Auto-estima, Compromisso, Mudança

August 19th, 2010 by Sergio de Biasi

Auto-estima é um bicho complexo. Algumas pessoas simplesmente têm, e outras, por motivos incompreensíveis, não. É um pouco como idealismo, ou honestidade, ou inteligência. São características que até certo ponto dá para cultivar, para regar, para buscar levar a seu máximo potencial. Mas por outro lado, quando tentamos fazê-las brotar onde não estão em casa… o resultado varia do frustrante ao trágico dependendo da quantidade de esforço investido.

Tentar desenvolver uma relacão afetiva séria, sólida e estável com quem não tem auto-estima é um exercício em patologia recomendado apenas para quem quiser viver perigosamente ou testar os limites de sua própria sanidade mental. Note, não é necessariamente que quem não tem auto-estima esteja deliberadamente buscando ser mau, perverso ou cruel. O problema é que quem não acredita que mereça ser amado, quem não consegue se acreditar bom o suficiente para despertar genuíno afeto, estará sempre buscando motivos ocultos e manipulativos nos outros. Estará constantemente sofrendo da síndrome de “Não quero pertencer a nenhum clube que me aceite como sócio.” como dizia Groucho Marx. Em outras palavras, o próprio ato de ser aceito já coloca em questão o mérito e o prestigio do aceitador. “Se você é tão bom assim, o que está fazendo aqui comigo?” “Eu sou obviamente um lixo, logo se essa pessoa está comigo deve ser por algum motivo escuso ou por falta de opção.” É um jogo impossível de ganhar.

Quando encantados por outras qualidades nos envolvemos com alguém com esse tipo de questão, é fácil ser tomado da ilusão de que a falta de auto-estima seja algo circunstancial ou acidental. É fácil pensar que se apenas amarmos o suficiente, oferecermos o suficiente, dermos segurança suficiente, formos bons e gentis e companheiros o suficiente, algum trauma será sanado, alguma barreira será vencida, algum grilhão será partido. Ilusão. Tola, amarga, fútil, perigosa ilusão. Algumas das pessoas mais protegidas e capazes do mundo chafurdam num pântano de falta de auto-estima, enquanto que outras completamente desprovidas de condições, capacidade, mérito ou apoio exibem uma auto-estima refulgente e teimosamente inabalável. Uma das lições mais duras e difíceis que alguém pode ser forçado a aprender é que pode estar além do nosso poder lograr atingir que alguém deficiente em auto-estima se sinta amado.

Mas é pior do que isso. Realmente é um jogo não só impossível de ganhar, mas impossível de não perder feio. Se não manifestamos afeto ou flexibilidade, somos insensíveis e egoístas. Por outro lado, se saímos do nosso caminho para acomodar as necessidades do outro, isso não é interpretado como comprometimento, afeto ou amor. Na-na-não. Para grande surpresa do investidor, qualquer ato de comprometimento é imediatamente interpretado como uma tentativa de manipulação. Então sejam quais forem as ações escolhidas, o futuro com o qual o investidor terá que se defrontar é um só : crescente ressentimento, associado a uma incapacidade patológica de se comprometer.

“Incapacidade de se comprometer?”, talvez se surpreenda o leitor. Mas não é justamente quem tem baixa auto-estima que estará mais disposto a ceder, a se anular, a dar? Talvez contra-intuitivamente, não. Quem tem baixa auto-estima talvez ceda nominalmente em momentos de desespero, ou esteja disposto a pseudo-concordar com não-soluções destrutivas e insustentáveis. Mas muito ironicamente, ser capaz de mudar seriamente e de uma forma saudável e sustentável requer uma *alta* auto-estima. Quem tem baixa auto-estima sempre acha que está muito mais envolvido que o outro, nunca consegue acreditar que realmente é amado, e então tem um medo terrível, fóbico, instransponível de se entregar e de se comprometer. E além disso olha para si mesmo e pensa “why bother?”. Então quem tem baixa auto-estima até faz “grandes” coisas autodestrutivas na hora do desespero, mas tem uma grande dificuldade em investir consistentemente em mudanças autoconstrutivas.

Quem tem alta auto-estima pensa “Droga, estou errando, tem essa pessoa aqui que eu amo e que me ama loucamente e eu a estou magoando, preciso mudar.” Quem tem baixa auto-estima, por outro lado, pensa “Oh tem essa pessoa aqui pela qual sinto rios de paixão querendo que eu mude, mas ela evidentemente não me ama, porque afinal de contas como seria possivel alguém me amar, então como essa pessoa que obviamente não me ama tem a audácia de explorar covardemente os meus sentimentos e me pedir para mudar?”.

