Literatura Libertária

March 27th, 2009 by Sergio de Biasi

Decepcionantemente, a mensagem libertária não tem um alcance maior e nunca parece ganhar momento suficiente porque ela não é assim tão cara a grande parte das pessoas. Uma parte substancial das pessoas quer mesmo é alguém que lhes diga o que fazer. Estas infelizmente talvez estejam além de qualquer salvação. Existe porém uma fração considerável de pessoas que fica satisfeita em ter um certo número de liberdades respeitadas mas não percebe plenamente o quanto foi e é continuamente necessário resistir às forças que continuamente querem regular suas vidas até o limite do quanto elas permitirem. Infelizmente, porém, falar sobre isso em termos de princípios fundamentais e abstratos tende a despertar muito pouca identificação da parte do leitor, e acabar se tornando monótono e frio.

Diante disso, um dos recursos mais usados para buscar levar os leitores a refletirem mais profundamente sobre as conseqüências que certas idologias têm se levadas às suas últimas conseqüências é a descrição de distopias nas quais certas visões de mundo prevaleceram. Ao mostrar como seria o mundo então, e que conseqüências isso tem sobre os personagens, as situações se tornam bem mais reais e bem mais difíceis de ignorar como não dizendo respeito a cada um de nós.

Sugiro aqui portanto algumas obras que eu considero importantes e interessantes nesse gênero, e que provavelmente serão mais eficazes do que quaisquer discursos sobre direitos individuais para despertar em alguém a coceira do pensamento libertário.

Nineteen Eighty-Four

Brave New World

Anthem

A Canticle for Leibowitz

Fahrenheit 451

Harrison Bergeron

O Papa e a Camisinha

March 24th, 2009 by Sergio de Biasi

Considere o leitor o seguinte texto, publicado em

http://blog.veritatis.com.br/index.php/2009/03/21/o-papa-na-africa-a-aids-e-os-preservativos/

O Papa na África – a Aids e os preservativos

O Papa está visitando a África, como muitos devem saber. Já no avião de ida, foi interpelado a respeito da questão da Aids endêmica e do uso dos preservativos. Neste artigo do Pe. Zuhlsdorf (em inglês) há um comentário sobre a questão e o vídeo da declaração mais controversa. Ao que parece, a declaração foi maquiada antes de ser colocada no site do Vaticano. Traduzi a declaração do Papa assim:

“Diria que não se pode superar este problema da Aids só com dinheiro. É necessário, mas se não há alma que o saiba aplicar, não ajuda. Não se pode superar [o problema da Aids] com distribuição de preservativos: ao contrário, aumentam o problema.” (grifo meu)

Venham os laicos e loucos, o papa está certíssimo. A distribuição de camisinhas passa uma imagem de “pode tudo, apenas use camisinha” que aumenta a incidência de Aids. Os programas de distribuição de preservativos mostram-se inefetivos até o momento. Os programas que fazem uso de reeducação — abstinência, fidelidade, parceiro único, etc. — são os mais efetivos, e demandam menos dinheiro.

Meu comentário :

Isso aí coloca em evidência total simultaneamente a insanidade e a desonestidade da posição da igreja católica.

Em primeiro lugar, a posição da igreja católica contra o uso de métodos anticoncepcionais é anterior (tanto cronologicamente quanto logicamente) a qualquer questão de saúde pública. Mesmo que não houvesse nenhuma epidemia de AIDS na África, mesmo que sexo casual não apresentasse qualquer risco à saúde, mesmo que a única função cumprida pelos preservativos fosse prevenir gestações indesejadas – mesmo assim a igreja católica continuaria sendo rigorosamente contra seu uso.

Note-se que a igreja católica não acredita apenas que usar métodos anticoncepcionais seja ineficaz, ou indesejável, danoso à saúde, ou não recomendado mas prerrogativa pessoal de cada um. Ela acredita que seja moralmente *errado*, injustificável, e ruim, e os católicos estão em princípio obrigados a não usá-los, e os sérios de fato não usam, um comportamento que a igreja gostaria de ver estendido ao resto da sociedade, e essa posição não tem nada a ver com ser isso a melhor ou pior forma de prevenir AIDS.

Apresentar a posição que há tempos é a doutrina oficial da igreja como sendo a mais apropriada para combater a AIDS é uma falsificação total. Mas tem que ser né? Porque afinal o papa, em sendo “infalível”, não pode mudar de idéia. Seria muito mais honesto apresentar a posição da igreja como sendo a de que mesmo que essa não seja a melhor forma de combater a epidemia de AIDS, é a que mais beneficia o caráter moral da sociedade e salva o maior número de pessoas. Mas essa posição é politicamente insustentável, em particular perante quem não é católico, então é preciso tentar fazer parecer que existiriam motivos menos delirantes para a posição da igreja.

Agora, o trecho abaixo é uma verdadeira obra-prima :

Venham os laicos e loucos, o papa está certíssimo. A distribuição de camisinhas passa uma imagem de “pode tudo, apenas use camisinha” que aumenta a incidência de Aids. Os programas de distribuição de preservativos mostram-se inefetivos até o momento. Os programas que fazem uso de reeducação — abstinência, fidelidade, parceiro único, etc. — são os mais efetivos, e demandam menos dinheiro.

Ela diz tanto sobre a posição católica. Parece mais um jogo dos 7 erros; absolutamente tudo neste trecho está errado.

Em primeiro lugar, *não é verdade* que a mera distribuição de camisinhas (ou mesmo campanhas informativas sobre para que servem e como usá-las) instantaneamente faça com que pessoas que não queriam transar se tornem libertinos depravados. Isso é uma visão completamente distorcida da realidade. As pessoas *já estão transando*, com ou sem a aprovação do papa. E quem não está, não vai repentinamente pensar “oba, camisinhas” e transar com a primeira pessoa que aparecer. Ninguém precisa de camisinhas para transar, como aliás o papa parece saber muito bem. Isso é apenas o bom senso. Mas se o bom senso não é suficiente (como claramente parece não ser), as pesquisas científicas realizadas sobre o assunto mostram que nas comunidades onde foram introduzidos programas de distribuição e informação sobre o uso de preservativos os hábitos sexuais não se alteraram de nenhuma forma significativa. O que de fato se alterou, e de forma *muito* significativa, foi o número de pessoas infectadas com doenças sexualmente transmissíveis.

Por outro lado, nos lugares onde os religiosos conseguiram impor sua fantástica estratégia baseada em educar os adolescentes para a abstinência até o casamento (e nos EUA, onde ao contrário da quase totalidade dos outros países desenvolvidos, infelizmente isso aconteceu em grande escala), as conseqüências foram 1. aumento do número de gestações indesejadas 2. aumento da taxa da natalidade 3. aumento do número de abortos 4. aumento do número de pessoas infectadas com doenças sexualmente transmissíveis. Mas para que eu não seja acusado que não ter “provado” fatos que são de conhecimento público e notório, aqui vão algumas referências :

Abstinence pledges don’t protect against STDs

Many who pledge abstinence at risk for STDs

Teen Mom Bristol Palin Speaks Out Against Abstinence

Conservatives and sexual abstinence groups battle with FDA over condoms

(Adendo importante, após extensa discussão seguida à publicação deste texto : aparentemente, segundo as mais recentes pesquisas científicas, as afirmações sobre o impacto das campanhas promovendo o uso de preservativos ajudarem a diminuir as taxas de contaminação com doenças sexualmente transmissíveis assim como sobre campanhas a favor da abstinência não funcionarem *não se generalizam* para a África, apesar de esse ser o efeito observado nas pesquisas realizadas em países desenvolvidos, que foram as que eu li antes de escrever o artigo.)

Agora, isso é só o aspecto de saúde pública da coisa. A verdadeira agenda da igreja católica, que não tem nada a ver com isso, é promover a idéia de que haja algo errado com sexo pré-marital, e desincentivá-lo de todas as formas que for possível, mesmo que para isso seja necessário deixar as pessoas morrerem de AIDS.

A idéia de que sexo possa ser algo perverso – essa sim é perversa. Sexo é antes de mais nada um instinto biológico fortíssimo e altamente motivante e que se expressado de maneira construtiva, consensual e respeitosa produz pessoas equilibradas, emocionalmente satisfeitas e psicologicamente fortes. Possivelmente, aliás, tudo o que a igreja não quer.

A idéia de que duas pessoas se casem sem antes terem tido sexo é não apenas risível, é perversa e maluca. Duas pessoas que pretendam compartilhar uma existência conjunta precisam conhecer uma à outra profundamente e precisam entender as necessidades um do outro e descobrir se elas se complementam. Achar que seja possível ter uma avaliação disso sem ter sexo com seu parceiro é completamente absurdo.

Isso sem falar no fato de que a igreja simultaneamente não admite o casamento homossexual e não admite o sexo pré-marital. Então os homossexuais simplesmente estão proibidos de fazer sexo se forem seguir as normas da igreja. Mas espere, para não restar qualquer dúvida a igreja é abertamente contra o sexo homossexual. Na verdade a posição da igreja é similar à do presidente do Irã – de que não existem *realmente* homossexuais, que isso é uma perversão moral e mental doentia de pessoas “na verdade” heterossexuais e que como tal deve ser combatida, “tratada” ou punida. Sendo que no Irã, onde os religiosos estão no poder, isso de fato é um crime, como aliás em praticamente todas as sociedade onde os religiosos com esse tipo de posição tiveram poder político suficiente para impor sua vontade.

Aliás, assim como o sexo fora do casamento, que é seriamente punido nas teocracias islâmicas. E não achem que os católicos e assemelhados hesitariam ou hesitaram em tornam isso lei onde tivessem ou tiveram poder político para tanto. Nos EUA existem constantes tentativas dos protestantes nesse sentido, com variado grau de sucesso, limitado apenas pela resistência do resto da sociedade, e que já conseguiram ir bem mais longe no passado, como ilustrado aqui :

Before You Live Together

Before 1970 it was illegal in every state for a man and a woman to live together if they were not married. It is no wonder Linda LeClair and Peter Behr made newspaper headlines in 1968.

