(Breve Comentário Sobre) O Papel das Elites

August 20th, 2008 by Sergio de Biasi

Uma das idéias que o marxismo conseguiu introduzir com mais sucesso no imaginário da cultura humana foi a de que alguma noção de “igualdade” material entre pessoas, grupos e nações seja um objetivo intrinsecamente nobre e desejável de se buscar.

Só que infelizmente pode ser o caso de que qualquer sistema que busque “igualdade” generalizada produza, quase por definição, mediocridade generalizada. Pode ser o caso de que concentração de riquezas seja necessária para o funcionamento saudável (tanto em termos de progresso material quanto de liberdade e dignidade) da humanidade como um todo.

É completamente inviável que toda a humanidade tenha, por exemplo, o padrão de vida que prevalece nos Estados Unidos. Simplesmente não há recursos para isso. Se formos tentar colocar cada vez mais sistemas em funcionamento que garantam um uso mais uniformemente distribuído dos recursos (ou compensações cada vez mais draconianas pelo desequilíbrio) estamos efetivamente destruindo a possibilidade da existência de uma “elite”.

Só que distribuir toda a riqueza das elites pelo resto da humanidade produz um benefício quase ridículo em termos objetivos. Para dar um exemplo caricatural, a riqueza do Bill Gates distribuída por todos os seres humanos da Terra te dará mais uns cinco ou seis dólares. Concentrada nas mãos dele produz o Windows. O que tem mais valor para você?

É para mim em geral uma falácia acreditar que a perseguição das elites e a distribuição forçada de recursos (pelo menos com vistas a atingir algum tipo de “igualdade”) beneficie a humanidade.

Colocado isso, reconheço que existe algum tipo de dilema moral – além de um problema prático – em deixar a miséria extrema reinar em grandes partes do mundo ou da sociedade. Mas as causas fundamentais disso não estão pra mim na existência de elites ou na distribuição “injusta” de recursos.

From Astoria to Lexington

August 12th, 2008 by Sergio de Biasi

Não resisto a postar este vídeo que fiz mostrando como é tomar o trem de Astoria indo para Manhattan… desta vez eu deixei os avisos que os funcionários do trem ficam fazendo, e por eles é possível saber que estamos num trem W, que é o trem parador que segue ao longo da Broadway. A outra opção seria o trem N, que é o expresso também ao longo da Broadway. São os únicos dois trens que vão para Astoria.

Note que sempre antes das portas fecharem ouve-se “Stand clear of the closing doors”, que é marca registrada do metrô em Nova York. Depois de morar lá por qualquer período de tempo você se acostuma a ouvir isso umas trocentas vezes por dia. Cada trem carrega, além do condutor, uma pessoa cuja única função é ficar falando isso e apertando um botão que fecha as portas. Esse deve ser um dos empregos mais absurdamente chatos do mundo, então freqüentemente ou o aviso é completamente incompreensível (tipo “stancleafthecoldors”) ou então o sujeito vai no sentido oposto e começa a ser criativo, do tipo cantar a frase, ou dizê-la como se fosse algo espetacular, ou de alguma outra forma bizarra. Coisas de Nova York. (Neste vídeo infelizmente é simplesmente dito de uma forma completamenta padrão.) Nos trens mais novos o aviso é dado por uma gravação, mas o sujeito continua lá controlando as portas. Mesmo quando as portas forem totalmente automáticas, o que imagino que já pudessem (e até talvez devessem) ser há muito tempo, provavelmente os sujeitos continuarão existindo, sentados num canto do trem e se sentindo heroicamente indispensáveis, cortesia do sindicato dos metroviários.

Coisas Estranhas em Nova York

August 9th, 2008 by Sergio de Biasi

Há muito tempo penso em fazer uma lista aleatória de coisas que são diferentes do Rio de Janeiro em Nova York, mas só agora finalmente sentei para de fato escrever. Mais uma vez, são coisas que nem sequer questionamos até vermos que elas poderiam ser diferentes. Então, sem nenhuma particular ordem ou relevância, lá vai :

As paredes são de papel
Tente pregar qualquer coisa que pese mais que uma pena na parede e cairá tudo no chão abrindo um rombo. As paredes são feitas literalmente de papel com gesso ou algo similar, um negócio que eles chamam de drywall. Então para pregar prateleiras, por exemplo, você tem que achar as vigas que sustentam a parede e aparafusar nelas, atravessando o drywall. Mas como é que você vai saber onde estão as vigas, para começar? Bem, felizmente estamos em tempos suficientemente modernos que você possa comprar um detector eletrônico de vigas na loja de hardware mais próxima.

