Fernando Borges nos apoiando; como O Globo não publicou a carta do roteirista Leopoldo Serran também nos apoiando.

Mas um detalhe saltou aos olhos: na matéria do Globo, o reitor declarava que a nossa falha não era assim tão grave. Quer dizer, de forma muito canalha, com muita timidez, declarou que estava errado. Afinal, não posso imaginar que o reitor ache que o crime de racismo não é uma falha grave… Só que a acusação foi espalhada para toda a comunidade, mas o desmentido ficou escondido numa declaração no jornal.

Surgiu um alento com o artigo do escritor Carlos Heitor Cony, na Folha de S. Paulo, classificando de ‘prepotente’ a ação do reitor. Na segunda-feira, 01/12, o filósofo e embaixador J. O. de Meira Penna publicava um artigo no Jornal da Tarde também nos apoiando. Uma semana depois, o maior jurista vivo do país, dr. Miguel Reale, também publicava um artigo de apoio a nós no Jornal da Tarde.

Quadro animador? Não. Fomos entrevistados, eu e o Pedro, para o Jornal do Brasil, por um sujeito chamado Cláudio Cordovil. Embora confessasse, durante a entrevista, não estar entendendo nossas declarações e não conhecer nenhum dos autores que citávamos, esse sujeito não hesitou em publicar uma reportagem de página inteira, no suplemento cultural de domingo, 14/12, com o título “A extrema-direita faz escola na PUC”. Não fez isso sozinho: estava acompanhado de um psicanalista, um cientista político e um “filósofo”. A quantidade de besteiras contidas nessa matéria está além do meu poder de síntese e podem ser verificadas na mesma. Olavo de Carvalho elaborou uma resposta, explicitando uma por uma, que acabou sendo publicada no JB do outro domingo, 21/12.

Mas o espírito totalitário (e a vontade de nos crucificar) do JB não podia deixar por menos: na segunda-feira, 22/12, junto com uma carta do Sérgio, saía um artigo do Cordovil dizendo que ‘as maiores revelações sobre o complô na PUC ainda estavam nas fitas, não tinham sido publicadas’, o que foi a coisa mais espantosa que já vi nos jornais: um repórter confessando, no próprio jornal em que escreve, ter sonegado informações. O artigo trazia acusações a nós e ao Olavo.

Na terça, 23/12, saíam as respostas do psicanalista, Joel Birman, e do cientista político, Luís Eduardo Soares, além de uma carta do Pedro. Novas acusações, novas injúrias, novas baboseiras. Pergunta: nós respondemos? Sim. Eu escrevi uma resposta, o Olavo escreveu uma outra, eu e o Pedro escrevemos juntos uma terceira. Estamos até hoje aguardando a publicação. Notem que isso é violação do direito constitucional: quando alguém é difamado, tem o direito de responder. Se o outro voltar a falar, o difamado tem direito de se defender novamente. Direito de resposta tem que ser em número par: A ataca B; B responde a A. Se A volta a atacar B, B tem de novo o direito de responder a A. Do contrário, fica evidente a predileção do órgão de imprensa pelo lado que ataca. Alguém ainda duvida disso?

Mas não foi só a imprensa escrita que entrou na história. O jornal local da Rede Globo, RJ-TV, fez uma matéria que já dava por pressuposto que o jornal era racista, entrevistava alguns dos nossos agressores e terminava com o apresentador dizendo: “os editores do jornal negam a acusação”, que foi a única linha a que tivemos direito. Já a Globo News, do grupo Globosat, promoveu uma entrevista com o Pedro e o Olavo. O reitor também foi chamado para o programa, mas se recusou a ir. Agora, o pior de todos foi o Jornal Nacional: numa reportagem que dizia que o racismo está crescendo no Rio, o Jornal enfocava a prisão de uma pessoa por racismo e dava como outro exemplo a existência do nosso jornal. Não sei se as pessoas perceberam que a reportagem se desmentia a si mesma, ao mostrar que houve um caso em que a lei de racismo pôde ser aplicada com sucesso e nem se perguntar como no nosso caso, se era racismo mesmo, ninguém teve coragem de apresentar a acusação perante os tribunais.

Mas o expediente que eles usaram foi o mais baixo, o mais absurdo possível. No trecho do artigo sobre a Consciência Negra em que o Pedro escreve:

Querer falar de uma consciência negra como se ela fosse essencialmente diferente de uma consciência branca, ou árabe, é realmente estúpido. (5)

O Jornal Nacional mostra ao público:

Querer falar de uma consciência negra é realmente estúpido.

O que era pregação da integração entre as raças vira desprezo por uma delas. O que defendia que não se levasse em consideração o fator raça para nada de súbito aparece como identificação do negro com a estupidez.

É impressionante como se pode inverter totalmente o sentido de um texto simplesmente tirando dele alguns pedaços.

No rádio, O Indivíduo foi noticiado através de um jornalista e cronista chamado Mário Negreiros, que fez quatro crônicas radiofônicas em nosso favor, além de um artigo num jornal português.

O caso deve chegar às livrarias agora em janeiro, como a segunda parte do livro O Imbecil Coletivo II, em que o professor Olavo de Carvalho fará uma coletânea de seus artigos sobre o caso, além de juntar artigos e cartas em nosso favor escritos por outras pessoas, inclusive alguns já citados.