Linda was a sophomore at Barnard College. Peter was a Columbia University undergraduate. These two unwed 20-year-old college students did something that millions of Americans found newsworthy. They admitted they were living together. Newspapers and magazines relayed the shocking news. They were shacking up in an off-campus apartment in violation of Barnard College’s regulations.

If Linda and Peter’s living together were to occur today, most people would probably say, “So what. Lots of people live together.” What was once uncommon has become commonplace. Barnard College no longer has a regulation that prohibits unmarried couples living together off campus. As you can probably guess, the state of New York no longer has a law that prohibits unmarried couples from living together anywhere. However, the surprise today is that eight states still do

Talvez o leitor possa imaginar que a igreja tenha mudado junto com a sociedade, mas não foi exatamente isso que ocorreu. A principal mudança foi que a igreja perdeu a quantidade de poder político necessária para impor sua vontade ao resto da sociedade, mas não vejo muitas dúvidas de que o faria se pudesse, como ilustrado por quase todas as sociedades teocráticas do mundo, e nas posições que assume em batalhas travadas dentro de sociedades não teocráticas. Ou por comentários como esse :

Judge rules against cohabitation law

A judge has thrown out a 201-year-old North Carolina law making it illegal for unmarried couples to live together.

Superior Court Judge Benjamin Alford of New Bern struck down the law as unconstitutional in a handwritten ruling released Thursday.

“I think it’s terrible,” said the Rev. Mark Creech, executive director of the Christian Action League of North Carolina.

“It was simply judicial activism at its best. That knocked down the law that is a cornerstone of state marriage policy. The law emphasizes that marriage is the family structure that ought to be encouraged because that is the best institution for family, children and society.”

“What the judge actually did was undermine marriage,” said Creech, who cited studies that concluded that those who live together first before marriage are less likely to stay married.

*******************************************************

Adendo : Desde que eu publiquei originalmente este texto, vários leitores chamaram a minha atenção para a existência de pesquisas científicas sugerindo que ao contrário do que ocorreu no resto do mundo, na África especificamente as campanhas de distribuição de preservativos não pareceram ter o efeito desejado, sendo observada em alguns casos inclusive uma correlação inversa, isto é, aumento do número de casos de AIDS nas regiões com maior número de camisinhas distribuídas. Considerações minhas sobre o assunto podem ser encontradas junto aos comentários feitos ao texto por leitores.

Para Abortar É Preciso Engravidar

March 22nd, 2009 by Sergio de Biasi

Um leitor escreve comentando um trecho de um texto recente meu, e propõe a seguinte questão : ok, se existe tanta comoção em torno do aborto, não seria proveitoso que discutíssemos também por que há tantas gestações indesejadas para começar?

De fato me parece proveitoso, e também me parece que seria extremamente coerente da parte das pessoas que são histericamente contra o aborto advogar a divulgação, disponibilização e uso responsável de métodos anticoncepcionais que impedissem que a fecundação ocorrese quando não é desejada. Mas talvez pessoas que defendam posições histericamente não tenham entre as suas habilidades mais desenvolvidas serem coerentes, porque o que ocorre em geral é precisamente o contrário.

No Brasil por exemplo, disparadamente uma das maiores causas desse número tão grande de gestações indesejadas é precisamente… a igreja católica, que insanamente fica fazendo campanha intensa contra a divulgação e uso de métodos anticoncepcionais. Se o problema é realmente impedir o genocídio de bebês, os católicos deveriam ser os primeiros a promover o uso de camisinha e de pílula. Esse foco exacerbado na idéia de que o problema seja que na concepção surgiria um novo ser humano se revela uma impostura a partir do momento em que se percebe que não há da igreja católica qualquer tentativa de ajudar a prevenir a concepção, mesmo estando isso plenamente e facilmente ao alcance da tecnologia atual.

Se a igreja católica quisesse de fato ajudar essas mulheres que estão abortando, buscaria auxiliá-las a não ficarem grávidas involuntariamente. O que elas querem é fazer sexo, não engravidar. E isso é perfeitamente possível hoje em dia, só requer um mínimo de informação e planejamento.

Mas isso tudo faz mais sentido se damos alguns passos para trás para olhar o contexto maior e percebemos que na verdade todo esse circo em torno do aborto é só um aspecto de uma obsessão muito mais ampla da igreja católica em tornar negativa, suja e feia a idéia de sexo, de colocar sexo como causa inexorável de coisas horríveis. Essa atitude profundamente neurótica com relação a um dos impulsos mais universais, saudáveis e potencialmente construtivos do ser humano tem sido responsável por uma quantidade imensurável de desgraça, infelicidade e tragédia.

Nos EUA esse papel é mais fortemente assumido pelos protestantes, que ficam enlouquecidamente promovendo aulas de “educação sexual” nas escolas cujo conteúdo é… promover a abstinência! E já que as “crianças” não vão mesmo fazer sexo, não é necessário ensinar como fazer seguramente, né? Evidentemente isso acaba sendo simplemente uma promoção intencional e irresponsável da ignorância. Freqüentemente existe oposição religiosa até mesmo a ensinar aos adolescentes que iniciam sua vida sexual exatamente *como* se dá a concepção, ao contrário do que ocorre rotineiramente na maior parte dos países desenvolvidos, onde o assunto sexo é tratado com muito mais naturalidade. A “teoria” dos religiosos parece ser que se não falarmos de sexo as inocentíssimas crianças não serão “pervertidas” e não sentirão necessidade de fazê-lo. Como se querer fazer sexo fosse uma perversão. Como se os seres humanos adolescentes não quisessem espontaneamente, biologicamente fazer sexo.

Como conseqüência, em uma pesquisa realizada entre indivíduos de 13 a 15 anos em áreas pobres de sete diferentes cidades americanas (1), 56% não sabiam que é impossível uma mulher ficar grávida com sexo oral, 59% não sabiam que o esperma humano é capaz de sobreviver por vários dias dentro do corpo de uma mulher, 70% não sabiam que lavar a vagina depois de fazer sexo é ineficaz como método anticoncepcional, etc. Talvez aqueles que ingenuamente (e contra a realidade biológica da puberdade) escolhem acreditar na “inocência” dos indivíduos nessa faixa etária achem que isso seja inofensivo e até apropriado, mas essa idéia é esdrúxula diante do fato de que um terço desses mesmos indivíduos já fizeram sexo.

O resultado dessa absurda ignorância promovida deliberadamente sobre sexo ?

EUA : Número um em gonorréia (2)

Porcentagem das pessoas que fazem sexo antes dos 18 anos :
EUA(63), Canadá(53), França(50), Suécia(65)

Porcentagem das mulheres que têm um filho antes dos 20 anos :
EUA(22), Canadá(11), França(6), Suécia(4)

Abortos por cada 1000 mulheres entre 15 e 19 anos :
EUA(29.2), Canadá(21.2), França(10.2), Suécia(17.2)

Incidência de gonorréia por cada cem mil indivíduos entre 15 e 19 anos :
EUA(572), Canadá(59), França(8), Suécia(2)

Olhem para esses números e vejam qual é o resultado dessa atitude míope, neurótica, histérica e opressiva sobre sexo. Examinem o que acontece quando essa idéia insana de “vamos proteger as crianças de sexo” é posta em prática. Não há qualquer impacto significativo sobre a quantidade de pessoas que fazem sexo, mas como as pessoas que estão fazendo sexo o fazem muito mais desinformadas, há um número bem maior de gestações indesejadas, o que leva a um número significativamente maior tanto de abortos quanto de filhos indesejados. Mas de brinde se produz uma sociedade que é (tolamente, desnecessariamente) disparada a número um em gonorréia. Essa é realidade concreta do resultado dessas políticas.

Onde fica então o discurso de que é infantil exibir certos comportamentos e então se eximir das conseqüências lógicas, previsíveis e conhecidas desses mesmos comportamentos? Os movimentos religiosos que buscam obstruir o uso de métodos anticoncepcionais, entre eles a igreja católica, contrariamente a seus lindos discursos, estão na prática concretamente promovendo o aumento do número de abortos. Mais uma medalha para os ninjas da hipocrisia.


(1)
Knowledge about Reproduction, Contraception, and Sexually Transmitted Infections among Young Adolescents in American Cities.
Carrera, Michael; Kaye, Jacqueline Williams; Philliber, Susan; West, Emily. Social Policy, Spring2000, Vol. 30 Issue 3, p41-50, 10p

(2)
Differences in Teenage Pregnancy Rates Among Five Developed Countries: The Roles of Sexual Activity and Contraceptive Use.
Darroch, Jacqueline E.; Singh, Susheela; Frost, Jennifer J.. Family Planning Perspectives, Nov/Dec2001, Vol. 33 Issue 6, p244, 8p, 5 charts, 1 graph

Autópsia de uma Consciência em Colapso

March 20th, 2009 by Sergio de Biasi

O contexto é o seguinte. Em comentário a um texto que escrevi recentemente, um dos leitores fez a seguinte observação :

Já quanto à Religião (…), se você não entende como uma pessoa pode acreditar em Deus ou pautar-se por uma Religião – que é uma coisa medonha e totalmente desprovida de razão e moralidade, não é? – por favor, aponte uma só civilização que não tenha se edificado mediante a idéia da existência de Deus (ou Deuses).

Ok, este é um comentário que em si mesmo não considero particularmente absurdo; a religião de fato parece ser um fenômeno universal. Apenas acho muito pouco apropriado daí deduzir que ela seja desejável, boa, ou sequer automaticamente “edificante” no processo civilizatório em oposição a meramente endêmica. Respondi então dizendo isso que acabo de dizer e comentando que

“Eu poderia igualmente dizer : aponte uma civilização que não tenha se edificado sem travar guerras, ou sem pobreza, ou sem usar drogas.”

