A Egüinha Pocotó

February 15th, 2003 by Sergio de Biasi

“Vou mandando um beijinho
Pra filhinha e pra vovó
Mas não posso esquecer
Da minha égüinha pocotó
Pocotó pocotó pocotó pocotó
Minha égüinha pocotó?”

Me enviaram hoje uma cópia de um artigo cuja abertura é o texto acima.

O artigo prossegue, para esclarecer : “Esse é o grande sucesso da música popular brasileira, que domingo ocupou horas preciosas do horário nobre do programa do Gugu, batendo recordes de audiência.” Mais adiante, o autor comenta : “Eu sou pai. E assisto, consciente de minha impotência diante da máquina da TV, minha filha de 12 anos se divertindo, cantando e dançando o pocotó. Por sorte ela não entende as letras paupérrimas, chulas, apelando para o sexo e tratando as mulheres de éguas e cadelas.”

Concordo totalmente que a degeneração cultural pela qual estamos passando é lamentável, mas não concordo completamente que a causa seja só lavagem cerebral da televisão. As pessoas QUEREM ver a égua pocotó. Logo, há um problema sério com as próprias pessoas, um problema não somente de “nível cultural” (que supostamente as classes média e alta teriam mas vêem egüinha pocotó do mesmo jeito) mas principalmente de valores. É uma coisa comum de se dizer que a educação seria a solução, mas para mim isso é só parte da verdade, só se compreendermos a educação em seu sentido pleno. O principal benefício da educação, a meu ver, não é entulhar a cabeça das crianças com ementas do MEC ou dar-lhes “diplomas” (pfff…). O principal benefício é criar um respeito, uma admiração, um desejo pelo conhecimento e pela cultura. É despertar nas pessoas o gosto pelo mais elevado, pelo mais sofisticado, pelo transcendente. É acordar não só a sua inteligência mas também o seu gosto e sua sede por pensar, refletir, compreender. Pessoas com esse tipo de cabeça não vão suportar 5 segundos de egüinha pocotó. Não somente porque é de mau gosto e idiota, e sim por um motivo mais simples e menos ideológico : porque será chato e vazio. Será como olhar uma folha em branco.

Educadores (pais, professores, etc…) que não sabem ou não se importam em provocar essa mudança, que não puxam as crianças pela mão para fora da infantilidade intelectual e espiritual, são a maior ameaça que temos atualmente à grandeza de nosso país, de nossa civilização, de nossa espécie. A escola tornou-se praticamente uma máquina de ensinar as crianças a achar o conhecimento algo chato, sem sentido, incompreensível e inútil, e os pais freqüentemente concordam.

O que podemos fazer para reverter isso? Considero razoavelmente fútil e provavelmente até danoso achar que o governo, através de algum programa, ministério, subsídio ou seja lá o que for poderá fazer alguma coisa. Tudo em que o governo se mete torna-se instantaneamente impessoal e burocrático. Isso tem que ser uma iniciativa da sociedade, das comunidades, dos pais, dos professores, das igrejas…

Assim sendo, na verdade, acho que até há algo que o governo pode fazer, como na maioria dos casos : parar de atrapalhar. Deixar surgirem mais escolas particulares. Deixar as escolas escolherem suas ementas e cargas horárias. Deixar as escolas escolherem suas mensalidades. Acabar com a obrigatoriedade da matrícula de menores em escolas. Deixar os pais e seus filhos escolherem o que vão estudar e onde. Acabar com a exigência legal de diploma para o exercício da maioria das profissões em que ele é requerido.

“Oh!!!!”, dirão muitos, “Herege! Anarquista! Será o fim da educação!”. Pois eu digo que será o começo da possibilidade de uma educação de verdade.

Da forma como a coisa funciona atualmente, os diplomas são como bens; precisamos adquri-los e para isso devemos seguir certos procedimentos e pagar um certo preço. Feito isso, ganhamos privilégios e benefícios inventados pelo governo. Aprender alguma coisa não tem nada a ver com o assunto.

Se a educação tem algum valor em si, então será mais um recurso desejado por todos, inclusive pelos pobres, talvez nem necessariamente através de uma instituição escolar. E se for numa escola, então será naquela que cada um escolher como adequada às suas necessidades, convicções e ao seu orçamento.

Já dizia Roberto Campos : “Não existe isso de dizer que o governo oferece escola pública gratuita. Toda escola é pública e nenhuma escola é gratuita.” De fato, em nosso país, as escolas em geral, sejam do governo ou particulares, estão abertas a todos e prestam um serviço à parcela de nossa população que as freqüentam, e nesse sentido certamente são públicas. E ambas são pagas, porque o serviço que prestam, naturalmente, tem um custo. No caso das escolas particulares, esse custo é assumido voluntariamente por clientes pagantes. No caso das escolas desse governo, os pagantes somos todos nós, inclusive as famílias dos alunos, através de taxas, impostos e similares, e isso não só é pago involuntariamente como independentemente da qualidade dos serviços que recebemos ou mesmo de se sequer utilizamos esses serviços.

“Mas nesse caso como é que os pobres irão educar seus filhos?”. Eu inverto a pergunta – se o governo cria montes de escolas que educam “de graça”, como é que alguém vai conseguir ganhar dinheiro abrindo escolas para pobres, escolas que concorram entre si e ofereçam serviços que eles possam escolher, selecionar e pagar? Quem diz que isso é irreal, reflita que neste país, na época em que a telefonia estava nas mãos do governo, pobre não tinha telefone. Ponto. Após a privatização do setor, um dos resultado mais óbvios e palpáveis foi que agora não é mais necessário ser rico para ter um telefone. É absolutamente comum atualmente ver porteiros, empregadas domésticas, camelôs, etc… com telefones celulares pré-pagos. As companhias telefônicas estão fazendo isso porque são boazinhas? Não, estão fazendo porque os pobres estão comprando. Elas só acharam um jeito de oferecer um serviço que eles pudessem pagar.