Este é o caso. São muitos os detalhes impressionantes, são muitos os temas a se discutir. Mas o que me parece mais incrível são dois pontos que foram completamente ignorados pela imprensa: como é possível que quatro jovens publiquem um jornalzinho e causem um escândalo tão grande? E mais ainda: como é possível que a reação histérica de um determinado grupo de alunos seja aplaudida e reforçada por uma santa aliança de autoridades universitárias, professores universitários e órgãos de imprensa escrita e televisiva?

Não tenho respostas prontas, mas tenho uma boa hipótese: a dominação esquerdista dos meios de comunicação e das universidades.

Mas como se liga uma coisa a outra? Façamos um breve exame das técnicas que essa dominação usou para chegar a esse estágio avançado.

O expediente que eles usaram contra nós foi lançar um “rótulo odioso”. Esse expediente é descrito por Arthur Schopenhauer da seguinte forma (6):

Um modo de eliminar ou, ao menos, de tornar suspeita uma afirmação do adversário é reduzi-la a uma categoria geralmente detestada, ainda que a relação seja pouco rigorosa e tão só de vaga semelhança. Por exemplo: “Isso é maniqueísmo”, “É arrianismo”, “É idealismo” (…). Com isto, fazemos duas suposições: 1) que aquela afirmação é efetivamente idêntica a essa categoria ou, ao menos, está compreendida nela e estamos dizendo: “Ah, isto nós já sabemos!”; e 2) que esta categoria já está de todo refutada e não pode conter nenhuma palavra verdadeira.

Tivemos os exemplos mais perfeitos disso, seja das formas mais grosseiras (”nazismo”, “racismo”), como das mais intelectualizadas(”individualismo”, “misticismo”, “conservadorismo”).

Visto isso, pouco importa se as pessoas entenderam o que escrevemos ou não: somos detestáveis de qualquer maneira. Esse modo de proceder para vencer o adversário está tão difundido nos meios intelectuais que qualquer um que pretenda fazer uma argumentação lógica e demonstrar seus argumentos está fadado a receber em troca bocejos. Quando não receber cusparadas e rótulos odiosos, claro.

Mas isso não é tudo. O rótulo odioso é usado pela nossa esquerda em companhia de um outro estratagema: a manipulação semântica. Trata-se de dar a determinados conceitos um sentido único, de forma que não consigamos nem sequer pensar de forma diferente deles, por falta de vocabulário. Um exemplo claro ocorreu hoje, quando tive que explicitar que não falava em conscientização no sentido esquerdista.

Como aponta Olavo de Carvalho (7):

Se o orador sempre fala sozinho para a multidão, sem um oponente que venha equilibrar as coisas invertendo as conotações forçadas que ele dá a certos termos, estas vão aos poucos entrando no uso diário e o povo acaba por tomá-las como definições rigorosas; a ênfase postiça anexa-se de modo definitivo ao significado, e se torna impossível pensar o seu objeto independentemente do valor afirmado ou negado na palavra mesma.

E continua, mais adiante:

O domínio esquerdista do vocabulário é total e irrestrito, o que faz com que cada cidadão brasileiro, ao discordar da esquerda, se veja desprovido de meios de expressão que não estejam sobrecarregados de um temível potencial de malentendidos; aos poucos, a dificuldade de falar vira dificuldade de pensar. Hoje em dia, o debate cultural no Brasil não opõe senão as facções de esquerda umas às outras: o resto é tomado como mero discurso ideológico que não deve ser discutido, apenas explicado pelos interesses objetivos que o produzem e que ele encobre. [grifo meu]

Essa situação foi criada pelo domínio das esquerdas nos meios intelectuais e na mídia, como eu dizia acima. Quando se explicita isso, fica bastante claro por que causamos tanto escândalo: é que falamos coisas que não estão em voga.

No meio daquela multidão enfurecida, dificilmente encontraríamos algum que tivesse lido qualquer coisa que não o discurso esquerdista. Eles são culpados por isso? Claro que são. Ninguém é obrigado a aceitar tudo que o meio em torno lhe transmite. Mas também são vítimas.

Vítimas de seus professores, do meio intelectual, dos jornalistas, do reitor. Foram eles que transformaram a universidade numa escola de adestramento, num circo de aberrações. Foram eles que inculcaram esse discurso e esse modo de agir nesses jovens.

Por isso não é difícil perceber o porquê do apoio que os agressores puquinanos receberam. Eles nada mais são que os agentes mais exaltados dos verdadeiros agressores. É natural que esse tipo de ação política utilize jovens como agentes (8). Na juventude, a necessidade de auto-afirmação é maior, o que faz com que o jovem mais facilmente seja acometido do tal espírito de rebanho: para ser aceito pela comunidade, o jovem adere às idéias que essa comunidade professa. Isso se alia ainda à necessidade de modelos, que faz com que os jovens aceitem sem muito espírito crítico o que seus professores lhes dizem. (9)

A conseqüência psicológica dessa utilização é devastadora: leva os jovens a exagerarem sua própria importância, se sentindo grandes heróis libertadores lutando contra as forças opressores do capitalismo. Claro que indivíduos tão lisonjeados serão incapazes de lidar com as dificuldades e limitações da vida adulta e terão uma tendência à violência.