Recebi então sobre esta frase um comentário que exemplifica tantas coisas sobre as quais venho falando recentemente – inclusive em outros textos – que parei no meio da resposta que estava escrevendo sob a forma de comentário e decidi publicar um texto sobre o assunto.

Eis na íntegra o comentário que me foi deixado :

Caro Sr. Sérgio,

Francamente, creio que sua consciência desta vez entrou em algum tipo de colapso:

“Eu poderia igualmente dizer : aponte uma civilização que não tenha se edificado sem travar guerras, ou sem pobreza, ou sem usar drogas.”

Dirá você que queria dizer, mais não disse o que disse, só usou de uma comparação absurda e sem fundamento para mostrar o absurdo argumento sem fundamento dos católicos.

Pera lá Sr Sabe-Tudo! Quer dizer então que os romanos ou egipcios, ou os gregos fundaram suas civilações chapados ou nestas civilizações houve uso de drogas? E não me venha dizer que não quis dizer isso, pretensos sofismas ou malabarismos intelectuais já não convencem. Que diabos de civilação drogada ou que permitiu uso de drogas foi essa? A civilização dos hippies? Bom..eu já apontei três, gostaria de saber que tipo de drogas os romanos, os egipcios e os gregos costumavam a usar? Ah.. bebidas ou plantas medicinais naõ valem tá?

E tem ainda os medievais católicos..quatro!

E é preciso não um ninja, mais talvez um super-samurai como o Sr. Sérgio para cortar a pobreza à espadas. O Sr Sérgio com estes argumentos do outro mundo parece acreditar na utopia marxista, e eu digo parece, ok? Será que um douto ateu como o Sr Sérgio acredita no mito milenarista de que o igualitarismo é possivel? Ah, não. Afinal para um ateu nada pode ser plenamente bom, só meio bom, a igualdade nunca será possivel com estes ninjas católicos por perto. Ele evidentemente naõ quis dizer o que disse. Fica a consciência individual do Sr. Sérgio registrada em um blogue para convencer ninguém a aderir as suas ideías meio igualitárias, e fica a pobreza.. contra a vontade em cima do muro do Sr. Sérgio.

Aponte o Sr. Sérgio se alguma civilação que perceber sua ordem sendo ameaçada ou de fato, estiver sendo atacada, se ficará de braços cruzados? Creio que o Sr. Sérgio também não quis dizer o que disse, afinal de contas, ele apenas conceituou a guerra como se os dois (ou três, quatro e etc) paises inimigos naõ tivessem razão para se defenderem ou atacarem. Ah.. mais as guerras matam pessoas inocentes e é contra os direitos humanos da ONU. Sim, as guerras matam pessoas inocentes, mas o aborto não, naõ é Sr. Sérgio? Imagina..ele não quis dizer isso. Sim, as guerras são contra alguns direitos humanos, de certa forma, mas o aborto nunca. Não é? Então viva os direitos humanos de quem estão livres dos ventres das mães. Talvez se o Sr. sérgio fosse contemplado com este direito contra sua existência, ele naõ poderia estar se lamentando agora contra os ninjas hipócritas. Ainda bem que sua mãe não cumpriu esse direito da mulher Sr. Sérgio. Sua mãe seguiu a ideologia destes ninjas retrógados. E o senhor está aí..vivo.

Com a palavra, se quiser, o Sr. Sérgio….

Esse texto demonstra uma confusão mental tão grande e uma percepção tão incorreta da realidade concreta que poderíamos facilmente descartá-lo como simplesmente sem nexo. Porém, there is method in the madness, e várias das percepções, preconceitos e raciocínios automáticos nele ilustrados infelizmente não são incomuns, e a ignorância neles contida é ativamente promovida por uma multiplicidade de movimentos políticos e religiosos. Responder a ele torna-se dessa forma relevante e de importância quase pedagógica, supondo que entre os bombardeados pela chuva de mentiras e lavagem cerebral que produz estados mentais como esse existam também outros mais críticos que sintam o cheiro da falsidade e que possam extrair algum benefício (ou pelo menos material para reflexão) de se falar sobre o assunto.

Prossigamos.

Fundamentos

Em primeiro lugar, o ponto da minha comparação é justamente apontar a absurdidade de afirmar que só porque algo seja universal, então será automaticamente civilizatório, ao apontar coisas que são de fato universais, mas não necessariamente civilizatórias. Achei que isto estaria óbvio mas aparentemente era preciso explicar. Mas até aí é só confusão mental.

Drogas

Muito mais espantosos são os comentários sobre as drogas, e foi aí que eu decidi que era mais importante publicar isso como texto e não como comentário. Sim eu estou afirmando que o uso de drogas é algo universal em todas as civilizações. E sim, os romanos, os egípcios, os gregos usavam drogas, caso alguém porventura desconheça esse fato histórico básico. Aliás, assim como os “medievais católicos” (embora seja discutível categorizar esse grupo como “uma civilização”).

Uma parte substancial das drogas mais usadas atualmente incluindo maconha, ópio, e naturalmente álcool não são nenhuma novidade histórica, e foram usadas extensamente nos últimos milhares de anos ao redor do mundo, assim como muitas outras. Isso é algo tão incontroverso e de conhecimento geral que é desnecessário argumentar extensamente. Para quem for mesmo remotamente surpreendido por essa informação que aqui meramente cito, sugiro que leia as referências que apontei e procure outras caso queira compreender quão constrangedora é a insinuação de que romanos, egípcios e gregos não usavam drogas.

Aliás, como isso não fosse suficiente, ironicamente um dos usos mais tradicionais de drogas em todas as civilizações sempre foi em cerimônias religiosas. E ainda mais ironicamente, isso é verdade inclusive na igreja católica onde a eucaristia é realizada com vinho até hoje. E dizer que “bebidas não valem” é mais uma demonstração inacreditável de hipocrisia. O álcool é uma droga tanto quanto todas as outras, por qualquer critério. Falar de drogas com tal grau de histeria e desconhecimento enquanto a sua (suponho) própria religião usa drogas em suas celebrações consegue bater todos os graus de ignorância, hipocrisia e loucura.

Sobre que tipo de civilização drogada “permitiu” o uso de drogas, a resposta é todas. Inclusive aliás as atuais, nas quais por exemplo álcool, cafeína e nicotina continuam sendo perfeitamente legais e aceitas socialmente para uso recreativo, e às quais podemos adicionar uma enorme coleção de drogas psicotrópicas disponíveis para uso medicinal. Isso sem falar nas que apesar de nominalmente ilegais são usadas em ampla escala.

Ailás, esse negócio de criar uma histeria inacreditável em torno de drogas e de querer proibi-las é algo absolutamente moderno. Historicamente, a preocupação e mesmo a condenação moral sempre foram com o abuso, não com o consumo em si. Tão recentemente quando no começo do século 20, a coca-cola (uma bebida popular sem qualquer estigma social) continha cocaína e só quando uma onda de histeria regulatória tornou a cocaína ilegal ela foi substituída por outra droga similar, a cafeína. Aliás, nos estados unidos houve tentativas sérias de se proibir a cafeína (sem grande sucesso) assim como o álcool (que eventualmente fracassou, mas com consequências terríveis). Mas voltando à cocaína, ela não apresentava qualquer problema ou estigma para ninguém, sendo que na Europa do final do século 19 era ingrediente por exemplo no popular Vinho Mariani, que era não só consumido como recomendado pelo papa Leão XIII, que premiou o químico que o desenvolveu com uma medalha.

Pobreza

Passa então o autor do comentário a argumentar que eu estaria defendendo o igualitarismo, logo em seguida a eu afirmar que a pobreza, assim como a religião, a guerra e o uso de drogas, é um fenômeno universal nas civilizações humanas.

Para começar, isso demonstra uma incapacidade embaraçosa de apreender a estrutura básica do meu argumento. Mas saltando por cima do fato de que eu estava justamente dizendo que a pobreza é algo universal e possivelmente de alguma forma essencial e inevitável nas sociedades humanas, existe um erro bem mais relevante : a noção de que o combate à pobreza (compreendida como miséria) seria automaticamente uma defesa do igualitarismo. Esse é *precisamente* o perverso e injustificável salto cognitivo que o marxismo conseguiu que grandes massas humanas introjetassem a ponto de o realizarem de forma silenciosa, automática e acrítica. E o autor do comentário realiza esse salto sem se dar conta, enquanto nominalmente criticando o marxismo! Ora, é precisamente isso que os marxistas defendem : que a melhor forma de combater a miséria seria atacando as desigualdades, impedindo e destruindo a acumulação de riqueza privada, que empobrecer os ricos seria um objetivo desejável e meritório. Então dessa forma consegue-se cooptar para o projeto marxista pessoas que movidas pela caridade buscam aliviar os sofrimentos decorrentes da pobreza alheia, ensinando-lhes que combater a miséria é idêntico a promover o igualitarismo que tem como conseqüência perseguir a riqueza. Com tantas pessoas que (como o autor do comentário) automaticamente vêem como equivalente o combate à pobreza e a defesa do igualitarismo, não é surpresa que haja tantos comunistas.

Guerra

Essa parte é até difícil de comentar porque ela é basicamente um amontoado de incongruências nas quais até mesmo a capacidade de escrever de forma ortográfica e gramatical do autor do comentário se esgotou. Eu não “conceituei” a guerra de forma alguma um meu texto, eu não disse coisa alguma sobre a ONU, ou sobre “direitos humanos” ou sobre a guerra matar pessoas inocentes. Isso tudo veio diretamente da imaginação do autor do comentário.

Aborto

Finalmente, o autor do comentário decide falar sobre aborto, e ignora completamente, como é de praxe, o fundamento da posição de quase todos aqueles que se opõem à criminalização do aborto no início da gestação : que num aborto realizado suficientemente cedo, *ninguém* morre. Para a maioria das pessoas contra a criminalização do aborto, o ponto não é e nunca foi se é certo ou bom matar bebês e sim se bebês estão morrendo para começar. Adicionalmente, representar a posição de “o aborto não deve ser um crime” como sendo “todas as pessoas devem abortar sempre que ficarem grávidas” é um discurso no mínimo desonesto se for só uma mentira e francamente maluco e delirante se o próprio autor do comentário não percebe a distinção.