Claro, então demagogicamente, há quem argumente que “Ah, mas a educação que eles poderão pagar será pior que a dos ricos!” É claro que será. Note-se que os pobres também precisam comer, morar, vestir, cuidar da saúde, etc… sua comida, habitação, roupas e atendimento médico também são piores. Talvez, pensam infantilmente alguns, o governo devesse então “dar” aos pobres tudo igual ao que “os ricos” têm. Só que isso é impossível – e não estou falando meramente de impossibilidade social ou econômica. É uma impossibilidade física. Simplesmente não há recursos materiais no mundo para todos viverem em mansões e comerem caviar. Não há como todos viverem segundo os padrões daqueles que usufruem do “melhor”.

Diante disso, surgem os que concluem – “Certo, então vamos tomar o que os ricos têm e distribuir.” Isso não só não resolve absolutamente nada como piora a vida de todos. A dos ricos é óbvio que piora – eles terão sido estuprados pelo governo. Só que mesmo as grandes fortunas, se distribuídas por toda uma população, não mudam em nada a vida de pessoas individuais. A chave para entender isso é o fato de que a economia é um jogo no qual, visto de longe e a longo prazo, é fisicamente impossível a média das pessoas receber mais do que o que a média das pessoas produz. Isso é óbvio. Tudo o que é construído, vendido, taxado, utilizado, alguém tem que ter feito. Se não fui eu, foi outro. Ficar mudando as coisas de mãos é algo que, em si mesmo, não resolve nenhum problema social, a não ser que dar os mesmos problemas sociais a todos seja considerado uma solução. Adicionalmente, o acúmulo de capital é necessário ao desenvolvimento econômico e social; sem ele, nada de vulto um pouco maior pode ser realizado. A diferença é que num sistema com maiores liberdades individuais as pessoas se reúnem espontaneamente para acumular capital, como quando uma comunidade se reúne para construir uma igreja, ou quando alguém abre uma loja, ou, num nível mais sofisticado, quando é lançada uma sociedade por ações. Sistemas totalitários, centralizados, como o comunismo, são tão capitalistas quanto todos os outros (é impossível fugir disso numa economia moderna) com a única diferença de que o governo, pelo meio da força, garante para si o monopólio do acúmulo de capital, o qual naturalmente também é feito por coerção.

Isso tudo do ponto de vista econômico e político. Agora, do ponto de vista moral e humano, além da perda de liberdades, ocorre algo ainda pior quando o governo se mete a consertar “desigualdades” através da força. Os teoricamente “beneficiados” pelas ações governamentais perdem qualquer incentivo prático ao auto-aperfeiçoamento. Pior ainda, perdem completamente a noção da conexão entre mérito e recompensa, entre trabalho e resultado, entre investimento e retorno, que são leis morais e físicas universais que nenhum governo pode revogar. Passam então a viver num mundo de fantasia, no qual acham que tem “direito” a ter magicamente tudo o que desejarem – inteligência, estudo, reconhecimento, conforto – exclusivamente pelo fato de que outros têm, não porque tenham passado pelo esforço pessoal de obtê-lo.

O que isso tudo tem a ver com educação? Tudo! A ilusão de que eu possa “salvar” uma pessoa simplesmente dando bens materiais para ela sem que ela se engaje de qualquer forma na produção desses bens é exatamente a mesma que no caso da educação. Só que na educação, mais do que em qualquer outra área, essa falácia se esfarela mais fragorosamente e causando mais prejuízos. Ninguém pode me “dar” uma educação, como um presente caro numa caixa com uma fita em cima; eu preciso conquistá-la, a educação é um esforço de transformação interna. Ninguém pode fazê-lo por mim. Da mesma forma, ninguém pode me “obrigar” a ter uma educação. Podem me obrigar a ir a uma escola e a seguir rituais burocráticos ditados pelo governo, mas se eu não estiver pessoalmente engajado, isso só contribuirá para me despersonalizar e para me acostumar a aceitar pacificamente seguir ordens inúteis e a recitar historinhas sem sentido.

Aliás, se chega-se ao ponto de coagir as pessoas a mandar seus filhos para a escola, então realmente tem de haver algo de fundamentalmente errado com o sistema. Pais zelosos (que suponho que ainda sejam uma boa parte da população) educam muito melhor do que qualquer escola; eles saberão como administrar a educação de seus filhos. E se os pais não forem zelosos, dificilmente haverá governo ou escola no mundo que tenha autoridade moral ou competência para substituí-los adequadamente. Mesmo supondo que haja muitos pais alienados, o que é preciso é um trabalho contínuo de CONVENCIMENTO de que a escola será boa para seus filhos. Colocar um oficial de justiça para intimá-lo a mandar seu filho para a escola é simples violência totalitária.

E para piorar, em geral é inútil. Quantas pessoas, ricas ou pobres, se lembram, quando adultas, do conteúdo das aulas de primeiro e segundo grau? Quantas, mesmo as “cultas”, conseguem usar uma crase corretamente, achar o circuncentro de um triângulo, lembrar como começou a Segunda Guerra Mundial, explicar o que é uma meiose ou desenhar a estrutura molecular do álcool etílico? Lembrem-se, nós passamos aproximadamente UMA DÉCADA de nossas vidas, e ainda por cima justamente um dos períodos em que nossa mente estava mais ativa e apta a aprender… sentados em cadeiras, dia após dia, numa sala fechada, proibidos de conversar e sendo obrigados a ouvir coisas… as quais posteriormente, quando adultas, a grande maioria das pessoas absolutamente não será capaz de se lembrar nem sob tortura.