Em outras palavras, tanto a leitura errada quanto as agressões de que fomos vítimas por parte dos alunos têm uma origem bem definida: foi na PUC que aprenderam a ler assim, foi na PUC que aprenderam a agir assim.

Aprenderam que qualquer discurso que não fale nos excluídos, nos proletários, na eqüidade social, nos males da globalização; que não faça reverência aos santos do meio acadêmico, como Antonio Gramsci, Che Guevara, Michel Foucault, Karl Marx; que não pretenda mudar o mundo, mas apenas conclamar os indivíduos à reflexão ou a tentar compreender o mundo – qualquer discurso assim deve ser desconsiderado e taxado de direitista, logo, de fascista, logo, de nazista. E como nazistas representam um enorme perigo, atacá-los fisicamente torna-se perfeitamente legítimo.

Não é outra senão essa lógica perversa que explica o porquê de um editorial que falava em respeito à individualidade e em diálogo entre consciências ser taxado de individualista; de um artigo que usava argumentos científicos contra uma lei que favorece um determinado grupo da sociedade ser considerado ofensivo a esse grupo; de um ensaio que celebrava a sociedade brasileira por sua pacífica convivência interracial ser chamado de racista.

Este último caso é o mais claro: alguns setores extremados do movimento negro querem ter o monopólio do racismo. Querem que qualquer pessoa que fale contra algumas de suas políticas seja imediatamente considerado racista. Pretendem representar o bem supremo. Se agarram de tal modo a suas causas que quem quer que levante uma única objeção contra elas se torna objeto de ódio e perseguição. Esse o sentido do termo ‘politicamente correto’: é a linha justa, qualquer um que saia dela deve ser imediatamente punido, pois está fora da linha, ou é incorreto, logo, moralmente condenável.

Mas, por ser falaciosa, essa condenação jamais se dará nos tribunais. Dar-se-á na mídia, infestada por repórteres prontos a propagar as idéias politicamente corretas, prontos a contribuir para a caça às bruxas promovida pela intelligentzia esquerdista. A mesma imprensa onde a acusação é estampada em letras garrafais nas manchetes e o desmentido, quando é publicado, é escondido em letras pequenas nas páginas internas.

O episódio provocado pelos arruaceiros da PUC em torno de “O Indivíduo” é uma demonstração deprimente desse estado de coisas. É um alerta sobre a grave ameaça à liberdade de expressão que ronda o nosso país, produto dessa aliança perversa entre reitores inquisitorias, professores esquerdistas desonestos, alunos obedientes e mídia pronta a publicar a versão do fato que mais interessar à intelligentzia.

Pelo que se viu nesse caso, no Brasil, responder a argumentos com socos e cusparadas é louvável; ler maliciosamente e atentar contra a liberdade de expressão do escritor é democrático; inventar conspirações nazificantes é grande jornalismo. O destino de um país que permite que essas coisas aconteçam não me parece ser dos mais animadores…

Rio de Janeiro, 03/04 de janeiro de 1998.

NOTAS:

(1) v. ORTEGA Y GASSET, José. En torno a Galileo, Revista de Occidente en Alianza Editorial, Madrid, 1994.

(2) Mesmo agora, quando falo na primeira pessoa do plural, na verdade estou falando por mim. O que me permite falar em nome dos outros editores é uma aproximação de idéias sobre este determinado ponto, mas com certeza se quem estivesse aqui fosse outro deles, a forma de apresentar os argumentos seria bastante diferente, pois cada um de nós dá um determinado enfoque à questão, embora esses enfoques se assemelhem.

(3) Personagem criado por membros do grupo Casseta & Planeta numa coluna semanal do jornal “O Globo”

(4) O José Roberto não estava na PUC durante a confusão. Após algum tempo, ficamos só eu e o Sérgio, tendo o Pedro ido fazer uma prova – sempre cercado por seguranças.

(5) Jornal “O Indivíduo”, número zero, novembro de 1997, p. 9

(6) v. SCHOPENHAUER, Arthur. Como vencer um debate sem precisar ter razão; introdução, notas e comentários de Olavo de Carvalho; tradução de Olavo de Carvalho e Daniela Caldas; Topbooks, Rio de Janeiro, 1997.

(7) v. SCHOPENHAUER, Arthur, op. cit.

(8) Excelentes comentários a respeito estão no penúltimo capítulo do livro O Jardim das Aflições, de Olavo de Carvalho; Diadorim, Rio de Janeiro, 1995.

(9) Aliás, uma grande contradição da juventude moderna é a rapidez com que jogam seus pais no descrédito, para posar de rebeldes, enquanto, ao mesmo tempo, são influenciados por tudo à sua volta.

O Indivíduo 12 Anos Depois

September 15th, 2009 by Sergio de Biasi

O Indivíduo foi fundado há 12 anos por quatro (!) sujeitos que achavam que a maior parte das opiniões defendidas por todos à sua volta eram muito pouco originais, meras repetições meia dúzia (se tanto) de ideologias prêt-à-porter. Diante disso, e sempre discordando veementemente entre si mesmos, os quatro decidiram juntos publicar um jornal com suas idéias e distribuí-lo no campus da PUC-Rio onde estudavam à época.