Os Ninjas da Hipocrisia

March 18th, 2009 by Sergio de Biasi

A Mosca Azul faz o segunte comentário sobre este meu texto :

Um católico não tem de “seguir dogmas” tal qual um manual de etiqueta ou de bom comportamento; o crente, porém, deve crer neles incontornavelmente, na doutrina teológica. Se não acredita, está fora. Isso em nada é similar aos argumentos sobre práxis política que o Sergio apontou.

O formato do argumento parece ser então mais ou menos o seguinte : não podemos criticar a instituição igreja católica por atos reprováveis praticados por católicos porque ela não requer realmente que os católicos façam qualquer coisa boa, apenas que acreditem sinceramente em uma certa quantidade de dogmas inacreditáveis.

Isso levanta um aspecto de fato muito fundamental na fé católica : o importante, o essencial não é fazer coisa alguma, e sim “acreditar”. Isso permeia toda a personalidade do catolicismo e explica muitas coisas quando compreendido.

Coerentemente, o Pedro, em um texto recente, observa que ao contrário do que ocorre no direito civil, “não pode haver excomunhão para quem desconhece a pena de excomunhão para determinado ato”. Ou seja o importante *mesmo* não é fazer a coisa certa, é obedecer, é subjugar seu julgamento pessoal à autoridade eclesiástica. Não existe pecado maior do que ouvir uma ordem e ter a ousadia de conscientemente contrariá-la. Tudo o mais pode ser “desculpado” na confissão no domingo.

Delícias do Anarco-Capitalismo

March 17th, 2009 by Sergio de Biasi

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Não me entendam mal, eu sou libertarian e coisa e tal, mas assim como não dá para chegar na Lua subindo em árvores, não dá para preservar os direitos individuais abolindo todas as entidades que poderiam garanti-los.

Senão vejamos, partamos do fundamento do que considero o espírito libertário : o ser humano individual deve ter garantidas certas liberdades e certas seguranças pessoais, mesmo contra a vontade ou até mesmo interesses reais ou imaginados do resto da sociedade. Não interessa por exemplo se meus rins poderiam salvar a vida do presidente; ninguém pode me forçar a doá-los contra a minha vontade. A integridade do meu corpo físico, a liberdade de expressar idéias, a preservação da propriedade contra apropriação indevida são, entre outros, princípios que gostaria de ver defendidos.

Mas aí começamos já desde a fonte a esbarrar em problemas. Para isso funcionar em sociedade, precisamos de alguma forma concordar sobre *quais* princípios serão defendidos. E mais do que isso, defendidos por *quem*?

Suponhamos que meu vizinho resolva sem qualquer provocação atacar-me violentamente buscando tomar minha vida. Parece razoável considerar que para evitá-lo eu possa, se necessário, tomar sua vida, mesmo contra a idéia de que a vida deve ser em princípio preservada, e que não me torno, por assim dizer, socialmente indesejável por fazê-lo. Isso leva a todo o tipo de discussão sobre que direitos devem prevalecer sobre quais, e em que circunstâncias, etc. E infelizmente, não existe uma resposta “certa” para o sistema de direitos e garantias mais correto. Além disso, muito provavelmente haverá discordância generalizada entre pessoas com um mínimo de independência crítica já sobre quais sistemas são remotamente bons, quanto mais sobre qual seria o ideal.

Isso acaba por nos criar o seguinte problema. Defender coercitivamente qualquer formulação específica do conceito de liberdade individual vai contra o conceito de liberdade individual.

Para resolver essas questões, certas correntes resolvem que portanto a solução é basicamente não forçar coercitivamente de forma universal qualquer formulação específica do conceito de liberdade individual. Deixemos os indivíduos sozinhos, cada um livre para cuidar do que é seu.

Evidentemente se pararmos por aí isso não vai funcionar, porque nada impedirá que parasitas desajustados sem qualquer escrúpulo quanto às liberdades individuais dos outros imediatamente se unam para saquear e pilhar o resto da sociedade. A única forma de evitar que isso aconteça é aquele que mais ou menos concordam sobre a desejabilidade de certas garantias fundamentais se unam então para fazer valer tais idéias. Só que dificilmente é realista, desejável (ou sequer possível) que uma sociedade moderna se construa em torno da idéia de que teremos professores universitários de dia que são vigilantes à noite.

Para encurtar o argumento, a essência da tese dos anarco-capitalistas é que coisas como a segurança pessoal, a propriedade privada e os contratos seriam eventualmente garantidos por seguradoras (e seus respectivos serviços por exemplo de segurança e arbitragem) que cobrariam pelo serviço.

Bem, para começar, eu vejo grande similaridade entre isso e o que já ocorre. Os governos são hiperinfladas instituições precisamente deste tipo. Após uma sucessão de reviravoltas retóricas e semânticas, chegamos a uma situação na qual efetivamente pagamos a grandes instituições às quais não temos a menor chance de individualmente nos opormos para nos protegerem dos outros. É de uma ingenuidade muito grande imaginar que tais instituições colocarão meu bem estar acima de seus interesses, ou que a “perda de credibilidade” ou de negócios espontaneamente fará com que elas se comportem de forma a preservar a minha liberdade. Pelo contrário, a pura e irrefreada motivação de maximizar o lucro me parece que definitivamente não só não está logicamente atrelada à maximização da minha liberdade, como pode em muitos casos ir diretamente contra ela.

Eu não disputaria que o sistema de justiça tal como implementado na maior parte dos países é notoriamente caro, vagaroso, arbitrário, politizado e cheio de vários outros tipos de problemas. Diante disso, mesmo sem mudarmos completamente a estrutura política, a arbitragem, um dos pontos do programa anarco-capitalista, parece uma possibilidade que poderia ou até deveria ser mais explorada. Ou não? Bem, em países como os Estados Unidos isso tem sido uma prática crescente, freqüentemente para surpresa de quem diante de uma disputa descobre que assinou um contrato no qual, nas letras miúdas, abriu mão de seu direito de reclamar uma solução na justiça e ao invés disso se submeterá obrigatoriamente a arbitragem sem possibilidade de recurso. Maravilhosamente anarco-capitalista? Bem, o resultado prático parece ser mais na direção de dar as empresas o direito de colocar como um dos termos do contrato “as leis pertinentes não serão aplicadas”. O que aliás de fato *é* maravilhosamente anarco-capitalista. Principalmente para o lado mais poderoso do contrato, que pode simplesmente impor a sua vontade, e danem-se as garantias individuais à liberdade, propriedade, etc.

Apesar disso tem sido porém quase um mantra entre certas correntes ultra-laissez-faire que a busca do lucro individual à la Ayn Rand dentro de um sistema de livre mercado automaticamente cria um sistema que naturalmente converge para o ponto ótimo da função utilidade coletiva para todos.

Infelizmente, quando indivíduos egoístas se põem a comandar grandes empreendimentos sem qualquer tipo de freio, o que ocorre é exatamente o oposto. Pateticamente e ridiculamente, não exatamente porque os “patrões expoliadores” criem uma oligarquia burguesa que oprime o proletariado. Pelo menos não num estado moderno. O que ocorre é que as pessoas colocadas em tais posições simplesmente roubam a maior quantidade possível de dinheiro e saem correndo. A crise americana atual, que assume proporções desastrosas, não foi conseqüência dos bancos agirem, para proveito próprio, contra os interesses da sociedade. Pelo contrário, os bancos agiram radicalmente contra seus próprios interesses, e alguns dos maiores bancos americanos quebraram, estão quebrando, ou estão moribundos. Enquanto isso executivos e traders foram rindo pra casa com literalmente bilhões de dólares. O que foi que deu errado? O que deu errado – e isso foi um erro até mesmo dos próprios capitalistas investidores – foi a idéia de que se deixarmos a economia nas mãos de um bando de egoístas amorais, tudo magicamente vai dar certo no final porque se eles administrarem mal o dinheiro perderão os investidores. Ora, me parece que isso não importa muito de você já levou mais dinheiro pra casa do que poderá gastar em dez vidas. É a isso que o rational self-interest descontrolado concretamente nos leva. Para que o interesse individual racional em obter lucro pessoal não supere todas as outras considerações, é preciso que haja algum desincentivo, alguma conseqüência para quem agir como um psicopata.

Por Que As "Pessoas Católicas" Só Falam Bobagens Sobre Quem Não Concorda Com Elas?

March 15th, 2009 by Sergio de Biasi

Eu começaria por dizer que isso nem sequer é verdade. Apenas me pareceu um título irresistível após o título, digamos, estusiasmadamente generalizante do texto do Pedro.

Naturalmente, as “pessoas esclarecidas” falam todos os tipos de coisas sobre todos os tipos de assuntos, assim como o fazem as “pessoas católicas”. Muitas das críticas feitas mutuamente são perfeitamente razoáveis, e até mesmo o Pedro, quando resolve ser razoável, faz críticas muito sérias sobre as quais vale a pena refletir. Existem críticas perfeitamente válidas à religião católica, assim como ao – como colocar? – “esclarecimento”.

Porém, recentemente, tem acontecido um fenômeno que não ocorre em geral com todas as “pessoas católicas”, mas que tem acontecido com o Pedro. O fenômeno é escrever longos textos na linha de “Aqui estão detalhadamente todos os motivos pelos quais o presente tema sobre o qual discorro não me interessa e por que falar sobre ele é uma perda de tempo tão grande que não vou ficar me dando ao trabalho de debater o assunto”. E então procede a debater o assunto.