Os prédios são de aço
No Brasil a forma padrão de se construir um prédio com mais do que um ou dois andares é utilizar concreto armado e lajes. Não aqui. A estrutura interna do prédio é toda de vigas de aço, e os andares são feitos com chapas de metal sanfonado. É estranho ver um prédio em construção aqui – é completamente diferente.

Os banheiros não têm ralos no chão
Isso mesmo. O chão do banheiro não tem um ralo em lugar algum. Não existe isso de lavar o chão jogando um monte de água; você usa um paninho. Quero dizer, na maioria dos casos, você não usa coisa alguma, porque aqui empregada doméstica é coisa de rico e quem é que tem tempo de ficar lavando o chão do banheiro? Aliás, a maioria das pessoas nunca em tempo algum lava as janelas.

Bidês são desconhecidos
Ninguém aqui jamais ouviu falar em bidês. Nem sequer existem para vender.

Não existe porta no chuveiro
Exceto em lugares extremamente luxuosos e altamente atípicos, todo chuveiro americano é isolado do banheiro por uma cortina de plástico.

Os preços anunciados não são os que você paga
Aqui quando você vê na prateleira algo com o preço “dez dólares”, pega e vai até o caixa pagar, o preço que você efetivamente paga pode ser qualquer coisa. É costume aqui não incluir entre outras coisas os impostos (que variam com a localidade e com o produto, então é impossível prever) no preço anunciado, então você só sabe o preço que vai realmente pagar ao chegar no caixa. Logo que cheguei isso era uma surpresa constante. Eu sempre acabava gastando mais do que o planejado. Isso pra mim é maluquice. Exceto como forma de constante conscientização política, quero lá eu saber qual seria o preço sem impostos? Quero saber é quanto vou pagar… Mas o mais interessante é que isso é sim em parte uma atitude de hostilidade com relação aos impostos. Outro dia eu estava fazendo cópias de umas chaves e o velhinho ao terminar me disse “it’s 5 dollars plus the tip to the governor”.

É permitido avançar o sinal vermelho para dobrar à direita
Aliás, é permitido fazer um monte de coisas que no Brasil deixariam as pessoas de cabelos em pé. Tipo, espera-se constantemente que você use seu próprio julgamento para não fazer bobagens. Tem havido uma tendência cada vez maior para o estado virar babá do cidadão, mas ainda há uma herança muito forte de autonomia individual, tipo até você começar a abusar da sua liberdade, você pode fazer um montão de coisas.

Não é possível falar no celular no metrô
Pelo menos não em Nova York. Que é o maior sistema de metrô do mundo. A burocracia e guerra política para decidir quem instalaria o sistema e quanto custaria foram intransponíveis a ponto de nunca ter sido feito. Isso é em parte resultado do fato de que o metrô aqui está sob administração (blargh) da MTA, uma empresa semi-governamental absurda que todos odeiam.

É possível sacar dinheiro de qualquer banco em qualquer caixa eletrônico
Basicamente, qualquer ATM serve a qualquer banco. Não tem essa de procurar uma agência do seu banco. Ah, e existem ATMs em todos os lugares possíveis. A birosca do chinês da esquina tem um ATM no canto.

Não existem assaltos
Isso é obviamente um exagero, claro que existem, mas em três anos eu nunca passei nem perto de algo que parecesse motivo para me preocupar, e não conheci, encontrei ou conversei com nem uma única pessoas que tenha sido assaltada. Isso faz uma diferença que não dá nem pra descrever na qualidade de vida. Os prédios não têm grades em volta e as janelas dão para a rua. As pessoas usam laptops no metrô, no bar, no banco do parque sem qualquer preocupação. Anda-se pela rua bem vestido e com uma bolsa no ombro às três da manhã e nada acontece. Entra-se no banco pela porta da frente (não por uma porta giratória cheia de guardas de tocaia) e ninguém olha duas vezes pra você. Em contraste, acabo de passar um único mês no Brasil e roubaram meu celular no centro do Rio em plena luz do dia.