Infelizmente o episódio todo acabou sendo extremamente instrutivo quanto à rapidez com que o cidadão médio repudia o ideal de liberdade de expressão no exato momento em que se diz algo com que ele não concorda – ou pior ainda, que não tenha sido sancionado por alguma autoridade de plantão como pertencente ao cânone das idéias publicamente defensáveis. Então, após uma enxurrada de acontecimentos surreais, e sem que isso fosse exatamente o plano original, terminamos na internet, o que retroativamente foi a melhor coisa que poderia ter acontecido, e sem o que provavelmente o nome “O Indivíduo” teria permanecido arquivado e esquecido em antigas manchetes de jornal.

Para a diversão de todos – quem acompanha essa história desde o começo assim como de quem chegou agora – publico aqui diretamente de meus arquivos algumas fotos raras, todas autenticamente tiradas na PUC-Rio no exato dia da publicação do número zero do jornal “O Indivíduo” em 19 de novembro de 1997.

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1999-11-19-sergio

Sergio
(Atual administrador de oindividuo.org)

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1999-11-19-pedro

Pedro
(Atual administrador de oindividuo.com)

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1999-11-19-alvaro

Álvaro
(Antigo administrador de oindividuo.com)
Note-se uma cópia do número zero distribuído na PUC-Rio em suas mãos!

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1999-11-19-beto

Beto
(O “quarto indivíduo”)
Sua própria existência é desconhecida exceto dos mais aficcionados fãs. :-)

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Transcendência (versus?) Imanência

September 12th, 2009 by Sergio de Biasi

Um camponês olha para uma montanha e, sem qualquer pretensão filosófica ou espiritual, observa, como desde a sua infância, ao olhar naquela direção, o que lhe parece simplesmente óbvio :

“Eis ali uma montanha.”

Um dia, porém, passa por ali uma missão enviada pela universidade da capital para medir e estudar as riquezas naturais do país, e um prestigioso geólogo ouve o camponês, e exclama :

“Quanta ingenuidade. Isto não é uma montanha. Veja bem, a forma como o planalto se dobra para alcançar a plataforma oceânica, quando vista deste ângulo, dá essa impressão, mas uma formação desse tipo não pode ser adequadamente chamada de montanha. Inclusive para mim isso não passa de um acidental depósito de rochas sedimentares que ficou para trás quando o oceano recedeu nesta região há cem milhões de anos atrás.”

Ao que se junta o físico da equipe e diz :

“Eu iria ainda mais longe e diria que tudo o que vejo ali é um aglomerado de átomos que se mistura sem nenhuma fronteira logicamente defensável com o ambiente ao redor, inclusive a atmosfera; é um sistema que dinamicamente se modifica e renova e ao qual é injustificável sequer darmos uma identidade una e independente.”

E neste momento o biólogo que fazia levantamento de biodiversidade para a equipe diz :

“Pois o que eu vejo ali é um ecossistema de alta complexidade. Inclusive alguns dos pássaros ali presentes são migratórios sazonais e se integram com as populações ao norte do país, o que como efeito colateral promove a troca de pólen e sementes de espéceis vegetais entre as duas regiões, que não têm portanto como serem compreendidas separadamente.”

Ao que se junta o engenheiro da equipe e diz :

“Para mim a questão é que este local é excelente para passarmos uma estrada, pois veja bem, o declive na encosta leste é moderado e termina em solo compacto e com excelente drenagem em caso de chuvas.”

Neste ponto, o camponês, muito impressionado com a quantidade de conhecimento de todos esses doutores, e envergonhado de sua ignorância, retira-se para seus simples afazeres.

Porém, as vozes de todas aquelas autoridades sobre o que ele conheceu a vida inteira permanecem ressoando em sua mente, e perturbado com sua incapacidade de conciliar as profundas revelações que ouvira com sua experiência cotidiana, ele procura um grande sábio que habita na região e provê auxílio espiritual aos que necessitam.

“Meu pai, eu o procuro porque repentinamente aquilo que eu percebia com meu coração não parece mais ser verdade, mas ao mesmo tempo eu não consigo conciliar o que eu sinto com tudo aquilo que me disseram. Eu conheço aquele local desde criança, eu brinquei nas suas matas, eu bebi dos seus rios, eu lá busquei madeira para me aquecer no inverno, e pedras para calçar o pátio da minha fazenda na estação de chuvas. Como é possivel que aquilo que eu pensei que conhecia tão intimamente seja na verdade tão estranho e insuperavelmente incompreensível para mim?”

O sábio ouviu a pergunta e respondeu :

“Meu filho, tudo o que eles disseram é verdade, assim como tudo o que você disse também é. E no entanto nada disso chega perto de arranhar a superfície de tudo o que há para ser sabido sobre aquele local. Há ali muito mais do que qualquer humano jamais poderá saber, ou dizer. Mas não há qualquer contradição nisso. São diferentes aspectos da mesma realidade infinitamente rica. O nome que se dá para a totalidade do fenômeno que cada um de nós foi capaz de apreender apenas de forma parcial, incompleta e limitada é aquele que você já sabia desde o princípio : Eis ali uma montanha.”