Por que isso aconteceu? Será que os professores não “ensinaram” os “conteúdos” direito? Ou será que a falha foi mais básica, mais fundamental, em não conseguir despertar nos jovens a noção de que há algum valor, algum mérito, alguma beleza, alguma importância em saber todas essas coisas? Falhando isso, todo o resto perde o significado. Os adultos que não se lembram de todas essas coisas provavelmente as responderam algum dia numa prova há dez, vinte, trinta anos atrás. Só não viram absolutamente qualquer motivo para prestar atenção nelas, e continuam até hoje não vendo. Sua educação falhou. Foi tudo um grande desperdício de dinheiro, tempo, esforço, mas principalmente de vidas humanas que depois crescem para achar maravilhoso ficar dançando e cantando ao som da Egüinha Pocotó.

Polícia Para Quê Precisa?

October 16th, 2002 by Sergio de Biasi

Hoje por acaso eu estava passando lá pelo prédio Kennedy da PUC-Rio para pagar meu estacionamento quando vi que havia um debate público promovido pelos alunos do CCS e parei um pouco para ouvir. Convidado para o debate, estava o Hélio Luz, ex-secretário de segurança pública. O debate, naturalmente, era sobre segurança pública e a um dado momento ele comentou a situação de furtos de automóveis. Vou reproduzir aqui, mais ou menos, as palavras dele, pois me parece que serão de interesse de todos.

Ele disse que em um dado momento, se não me engano por volta de 1996, a situação de furtos de automóveis estava insuportável no Rio de Janeiro. Mas eles conseguiram colocá-la sobre controle. O que fizeram? Extingúiram a delegacia especial de furtos e roubos de automóveis. Isso mesmo. Imediatamente caíram os furtos de automóveis.

Segundo ele, é um jogo de cartas marcadas; a maior causa do aumento de criminalidade, para ele, é a própria polícia inchada e fora de controle. O ladrão de carros, ao invés de ser preso, entra em “acordo” com a polícia, e aí, ao invés de roubar um carro e fazer seu dia, tem que roubar mais três para pagar a polícia e o advogado.

Nas palavras dele, prender ladrão de automóveis é, entre os problemas de segurança pública, um dos mais banais e simples do mundo. A polícia conhece as estatísticas de onde os ladrões atacam, que ruas e locais. Coloca-se uma dupla de detetives para vigiar discretamente. Quando o roubo ocorre, o ladrão é preso na hora e pronto. É um procedimento que não requer qualquer investigação ou treinamento sofisticados. É ir lá e prender : nas palavras dele “É linear, que nem Vovó Viu a Uva, temos Polícia Prende Ladrão. Ponto.” Agora, isso é do ponto de vista técnico, policial. Do ponto de vista político e dado o funcionamento real da polícia do Rio de Janeiro, é bem mais complicado.

Para começar, existem delegados que operam firmas de “recuperação” de carros, ou seja, seu carro é roubado, você paga a eles e seu carro “reaparece”.

Adicionalmente, quando chega lá o tecnocrata bem intencionado e olha as estatísticas de furtos de carros e diz : “ok, manda uma patrulha para a área”, o que é que ocorre grande parte das vezes? O número de furtos AUMENTA ao invés de diminiur. Ele disse que isso é super comum. Por que? Ora, porque aqueles policiais já tem um acordo com os ladrões; na área deles, pode roubar e eles recebem a comissão. Então, na verdade, ao alocar aquela patrulha para lá, você LEVOU os ladrões para lá.

Finalmente, numa visão mais do alto, temos entre outros as seguradoras de automóveis, que fazem enormes contribuições a campanhas políticas de deputados e vereadores, por exemplo. Quando o roubo de carros cai abaixo de um certo nível, fica simplesmente inviável vender seguros. Por que é que alguém vai comprar, se o risco do carro ser roubado é mínimo? Nas cidades pequenas, por exemplo, é muito comum ninguém ter seguros contra roubo de automóvel. E mesmo quem comprar não vai tolerar pagar caro pelo seguro. Resultado: sempre que os roubos de automóveis começam a cair muito, as seguradoras começam a botar uma pressão enorme para mudar a política de segurança pública. Não sou eu quem está dizendo; é alguém que já foi secretário de segurança do Rio de Janeiro.

Segundo ele, o governo do Garotinho fez a pior coisa possível que ele podia ter feito com a polícia do Rio de Janeiro durante os anos em que governou : contratou nada menos que ONZE MIL novos políciais para a PM. Fora o gasto público a que isso corresponde, são onze mil pessoas incorporadas sem o mínimo de treinamento, de preparação, de infraestrutura e principalmente de mecanismos de controle e comando. Resultado : um monte de manés que certamente não estão ali por causa do salário (que é ruim), com o direito de saírem por aí armados e com autoridade para falar em nome “da lei”. Para o Hélio Luz, um efetivo infinitamente menor mas com um comando firme e tolerância zero para a corrupção poderia fazer muito mais pela população. E um mau policial é muito, muito pior do que policial nenhum.

Só posso dizer que assino embaixo. E as pessoas ainda votam na Rosinha, depois de verem os traficantes dando risada…

O Império do Medo

October 14th, 2002 by Sergio de Biasi

Estamos observando, na situação de total descontrole que tomou conta do Rio de Janeiro, o resultado direto da arrogância dos dirigentes das políticas de segurança pública.