Paga-se para receber ligações no celular
Embora eu já tenha acostumado, a princípio isso foi um choque. Você paga basicamente pelo tempo em que está usando o sistema de telefonia, não interessa o motivo. Claro que dependendo do que estiver fazendo (tipo uma ligação internacional) há taxas adicionais, mas cada minuto em que você está conectado tem uma tarifa. Ah, e isso vale para mensagens de texto também. Então se alguém te manda uma mensagem de texto indesejada, ou se você recebe um telefonema com número errado, você paga assim mesmo. Que tal?

Eu provavelmente poderia pensar em mais coisas mas acho que já está comprido que chegue no momento…

A Misteriosa Identidade do Limão

August 8th, 2008 by Sergio de Biasi

A lemon by any other name…

Escrevo aqui sobre uma instância de um fenômeno que quanto mais vivemos, mais encontramos, até que (se estivermos prestando atenção) chegamos a um certo grau de sabedoria em nossas vidas no qual desconfiamos seriamente das certezas absolutas.

O fenômeno é o seguinte : passamos nossa vida inteira acreditando em alguma coisa, mas acreditando tão convictamente que nunca sequer chegamos a questioná-la. Essas são em geral as nossas crenças mais profundas – aquelas que nos parecem tão óbvias que nunca sequer chegamos a realmente examiná-las; elas simplesmente estão lá. O problema é que justamente por esse motivo, existe uma grande chance de que estejam completamente equivocadas. Nossas crenças mais arraigadas são freqüentemente as menos justificáveis.

Então, chega um dia em que vivemos algo completamente incompatível com uma dessas crenças. Alguma situação que desafia e inviabiliza de forma tão cabal a consistência do que acreditávamos que se torna impossível seguir pensando como antes. Claro, uma tentação sempre presente é esquizofrenicamente redobrar nossos esforços em seguir acreditando mesmo assim, porque afinal de contas aceitar que estávamos errados nossa vida inteira é internamente humilhante e desorientador. De certa forma, é uma ameaça à nossa própria identidade. Adicionalmente há sempre o medo do vazio de não ter o que colocar no lugar, o peso esmagador do nada, da responsabilidade de escolher em que vamos acreditar. Sofremos então um choque cognitivo cuja resolução só começa a se processar quando começamos a aceitar que grande parte do tempo não temos a menor idéia do que está acontecendo. Esse desprendimento não é em geral nem um pouco confortável a princípio, mas é um pré-requisito para prosseguir em direção a efetivamente compreender alguma coisa. É preciso haver a honestidade intelectual e principalmente emocional de ser capaz de aceitar integralmente : “eu não sei”.

Para exemplificar o que estou dizendo, apresento um caso bastante prosaico, com a intenção de que o leitor faça a devida generalização para ocorrências mais significativas em seu próprio sistema de crenças. Pergunto então (e isso vai ser mais interessante para quem usa muito o inglês) : qual a tradução de “lemon”?

Parece uma pergunta besta, certo? Justamente daquelas sobre cuja resposta nem sequer nos ocorreu refletir. Examine então o leitor a foto que abre o artigo, que tirei num supermercado perto da minha casa em Nova York. A primeira vez que vi isso fiquei olhando, olhando, olhando e não entendi. Então sofri um mini choque cognitivo e fui obrigado a rever certos paradigmas. Será possível? Me enganaram a minha vida inteira. Lemon não é limão. Lemonade não é limonada. Confira. Quero meu dinheiro de volta.

Reencontro Dos Indivíduos

August 1st, 2008 by Sergio de Biasi

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Sergio, Pedro e Álvaro

Neste mês de julho, interrompendo anos de separação física devido a rumos divergentes em nossas vidas, reencontramo-nos os três conspiradores por trás d’O Indivíduo, pouco mais de dez anos após a fundação deste jornal tornado weblog. O evento foi possibilitado por minha curta estada no Brasil que em breve se encerra. Para entretenimento dos leitores, registra-se uma foto da ocasião.

Fobofobias e Outros Neologismos Retóricos

May 29th, 2008 by Sergio de Biasi

Em seu divertidíssimo artigo que recomendo integralmente para qualquer um capaz de rir das próprias opiniões (o que provavelmente exclui grande parte dos abortofóbicos), Pedro faz alguns comentários e então procede a desconstruir meu texto sobre aborto (tenho uma amiga que diz que sente vontade de fisicamente desconstruir quem começa a falar em desconstruir alguma coisa, mas quando é o Pedro fazendo fica bom demais pra não ler).