Ateísmo Para Principiantes

September 12th, 2009 by Sergio de Biasi

Há algumas semanas Pedro escreveu um texto entitulado “A diferença entre crentes e ateus” (agora disponível aqui) no qual em princípio pretende buscar compreender ou pelo menos descrever, num exercício de empatia, a posição dos ateus não como vistos pelos crentes, mas desde o ponto de vista dos próprios ateus. O texto demonstra uma incompreensão embaraçosa da posição de quem não é crente. Diante disso, achei que seria didático e esclarecedor fazer o exercício de descrever “a nível de ateu” o que de fato penso sobre certos assuntos, inclusive o que eu de fato penso sobre o que os crentes pensam.

Para começar, observo que já de saída o Pedro supõe que haja muito mais unidade ideológica e de crenças entre os ateus do que realmente há. Com poucas exceções, que em geral surgem como subconjuntos de sistemas mais amplos de pensamento, o ateísmo raramente surge como uma instituição organizada com dogmas ou qualquer tipo de ortodoxia. Quem não acredita em deus em geral não acredita e pronto, individualmente. As pessoas que acreditam em digamos Papai Noel talvez tenham alguma coisa em comum. As que não acreditam costumam simplesmente não pensar nisso, assim como os católicos não ficam em geral gastando seu tempo se reunindo para refutar a existência de Shiva. Evidentemente caso fosse contra a lei não acreditar em Papai Noel ou se pessoas começassem a me insultar por eu não acreditar em Papai Noel talvez eu gastasse mais tempo discutindo Papai Noel. Mas mesmo nesse caso Papai Noel em si mesmo permanece rigorosamente inexistente e irrelevante; são as pessoas falando de Papai Noel que se tornaram um assunto.

Mas voltemos às afirmações específicas que Pedro faz. Ele começa por afirmar :

Ambos dirão que apenas se submetem à verdade; ambos dirão que seguem suas consciências; ambos dirão, mais ainda, que o que os diferencia do outro lado é o estar certo, o ter razão.

De fato, os religiosos parecem em geral dizer e acreditar exatamente nisso (que o que os diferencia do outro lado é estar com a razão). Mas claramente uma grande parte dos ateus – especialmente os que têm uma posição mais científica – dificilmente concordariam que os que os distingue dos religiosos seria “o estar certo, o ter razão”. Afinal, “estar certo” é algo a que não temos acesso direto, e repetidamente descobrimos que estávamos errados quando tudo parecia indicar que estávamos certos. Os próprios ateus discordam de todas as formas possíveis sobre qual o significado, origem e propósito da existência humana e do universo. Alguns por incontornável necessidade lógica estarão certos enquanto outros errados. (Aliás, assim como os religiosos.) Discordam inclusive sobre a possibilidade de responder certas perguntas.

Então eu diria que o que distingue a mim pessoalmente de um religioso padrão não é tanto o “estar certo” quanto POR QUE eu acho que estou certo. Eu não aceito argumentos de autoridade, tradição ou revelação como “provas” do que seja verdadeiro. E não acho que a fé seja uma boa base para um sistema de crenças. Portanto para mim o que me distingue de um crente padrão não é eu “estar certo” tanto quanto o que eu considero um argumento aceitável para alguém defender que está certo. Eu não acreditar em deus é uma posição circunstancial, não metodológica ou a priori. Caso ele descesse do céu e fizesse milagres na minha frente eu teria que repensar a idéia. Caso alguém definisse deus de uma forma que fizesse sentido e apresentasse evidências de que ele existe eu teria que repensar a idéia. Agora, enquanto isso não acontece, sugiro que é bem mais acreditável que ele seja um personagem mitológico.

não se deve esquecer que uns considerarão os outros a praga da humanidade

Isso está comicamente longe de descrever a posição seja do religioso médio, seja do ateu médio. Se formos seguir a tradição de algumas religiões, elas *de fato* oficialmente instam seus fiéis a considerarem todos os pagãos como pecadores, indignos e merecedores de punição eterna, mas felizmente grandes massas de religiosos não levam isso a sério. E uma grande massa entre os ateus acham religião equivalente a acreditar em Papai Noel : delirante mas inofensivo ou até mesmo positivo por fazer as pessoas mais felizes.

Mas qual será o fundamento subjetivo de sua diferença? Haverá uma atitude fundamental que distinga um grupo do outro?

Para *mim*, pessoalmente, a questão já está colocada da forma errada. Como eu disse antes, há muito mais unidade ideológica entre crentes do que entre não crentes. Se eu tivesse que buscar algo para distinguir os dois grupos, eu sinto vontade de dizer (porque é isso que *eu* pessoalmente sinto que me distingue) que para mim seria o que é aceito como critério de verdade, como eu disse acima. Mas que se note, isso é uma descrição caricatural, porque evidentemente há entre os ateus aqueles que apesar de não serem “crentes” no sentido proposto pelo Pedro, acreditam em todo tipo de disparates alucinados como astrologia, mágica ou espíritos. E até mesmo para não acreditar em deus há todos os tipos de motivos, desde “o governo mandou” até “isso é chique”. Não existe realmente unidade de atitude fundamental entre os ateus. Então não há como responder seriamente a esta pergunta.