Após cada ordem dada para se paralisar o funcionamento do comércio, das escolas e dos serviços públicos, dadas por vezes acintosamente por capangas armados, os comandantes da polícia militar, ao invés de se desculparem perante a população e prometerem soluções imediatas, dão declarações que beiram o delirante de que “está tudo sob controle” e que “só fecha quem quiser”.

Será que eles imaginam que alguém por acaso efetivamente queira fechar? Não percebem que para chegar a esse ponto tem que estar havendo um grande movimento de intimidação contra o qual a população não se sente minimamente protegida? Não há necessidade de o leitor responder; o fato é que eles não percebem.

Se um sujeito pode passar na frente da minha loja, armado ou não, ordenando ameaçadoramente que eu feche e absolutamente nada ocorre com ele, por que é que devo acreditar que quando esse sujeito voltar para me matar, agredir ou simplesmente vandalizar a minha loja, então alguma coisa irá acontecer? De que me adianta a polícia chegar duas horas depois dizendo que eu posso abrir a minha loja que “eles garantem”? Se ao invés de me ameaçar, o sujeito tivesse me agredido, claramente nada o teria impedido. E quando anoitecer, a polícia vai embora para casa, mas minha loja continuará lá, no mesmo lugar, no dia seguinte, e no próximo, e no outro. Se eles não estavam lá quando vieram me ameaçar, se não conseguem impedir essas repetidas e truculentas ameaças, se não conseguem eliminar as estruturas de poder que as comandam, então eles não têm o direito, não têm a autoridade para vir me dizer que eu devo me sentir seguro.

Porém, a arrogância dos dirigentes da segurança pública é tão grande que negam que sequer haja uma situação anormal. Repetem seu mantra de que “está tudo sob controle” enquanto bairros inteiros são aterrorizados e uma situação de inexistência de autoridade que há muito já existia nas favelas se derrama sobre toda a cidade, com o aumento paulatino de situações antes impensáveis como barreiras criadas por criminosos em vias expressas, fechamento de túneis, ameaças ao comércio, às escolas e às instituições públicas em geral, toques de recolher, enfim, sintomas patológicos indiscutíveis de que a ordem pública, está, sim, sendo ameaçada.

Não se trata mais de aumento do número de assaltos, de mera estatística de violência urbana. Estamos lidando aqui com um problema muitíssimo mais grave, de ruptura institucional, de luta pelas estruturas de ordem social, de uma briga seríssima travada nas mentes de cada comerciante, cada lojista, cada professor, cada estudante, cada dona de casa para mostrar, afinal de contas “quem é que manda aqui”. Esse é o objetivo dessas manifestações terroristas. E, infelizmente, a polícia e o poder público estão perdendo essa luta.

Os motivos para isso são vários, incluindo talvez recursos e orçamento insuficientes, mas a não ser que haja uma mudança de atitude política, pouco poderá ser feito.

A legislação, os políticos e a polícia têm que parar de tratar a população como um bando de bebês indefesos e incompetentes que só ficam dando trabalho quando são assaltados ou ameaçados. Ao contrário, é preciso que os cidadãos de bem sejam tratados como aliados da polícia. Eles devem estar e se sentir do lado da polícia, e a polícia ao lado deles. A noção de que “segurança pública” e “ordem social” sejam construídas e garantidas pelo governo são um erro grotesco de avaliação. Elas são construídas por todos nós. Sem a colaboração e a boa vontade de 99% da população, a ordem social simplesmente implodiria.

Apesar disso, há fortes tendências políticas e ideológicas, atualmente, no sentido de ignorar ou mesmo excluir cada vez mais o cidadão comum, que é normalmente o mais interessado de todos na segurança pública, do processo de sua construção. A proposição de legislações como as que restringem cada vez mais o porte de armas para o cidadão comum, algumas visando até mesmo sua eliminação completa, são extremamente infantilizantes e deixam o cidadão completamente indefeso. Sem dúvida, um sujeito treinado, equipado e preparado para a ação policial provavelmente a executará melhor e mais seguramente que um cidadão em auto-defesa. Porém, a questão é muito mais profunda do que essa.

Em primeiro lugar, é completamente impossível à polícia estar presente em todos os lugares durante todo o tempo. Na verdade, se formos realistas, a polícia só pode efetivamente estar em muito poucos lugares, com contingentes finitos e durante períodos limitados. E, especialmente quando o foco das agressões à ordem pública muda de simples assaltos para puro e simples terrorismo, não faz qualquer sentido esperar pela posterior reação policial. Quando ela vier, será tarde demais. Eu preciso me defender aqui e agora. Se a própria polícia pede aos cidadãos que desafiem as ordens dos traficantes, é muito lícito que perguntemos então “com que meios?”.

Em segundo lugar, ao prover ao cidadão meios concretos de auto-defesa, estamos revertendo um processo de infantilização da população, de “deixa que o governo resolve isso pra você”. Mesmo aqueles que não têm e não querem ter armas terão uma visão diferente da segurança pública se essa for uma opção individual e não imposta pelo governo. Saberão que têm responsabilidades e escolhas e que seu papel na segurança pública é atuante e não passivo, e isso se refletirá em muitos mais comportamentos do que os que envolvem o uso de armas de fogo.