Pra começar, gostaria de dizer que não coloco o Pedro entre os abortofóbicos. Empreguei o termo precisamente com a conotação canônica que se deveria esperar : medo, pavor do aborto ao invés de mera reprovação, rejeição ou oposição. Em certas pessoas o assunto gera histeria automática. Emprestando a analogia do Pedro, é como se a pessoa não apenas não quisesse comer feijão, e não satisfeita em querer tornar o feijão ilegal, adicionalmente começasse a berrar histericamente quando visse alguém defendendo a legalidade do feijão, sendo acometida de incontrolável e óbvio estresse psicológico. Não é o caso do Pedro, mas parece ser o caso de muitos. Na verdade em grande parte dos casos não parece ser uma reação específica ao aborto mas a qualquer opinião divergente que ameace suas frágeis concepções de mundo, que são tão esplendorosamente sólidas e fundamentadas que precisam ser protegidas ardorosamente de qualquer questionamento.

No caso específico do Pedro, porém, acho que acabei pisando em outro calo completamente diferente, que é o cansaço absoluto com ter que responder a chavões, clichês e palavras de ordem cuja única função é despertar sentimentos sem de fato fazerem parte de nenhum argumento coerente. Naturalmente que por vezes os rótulos de fato de aplicam, apenas não podem pretender constituir o fundamento do argumento, mas após ser exposto a abusos retóricos vezes demais é compreensível que se comece a perder a paciência só de ouvir qualquer termo com a estrutura “x-fóbico”. Começa-se a sofrer, por assim dizer, de fobofobia (onde o primeiro “fobo”, note-se, refere-se ao sufixo “fobo” e outros termos desgastados pelo uso em clichês e não a medos indeterminados).

Sobre “expressar a sexualidade”, como qualquer expressão, é claro que pode ser abusada, e não a estou usando aqui no sentido delirantemente abrangente no qual se começa a enxergar discriminação sexual nas situações mais disparatadas. Estou falando de coisas básicas, como digamos, foder. Existe toda uma pressão psicológica, toda uma lavagem cerebral e um mecanismo absurdo de construção de culpas e censuras para que as pessoas não fodam. Caso falar mais concretamente colabore para não despertar a fobofobia do Pedro, aí está.

Com relação à “finalidade objetiva” do ato sexual da qual Pedro argumenta que não se pode escapar, ora, como ateu e defensor da ciência, eu diria que até onde sabemos não há nenhuma. Não acredito que as coisas existam por motivos teleológicos. Podemos por outro lado falar das *conseqüências* objetivas do sexo. E é aí que entra a tecnologia moderna; tais conseqüências não são as que costumavam ser. Os avanços tanto nos métodos anticoncepcionais como nos procedimentos de aborto vêm efetivamente desconectando cada vez mais a causalidade obrigatória entre fazer sexo e provocar o surgimento de um novo ser humano. (Novamente, existe aqui uma divergência fundamental sobre *quando* esse ser humano surgiria, sem a qual fica difícil concordar sobre quais exatamente são as conseqüências do ato sexual.)

Aliás, uma digressão : conseqüência com trema, sim, obrigado que eu como Pedro abomino essas tentativas frankensteinianas de legislar a língua em comitês políticos. Que as pessoas com reverência acrítica às “autoridades” aleatórias de plantão joguem seus tremas no lixo se assim quiserem; talvez daqui a cinqüenta anos prevaleçam e aí não restará senão seguir a norma de fato, mas enquanto isso prossigo tremando meus pingüins.

Voltando ao assunto : existe uma desonestidade retórica fundamental (da qual Pedro com certeza está consciente) quando se escreve coisas como “não estou dizendo que sou santo, só que não acho legal matar bebês”. Afirmações desse tipo buscam recontextualizar a discussão sobre como se ela fosse sobre “pessoas que acham legal matar bebês” versus “pessoas que não acham legal matar bebês”. A superioridade moral das últimas estaria então auto-evidente, e qualquer argumento em contrário teria implícita a premissa “matar bebês é legal pois…”.