Talvez pudéssemos recolocar a pergunta como : “Qual é a atitude fundamental que caracteriza os crentes?”. E mesmo essa, dada a diversidade do grupo, seria difícil de responder de forma não caricatural. Eu pessoalmente tendo a responder que é o triunfo da intensa necessidade instintiva de que a vida faça sentido e tenha um propósito sobre a percepção racional de que ela não faz e não tem. Mas isso sou eu. E além disso o complemento não é verdade; muitos não crentes sucumbem à mesma necessidade instintiva, apenas projetam sua necessidade psicológica de serem cosmicamente relevantes em outros tipos de fantasias.

diante da complexidade do mundo, o crente pressente a existência de uma inteligência transcendental, ao passo que, para o ateu, esse pressentimento é um passo indevido, uma projeção de quem observa o mundo.

Até aí, concordo plenamente. “Pressentir” coisas sem ir lá testá-las não é base para um sistema de crenças sobre como o universo funciona. Mas até mesmo sobre isso não é claro para mim que haja concordância generalizada entre os ateus.

O crente, ao perceber algo mais vasto que sua própria inteligência, julga tratar-se da obra de outra inteligência; o ateu, ao perceber algo mais vasto que sua própria inteligência, julga que o domínio dessa vastidão virá com o tempo. Parece que as duas atitudes refletem duas posições a respeito de uma possível ciência universal.

Discordo absolutamente. Tanto pessoalmente, quanto que isso remotamente descreva a posição da massa dos ateus, que freqüentemente dizem algo nas linhas de “Eu não sei, desconfio que você também não sabe, e sei lá se algum dia saberemos.” Certamente não descreve a *minha* posição.

Aliás, achar que o “domínio dessa vastidão virá com o tempo” é uma posição que não só não é representativa dos ateus como nem ao menos está com sintonia com o sentimento atual da comunidade científica. Algumas das descobertas mais importantes do século 20 tiveram a ver com se determinar a impossibilidade de conhecer certas coisas. Note, não digo nem a impossibilidade prática; digo a impossibilidade mesmo. Isso foi um grande golpe para muitos cientistas que acreditavam que a ciência poderia um dia saber ou explicar tudo. O próprio Einstein por exemplo nunca ficou muito feliz com o indeterminismo embutido na mecânica quântica e sempre considerou que isso não poderia representar como o universo realmente funciona, e tinha que ser sim um artefato da nossa ignorância sobre a realidade. O entendimento moderno é que ele estava equivocado sobre isso. Existem vários outros exemplos de importantíssimos resultados científicos obtidos modernamente sobre os limites – mesmo em tese – do conhecimento humano.

De um lado, o crente pergunta ao ateu: “E quando ficar evidente que a ciência universal é impossível, você passará a crer?”

Curiosamente, nunca nenhum crente colocou essa questão para mim, e duvido que a maior parte dos crentes se identificaria com essa pergunta. Alem disso, o fato de que a ciência universal é impossível já ficou – ironicamente e para grande surpresa da maior parte dos cientistas – cientificamente claro ao longo do século 20. Em particular para mim, é perfeitamente evidente que a ciência universal é impossivel e eu sigo não vendo qualquer motivo para diante disso acreditar em deus. Além disso, eu acho que *se* por hipótese houvesse uma ciência universal e se ela deixasse claro que a vida não faz qualquer sentido (como na minha opinião a nossa ciência parcial já indica fortemente), isso só aumentaria a necessidade emocional de irracionalmente acreditar em algo que dê magicamente sentido à vida. Acreditar em deus não é um ato de razão, é uma forma capenga de lidar com o desconhecido e com a falta de sentido. Como, aliás, essa própria pergunta parece indicar de forma embaraçosamente reveladora.

E o ateu pergunta: “E se a ciência universal acontecer, você deixará de crer?”

Ora bolas, se a ciência universal fosse atingida, ela nos informaria se deus existe ou não. Colocar qualquer possibilidade que não seja “eu acreditaria no que ela dissesse” demonstra precisamente a diferença de atitude entre crentes e ateus. Ou pelo menos entre mim e as pessoas que acreditam em coisas com base nas suas necessidades emocionais e não no que tudo indica que seja verdade.

É um tanto irresistível observar que, dita assim, a posição atéia parece se basear não num prometeanismo voluntarista, mas num prometeanismo inevitável: a transcendência não será mais necessária porque conquistá-la é só uma questão de tempo.

Eu não vejo por que motivo a tal inatingível “ciência universal” tornaria a transcendência “desnecessária”; talvez logicamente desnecessária, mas isso ela já é. O fato de que não podemos conhecer certas coisas é algo para ser aceito, não para ser “consertado” com “transcendência”. E a – diga-se de passagem, legítima – necessidade de transcendência espiritual é primordialmente psicológica, não lógica ou racional. Mas buscá-la projetando suas necessidades emocionais na estrutura da realidade e não em sua interpretação e significado é uma acochambração equivocada. A maioria absoluta das pessoas quando se aventura a falar da origem do universo não está realmente preocupada com de onde o universo *de fato* veio, e sim com qual o sentido de suas vidas.