Eu não sei exatamente como classificar esse modus operandi, se como hipocrisia ou meramente arrogância, falta de self-awareness ou algo mais, mas o que eu extraio disso é o seguinte : existe uma dissonância fundamental entre o que está sendo dito e o que está sendo feito. O que, pensando bem, talvez no fim das contas infelizmente seja uma característica bastante comum entre as “pessoas católicas”. E não tem como ser diferente, porque a realidade na qual vivem é completamente fantástica e dissociada do que realmente é verdade; se fossem forçadas a seguir à risca tudo o que dizem, não só sua loucura ficaria evidente demais para ser varrida para debaixo do tapete, como a grande maioria provavelmente desistiria no ato de ser católica.

Mas prossigamos às quatro “coisas” listadas por Pedro ao defender que o discurso dos “detratores da religião” por “pessoas esclarecidas” só pode ser explicado por “burrice ou má fé”, sendo “mesmo o caso de procurar explicações psicológicas”.

Ponto Número Zero

Aliás, comecemos por uma pré-coisa discutida no começo do texto, que é a distinção entre as seguinte “entidades” : “1. o magistério da Igreja, 2. a instituição materialmente existente, 3. todos aqueles que se dizem católicos, 4. todos aqueles que se disseram católicos em toda a história, 5. muitas coisas além disso e 6. tudo isso junto.”

Evidentemente aqueles que se dizem “católicos” não necessariamente seguem exatamente os dogmas oficiais defendidos por Roma. Isso é óbvio para qualquer pessoa minimamente pensante. Mas esse argumento é similar a defender o comunismo dizendo que Cuba não é *realmente* comunista, ou que a China não é *realmente* comunista, e assim por diante, por não seguirem fielmente os cânones do “verdadeiro” comunismo. Esse argumento se torna ainda mais indefensável quando evidentemente até mesmo representantes supostamente oficiais da igreja católica como padres, monges e assim por diante nitidamente agem e ensinam flagrantemente contra o que Roma diz. Se uma unidade do exército americano comete um massacre num país estrangeiro, não é uma defesa razoável nem sustentável dizer “ah, eles agiram contra nossas ordens então não temos nada a ver com isso”. É melhor do que se o mal causado fosse intencional, mas dissociar-se convenientemente das conseqüências concretas da forma como sua instituição funciona é, isso sim, cegueira ou hipocrisia. O mais fantástico é que essas são as mesmas pessoas que desmontam esse argumento como ridículo quando aplicado em outros contextos.

Por exemplo, seria muito fácil afirmar (e de fato é um argumento quase padrão) que os críticos do comunismo são uns tolos ignorantes e desinformados porque não conseguem sequer observar a distinção fundamental que existe entre “1. os líderes comunistas (Stalin, Lenin, Castro, Mao, etc), 2. os governos comunistas (União Soviética, Cuba, China, etc), 3. todos aqueles que se dizem comunistas, 4. todos aqueles que se disseram comunistas em toda a história, 5. muitas coisas além disso e 6. tudo isso junto.”

Isso é uma forma de magicamente escapar da acusação de que o comunismo matou milhões de pessoas ao longo da história. “Oh, vejam que ignorância, não foi o comunismo, foi Stalin.”

Naturalmente, esse argumento poderia ter algum fundamento se os atos perpetrados não tivessem nada a ver com comunismo. Se descobrimos um bombeiro estuprador, não corremos a bradar que a instituição dos bombeiros é corrupta. Mas se os bombeiros sistematicamente saqueiam as residências nas quais entram durante incêndios, há algo errado com a instituição.

Na verdade, eu diria que é impressionante como em geral as pessoas comuns não religiosas interessadas no assunto quase sempre sabem muito, muito mais sobre a igreja católica do que o “devoto” médio, que em geral não conhece absolutamente *nada* sobre o que realmente está na bíblia, quais preceitos são realmente dogmas oficiais, qual a estrutura da igreja católica, sua história, etc. Tais pessoas “esclarecidas” estão em geral muito mais qualificadas para emitir qualquer julgamento sobre a igreja católica do que o “católico” médio. Isso não diz nada sobre a igreja? Pois para mim diz *muito*. Não é como se essas pessoas não fossem todo domingo à missa, e ouvissem algo que deveria ser um sermão iluminando algum aspecto da fé católica. Ao invés disso são universalmente servidas um ritual zumbificante e completamente desinformativo.

Em resumo, esse argumento de dividir a igreja católica em uma multiplicidade de entidades pode até funcionar para certos tipos de crítica, mas não é uma panacéa que automaticamente torne vazias ou inválidas críticas feitas ao todo apontando para uma das partes. Aliás, está muito mais para um truque de prestidigitação retórica ao final do qual as críticas são simplesmente ignoradas.

Ponto Número Um
“um horror absoluto à idéia de que algo não mude”

Quando se trata de qualquer pessoa ou entidade que esteja defendendo conhecer “a verdade” sobre o mundo, esta “verdade” não estar aberta a discussão e ter que ser aceita por autoridade ou “fé” é sim algo que pega muito mal. Naturalmente que mudar apenas para demonstrar “modernidade” é estúpido. Mas responder a qualquer crítica sobre inconsistência com a realidade ou incoerência interna com “isso é um mistério da fé” não funciona muito bem entre “pessoas esclarecidas”. Quando algo não muda porque tudo indica que seja verdade apesar de uma grande quantidade de reflexão e investigação, isso é excelente e indica que talvez tenhamos encontrado algo próximo à verdade. Nenhuma pessoa “esclarecida” que eu conheça tem qualquer problema com o teorema de Pitágoras ser o mesmo há mais de mil anos, ou brada pela sua revisão por ser arcaico e antigo. Mas ele de fato tem algo eterno e transcendente a seu favor. Ele é de fato verdadeiro, e não é preciso recorrer a nenhuma autoridade ou “fé” para verificar isso.

Já algo que não muda porque foi arbitrado por alguma autoridade como convencionalmente “verdadeiro” não goza, não interessa o quanto se esperneie sobre o assunto, do mesmo grau de eternidade e infalibilidade, e não parece um bom fundamento para um sistema de crenças ou valores. O impedimento contra mudanças é completamente artificial nesse caso, e desperta desconfiança e desconforto em qualquer um com independência de pensamento.

Evidentemente que na ciência também não é o caso de que o sujeito ali da esquina tenha os meios para contestar verdades sobre física de partículas. Mas isso é uma limitação prática, não de princípio. Novamente, a matemática é um excelente exemplo de disciplina científica na qual tais limitações práticas impõem muito poucas barreiras ao progresso do conhecimento. Se algo é realmente verdade, é verdade para todos, e qualquer um com suficiente dedicação e talento pode fazer novas descobertas universalmente verificáveis por outros de forma muito objetiva, sem precisar de autorização, permissão, aprovação ou concordância das autoridades vigentes. Isso é completamente contrário à idéia, sim, tristemente eterna de que alguém vai lhe dizer o que fazer – seja o governo, o papa, sua família, o professor da escola.

Aliás, a própria idéia de que haja uma autoridade central decidindo a “verdade” na qual todos estarão então forçados a acreditar é odiosa e absurda. E é nesses moldes que a igreja católica funciona. Portanto mesmo que ela fosse infalível e estivesse absolutamente certa na totalidade de suas santas conclusões (algo em que eu não tenho qualquer razão para remotamente acreditar), um sistema como esse é infantilizante e perverso.

O mais irônico é que a igreja católica, pretensamente eterna e universal, começou num momento histórico determinado e muda o tempo todo. Talvez mais lentamente e ponderadamente, digamos, do que um partido político, mas em longos períodos de tempo a igreja católica mudou enormemente. Se compararmos a igreja católica atual com a de 500 anos atrás e com a de mil anos atrás, veremos mudanças, sim, revolucionárias, nos assuntos mais fundamentais possíveis. Enxergar a igreja católica como uma referência espiritual estável e coerente é risível. Exercícios retóricos para tentar forçar uma consistência inexistente apenas realçam a existência da questão.

Ponto Número Dois
“desejo de que nenhum ato tenha uma conseqüência indesejável”

Essa é quase uma tautologia. É claro que todos queremos que nossos atos tenham apenas as conseqüências que desejamos, quase por definição. Não há absolutamente nada de errado com isso, e o contrário seria esquizofrênico.

A crítica, talvez mal articulada na frase acima, parece ser sim ao comportamento infantil de não quem não assume a responsabilidade por conseqüências obviamente previsíveis de seus próprios atos. Alguém que faz sexo irresponsavelmente, vê-se diante de uma gravidez, e diz “ah, não foi culpa minha, porque não era o que eu queria”. Ou que bebe um monte de refrigerante, ganha peso, e então diz “ah, não foi culpa minha, eu estava com vontade de beber refrigerante, não de engordar”. Sim, isso é absolutamente infantil, e diria eu, pior do que infantil, demonstra problemas sérios de caráter.

Porém, para começar, o que decorre como conseqüência previsível de certos atos muda com a tecnologia e com o contexto. Hoje em dia pessoas perfeitamente responsáveis e conscientes podem usar por exemplo pílulas anticoncepcionais para evitar a causalidade entre sexo e filhos, ou comprar refrigerantes preparados com adoçantes artificais que podem beber sem engordar. Essas causalidades mudaram modernamente, mudando também o significado de tais atos (desde que executados responsavelmente). Porém existe em certos segmentos da sociedade uma inércia moral alucinada que ainda enxerga certas coisas como causa incontornável de certas outras, quanto isso simplesmente não é mais verdade. Sexo absolutamente não precisa gerar bebês, e qualquer pessoa “esclarecida” está abundantemente consciente disso. Então quando “pessoas católicas” vêm buscar impor esse discurso plastificado, e sim, protegido de “mudanças” pela autoridade da igreja, é natural que “pessoas esclarecidas” não vejam qualquer sentido ou mérito em tais idéias. Não mais do que em “Se você escolher dirigir um carro deve estar preparado para a hipótese de que seu pneu vai furar, você vai perder o controle e matar TRANSEUNTES INDEFESOS!!!!”