Só que para começar, o argumento principal pela legalidade do aborto é justamente o questionamento de que um aglomerado de células seja ou possa legitimamente ser chamado de “bebê”. Eu não acho nem um pouco “legal” matar bebês; o que ocorre é que eu (e grande parte das pessoas) simplesmente não aceito o argumento de que oito células juntas sejam um bebê. Esse é o primeiro nível de desonestidade no clichê disparado pelo Pedro. Mas existe um outro nível, que é o de que eu não estou em nenhum momento argumentando a favor do aborto, e sim de sua não criminalização. Portanto, não só eu não acho que bebês estejam morrendo num aborto realizado com duas semanas de gestação, como além disso eu não estou dizendo que mesmo isso seja uma atividade divertidíssima e sem nenhum significado. Sim, um aborto tem um caminhão de significado, e é um ato traumatizante e violento. (Aliás, por exemplo, como um divórcio.) MAS na minha concepção não é assassinato e não deveria ser criminalizado.

O argumento olavodecarvalhoso de que “se há alguma possibilidade de que seja um ser humano então devemos apostar nela” é para mim fraquíssimo. Entre as várias falácias embutidas nele está a premissa de que “ser um ser humano” seja uma verdade objetiva dada sobre a qual possamos nos enganar. Prevendo esse tipo de argumentação, eu coloquei a analogia com a maioridade no meu artigo original, mas aparentemente a visão teológica é forte demais para que se conceba que as coisas não tenham todas uma essência significante platônica mágica e um objetivo filosófico intrínseco.

Agora, mesmo que esse fosse o caso, o argumento continuaria sendo muito ruim; a probabilidade de que algo seja verdade deve ser medida contra a probabilidade de que não seja e contra as conseqüências em ambos os casos. A analogia do tiro no escuro que pode acertar alguém é desonesta porque para começar não se coloca nenhum objetivo justificável para explicar tal tiro. Talvez entretenimento do atirador. É pouco benefício comparado com uma absurda chance de 50% de matar alguém. Seria diferente caso você estivesse atirando em legítima defesa para salvar sua vida e corresse o risco de acertar um inocente. Deveria você morrer para não correr tal risco? Existe toda uma gama de possibilidades intermediárias. E o fato é que toda decisão tem conseqüências. Ao escolher sair na rua dirigindo um carro existe uma chance de que eu atropele alguém. Devo então não sair na rua dirigindo? Esse argumento de que “vai que é um ser humano” não faz sentido.

Enfim, eu teria bem mais a dizer e por enquanto fica sem comentários uma coleção de outros argumentos – esses sim “puramente retóricos” – no texto do Pedro (e novamente, tenho certeza de que ele sabe disso), mas vou ficando por aqui enquanto a resposta ainda está num tamanho digerível.

Adendo Ao Comentário Sobre Comentários

May 27th, 2008 by Sergio de Biasi

Complementando o que o Pedro falou, eu ao contrário dele em geral ativo a opção de receber comentários ao que eu publico, mas de fato minha posição com relação a isso é que não se trata de um serviço público ou um fórum para debates ao gosto do freguês. Publico alguns dos comentários dependendo de critérios pessoais arbitrários meus, que incluem (mas não se resumem a) relevância, civilidade, coerência e não atolar a paciência de quem lê com 100 comentários dizendo as mesmas coisas. E naturalmente não é culpa do Pedro quais comentários são ou não publicados para os meus posts, assim como não é culpa do Pedro o que eu decido escrever.

Aborto Livre, Sim, Por Favor

May 25th, 2008 by Sergio de Biasi

“Não basta ser contra o aborto. É preciso defender que as mulheres que fazem aborto sejam processadas e penalizadas criminalmente.”

Certo, essa citação passou de todos os limites. Eu vou ter que falar alguma coisa.

Culpar a mãe por uma gravidez indesejada, e colocá-la contra a parede sob a pretensa responsabilidade de arcar com as conseqüências de seus atos é uma falácia tão absurda quanto citar a Bíblia para provar que Deus existe. Não existe atualmente qualquer necessidade do ato sexual resultar em reprodução, mesmo com a ocorrência de gravidez. Em uma sociedade moderna essa conexão é absolutamente artificial e criada de fato em maior ou menos grau justamente pelos movimentos abortofóbicos. Agora, não é logicamente justificável acusar mães perfeitamente dispostas a abortarem de irresponsabilidade enquanto simultaneamente as proibimos de abortarem. Ao contrário, a maior parte delas está exatamente sendo extremamente responsável e lutando contra alguns de seus instintos mais profundos justamente porque prevê as consequências para si e para os outros, inclusive o feto, de não fazê-lo.

