Darwin e etc.

February 28th, 2009 by Sergio de Biasi

Eu fico muito admirado com a percepção de que exista alguma “perseguição” à religião latente no mero fato de um dos grandes triunfos da ciência moderna estar sendo comemorado. A correlação que existe entre os dois (ciência/teoria da evolução versus criacionismo/religião) é assimétrica e é em geral muito mais objeto de preocupação pelo lado da religião do que pelo lado da ciência. Existem muito mais religiosos gastando seu tempo combatendo as teorias científicas que descendem das idéias originalmente propostas por Darwin do que cientistas gastando seu tempo para provar falsas idéias defendidas por religiosos sobre os mesmos assuntos. Além disso, de fato nem sequer há qualquer contradição lógica intrínseca com a proposição de que o processo evolutivo em si mesmo poderia em princípio ser a implementação de um plano, como provavelmente a maior parte dos cientistas admitiria sem problemas. Essa aliás é, acredito, a posição oficial da igreja católica. Então como pode ser uma celebração da teoria da evolução algum tipo de ato anti-religioso? Bem, talvez pudesse emocionalmente e socialmente ser apesar de isso ser injustificado, mas nem sequer isso é o que vejo. Eu vejo a celebração de Darwin como similar à celebração de Newton ou Einstein; enaltecimento de pessoas cujas idéias avançaram a nossa compreensão de como a realidade funciona. Aliás, Einstein era completamente ateu (apesar de algumas pessoas quererem afirmar o contrário com citações aleatórias completamente fora de contexto) enquanto que Newton era profundamente religioso. E daí? Eu não vejo, pelo lado da esmagadora maioria da comunidade científica, ninguém realmente se importando com nada isso ao celebrar suas obras, assim como as de Darwin.

Outro argumento que me espanta é o de que a rejeição ao criacionismo nos currículos escolares ou nas publicações acadêmicas seria ideológica. De fato, se um cientista quer ser biólogo numa universidade séria, ele não pode começar a defender que evolução seja “apenas” uma teoria, e sair escrevendo papers sobre “intelligent design” (ou sobre duendes, aliás). Mas ele está sendo “censurado”? Não, ele pode seguir acreditando no que quiser e divulgar isso usando os meios de que dispuser. Mas não através de uma instituição cujos critérios de busca de verdade não são compatíveis com os dele. Se eu disser que as vozes na minha cabeça estão me dando informações sobre outros universos eu também não serei contratado pela universidade. Sendo a ciência um empreendimento humano, tais critérios necessariamente passam pela avaliação e pela aprovação dos outros cientistas. Se ele não conseguiu convencer os outros cientistas de que suas teses são válidas ou merecem investigação, isso é um motivo perfeitamente válido para não ser contratado. Evidentemente que isso deixa a pesquisa influenciável pelos preconceitos e convicções pessoais dos cientistas, mas é quase cômico uma instituição religiosa criticar esse sistema quando sua própria estrutura é intrinsecamente autoritária e dogmática e não há qualquer espaço para julgamento individual da verdade quando existe um pronunciamento oficial sobre o assunto. Os cientistas gozam de uma liberdade (relativa às opções) extraordinária dentro de suas próprias instituições para questionar o status quo; apenas essa liberdade não é infinita e tem que de alguma forma se conectar com o resto do que os cientistas já concluíram que seja provavelmente verdadeiro. E cabe ao cientista que diverge do status quo convencer seus colegas de que suas teses têm méritos.

Em outras palavras, se eu quiser defender seriamente que na verdade o Sol gira em torno da Terra, precisarei de argumentos extraordinariamente bons. O mesmo ocorre com evolução, que é um fato científico extensamente estabelecido por uma variedade quase ridícula de métodos além de qualquer dúvida razoável. Quem não está interessado na verdade científica da evolução, ótimo, mas então não fique escandalizado de questioná-la não ser respeitável no meio científico. Existem excelentes motivos para questionar isso não ser levado a sério que não passam por qualquer preconceito extra-científico. Agora, quem de fato quer questionar seriamente a validade científica da evolução, ou pelo menos defender que questioná-la seriamente (ao invés de meramente especulativamente) seja intelectualmente respeitável, precisa ter excelentes argumentos contra, porque os que existem a favor são muito fortes. E naturalmente não adianta simplesmente ler a página da Wikipedia sobre evolução. Seguimos um longo caminho desde Darwin, e hoje em dia as evidências mais fortes e conclusivas do processo evolutivo vêm da genética molelular. Não é nem de longe uma posição primordialmente ideológica.

Agora, dizer por exemplo algo como “eu não me interesso nem um pouco pelos argumentos científicos sobre aquecimento global e na verdade os desconheço inteiramente e pretendo permanecer assim mas acho que as pessoas que questionam as causas apresentadas pelo governo como mais prováveis deveriam ser levadas mais a sério”, isso sim soa como “não vi e não gostei”.