Adicionalmente, no caso de sexo, o discurso é particularmente absurdo. Assim como hoje em dia a causalidade entre o ato sexual e gravidez pode ser confiavelmente eliminada por pessoas responsáveis, a causalidade entre gravidez e gerar bebês também simplesmente não é mais automática. Existem diversas formas de se evitar que uma gravidez leve à geração de bebês, especialmente no começo da gestação, quando métodos químicos podem ser usados com mínimos efeitos colaterais. E não, eu não aceito nem como hipótese a idéia de que um óvulo recém fecundado seja um “bebê”. Essa é uma afirmação simplesmente ridícula para mim. Abortar quando não se deseja ter um filhos, isso sim pra mim é um ato de grande responsabilidade e que demonstra a determinação de assumir a responsabilidade pelas conseqüências de seus atos ao invés de meramente agir como vítima de suas próprias escolhas.

Então o que realmente ocorre em geral não é que as “pessoas católicas” lutem para aumentar o grau de responsabilidade e consciência na tomada de certas decisões. De forma alguma. Em geral o que ocorre é que elas tomam seus preconceitos ditados por Roma e criam todo o tipo de conseqüência absolutamente falsa e fabricada como inevitavelmente decorrente de certas escolhas e então repetem isso ad nauseam com um discurso agressivo, acusatório e pseudo-moralista, enquanto tentam pressionar a sociedade a tornar seus dogmas autoritários leis civis aplicáveis a todos. Não, obrigado. Não tenho qualquer intenção de ensinar a meus filhos que toda vez que eles se masturbam um anjo no céu começa a chorar.

Ponto Número Três
“eufemismos tolos e totalitários”

O ponto anterior ainda tinha uma conexão mais ou menos forte com religião, ao buscar explicar uma posição antagônica das “pessoas esclarecidas” com relação a religião através do fato de esta pretensamente lhes lembrar sobre as conseqüências negativas de seus atos. Me parece que o ponto atual vai mais na direção de um discurso genérico contra as tais “pessoas esclarecidas”. Mas vejamos do que ele trata.

O único “eufemismo tolo e totalitário” citado nesta parte é “precisamos discutir algo” significar “precisamos mudar a legislação”. Então os dois exemplos são no sentido do “legalizar x”. Ora, para começar, eu não vejo como um discurso genérico em favor de “precisamos mudar a legislação para legalizar x” possa ser autoritário. Independentemente do discurso ser tolo, ou desonesto, como é que ele pode ser autoritário? Pelo contrário, o que me parece extremamente autoritário é a legislação vigente sobre esses assuntos.

Talvez então a *forma* de mudar a legislação é que seria autoritária. Talvez a crítica seja que quem diz querer “discussão” sobre esses assuntos na verdade não quer discutir coisa alguma, e sim impor sua mudança na legislação. Esse argumento torna-se francamente ridículo quando observamos a receptividade ao debate apresentada por aqueles que defendem as posições opostas. Aqueles a favor da criminalização do aborto e das drogas têm por norma uma retórica apocalíptica, autoritária e inflexível, e não costumam estar abertos a discutir coisa alguma. Um pré-requisito para que a legislação pudesse ser mudada de forma não autoritária seria que houvesse uma discussão honesta dos assuntos em questão, e que o público em geral tivesse consciência dos fatos objetivos sobre o assunto, ao invés de uma torrente de propaganda e lavagem cerebral. Especialmente sobre as drogas, a quantidade de desinformação é grotesca; as pessoas não tem a mais remota noção de que a maioria das drogas ilegais é menos viciante e apresenta menos riscos à saúde do que por exemplo cigarro. O discurso sobre o assunto de uma parte substancial das “autoridades” é simplesmente desonesto, ignorante e mentiroso. Então é preciso, sim, discutir esses assuntos de forma menos mentirosa. Aliás em grande parte dos casos o tabu imposto em torno do tema é tão forte que nem sequer há discussão. Então nesses casos o que é preciso para começar é sim discutir o assunto. Não há nada de eufemismo, nem de tolo, nem de totalitário nisso.

Por outro lado, ironicamente, o outro lado do debate não hesita por um segundo em usar, eles sim, eufemismos, tolos, e totalitários. Enquanto os defensores da não-criminalização do aborto se entitulam de forma razoavelmente neutra “pro-choice”, aqueles a favor da criminalização do aborto, que são literalmente “against choice”, se entitulam “pro-life”. Chamar a posição a favor da criminalização do aborto de “pro-choice” é isso sim um exemplo reluzente de um eufemismo tolo e totalitário. E completamente desonesto, porque evidentemente é construído em torno da insinuação de que seus oponents sejam “against life”, ignorando completamente o fato de que o debate é justamente sobre se existe uma vida humana sendo terminada.

Mas é como todo o resto; é dizer “Jesus é filho de Deus”, e então responder a “Mas como você sabe?” com “Está na Bíblia” e “Mas como você sabe que a Bíblia está certa?” com “A santa igreja católica disse que está” e então a “Mas como você sabe que a igreja está certa?” com “Ah, ela foi fundada por Jesus!” e então “Mas como você sabe que Jesus está certo?” com “Ora, ele é o filho de Deus, duh!”

Ponto Número Quatro
“mentalidade vitoriana”

Quanto à descrição das “pessoas esclarecidas” como tendo mentalidade vitoriana, supostamente imagino em oposição ao autor, eu fico pasmo.

O texto ao qual presentemente respondo é colocado desde um ponto de vista de alguém que é tão “superior” ao objeto criticado que nem sequer mais fica indignado com os absurdos que observa, por estar tão distanciado de tais erros que lhe provocam apenas curiosidade. O que pode ser mais vitoriano do que isso? “Oh, olhe só que coisa curiosa os nativos estão fazendo hoje!”

Note, o problema não é tanto colocar fotos de atrizes inglesas e francesas semi-conhecidas versus fotos de mulheres toscas com bunda grande e peitão de fora sambando na rua. Cada um tem seu gosto. A questão é colocar fotos de quaisquer mulheres louvando o quanto são atraentes e então vir com invectivas relacionadas com o fato de que “sexo gera bebês”. Isso sim é hipocrisia vitoriana em grande estilo.

A mentalidade vitoriana se definia justamente por proclamar altíssimos ideais de “pureza” enquanto na prática continuava-se sendo simplesmente humano. Então as esposas da época vitoriana eram nominalmente desencorajadas a apreciarem sexo, mesmo com seus maridos. Os quais então recorriam a prostitutas para terem sexo de verdade. Um costume bastante “católico”, aliás.

Por outro lado alguém que abertamente proclama para todos ouvirem que gostariam sim de agarrar aquela mulata seminua que samba à sua frente pode ser chamado de muitas coisas, mas acho que “vitoriano” não me parece ser uma delas. Pode até ser o caso de que a pessoa declare isso por pressão social para se mostrar “do povo”, mas mais uma vez, o enaltecimento de ser “do povo” não é exatamente algo que possa ser chamado de “mentalidade vitoriana”, aliás muito pelo contrário.

Sobre acusar tais “pessoas esclarecidas” de usarem a indignação como substituição a argumentos, isso é no mínimo curioso vindo de quem apóia movimentos cujo único “argumento” contra o aborto é “OH, TEMOS QUE PARAR O GENOCÍDIO DE BEBÊS”. Como se o centro da discussão em torno do aborto não fosse justamente se está ocorrendo um genocídio de bebês para começar. A discussão não é e nunca foi sobre se matar seres humanos é ótimo e lindo, e sim sobre se seres humanos estão sendo mortos. Mas é óbvio que apresentar a questão com esse grau de honestidade é prejudicial à retórica.

Por mais que eu deteste o politicamente correto, eu vejo muito, muito, muito mais falsa, hipócrita e freqüentemente histérica indignação do lado daqueles que se opõem aos “democrats” e “liberals” americanos do que vinda que deles próprios. Sou o primeiro a concordar que é completamente estúpido uma pessoa não poder ser contra, digamos, ação afirmativa sem aparecer alguém para chamá-lo de racista. Mas é igualmente estúpido alguém não poder ser contra a criminalização do aborto sem aparecer alguém para chamá-lo se assassino de bebês. Ou mesmo de defensor do aborto; é perfeitamente possível ser contra a criminalização do aborto sendo radicalmente contra o aborto, e essa aliás é uma posição bastante comum. Mas isso se perde na retórica histérica e desonesta de “Oh, você é contra a crimininalização do aborto? SEU ASSASSINO!”. Ou “Oh, você é a favor da descriminalização das drogas? SEU ASSASSINO IRRESPONSÁVEL! QUER QUE NOSSAS CRIANÇAS MORRAM DE OVERDOSE E SE PROSTITUAM NAS RUAS??” Err, se eu sou a favor da descriminalização, talvez seja em parte porque eu acho altamente improvável que qualquer dessas coisas vá acontecer. Aliás, provavelmente diminuirão.

Esta confusão intencional entre o que alguém acha errado e o que deve ser crime é desonesta e deturpa tanto a consciência moral quanto o papel do estado. Mas a igreja católica, em todas as oportunidades que historicamente teve, nunca se importou muito com o fato de que nem todos são católicos, e sempre buscou tornar lei civil aquilo que seus preceitos morais alienígenas recomendam, sem hesitar por um momento em usar de desinformação e histeria para atingir esse objetivo.

Aliás, mesmo que não houvesse qualquer desinformação ou lavagem cerebral, me parece razoavelmente claro que algo nem tudo que é desaprovado em pesquisas de opinião pública deva ser automaticamente tornado ilegal para começar (acho que nem é preciso argumentar sobre o tipo de aberração a que isso leva/levou/levaria).