Culpar a mãe por uma gravidez indesejada é como culpar a estuprada por usar roupas provocantes, é como culpar o assaltado por usar um caixa eletrônico de madrugada. É por um dedo em riste no nariz dela e pontificar “quem mandou expressar sua sexualidade?”. Poderão tais pessoas porventura terem sido imprudentes ou pouco sábias? Possivelmente. E daí? Esse linha de raciocínio que busca proteger as pessoas de si mesmas é precisamente a que leva à proibição das drogas e outros absurdos totalitários cuja maior conseqüência prática é a opressão psicológica e a restrição das liberdade individuais. Oficializa-se a infantilização geral de todos sem ao menos sequer atingir (ainda bem!) os objetivos pretendidos de reformar a sociedade segundo alguma visão particular de moralidade imposta de cima para baixo. Como isso ultrapassa o limite do que grande parte das pessoas está disposta a aceitar passivamente, é necessário então buscar justificativas para tal impostura, a mais forte delas vindo sob a acusação de homicídio.

A criminalização do aborto consegue ser simultaneamente retrógrada, hipócrita, uma violência contra a dignidade humana, a liberdade individual, a família, o bom senso e a realidade prática.

A acusação de “retrógrada”, clichê hiper-usado e abusado merece explicações. Existe um apelo emocional barato no novo, em querer mudar algo somente por ser tradição, em proclamar que qualquer mudança seja um “progresso”, e simultaneamente partir do princípio que qualquer “progresso” em direção a uma suposta “modernidade” seja bom. Não é a isso que me refiro. Por outro lado, é claríssimo que uma das motivações mais comuns para a defesa da criminalização do aborto provêm de histeria religiosa baseada em ditames dogmáticos retro-racionalizados a posteriori e cobertos generosamente com molho de chantagem emocional e lavagem cerebral. São parte de toda uma visão de mundo completamente em dessintonia com tudo que se descobriu, pensou e viveu nos últimos dois séculos. Claro que imediatamente, como já observado, se pode colocar – quem disse que os últimos dois séculos de pensamento humano sirvam de modelo para qualquer coisa? E certamente existe aí um bom argumento. Mas existe um aspecto que não se pode negar sem descambar para o obscurantismo, que é a realidade dos avanços técnicos e científicos que nos permitem hoje compreender e interagir com a realidade de formas absolutamente revolucionárias. Tais avanços, ao contrário do que muitos querem defender, conflitam sim diretamente com vários valores tradicionais, e embora esse choque deva ser objeto de muita reflexão ao invés de precipitado abandono de tudo em que acreditávamos, é completamente absurdo enfiar a cabeça num buraco e fingir que não existem. Lidar por exemplo com princípios científicos abundantemente estabelecidos como a evolução das espécies como “meras teorias” basicamente porque levam a conclusões que ferem suscetibilidades teológicas é fechar-se em si mesmo e bradar “eu vou acreditar no que eu quero acreditar seja lá qual for a realidade”. O que, novamente, não é novidade e não deixa de ser tentador quando a realidade nos desagrada, e certamente é privilégio pessoal de cada um, mas que termina no limite de sua consciência e não deveria ser imposto – muito menos por força de lei, pelo menos a esse ponto parecíamos ter chegado – a ninguém. Mas naturalmente, a pecha de “retrógrada” não é em si mesma um argumento contra nenhuma posição específica. É apenas um sintoma. Prossigamos.

Vamos ao hipócrita. Essa é quase uma covardia. Basta analisar as estatísticas, por exemplo num país pretensamente católico como o Brasil, das pessoas que se dizem contra o aborto e da quantidade de abortos que são de fato realizados. Essa é de goleada, então não vejo motivo para insistir no ponto. Mas novamente, isso em si mesmo não é um argumento sólido, é apenas mais um sintoma da inconsistência dessa posição; estabelecer que existe abundante hipocrisia não resolve o assunto.

Passemos portanto ao ponto central da questão : o argumento de que um aborto seria comparável ou equivalente a um homicídio. Minha opinião pessoal, que não é nem um pouco incomum, é que num aborto realizado suficientemente cedo, não existe nenhuma relação entre os dois. Um ser humano não é definido ou estabelecido por um monte de células. Ninguém será preso por agressão por espancar um cadáver. Experimente porém fazê-lo minutos antes da morte e o significado será completamente diferente. É disso que estamos falando. Da preservação da integridade física de um ser humano, não do corpo sem vida de um ser humano, de fios de cabelo de um ser humano, ou de células humanas. Então resta a questão : a quais entidades vamos nós agora atribuir esse estado especial de existência chamado “ser humano” cuja integridade merece ser protegida?