Finalmente, em terceiro lugar, com base em que dispositivo moral, legal ou constitucional se rouba dos cidadãos comuns o direito à auto-defesa? Que se privem os condenados ou criminosos conhecidos do direito de portar armas legalmente é plenamente compreensível, mas qual o raciocínio, qual a justificativa para fazer o mesmo com o cidadão comum? A de que usarão as armas para o crime? A de que são incompetentes para se autodefenderem? Pessoas às quais se permite dirigir, ter filhos, votar, administrar negócios, clinicar, construir prédios, de tomar decisões em princípio muito mais sérias para a sociedade não têm então discernimento suficiente para saber quando e como utilizar uma arma? Será que é esse realmente o problema? Ou será que é de fato a manifestação de um princípio ideológico bem mais abrangente de buscar concentrar ao máximo no governo todo o poder, ou seja, fruto da noção de que não é a sociedade que tem de mandar no governo e sim o governo que deve mandar na sociedade?

A Revolução Já Começou

September 15th, 2002 by Sergio de Biasi

Há algumas semanas, surgiu na praça próxima à minha residência, no Rio de Janeiro, um grupo de – como direi? – mendigos de rua. Talvez o leitor estranhe que eu não saiba como chamá-los, e é exatamente esse o ponto – é grande também o meu estranhamento. Afinal, mendigos de rua já os vejo, infelizmente, desde quando era pequeno. Há os mais diversos tipos. Bêbados, sóbrios, velhinhas, deficientes, crianças, há até os que parecem ter um trabalho diurno mas não ter um lugar para dormir.

Esses recém-chegados, entretanto, não parecem nada disso.

Apesar de eu assistir há décadas aos mendigos de rua convivendo pacificamente com o resto da população do bairro, inclusive sobrevivendo em grande parte devido à ajuda que recebem, esses, muito claramente, não parecem adeptos da paz. Onde estão, constantemente surgem problemas. E, dado o seu comportamento, isso não chega a ser uma surpresa. Essas pessoas não demonstram o mais remoto sinal de respeito, moral ou civilidade com relação à comunidade ao seu redor. Abordam transeuntes de forma insistente e hostil, bloqueiam os caminhos de passagem, envolvem-se freqüentemente em brigas – mas tudo isso sem qualquer propósito claro, e na verdade grande parte do tempo têm todo o comportamento confuso típico de drogados. Juntam-se num bando do qual os moradores do bairro aprenderam a desviar a caminho de seus afazeres diários.

Digo “bando” pela falta de uma palavra melhor. Para começar, não são dois ou três. Claramente não fazem o tipo de mendigo – ou mesmo núcleo familiar – solitário, que enfrenta suas dificuldades como consegue, vivendo na rua do jeito que dá. Não vejo uma família carente, ou um desempregado, ou crianças de rua, ou um velho sofrendo com o abandono. Por outro lado, também não são uma quadrilha organizada, ou uma gangue de rua. Vejo algo que não sei definir direito. Talvez sejam as crianças de rua de ontem, mas agora não sei mais o que são. Claramente não são mais crianças, com juventude, inocência e fragilidade: há inclusive garotas com bebês no colo e rapazes que metem medo em quem passa perto. Porém, claramente também não são adultos, pois para isso necessitariam de um comportamento com um mínimo de equilíbrio, de responsabilidade, de uma maturidade e uma segurança que nitidamente não têm. Formam um bando amorfo, carente de algum tipo de relação social definida entre eles mesmos ou com a sociedade ao seu redor. Enquanto isso, eles incomodam, irritam e amedrontam os moradores do bairro.

Há alguns dias eu estava voltando para casa e vi uma confusão na praça. Aproximei-me e, pelos comentários, o grupo aparentemente (não posso afirmar pois não estava lá) havia incomodado uma velhinha e, diante disso, um oficial militar que passava resolveu interpelá-los. Daí se iniciou uma discussão, a qual descambou para uma briga em que o militar se atracou com dos membros do grupo. Foi nesse ponto que cheguei. O militar estava fardado e com uma arma no coldre na cintura, mas (muito equilibradamente) em nenhum momento fez sequer menção de puxar sua arma. O grupo começou a comportar-se de forma cada vez mais histérica, mas só isso mesmo: histérica. Berravam e urravam, e faziam ameaças, mas recuavam ante a total segurança e decisão com que agia o militar. A essa altura, passantes e moradores do bairro haviam parado em grande quantidade para observar. A quase totalidade das pessoas fazia comentários como “É isso mesmo! Já estava na hora de alguém fazer alguma coisa!” e “Tem mais é que meter bala nesses caras!” e “Agora talvez minha mãe possa voltar a passar aqui de noite!”.

Afinal, quando a confusão já estava ficando realmente grande, surgiu um PM e dirigiu-se ao militar, com um diálogo que, à distância, pareceu algo como “deixa disso, vamos sair daqui” e ambos foram embora (isso mesmo), deixando o bando furioso e a multidão olhando uns para os outros com cara de “e agora?”.

Nesse momento, um dos membros do grupo se jogou no chão e começou a berrar “ai, ai, ai” e um outro a gritar “A polícia bateu num menor! A polícia bateu num menor!”. Um dos membros da multidão que achou aquilo uma farsa ridícula e revoltante começou a exclamar “Isso é ridículo, esse cara está fazendo teatro!”. Os berros foram esquentando e a situação também, até que apareceu um amigo do sujeito para dizer “deixa disso” e começou a levar ele embora. Quando ele começou a ir embora, o que estava no chão gritando “ai, ai” se levantou, aos berros, e começou a atirar pedras e objetos no que denunciava seu teatro. Este ficou finalmente furioso, e partiu com tudo pra cima do que estava no chão, iniciando uma nova briga com o bando, na qual distribuiu e recebeu pancadas.

Diante disso, um sujeito que estava perto de mim, com jeito de trabalhador que estava a caminho de algum lugar e havia parado para ver o que estava acontecendo, falou com preocupação : “É a guerra civil. Ninguém quer dizer, mas ela já começou.”