Quem tem alta auto-estima pensa “Bolas, não estou atingindo meus próprios padrões, isso não é aceitável, preciso mudar!” Já quem tem baixa auto-estima pensa “De que adianta sequer tentar, eu não vou conseguir mesmo.”

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Mas será que *deveríamos* mudar por causa de relações afetivas para começar? Ora, para mim a pergunta é completamente sem pé nem cabeça, e a resposta é óbvia e simples : claro que deveríamos. Nós mudamos de cidade por causa de um emprego novo, mudamos de hábitos para cuidar da saúde, mudamos nossa forma de pensar e nossas atitudes para nos tornarmos mais calmos e serenos, mudamos nossos gostos, nossa cultura, nossa identidade para deliberadamente nos tornarmos melhores ou para atingir algum objetivo pragmático ou mesmo por objetivo nenhum… então não vamos mudar por causa de uma relação afetiva… *por quê* ?

Inclusive, eu iria mais longe do que dizer que a mudança pode ser justificada. Eu diria que em qualquer circunstância realista ela é imprescindível. Quem não muda não está aprendendo nada, não está indo a lugar algum, virou prisioneiro de seus próprios preconceitos, neuroses, fobias e inseguranças, prisioneiro da sufocante ilusão de que se apenas for suficientemente prudente, nada ruim jamais irá acontecer. E isso é particularmente verdadeiro quando confrontados precisamente com a questão de sair de nós mesmos para buscar encontrar o outro.

Eu pessoalmente acho que esperar que sejamos automaticamente e exatamente o que o outro precisa é completamente irrealista e uma receita para o desastre. Partir do princípio de que “você tem que gostar de mim exatamente do jeito que eu espontaneamente sou” é uma egotrip miópica. Nós estamos continuamente mudando, e estamos continuamente fazendo grandes esforços para nos tornarmos melhores. Não faz sentido chegar numa universidade e dizer “Quero dar aula de astrofísica, eu não tenho um PhD mas eu sou um cara muito legal, você não devia tentar me mudar.” Então temos sim que abraçar a mudança quando ela for na direção de crescer, de nos tornamos melhores, de abrir novas possibilidades e caminhos antes vedados. Precisamos sim aprender a dar o que o outro precisa, a entender as necessidades do outro e a saber satisfazê-las, e mudar sim no processo.

Claro, é preciso ter matéria-prima para trabalhar, não dá pra dar certo com qualquer pessoa, e tem que haver um objetivo e um projeto comum que valha a pena. Mas não vem pronto, é construído. É um esforço compartilhado, um investimento conjunto e é preciso haver negociação e comunicação e confiança. Não dá pra esperar que tudo vá encaixar perfeitamente por total milagre e sorte.

Espero estar deixando absolutamente claro que não estou falando de se submeter ou de se anular; muito pelo contrário, estou falando precisamente de nos libertarmos dos entraves mentais e neuroses queridas que nos impedem de atingir e viver e ser o melhor que poderíamos ser. Não se trata de tomar um caminho que nos torne mais limitados e sim menos, mesmo que para isso tenhamos que sair de nossa zona de conforto.

Claro, eu apoio integralmente que se não temos condição de fazer algo sinceramente de boa vontade para agradar o outro, não devemos mesmo fazer. Mas não devemos confundir isso com “só faço o que eu quero”. Eu não vejo absolutamente nada de errado em fazer coisas por amor, em mudar por amor, em aprender a se sentir confortável com certas coisas por amor. Apenas acho que tem que ser sempre respeitando a si mesmo, nunca indo contra o que voce acha que seja crescer. Mas daí não se deve concluir que qualquer mudança feita para acomodar o outro seja malévola e opressiva.

Malcomparando : se uma carreira que é sua vocação exige que você tenha um título de pós-graduação, eu acho válido então ir fazer o curso, gastar uma fortuna e anos da sua vida, arrancar os cabelos da cabeça mas um dia chegar no ponto de dizer “ok, isso tudo me fez crescer, eu hoje tenho um PhD no assunto que eu amo”. Isso eu acho válido.