Essa não é uma questão muito simples de se responder. Claro, sempre podemos arbitrariamente escolher um momento no tempo para dizer “aqui surgiu um novo ser humano” (tradicionalmente e universalmente, aliás, o momento do parto), mas o fato é que é um longo processo. Creio que podemos em geral concordar que antes da concepção não existe ser humano novo, e depois do parto existe. Mas note-se que isso não é uma “verdade” a ser “descoberta”, porque estamos exatamente tentando *definir* onde começa essa humanidade.

Existe aqui um problema similar ao de determinar a idade para a maioridade civil. Parece razoável concordar que não faz sentido enviar um bebê de dois anos de idade para a cadeia por ter sido descoberto carregando um brinquedo de uma loja sem pagar. Da mesma forma, parece razoável concordar que um cidadão com 21 anos de idade em posse de suas faculdades mentais não deve gozar do mesmo grau de boa vontade. Onde, porém, ocorre essa transição entre “cidadão em treinamento” para “cidadão responsável por suas ações”? A resposta é que evidentemente não ocorre em nenhum momento específico, é um longo e gradual processo e que além disso difere de um ser humano para outro. Claro, poderíamos “pelo sim ou pelo não” tornar a todos criminalmente responsáveis desde o momento do parto, afinal de contas quem sabe quais bebês superdotados não estão na verdade imbuídos de perversas intenções conscientes e se aproveitando da nossa ingenuidade para burlar o sistema judicial? Da mesma forma, em nome de “proteger os inocentes” poderíamos dar imunidade plena a todos até uma certa idade escolhida arbitrariamente. Nesse caso, o que fazer com um indivíduo de 12 anos de idade que por livre escolha cometeu um homicídio durante um assalto? Soltá-lo na rua e dizer “boa sorte”? Mesmo que aceitemos o (para mim duvidoso) argumento de sua “inocência infantil”, suas vítimas não são também “inocentes” a serem protegidos? A conclusão a que se chega é que existem aqui “inocentes” a serem protegidos de ambos os lados. Assim como não é fácil chegar a uma resposta satisfatória para a questão da responsabilidade civil, não é fácil chegar a uma conclusão satisfatória para a questão de onde um ser humano começar a existir, e em ambos os casos os extremos tender a levar a bobagens. Apesar disso, existem aqueles que por considerarem apenas um dos lados, enxergam um dos extremos como a única solução aceitável.

No caso do surgimento da qualidade de “ser humano”, existem aqueles que querem “generosamente” atribuí-la a quase tudo com que consigam desenvolver algum vínculo emocional. (Embora aparentemente tenham uma dificuldade maior em estabelecer tal vínculo com mães, pais e todos os outros seres humanos que objetivamente terão que efetivamente despender tal “generosidade”.) Portanto, tecnicamente parece ser possível ter uma posição abortofóbica baseada meramente em sentimentos antropomorfizantes dirigidos a um glóbulo de células, ou melhor, ao que esse glóbulo “poderia ter sido”.

Não me parece porém que essa simpatia maldirigida seja a força predominante motivando a posição abortofóbica. Pelo contrário, na maior parte das vezes fica claro que a principal agressão percebida em um aborto por seus detratores se dê não no nível objetivo de um ser humano concreto tendo sua vida terminada, mas no nível teológico em que a parte sagrada de um ser humano seria a sua “alma”, e tal “alma” teria os mesmos “direitos” que qualquer outro ser humano pleno. De fato, nesse paradigma, uma “alma” seria a parte mais essencial de um “ser humano pleno” e por motivos teológicos e doutrinários, tal “alma” seria infundida no momento da concepção.