E eu ouvi aquilo, e pensei, e pensei… e não é que o sujeito tem razão? Eu ligo a televisão, e vejo os traficantes fazendo emboscadas para a polícia. Vejo a prefeitura sendo metralhada. Vejo que os fazendeiros brasileiros próximos à fronteira com a Colômbia estão se reunindo para criar organizações paramilitares para se defender do MST. Se fosse em outro país, talvez percebêssemos mais claramente com todo o seu significado sombrio: GUERRILHA. Não se tratam de simples ladrões ou desordeiros; seus objetivos não são meramente financeiros, mas políticos. Não é uma somente uma quadrilha querendo dinheiro. Tratam-se de movimentos políticos nem um pouco secretos, organizados nacional e internacionalmente com o objetivo declarado de mudar nossas instituições pelo uso da força.

Agora, o que deveríamos esperar dos fazendeiros, dos comerciantes, da população em geral se o governo primeiro determina o monopólio do poder de polícia e depois não o exerce? Se o MST anuncia publicamente sua intenção de cometer crimes, efetivamente os comete e, escandalosamente, NADA ocorre, ninguém é preso nem investigado? Se fazendas inteiras são queimadas e destruídas, policiais são atacados e o resultado final é que os atacantes levam suas vítimas à justiça por reagirem? Se a política federal de segurança pública consiste em confiscar os meios de autodefesa dos cidadãos? Se ao policial nunca é permitido agir em defesa da sociedade porque o agressor sempre “é de menor”? O pivete te roubou no sinal? Sinto muito, é de menor. O capanga do traficante fuzilou um líder comunitário? Sinto muito, é de menor. Pois parece que a mesma resposta está sendo dada (ou farsescamente imposta) em outros casos. O MST invadiu sua casa? Sinto muito, é de menor.

E assim como eu vi o militar que passava, por iniciativa própria e praticamente solitária, atracar-se com um bando no meio da rua para nos defender a todos, imagino o dia em que finalmente chegaremos a um ponto tão terrível em que será preciso que não a polícia, mas o exército tome uma atitude para nos salvar a todos do MST. E quando e se ele ousar fazê-lo, as mesmas vozes de sempre gritarão: “Selvagens! Genocidas! Hereges!” na tentativa de convencer a platéria hesitante de que o MST “É de menor”. Que é inocente, coitado, que são um bando de crianças miseráveis e indefesas armadas com toscas foices e lutando contra tanques e bombas. Só que eles não se reúnem às centenas com foices para atacar um quartel, e sim para deliberadamente aterrorizar fazendeiros e suas famílias. E, enquanto hesitamos diante de tantas mentiras, a verdadeira revolução já está ocorrendo nas nossas cabeças. Pois a maior revolução não é assustar fazendeiros, destruir suas propriedades, matar seus funcionários e invadir suas casas; qualquer bando de desocupados pode fazer isso. A revolução está em conseguir fazer isso em rede nacional de televisão e a sociedade ser engambelada a deixar por isso mesmo.

Algum tempo após a confusão, chegaram vários carros de polícia à praça próxima à minha casa. Pararam um pouco, fizeram algumas perguntas, foram embora. E o bando, retomou à sua rotina de costume.

The World Trade Center Bombing – What Now?

September 15th, 2001 by Sergio de Biasi

First of all, the United States should resist at all cost the temptation of bombing random locations in any country. That would only bring more  innocent people dying and suffering, more hate, and maybe even more terrorist attacks. It certainly wouldn’t bring LESS terrorist attacks,  because those are not the random work of insane psychopaths, but desperate acts of people with an overwhelming feeling of powerlessness when faced  with what they perceive as intolerable injustice and evil. Bombing their cities and killing their families doesn’t seem the best way to make them  feel less desperate. The problem is that after a certain stage, trying to scare them away or “break their will” is pointless; when people have  already lost most of what they value or care about, you can’t scare them with threats or even real violence and cruelty anymore. That would only  strengthen their resolve. Those people feel like “la resistance” in World War II France, fighting a mighty enemy with whatever weapons they have.

Consider, for example, the four hijacked planes. How could four or five people armed only with razors or something similar intimidate forty or fifty people? That’s possible because the forty or fifty people had a lot to lose; above all, they didn’t want to die. But at the fourth plane, when they found out that they were going to die anyway, they decided to stop the terrorists even if at the price of klling themselves.

What I am trying to say is that people who have nothing to lose are an unconquerable enemy. So, unless the plan is to kill them all (which, last  time I checked, was called genocide and is supposed to be bad, although universally tried anyway), the situation will NOT improve if any place is  bombed back into the stone age. On the contrary, it’s necessary to give those people hope; they miss very basic things like a home which won’t be bombed, plundered or invaded periodically.

But short of leveling some places with nuclear bombs (the “kill them all” solution), what else is there to do? Supporting crazy rebels is absurd  and helped to create this situation in the first place. Sending “special forces” to “help eradicate the terrorists” is almost certain to create  another Vietnam, with similar results. Sending a full military assault to invade might seem tempting, but consider what happened to the USSR when they tried to invade Afghanistan… consider what’s happening to them in Chechnya… and those places are on their borders, not thousands of miles away!