Finalmente, alardear taxas nominais de “rejeição ao aborto” em pesquisas de opinião pública no Brasil provavelmente apenas registra o sucesso da igreja católica em sua campanha insana de lavagem cerebral para tornar socialmente inadmissível a defesa pública da legalização de uma prática que é onipresente e corriqueira em todas as localidades e classes sociais do país. Por um lado avalia-se que no Brasil se realizem aproximadamente um milhão de abortos por ano. Por outro lado, a taxa de natalidade brasileira gira em torno de 18 por mil habitantes e caindo. O Brasil tem aproximadamente 200 milhões de habitantes. Isso significa que para cada 18 crianças nascidas, aproximadamente 5 são abortadas. Ou seja, aproximadamente vinte por cento de *todas* as situações em que ocorre uma gravidez são resolvidas com um aborto. E eu devo acreditar que este é um país com uma forte posição “contra” o aborto? Só mesmo na mente delirante das “pessoas católicas”. Isso é uma impostura e uma hiprocrisia de dimensões continentais. O que aconteceu foi que se dizer a favor de legalização do aborto se tornou “politicamente incorreto”, em grande parte por pressão da igreja católica, que impinge a pecha de “assassino” a qualquer um que ouse fazê-lo. O mesmo ocorre por outros mecanismos com a legalização de certas drogas, que apesar de universalmente usadas, carregam consigo uma carga artificialmente, arbitrariamente e hipocritamente inflada de inaceitabilidade social, de forma que defender abertamente sua legalização implica se atirar de cabeça em estigmas e acusações quase incontornáveis pela força da histeria, lavagem cerebral e desinformação que os cercam.

Conclusão

“1. Ninguém mais atribui neutralidade ou imparcialidade à mídia. De que modo isso afeta a credibilidade?”

Na minha opinião, positivamente, desde que isso seja introjetado pela mídia. Desde que o jornalista não seja deliberadamente mentiroso, eu acho que revelar suas opiniões e afiliações pessoais ao invés de se revestir de um suposto manto de imparcialidade e objetividade contribui para o que o leitor seja melhor capaz de julgar por si mesmo em que acreditar. Naturalmente, desde que não estejam todos dizendo precisamente a mesma coisa e haja de fato onde encontrar opiniões alternativas defendidas de forma minimamente competente a seres consideradas.

“Será que o jornalismo se tornou apenas um reforçador da identidade ideológica dos leitores?”

A pergunta é justa, e acho que infelizmente a maioria das pessoas tende a buscar apenas autores que confirmem seus pontos de vista. Porém no jornalismo pelo menos existe uma certa diversidade, mesmo que sem igualdade de representação. Por outro lado, a igreja, que certamente pretende ter um papel muito mais fundamental na vida das pessoas do que a imprensa, é construída sobre uma fundação dogmática e unanimista. Cabe então perguntar “Será a igreja apenas um reforçador da identidade ideológica de seus devotos?”, e se essa pergunta já é séria no caso da imprensa, me parece muitíssimo mais contundente no caso da igreja.

“2. Não será a hora de parar de não perceber que existe uma identidade de grupo entre jornalistas, que quem está de fora percebe? Como isso afeta a relação entre o público e os jornalistas?”

Acho que todas as pessoas pensantes percebem isso claramente há já muito tempo, e esse é provavelmente um dos motivos pelos quais agora que há alternativas os jornais tradicionais estão no mundo inteiro em crise. A internet permitiu o acesso direto do leitor tanto a fontes primárias de informação quanto a opiniões divergentes freqüentemente excluídas da grande mídia.

Isso sendo dito, estou falando das pessoas pensantes, com independência intelectual, senso crítico, e iniciativa. É provavelmente justo dizer que tais pessoas são infelizmente são uma pequena parte da população. Para a pessoa média, trata-se de ver um noticiário povoado de banalidades irrelevantes como o panda que não quer comer no zoológico tal ou a perseguição ao fugitivo na auto-estrada. Para essas pessoas a relação com a mídia continua mais ou menos igual : o jornalista é uma fonte de entretenimento e de cola social sob a forma de assuntos inofensivos para conversar com família, amigos e colegas, um instrumento de socialização entre ou com pessoas que não tenham qualquer vida interior, idéias próprias ou mais sobre o que falar mas que precisem exercer a necessidade humana de produzir ritualmente sons que outros comunalmente fingem que ouvem enquanto esperam a sua vez de produzi-los. E a uniformidade do discurso é fundamental para isso de fato funcionar.

3. Por mais padronizada que seja a linguagem jornalística, não será melhor abdicar do padrão em nome da informação, isto é, da complexidade?

Seria se o objetivo fosse realmente informar. Mas a função que a grande mídia cumpre normalmente está muito distante disso. Aliás, freqüentemente, o objetivo é desinformar, por vários motivos. Nenhum veículo de mídia quer realmente ofender ou alienar seu público com medo de perdê-lo, então instintiva e naturalmente evita vários assuntos, freqüentemente os mais importantes. Além da questão dos anunciantes, da necessidade de escrever sobre algo mesmo quando não há nada a escrever, da necessidade de não contrariar demais o governo, etc. Então o “jornalismo” voltado para as grandes massas é na sua maior parte um circo de desinformação irrelevante e superficial com valor primordialmente de entretenimento e de semente de coesão social. Informar não tem muito a ver com isso.

Ou isso inviabilizaria o jornalismo enquanto negócio? Se inviabilizar, em que o jornalismo difere moralmente do tráfico de heroína?

Eu pessoalmente não acho que haja nada de errado com o tráfico de heroína em si mesmo; a meu ver 99.9% dos problemas ligados ao comércio e consumo de heroína derivam de sua ilegalidade. Aliás a meu ver o tráfico de desinformação promovido pela imprensa é infinitamente mais danoso e viciante para a sociedade do que qualquer coisa que a heroína jamais causou ou pudesse causar. Infelizmente isso não ocorre por acaso; é uma simbiose com o público que não quer realmente ser informado tanto quanto entretido.

“4. Serei eu mesmo uma pessoa tão esclarecida a ponto de poder tornar meus preconceitos padrões universais de julgamento? Será que não estou deslumbrado demais com meus diplomas?”

Eu acho que nenhuma pessoa é esclarecida a esse ponto. Temos cada um nossas opiniões baseadas em nosso bom senso, nossa inteligência e nossas experiências pessoais, e se elas têm algum mérito cabe a nós demonstrarmos aos outros através do convencimento, não da autoridade, da força, da intimidação ou da lavagem cerebral, que elas o têm. Claro que pretendemos que nossas opiniões tenham de fato valor de verdade e aplicabilidade universal, mas isso deve ser mais um objetivo a ser honestamente perseguido do que um mantra a ser repetido – ou imposto.

E decididamente deslumbrar-se com seus próprios diplomas – isto é, confundir aprovação e prestígio com estar certo – é um risco contínuo e perverso nos meios intelectuais.

Agora, se essa é uma questão importante a ser colocada para os intelectuais e pseudo-intelectuais de plantão, é ainda muito mais apropriadamente colocada ao próprio autor da pergunta, ao papa, aos bispos e às outras “pessoas católicas” que ao contrário das “pessoas esclarecidas” se apresentam explicita e declaradamente como detentores de verdades infalíveis : “Serei eu mesmo uma pessoa tão esclarecida a ponto de poder tornar meus preconceitos padrões universais de julgamento?”

Trust

March 8th, 2009 by Sergio de Biasi

Para quem gostaria de entender um pouco melhor a minha personalidade (1) recomendo assistir (2) ao filme Trust (3). Identifico-me enormemente com o personagem masculino principal, e com as situações que ele enfrenta, e com as escolhas que se tornam muito mais difíceis e insustentáveis depois que ele encontra a personagem feminina principal (4).

(1) Naturalmente, ninguém tem qualquer obrigação de estar interessado em entender melhor a minha personalidade.

(2) Reflexão aleatória sobre a forma correta de usar o verbo assistir. Este verbo pode ser usado de várias formas, a maior parte delas sendo transitivo indireto. Quando usado como transitivo direto, porém, ele tem um significado específico em exclusão de todos os outros. E esse significado *não é* o que normalmente se tem em mente na maior parte dos textos modernos. Daí faço duas observações.

(2.1) Uma é sociológica. As pessoas hoje em dia estão cada vez mais gastando suas vidas assistindo no sentido indireto ao invés do sentido direto. Elas assistem aos filmes, assistem ao noticiário, assistem à novela, assistem às aulas. Como espectadores, não como participantes. O mundo que lhes é apresentado através de todos esses canais soa cada vez mais distante, abstrato e desconectado de suas realidades. Se alguém vir um assalto em curso no meio da rua, muito mais provavelmente assistirá indiretamente do que diretamente. O sofrimento do outro parece cada vez menos real. Ou relevante. Não sei o que é pior; esquizofrenia autista ou cinismo pragmático.

(2.2) A segunda observação é gramatical e linguística. Existe algum motivo decente para mantermos essa anomalia do verbo assistir senão gerar questões para provas de português? Por que não simplesmente decidir que podemos todos assistir televisão e pronto?

(3) Certo, e como é que você vai conseguir assistir a um filme independente que foi feito em 1990? Bem, hoje em dia isto é possível. Mas se não fossem os avanços da tecnologia moderna, seria um pedaço da nossa cultura meio que perdido para sempre, trancado no cofre de alguma produtora por falta de “mercado”. Aliás, como centenas, milhares, milhões de livros, filmes, música, fotos, obras de arte, programas de rádio, jornais, artigos científicos, enfim, toda a herança intelectual da nossa civilização, essencialmente trancada em cofres. As leis de copyright talvez um dia tenham feito sentido, quando era caro e logisticamente complexo transmitir informação. Hoje em dia elas precisam urgentemente serem revistas. Talvez haja espaço para se preservar algum tipo de proteção jurídica contra exploração comercial indevida de obras intelectuais em detrimento de suas autores, mas simplesmente proibir sua divulgação começou a esbarrar não só em direitos individuais como no interesse da sociedade.