Como conseqüência, nesta visão de mundo, não são ignorados apenas a mãe, o pai, a família e a sociedade ao redor. Perversamente, o bem-estar físico objetivo do ser humano que daí surgirá é considerado irrelevante (ou completamente secundário). Mas isso é plenamente consistente com toda a moral e prática dominante em particular na religião católica e parentes próximos; o bem estar objetivo das pessoas é irrelevante desde que sua “alma imortal” seja “salva”. Daí derivam-se todo o tipo de aberrações, como a preocupação em efetuar uma conversão num leito de hospital preceder a preocupação em efetivamente salvar a vida do paciente (se vocês acham que eu estou inventando pesquisem o que acontece ainda hoje quando a religião católica é levada por falta de freios sociais às suas últimas conseqüências). Ou, por exemplo, a obrigação de prender por homicídio mães solteiras que ousaram tomar pílulas abortivas com duas semanas de gravidez, ou a obrigação moral que alguém teria de dar à luz um filho com síndrome de Down, ou ainda mais absurdamente, de levar a termo uma gravidez de alto risco de um feto inviável, seja por defeitos genéticos, seja por estar o feto aderido à trompa de falópio. Para quem não percebe aonde isso tudo leva (ou não acredita), o material é vasto e abundante, busque reportagens sobre o que aconteceu e está acontecendo nos países que levaram essas idéias a sério. (Exemplo aleatório de outro texto que espero inspire o leitor a pesquisar o assunto mais profundamente.)

Assim sendo, a citação que abre o artigo é perfeitamente coerente. De fato a argumentação de que aborto seria equivalente a homicídio não exige menos do que isso para ser levada a sério. Como ocorre com freqüência, a absurdidade de certas premissas se torna mais óbvia quando as levamos a sério e começamos a delas extrair suas conseqüências lógicas.

Pensando a Brochada Cósmica

October 3rd, 2007 by Sergio de Biasi

O texto de Pedro dá nomes a alguns fenômenos que observamos com cada vez mais freqüência e intensidade, e que giram em grande parte em torno de um culto à mediocridade, ao cinismo, à completa banalização e desprezo de qualquer aspiração de transcendência. Note que quando aqui digo transcendência estou falando no sentido mais amplo possível, de superação, de ver mais longe, de fazer melhor, de compreender mais perfeitamente, de não se contentar com o que é fácil, simples, óbvio ou cômodo.

Trata-se de algo tão onipresente que por vezes fica até difícil de enxergar claramente, mas há modernamente uma pressão social fortíssima para que não se busque fazer nada com excelência. Se alguém demonstra qualquer inclinação nesse sentido, imediatamente começa a receber reações cujo subtexto vai desde escárnio condescendente nos casos mais brandos até “quem você pensa que é” quando a intenção é realmente séria.

Existem muito motivos para isso e o processo é complexo, mas uma boa parte vem de um acordo tácito em investir na profecia auto-realizante da falta de sentido. Em outras palavras, vamos todos combinar sermos uns merdas que desde que não haja contra-exemplo podermos nos confortar no pensamento que não existe realmente nada melhor do que isso. Por isso quem tenta fazer melhor incomoda – vai que o sujeito consegue e então a desculpa da inutilidade de sequer tentar torna-se menos admissível. Por isso as pessoas aplaudem no final do filme quando se discursa sobre os méritos de desistir; porque a opção seria o sujeito que desiste ser na verdade um otário e nesse caso temos que escolher entre sermos também otários ou realizar um grande esforço de autosuperação.

Interpretando Expressões Comuns 2

September 29th, 2007 by Sergio de Biasi

Não há como resistir a tentação de dar minha contribuição à lista iniciada por Pedro…

Você é pretensioso. – Você ousa achar que sabe algo que eu não sei, e isso é um absurdo.

Vamos decidir democraticamente. – Que tal se a gente parar de discutir idéias e ao invés disso fizer um concurso de popularidade?

Precisamos melhorar a educação no Brasil. – Precisamos emitir mais diplomas para mais pessoas.

Precisamos proteger o grupo XXX de discriminação. – Precisamos criar a ilusão de que quem não der dinheiro para mim odeia o grupo XXX.

Precisamos regulamentar a profissão XXX. – Precisamos entravar ao máximo possível o acesso à profissão XXX para aumentar os privilégios de quem tiver autorização para exercê-la.

Se eu deixar você fazer isso vou ter que deixar todo mundo. – Não existe nenhum motivo coerente para esta regra existir mas eu gosto dela.

Sua opinião também é válida. – Vou ignorar completamente a sua opinião.

Essas são as tendências mais modernas nos EUA e na Europa. – Eu li na revista Veja que uma vez em 1976 alguém tentou isso no Canadá.

Todo mundo sabe que XXX. – Eu não faço a menor idéia de por que estou defendendo que XXX seja verdade.

E, last but not least:

Há que se endurecer sem perder a ternura. – Há que se perder a ternura mas sem admitir abertamente.