Mas se você vai pedir um emprego e seu trabalho é executar prisioneiros, ou mentir, ou enganar as pessoas e isso te deixa extremamente perturbado e você acha que aprender a não se sentir perturbado com essas coisas não é legal, então concordo, não tem que fazer mesmo, tem que ir procurar outra coisa para fazer.

Indo pro lado mais psicológico – se para ter uma boa relação você tem que superar neuroses ou fobias ou limitações difíceis de superar, e fazer um esforço, mesmo que gigante, para se tornar uma pessoa melhor e de quem você mesmo/a goste mais, eu acho isso válido e positivo. Mas se você tem que se autodestruir e quebrar coisas de que você gosta para acomodar o outro, aí é ruim.

Novamente exemplificando, lutar para perder medo de cachorro (é apenas um exemplo) pode ser um investimento perfeitamente válido num relacionamento. Mas aprender a suportar em silêncio a solidão do seu parceiro não te ouvir nunca talvez não seja.

Enfim, depende de cada um, de que limitações temos, de quais são as nossas expectativas sobre nós mesmos, e do que o outro precisa de nós. Os melhores companheiros são aqueles que em vários momentos precisam de nós que sejamos melhores nas coisas em que nós mesmos gostaríamos de melhorar. Esse tipo de expectativa não só não é destrutiva ou sufocante como é mutuamente enriquecedora. Mas eu iria além disso. Mesmo nas coisas que não faríamos espontaneamente questão de melhorar, e possivelmente ainda mais nelas, desde que sejam expectativas positivas e construtivas de alguém que verdadeiramente goste de nós, é precisamente aí que expectativas positivas depositadas sobre nós produzem o efeito mais decididamente renovador, construtivo e revolucionário. Alguém ocupando esse papel em nossas vidas nos tira de nós mesmos, nos traz para fora de nossa zona de conforto em direções que não seguiríamos sozinhos, e estão são as mais importantes de todas. Então sim, sair do seu caminho para deixar o outro feliz pode ser não só perfeitamente construtivo e válido como imensamente enriquecedor.

17 Responses to “Auto-estima, Compromisso, Mudança”

  1. Adam says:

    Rapaz, duas postagens em uma! Nada mau…

    De resto, só discordo da taxatividade do primeiro parágrafo. Afinal, as pessoas evoluem, e acho que baixa auto-estima é um dos problemas pessoais mais fáceis de resolver… Mas, claro, essa é uma questão meio que marginal em relação ao texto. De resto, concordo.

    Até!

    • Adam,

      A taxatividade do primeiro parágrafo de fato está intensa. :-) Mas isso é em grande parte para sublinhar que baixa auto-estima é um problema que quase sempre tem muito mais a ver com a percepção da realidade, temperamento e atitude do que com circunstâncias reais. E também para ressaltar que se para algumas pessoas entrar em contato com sua auto-estima é como você colocou um problema que se resolve até com facilidade, para outras é como que uma barreira enlouquecedoramente intransponível.

      Para algumas pessoas, não interessa o que ocorra, não interessa quantas conquistas, evidências ou aprovação recebam, elas sempre estarão suspeitando – não, tendo certeza! – de que sejam um lixo absurdo, que todos em volta estão internamente rindo da sua cara, e – mais perversamente de tudo – que receber aprovação de alguém não significa uma correção de sua percepção como lixo e sim uma correção do julgamento sobre a outra pessoa (que só pode estar mentindo, enganada, delirando, ou ser ainda mais lixo). A existência de pessoas assim pode surpreender quem não tem esssas questões, e levar a investimentos imensos em direções fadadas a não dar em nada, ou aliás muito pior do que nada. Então é um alerta que é bom ter em mente – por vezes não estará em nossas mãos.

      Saudações,
      Sergio

  2. Ana Beatriz says:

    Oi Sergio,

    sim, sim, sim, as pessoas mais fortes são mais generosas, e não as mais fracas. Pessoas mais saudáveis e com boa auto-estima costumam se doar mais pois não vivem com medo de serem anuladas, ao passo que pessoas com auto-estima baixa têm sempre medo de que suas personalidades fracas se dissolvam caso elas cedam em algo, precisando sempre se auto-afirmar em altos brados. Mas realmente acho que, se a pessoa quer de fato melhorar, isso não é assim tão impossível de mudar – ao contrário de outras características como as outras que você mencionou, que embora possa ser desenvolvidas, talvez sejam mesmo inatas, sei lá – e se essa questão for mesmo um bicho de sete cabeças, procurar uma terapia seria uma boa saída. O problema é que é muito mais confortável para algumas dessas pessoas ficar tentando acabar com a auto-estima dos que as circundam para se sentirem melhor – e aí já entra um problema de caráter.