So, for the “What now?” question, I am forced to conclude that any solution will NOT come from the irrational use of force, but from a sincere  attempt to ease the suffering of those people. Even if it means IMPOSING a solution by force (as it happened in Japan after World War II), the  solution must be sincerely crafted to bring peace and prosperity to the people involved. It’s pathetic how Israel does whatever it wants while the  USA and the UN whine about it and are ignored but still supply enormous military support to them. It should not be a surprise that the palestinians  get furious at the USA. Maybe the time has come for the USA (and the UN) to stop childishly begging Israel and the palestianians to “please behave” and “please negotiate” and simply FORCE a peace plan ON BOTH SIDES. Send lots of troops there and say STOP. Prevent, by force if necessary, Israel from  bulldozing and invading palestinian territory. And do the same to protect Israel from palestinian attacks. This would require lots of courage and determination, but would have the merit of being be a mission to SAVE human lives instead of one to take them for revenge. And that would be an action which would address one of the main CAUSES of the problem, not it’s collateral manifestations. Today it may be Bin Laden, tomorrow it will be someone else. Just killing or capturing him or many others solves nothing.

A Liberdade é Para Todos

June 16th, 2000 by Sergio de Biasi

Esta semana (12/06/00) foi publicado no Globo um artigo em que o Sr. Osias Wurman festeja com enorme entusiasmo uma maré de leis e condenações voltadas a reprimir… a reprimir o que mesmo? A princípio poderíamos imaginar que fosse o exercício do racismo. Porém, um exame mais atento mostra que a simples livre descrição ou discussão de doutrinas racistas já lhe parece odiosa e criminalizável. Na verdade, a conclusão inevitável é a de que o que ele defende (entusiasticamente) é a proibição de que qualquer um divulgue, discuta ou mesmo cite qualquer idéia que não seja previamente autorizada pelo governo.

Esse conceito, naturalmente, não é novo. Ele floresceu com muita força em diversos momentos históricos – normalmente não muito edificantes. Tivemos isso na União Soviética (onde cientistas que insistiam em encontrar resultados que “contradiziam” a linha do partido eram internados em hospícios como loucos), temos atualmente na China Comunista (onde antes de uma “manifestação popular” o governo distribui uma lista dos slogans que poderão/deverão ser usados em cartazes), e nem é preciso ir tão longe : ocorreu aqui mesmo em nosso país (onde já vivemos, por exemplo, a indignidade de ter que submeter letras de música à análise prévia do governo – o qual vetava mesmo).

Claro, o exemplo mais clássico de esmagamento do senso crítico das massas e da imposição à força da opinião oficial é um que talvez não agrade ao Sr. Wurman – a execrada Alemanha Nazista. Os “filhos de Goebbels”, como o Sr. Wurman diz, acreditavam justamente no uso da máquina governamental para, através da força, impingir suas idéias, valores e símbolos goela abaixo de todos ao seu alcance. Talvez o Sr. Wurman possa argumentar “ah, mas é diferente, pois nesse caso quero tornar ilegais justamente as idéias ruins”. E eu respondo : pois é, esse é justamente o modo nazista de fazer as coisas.

Tornar idéias ilegais, por mais odiosas que nos possam parecer (ou que sejam mesmo) é algo que não cabe numa sociedade que pretenda ser democrática.

O conceito de “liberdade de expressão” não existe por acaso. Ele não serve para defender e proteger aqueles que dizem coisas bonitinhas com as quais concordamos. A profundíssima idéia por trás dele é a de que é muito importante que as pessoas que têm coisas desagradáveis para dizer possam dizê-lo, mesmo que nos pareçam “erradas” ou “nocivas”. Mesmo que efetivamente sejam imorais. Podemos até restringir ou qualificar esse direito (não tenho direito de expressar minhas opiniões com um megafone às três da manhã), mas chamar de “liberdade de expressão” uma situação em que apenas podem ser manifestados pensamentos que alguém decretou que são bonitos, verdadeiros e construtivos é uma contradição e uma farsa.

A relevância do conceito de “liberdade de expressão” está justamente nisso : ele está aí, sim, para proteger justamente os heréticos, os iconoclastas, os nazistas, os racistas, os pornógrafos, os revolucionários… Dizer que não devemos confundir liberdade com libertinagem é muito razoável, mas parece, na visão do Sr. Wurman, significar que não devemos confundir liberdade com liberdade.

É óbvio e claro que não devemos permitir que as pessoas saiam na rua agredindo ou ameaçando minorias – ou, na verdade, quem quer que seja. Só que isso já é ilegal! O Sr. Wurman quer mais. Ele gostaria de proibir que um universitário que estuda história tenha acesso, por exemplo, ao que Hitler escreveu. Ou que alguém abra um site questionando o número oficial de vítimas do holocausto. Ou que alguém divulgue teorias malucas sobre conspirações de negros, brancos, índios, judeus ou esquimós contra quem quer que seja.

Agora me digam, como é que um jovem ou mesmo um cidadão qualquer de hoje vai saber que deve odiar Hitler se não souber quem ele foi e o que pensava? Se não puder ler “Mein Kampf” e pensar “que horror”? Ah, claro – talvez o Sr. Wurman tenha receio de que a verdade histórica e a honestidade não sejam páreo para a (desonesta, evidentemente, sem ironias) retórica nazista. Nesse caso, devemos esconder todos os livros nazistas e contar para as “crianças” somente o que os nazistas realmente pensam e o que eles realmente fizeram. Para isso, contaremos – defende o Sr. Wurman – com a ajuda do governo, que se encarregará de decidir que opiniões e informações são ou não legítimas sobre o assunto. E quem tiver o azar de ter uma opinião “errada”, bem, além de ser criminalizado, torna-se automática e oficialmente – pelo menos no mundo imaginado pelo Sr. Wurman – um “nazista”.

Prazer Sem Consciência

June 14th, 2000 by Sergio de Biasi

Mais uma vez sinto-me tentado a escrever sobre este tema. Postado diante do desenrolar da mais absoluta confusão moral sobre o significado de certas atitudes, fui recentemente confrontado com o seguinte argumento/defesa : “Mas sentir desejo é humano e natural, seja qual for o objeto; certamente não podemos ser acusados por isso se formos corretos em nossas ações.”