Deus Em Maiúscula, Problema De Auto-Afirmação

August 23rd, 2009 by Sergio de Biasi

Pedro defende neste texto aqui que grafar “deus” sem colocar a primeira letra em maiúscula seria uma tentativa infantil de auto-afirmação. Apresenta para isso argumentos, como direi, péssimos, dizendo que os cristãos (e judeus) usariam a palavra “deus” como nome para seu deus específico, sendo portanto este uso um substantivo próprio, similar a Abraão ou Estados Unidos. Sinto muito, mas este é um truque fajuto de prestidigitação linguística. É como dizer : veja bem, um dos apelidos do meu time de futebol é “Time”, portanto a forma legítima de se referir a ele é “Time”. Então quando for feita uma referência ao *meu* time, a única grafia correta é “Time”, e não “time”. Yeah, right. Como se seu time tivesse algum status especial linguístico para quem não acredita nele. Como se por você resolver que ele tem o apelido “Time” o substantivo comum “time” deixasse de se aplicar. Como se para as outras religiões seu deus não fosse tão pagão quanto os outros são para você.

Aliás, a ironia já começa com a necessidade de fazer a ressalva “e judeus”. Mas mesmo sem ela, “cristão” já é algo por demais amplo. Certo, “deus” com maiúsculas se referiria então a uma certa entidade específica como definida por… católicos? Metodistas? Presbiterianos? Judeus? Espíritas? Existe toda uma infinidade de religiões e teologias em torno de que significado específico dar ao substantivo comum “deus”. Pedro começa a construir seu argumento dizendo que “deus” com maiúscula se referiria a uma delas, mas então esbarra imediatamente com o fato de que diversos grupos com concepções diversas e incompatíveis do objeto ao qual estamos nos referindo reivindicam simultaneamente o uso de maíuscula como se referindo ao *seu* significado particular. Então ele prossegue mesmo assim, não parecendo perceber (ou ignorando solenemente) que um requisito para algo ser substantivo próprio é precisamente a especificidade. Não dá para dizer : ok, o correto e obrigatório é grafar “Time” porque existem aqui duzentos e cinco times de futebol diferentes que acham que são o “Time” e é preciso usar maiúsculas para corretamente indicar que estamos nos referindo a algum deles. Isso não só não faz sentido lingüisticamente, como cria confusão e “ruído comunicativo” ao invés de esclarecer qualquer coisa. Os muçulmanos em geral também usam maiúscula quando usam a palavra “deus” para denotarem especificamente seu deus em português. Eles podem com igual legitimidade dizer que esté é um dos “nomes” do seu deus. Mas se “deus” com maiúscula vai significar o deus de qualquer religião monoteísta, então não vejo qualquer motivo linguístico para usar maiúscula. Mas claro, eu não me surpreendo que para o Pedro faça total sentido que só um certo número de seitas tenha autorização para usar apropriadamente “deus” com maiúsculas (esteja ou não o islamismo entre elas).

Haveria mérito num argumento com essa estrutura caso alguém insistisse em grafar “Alá” ou “Jeová” sem usar maiúsculas. Esses são de fato nomes usados em contextos específicos para dar nomes a interpretações mais restritas e suficientemente específicas da palavra “deus”. Mas “deus” genericamente é um substantivo comum perfeitamente legítimo da língua portuguesa e *mesmo que* se aceite o “argumento” de que um dos “nomes” do deus católico é “deus” com maiúscula, isso não eliminaria o fato de que o substantivo comum continua se aplicando. Note-se que “Abraão” de fato se refere a uma pessoa específica, “Estados Unidos” de fato de refere a um país específico. Não existe confusão sobre o objeto referenciado quando tais palavras são usadas. São casos absolutamente claros e inequívocos de substantivos próprios na língua portuguesa. Já “deus” com maiúscula pode se referir a toda uma ambígua coleção de entidades, e não vejo qualquer motivação linguística ou metodológica para assim grafar. O único motivo para fazê-lo, e para melindrar-se com isso, retroracionalizações à parte, isso sim me parece ironicamente ser essencialmente um problema de auto-afirmação. Do tipo “olha só como meu deus é o único verdadeiro, ele começa com maiúscula!”.

O Fantástico Argumento de Santo Anselmo

July 12th, 2009 by Sergio de Biasi

Para quem desconhece, o “argumento” de Santo Anselmo, é um argumento ontológico visando supostamente “provar” a existência de deus, apresentado (entre outros) por, bem, Santo Anselmo. (Existem outros argumentos ontológicos.)

O “argumento” de Santo Anselmo é essencialmente o seguinte :

1. Deus é a entidade mais completa / perfeita / maior / superior a todas as outras entidades concebíveis.
2. É mais completo / perfeito / maior / superior necessariamente existir do que não existir.
3. Portanto deus deve necessariamente existir.
4. Portanto deus existe.

Tem tantas coisas erradas com este argumento que é até difícil criticá-lo. É similar a criticar “Se todos os morangos que voam têm um PhD em lingüistica então eu sou um limão.” Com a diferença de que este argumento, ao contrário do argumento de Santo Anselmo, está perfeitamente correto do ponto de vista de lógica.

Usarei abaixo “A” para o quantificador lógico “para todos” e E para o quantificador lógicos “existe pelo menos um”.