    Beijos,
    Ana

    • Oi Ana,

      Eu nem citei essas questões ainda mais negativas, mas sim, elas tendem a vir quase inevitavelmente. Quem cronicamente não tem auto-estima tende a ficar não apenas frustrado mas muito mais do que isso, furioso, pessoalmente afrontado com o sucesso dos outros. Encaram qualquer mérito alheio como chamando a atenção para suas próprias deficiências e tendem a ser destrutivamente, corrosivamente competitivos.

      Beijos,
      Sergio

      • Filipe says:

        Olá Sergio,

        Apenas para complementar sua tese: a imagem daquele que tem baixa auto-estima é inferir em seus atos e atitudes certo menosprezo para com os outros, justamente porque visualiza nestes a aceitabilidade que a ele não é devida. Isso ocorre, imagino, pela tendência genérica de um elogio, por exemplo, servir como amparo à continuidade, ao tempo que ao indivíduo de baixa auto-estima o elogio é justamente um resquício, daquele que elogia, de uma inveja escodida e que na surdina anseia sua destruição total. Assim é que a tudo e a todos são gerados os conceitos basilares da desconfiança patológica, que nada mais é que a patologia da inveja mascarada no menosprezo por meio da desconfiança.

        Basta relembrar que o indivíduo que desconfia continuamente, ao tempo em que preserva em si o caráter da resignação social, é o mesmo que quando se vê forçado a elogiar age dissimuladamente como uma “resposta” a público, que sempre lhe tratou supostamente pelas vias da dissimulação. Essa atitude é, ao todo, sua justificativa e sua consolação, tendo em vista que age de tal forma somente porque os “outros” o tratam assim.

        Abçs,

        Filipe

        • Oi Filipe,

          Sim, concordo!

          Inclusive, expandindo seu ponto, em particular é muito característico em quem tem baixa auto-estima apresentar uma dificuldade *enorme*, patológica, desfigurante em assumir plena responsabilidade pelas próprias ações e escolhas. Isso é um efeito colateral de uma percepção distorcida da realidade na qual não vê a si mesmo como um agente ativo e autônomo e sim como um joguete no palco das circunstâncias (e das ações alheias). Então qualquer coisa que aconteça, ora, “não é minha culpa”, porque afinal de contas, como poderia ser, se eu só uma vítima indefesa e impotente, continuamente oprimida?? A realidade porém é que até mesmo quando seja o caso de concretamente haver opressão, agir como se suas decisões não fossem responsabilidade sua é bullshit.

          Saudações,
          Sergio

  3. Sergio, gostei muito do seu texto, não sabia que você andava escrevendo sobre esses assuntos gerais no fundo tão particulares, nem sabia da história do Indivíduo e suas idas e vindas. Seu texto é muito interessante, vou ler os outros também. Um abraço.

  4. Passaróloga says:

    Por que parou de postar? (E não sonhe em dizer que é por falta de tempo, excesso de trabalho etc.)

  5. Carla says:

    Qual a melhor forma de se lidar afetivamente com uma pessoa que possui baixa auto-estima ?

    • Oi Carla,

      Olha, eu não sei se tenho uma receita genérica para defender… Aliás um ponto importante do texto era exatamente no sentido de que não interessa o que você faça, talvez não exista como contornar ou resolver certas questões sem que a outra pessoa tome ela mesma certas decisões sérias. Mas como lidar com isso dependerá demais do tipo de relação do qual você está falando, entre outras coisas. Eu sugiro *não* fazer certas coisas, e a principal delas é essa mesma – não achar que será possível resolver a questão somente com iniciativas do seu lado. É preciso estar comprometido, claro, mas sem o outro se engajar também, não existe comprometimento do mundo que seja suficiente. O outro fechar-se em “ninguém me ama e eu vou interpretar qualquer coisa que você diga e faça de forma defensiva e hostil” é uma atitude que inviabiliza uma relação afetiva saudável, e se a outra pessoa não estiver disposta a lutar para sair disso – mesmo que seja para não perdê-la ou com a sua ajuda e apoio – então fica complexo.

      Saudações,
      Sergio

  6. Sandra says:

    Olá.apenas quero dizer que vi luz depois de ler este texto.obrigada:) x

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