O que nos leva à questão de como então é possível ao cidadão comum julgar debates em torno de questões científicas. Afinal, independentemente do interesse como drama cultural, algumas dessas questões possivelmente *têm* implicações concretas sobre nossas vidas (por mais que muitos entre nós não tenham qualquer interesse ou tempo para compreendê-las) e freqüentemente são base para decisões políticas. Mas considerando que para muitos não é possível ou desejável meter-se a ler exaustivamente artigos científicos e estudar cálculo, como proceder? Resta-nos usar a “intuição” ou o bom senso sobre o que faz sentido, associado a algum tipo de escolha e julgamento de caráter das “autoridades” científicas em que vamos acreditar.

Evidentemente, se alguém aparece na televisão para dizer “pesquisas científicas provaram que coca-cola mata em duas horas” eu, pela minha própria experiência, vou concluir imediatamente que isso é falso, não interessam os argumentos. Aliás,quando a mídia cita algo que começa com “pesquisas científicas provaram que” ou “cientistas descobriram que” trata-se quase sempre de algo completamente falso, distorcido e delirante. Então de fato é saudável buscar fontes mais confiáveis do que o Globo ou a Veja (ou o New York Times ou a Newsweek). Mas quais são essas fontes? Infelizmente (digo infelizmente pela sua inacessibilidade prática e intelectual), na maioria dos casos, são mesmo os papers científicos (para questões mais atuais e controversas) ou livros texto de ciência básica, para questões mais gerais e fundamentais. E o entendimento não vai surgir em uma tarde. Mas tais fontes têm a maior probabilidade de conter análises sérias, mas mais do que isso, dados concretos e mais ou menos confiáveis sobre a questão. Sendo que probabilidade não é certeza, e eu diria que qualquer análise dos dados deve ser lida com grande senso crítico, afinal o livro foi escrito por outra pessoa. Um livro sobre ciência que contenha apenas conclusões é muito ruim e suspeito e deve ser encarado com extrema desconfiança.

Felizmente para grande parte dos assuntos é possível simplesmente ficar com uma opinião genérica baseada no bom senso e na intuição. Ou simplesmente confiar que alguém pensou sobre isso. Digamos que após eu ler um artigo numa revista eu me pergunte – será que a radiação do meu celular não pode me matar? A lógica diz que se isso é um risco real, então pessoas estão morrendo disso. Estão? Isso é bem mais simples de pesquisar ou estimar do que entender argumentos sobre por que microondas não têm energia suficiente para quebrar ligações colaventes em moléculas biológicas.

5 Responses to “Darwin e etc.”

  1. Grammar Nazzi says:

    O título correto não seria “Darwin etc.” ?
    etc = et cetera = e afins
    :)
    Abraço

  2. Comentário ao início deste texto feito em

    http://garciarothbard.blogdrive.com/archive/485.html :

    Eu imagino que Sérgio de Biasi não lê a Superinteressante e outras publicações “cientificas” dirigidas ao povo em geral. Faz muito bem, se não lê. O fato é que não se trata da comunidade cientifica contra religiosos, e nem Pedro Sette Câmara (ou Olavo de Carvalho) pretende que seja isso. Trata-se de ideólogos de doutrinas pseudo-religiosas que usam o trabalho de cientistas famosos como argumento a favor de suas próprias doutrinas e contra instituições tradicionais, entre elas a religião. Não se trata de Charles Darwin ou de Adam Smith contra a noção cristã de biologia e economia (e se fosse, ainda não seria contra a religião, e sim contra cientistas excessivamente influenciados pela religião), mas de Hitler e Marx usando Darwin e Smith contra a tradição em geral. Quem não sabe a diferença que isso faz e nem quer saber, como parece ser o caso de Sérgio de Biasi, então faria melhor em ignorar a questão de haver ou não uma guerra cultural em torno do debate entre criacionismo e evolucionismo.

  3. Meu comentário :

    Ou talvez simplesmente a posição anti-evolucionista seja completamente obscurantista e intelectualmente insustentável dado o conhecimento científico moderno e não seja necessária qualquer agenda ideológica para combatê-la.

    Não que não existam pessoas combatendo a religião sem ter a menor idéia do que estão falando, ou transbordantes de ideologia ou estratégia política ao fazê-lo, mas combatê-las por esse motivo e então não responder aos argumentos e aos fatos me parece apenas conveniente e não realmente honesto.

  4. Oi Grammar Nazzi,

    Ótimo ponto. É engraçado quando usamos essas expressões importadas de outras línguas o que acaba acontecendo às vezes… em certos casos nem é de outras línguas, em inglês por exemplo não é raro ver pessoas falando em ATM machines, sendo que o M de ATM já é machine… não tenho certeza porém de quão absurdo seja dizer “X e etc” em português quando não é uma lista… em termos de lógica tendo a achar que você tenha razão, mas em termos estilísticos… sei lá. :-)

    Saudações,
    Sergio

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