O problema já começa quando tentamos atribuir significado lógico a essas idéias. Essa relação de “maior” está absolutamente mal definida, por exemplo. Mas digamos que formalmente exista uma relação binária M(x,y) definida sobre “todas as entidades concebíveis”, seja M qual for. E chamemos a propriedade de “ser deus” de D(x). Temos então :

1. A(x) [ D(x) <--> A(y)M(x,y) ] (definição)

Então chegamos ao passo 2, no qual é dito que é “mais perfeito” ser necessário do que não ser. O que se está dizendo então é que se x e y são entidades concebíveis e x existe mas y não existe, então x é “mais perfeito” do que y (implicitamente, sejam quais forem todas as outras propriedades de x e y). Aliás, note-se portanto que “existir” não é uma propriedade necessária das entidades concebíveis. Então chamemos essa propriedade de existir na realidade (e não apenas como “entidade concebível”) de R(x). Temos então :

2. A(x)A(y) [R(x)^~R(y) --> M(x,y)] (premissa)

A partir daí, chega-se (usando 1 e 2) ao centro do argumento, que é a conclusão de que algo que seja deus tem necessariamente que existir. Este passo está perfeitamente correto logicamente. Temos então :

3. A(x) [ D(x) --> R(x) ] (de 1 e 2)

O problema é no último passo, quando se conclui então que necessariamente existe uma entidade tal que ela satisfaz a definição de deus e ela é real (em oposição a meramente concebível).

4. E(x) [ D(x) ^ R(x) ] (errado, injustificável logicamente!)

O que efetivamente nós podemos concluir com base nas premissas apresentadas é que *se* deus como definido acima existe como entidade concebível, então existe como entidade real. Isso de forma alguma estabelece a necessidade lógica de que exista algo, mesmo no mundo das entidades concebíveis, que de fato satisfaça à definição de deus – *caso em que* teria que existir. Essa definição da propriedade “algo maior do que todos os outros” não é necessariamente instanciável para qualquer relação, ainda mais no caso de conjuntos infinitos, e isso não é nenhuma novidade. Isto é, claro, a não ser que estejamos dispostos a aceitar contradições, mas nesse caso automagicamente tudo é verdadeiro sem precisar de prova e não estamos mais falando de coisa alguma.

Portanto, o argumento não faz sentido nem mesmo em termos de lógica abstrata. Note-se que mesmo que ele *fizesse* sentido em termos puramente lógicos, as definições dadas são completamente arbitrárias, e não apresentam qualquer justificativa ou explicação sobre o que exatamente é ser “mais perfeito” ou por que seria “mais perfeito” existir do que não existir. Para o argumento ter qualquer relevância prática seria necessário estabelecer conexões entre tais afirmações e definições e o mundo real, porque senão estamos falando somente sobre um mundo imaginário no qual relações com essa estrutura formal são válidas.

Uma parte do problema de historicamente descontruir o argumento de Santo Anselmo é que um entendimento mais profundo da relação entre lógica e linguagem não apareceu até muito recentemente. Noções mais claras do que seja uma prova e da relação entre sintaxe e semântica em lógica formal só apareceram quase comtemporaneamente. Os gregos de fato iniciaram uma tentativa heróica de estudar o assunto mas chegaram a resultados bastante incompletos e depois disso houve um gigantesco hiato em que o progresso foi muito lento.

Em tempos mais recentes porém houve grande progresso na área, e um entendimento bem mais rigoroso do que constitui uma prova formal, e um dos grandes expoentes nisso foi Gödel.

Muito ironicamente, Gödel foi uma das pessoas que buscou de alguma forma atualizar ou “consertar” o argumento ontológico. Ele escreveu uma versão da mesma idéia usando lógica modal. A versão de Gödel nunca foi realmente considerada prova de coisa alguma pela comunidade matemática em geral, e sofre de problemas similares, embora menos primários.

Note-se que Gödel, apesar de ser um gênio, não era exatamente um modelo de equilíbrio psicológico e no final de sua vida tinha um grande temor de ser envenenado, comendo somente a comida preparada por sua mulher. Ocorreu então de sua mulher ficar doente e ter que ser hospitalizada por um longo período, e como resultado Gödel parou de comer, eventualmente falecendo (!) devido a subnutrição extrema.

O que isso prova sobre seus teoremas? Absolutamente nada! Teoremas não são verdadeiros dependendo de quem os publicou, e sim por causa de sua estrutura. A verdade é verdade independentemente de quem a diga e “fulano disse x” é no máximo evidência circunstancial, seja contra seja a favor. Elevar a autoridade a critério de verdade é subverter completamente a possibilidade de honestidade intelectual. Os maiores gênios da humanidade por vezes (aliás quase sempre) também dizem enormes bobagens e sua genialidade está muitíssimo mais na sua capacidade de enxergar coisas que ninguém mais viu do que na de serem infalíveis. Distinguir o joio do trigo, distinguir a verdade que corresponde objetivamente à realidade dos fatos de historinhas e devaneios é tarefa crítica inalienável do ouvinte sem a qual passa-se simplesmente a acreditar em “coisas”. O que, infelizmente, é a estratégia intelectual de grande parte da população mundial.