(4) Uma nota sobre a atriz que faz o papel principal feminino deste filme, Adrienne Shelly. Mas ou menos recentemente ela foi encontrada morta no apartamento que usava como escritório em Nova York. Seu marido a encontrou enforcada, pendurada no cano do chuveiro. A polícia inicialmente considerou a possibilidade de suicídio, mas o marido afirmou enfaticamente que isso seria completamente inacreditável. As investigações eventualmente revelaram que o que aconteceu foi que havia uma obra no mesmo prédio, e um dos operários havia invadido o apartamento para furtar e estava tirando dinheiro da bolsa dela quando ela o surpreendeu. Ela começou a gritar, o sujeito pulou nela, e finalmente decidiu que o melhor plano era enforcá-la e deixá-la pendurada no chuveiro. O legista determinou que ela ainda estava viva quando foi pendurada. Ela tinha uma filha pequena. Essa história é completamente inaceitável. Acho que quanto a isso quase todos concordarão. O ponto que eu quero levantar é que a alegada superioridade moral da maior parte das pessoas sobre um sujeito como esse é completamente frágil e tosca. Eu queria acreditar que a maior parte das pessoas não faz essas coisas porque se importa com os outros. Eu queria viver num mundo em que isso fosse verdade. Mas na prática o que diferencia a maior parte das pessoas de um sujeito como esse é que elas não são tão idiotas como ele e não querem arriscar passar o resto da vida na cadeia. Pelo menos não pelo conteúdo de uma bolsa. Além disso, as pessoas são histéricas e frescas, e não têm coragem de irem lá e esganar alguém. Note, isso não tem nada a ver com se importarem, ou com altos princípios morais. Elas tranqüilamente ordenariam que alguém esganasse ou fariam vista grossa se alguém esganasse, desde que fosse seguro e conviesse aos seus objetivos. Meu medo quando mais jovem era ir parar no mundo de Nineteen Eighty-Four. Mas na realidade está mais para Lord of The Flies.

Um Breve Comentário Sobre Comentários

March 4th, 2009 by Sergio de Biasi

Estendendo coisas sobre as quais já falei antes.

Alguns leitores por vezes escrevem reclamando que seus comentários não foram publicados. Por vezes, adicionam às reclamações sugestões de que isso seria censura, antidemocrático, autoritário, ou algo parecido. Ora, nem todos os comentários têm igual relevância ou interesse. E naturalmente quem julga isso é quem está publicando. A revista Veja não tem obrigação moral de publicar a totalidade dos comentários aos seus artigos. Aliás, pelo contrário, dado o seu volume, isso só entulharia tudo e tornaria a seção de comentários inútil. Uma publicação serve algum propósito justamente por ser seletiva no material apresentado. Mas adicionalmente, eu diria que uma publicação não precisa a rigor servir qualquer propósito. Exigir que não só sirva a algum, como sirva ao *seu* propósito preferido, e não ao de quem está publicando, isso sim é autoritário.

A Convoluta e Perversa Farsa da Vida Acadêmica

March 3rd, 2009 by Sergio de Biasi

Falemos agora de uma das grandes farsas em nossa sociedade : o sistema acadêmico.

Em quase todas as sociedades modernas no mundo desenvolvido, somos *forçados* a passarmos aproximadamente dos 7 aos 17 anos, dez dos mais ricos e produtivos anos de nossas vidas, como escravos do estado.

Em geral não enxergamos isso dessa forma porque existe excessivo condicionamento social e em geral aceitamos como normal o que percebemos como onipresente, mas historicamente isso não é nem um pouco normal. E adicionalmente, digo eu, nem um pouco saudável.

A reação mais automática a essa afirmação provavelmente é de argumentar que não existe qualquer escravidão envolvida. Agora vejam, essa processo não é opcional para começar. E além disso ele não consiste meramente em se requerer que sejam feitos certos testes ou preenchidos certos fomulários; é preciso dar expediente, na verdade é preciso basicamente dedicar sua vida a isso por 10 anos! Ao mesmo tempo, o estado nos diz o que *tem* que ser ensinado, o que *não pode* ser ensinado, por quantas horas, por quem, onde, etc, etc. Em que isso difere de escravidão? Então o processo todo já começa de forma errada.

Mas fica muito pior.

Uma fração absurda do “conhecimento” “ensinado” nas “escolas” é simplesmente falso. Mesmo que fosse majoritariamente correto, é apresentado de uma tal forma que os alunos não têm a menor condição de assimilar. E ainda bem que não têm, e de fato não o fazem, porque é quase tudo completamente irrelevante.

Voltemos à primeira afirmação.

Uma parcela substancial dos “fatos” ensinados na escola está simplesmente errado. Falso. Não corresponde à verdade. Isso é em parte por incompetência, ignorância, desinteresse e desleixo dos “professores”, mas também é em grande parte resultado das ementas serem decididas através de processos administrativos e políticos que inevitavelmente esbarram em compromissos e negociações completamente desconectadas de considerações acadêmicas. Porém, até mesmo esses fatores são apenas acessórios. Ensinar coisas erradas é absolutamente fundamental para cumprir a principal função da escola, que é desligar o senso crítico das pessoas. Não existe qualquer tentativa real de fazer com que os alunos saiam da escola “sabendo” o que se pretendia ensinar ali. A única coisa que um aluno precisa fazer é ano após anos seguir ordens para não falar, não pensar independentemente, não subverter a autoridade, repetir obediente coisas das quais discorda ou que não compreende. E pronto, é basicamente “libertado” para seguir com sua vida. Para a quase totalidade dos alunos, responder a perguntas em um teste corresponde a descobrir que coisas ele deve escrever para mais eficientemente ser deixado em paz. Não tem absolutamente nada a ver com aprender nada.

Isso fica patentemente e pateticamente evidente se começarmos a verificar, entre os cidadãos adultos que nos rodeiam e que passaram todos por esse sistema, se ficou algo de toda essa overdose de “cultura” registrado em seus cérebros. Exceto para aqueles que têm interesse pessoal ou profissional em determinados assuntos, em geral absolutamente nada ficou. Quando temos 8 anos de idade, teoricamente estudamos por exemplo a história do Egito antigo. Algum cidadão normal saberia dizer qualquer coisa sobre isso? No segundo grau, estudamos a química envolvida no processo de extração de energia da glicose para produção de ATP. Respondemos isso em provas. Alguém realmente sabe isso? É tudo uma grande pantomima. Em geral, nem sequer os próprios professores que falam desses assuntos estão realmente capacitados a explicar (ou entender) a pesquisa científica que levou a essas conclusões, ou a sua relevância. Vira tudo uma enxurrada de factóides e incongruências que o ser humano médio faz muito bem em ignorar tanto quanto possível.

Mas uma coisa fica – o condicionamento a seguir automaticamente a autoridade, a não questionar cânones oficiais, e a completa inutilidade e futilidade de se preocupar ou tentar buscar o que é realmente verdade. Ninguém no sistema se importa com o que realmente seja verdade. A lição que fica é “Diga obedientemente que 2+2=5 ou terá sua cara comida por ratos.” (Vide “1984″.) Isso é desfigurante tanto do ponto de vista intelectual como moral.

Poderíamos esperar ou pelo menos torcer que isso mudasse em níveis mais “superiores” de ensino. Numa graduação, num mestrado, quem sabe num doutorado. Ou indo mais longe, se colocarmos ressalvas às possibilidades de lugares como PUC, UFRJ ou Unicamp, quem sabe em Stanford, ou Harvard, ou Princeton, ou Columbia.

Infelizmente, a farsa é mais bem produzida, mas é a mesma.

A maioria absoluta das teses e artigos produzidos pelo sistema nunca jamais será lido por ninguém. E ainda bem, pois são produzidos mecanicamente diante da pressão de publicar alguma coisa, qualquer coisa, para justificar o título de “cientista”. Nesta pressa toda, ter algo original e relevante sobre o que escrever é mero detalhe, então os textos são vezes demais repetições de banalidades, especulações aleatórias e desinformadas, vazios de conteúdo, impenetravelmente obtusos (freqüentemente como forma de defesa contra uma análise crítica), ou simplesmente errados.

No meio dessa confusão, um ser humano dotado de senso crítico e conhecimento da área ainda consegue, com razoável esforço, defrontado com um inchamento completamente artificial da literatura, ignorar o lixo e se concentrar no que exibe algum conteúdo aproveitável. Mas a maior parte é absolutamente delirante.

É mais ou menos como quase qualquer jornal. É possível (mesmo assim não infalivelmente) comprar o jornal do dia para saber o horário do cinema ou que temperatura fez ontem em Nova York, mas não espere que a seleção de notícias seja na sua quase totalidade minimamente relevante ou que os jornalistas em geral saibam do que estão falando. Afinal de contas, o jornal tem que ser publicado haja ou não algo útil para dizer; o espaço entre os anúncios tem que ser preenchido com alguma coisa.

O mesmo ocorre na maior parte dos departamentos de pós-graduação. É preciso defender teses, é preciso ir a congressos, é preciso publicar. Quando seu emprego depende disso, pode ter certeza de que coisas serão escritas.

Devemos então fechar os departamentos de pós-graduação? Bem, a farsa é grande mas é como em todo o resto da sociedade. Não é maior do que a que encontraríamos em média no fórum, num consultório médico, ou numa paróquia. Se meu carro não pega quase nunca eu posso jogar ele fora mas a não ser que eu tenha meios para comprar outro carro estarei pior do que antes. Poderíamos então tentar consertar o sistema, ou substituí-lo por outro. E até me parece que haja sistemas mais e menos piores. Só que qualquer sistema terá que ser projetado para lidar com a eventualidade (i.e. certeza) de ser composto primordialmente de pessoas dispostas a conjuntamente e universalmente conspirarem para fazer tudo errado. E infelizmente, quem determina qual é o sistema não são em geral anjos e santos, mas ainda mais pessoas. Voltamos então ao tema comum nesta grande farsa : o problema não é realmente o sistema. O problema são as pessoas.