Eu, que nunca acreditei em crimes de pensamento, tendo a concordar com a afirmação. Certamente, no domínio da lei jurídica, repudio veementemente qualquer tentativa de controlar coercitivamente o que uma pessoa pode ou não pensar. Mas e no campo moral? Será que esse divórcio faz assim tanto sentido ou começa a ter um cheiro danado de racionalização?

Sim, sem dúvida, olhar para as realizações, ou para a aparência, ou para o automóvel, ou para a mulher do próximo e desejá-los para nós mesmos é um sentimento humano e natural. Da mesma forma, são absolutamente básicos no ser humano um sem número de outros impulsos, nem sempre lá muito construtivos ou morais se levados à ação mais imediata. Por outro lado, parece razoável concluir que, se do pensamento imoral não passarmos à açao imoral mais rasteira e óbvia, estaremos mantendo intocada a nossa integridade moral. Será? Será mesmo que é só isso?

Analisemos a seguinte situação. Alguém lhe dá uma fechada no trânsito e lhe cause um acidente sério. Você, tomado pela ira, pensa “vou dar um tiro nesse imbecil”. Daí sua consciência moral entra em ação e você decide não levar esse pensamento à sua realização concreta. Porém, sem qualquer interferência sua, por acaso, um ônibus que passava atropela o outro motorista quando ele sai de seu carro e você sente um enorme prazer com isso. Isso é moral? Supondo que não tenha sido o medo das conseqüências, e sim sua a força de sua consciência moral que lhe tenha levado a decidir não cravejá-lo de balas, deverá você então ficar feliz que outro seja o instrumento involuntário de sua vingança, da manifestação da sua ira? Pergunta ainda mais perigosa : você fez alguma coisa para salvá-lo ou avisá-lo do ônibus? (Ou seja, será que tomado de sentimento tão imoral sua ação realmente permaneceu moral?)

Outra situação. Suponhamos que você convive com um sujeito que leva uma vida confortável enquanto você passa por dificuldades financeiras. Digamos que por vezes você tenha o “impulso natural” de invejar a situação do outro. Só que, a partir daí, você começa a cultivar esse sentimento ao ponto em que não consegue mais tolerar o fato de que o outro viva confortavelmente, em que o bem-estar do outro lhe provoque raiva, ódio, ira. Não sendo um sociopata total, você não toma nenhuma ação para prejudicá-lo. Porém, sem qualquer envolvimento seu, seu colega vai à falência e é atirado numa situação de grande necessidade. E com isso você sente um enorme alívio e prazer. Isso é moral? Isso por acaso pode ser chamado de moral? Ainda mais embaraçoso : você tentou fazer algo para ajudá-lo a salvar sua situação financeira?

Colocados tais exemplos para ilustrar as questões em consideração, vamos nos concentrar no comportamento a que se refere o argumento que abriu o texto – o de desejarmos algo que faz parte da vida de outro. Há várias formas de lidar com tal sentimento.

Podemos buscar atingir o objeto de nosso desejo em analogia, ou seja, deixando intocado o objeto original. Na sua manifestação mais saudável, podemos até mesmo ter (quando exercido com temperança) um sentimento perfeitamente moral – o de admiração. Nesse caso, buscamos, através de nossos esforços, contruir para nós mesmos, independentemente, uma realidade que possua as qualidades que admiramos na do outro. Percebemos nosso desejo como sinal de uma limitação ou insuficiência nossa e buscamos remediá-la através de um esforço contrutivo. Não buscamos ficar iguais ao outro (uma degeneração da admiração) ou roubar o que é do outro – buscamos aperfeiçoar em nossas próprias vidas aquilo que nosso desejo denuncia como incompleto. Ou seja, ao vermos o outro com uma mulher linda, percebemos ainda mais claramente como queremos para nós mesmos uma mulher linda e nos esforçamos para conquistar e merecer uma mulher que consideremos linda. Depois da reflexão inicial, a mulher do outro sequer entra na história.

Uma forma menos virtuosa mas não necessariamente destrutiva de expressar esse tipo de sentimento é através da competição. Nesse caso, nosso desejo não é o auto-aperfeiçoamento diante da nossa própria consciência, e sim em comparação ao outro. No melhor caso, tem o mérito de servir como motivador para o auto-aperfeiçoamento. No pior caso, a virtude da qualidade admirada pode ser obscurecida ou mesmo esquecida em função da necessidade de “superar” o outro. Assim, se ele tem uma mulher linda, tenho de arranjar outra igual (ou dez vezes melhor) não por merecê-la ou para fazê-la feliz e sim para esfregá-la na cara do outro.

A partir daí, caímos em manifestações cada vez menos morais de nosso desejo pelo que faz parte da vida do outro.

A mais comum delas é não expressar ou cultivar um tal desejo sob a forma de analogia e sim sob sua forma concreta – ou seja, a de efetivamente possuirmos o que é do outro no lugar do outro. Aí, sinto muito – caímos em alguns dos vícios mais danosos à vida espiritual de qualquer ser humano, universalmente descritos em todas as religiões (em particular na católica, figurando sob mais de uma forma entre os pecados capitais e nos dez mandamentos). Nesse caso, se achamos que o outro encontrou uma mulher linda em sua vida, queremos tê-la para nós. E para consegui-lo, podemos tomar ações auxiliares com diversos graus de imoralidade. Podemos destruir fisicamente o outro – por exemplo matando-o ou conspirando para matá-lo (uma idéia definitivamente comum nas mentes mais pervertidas). Podemos buscar deliberadamente seduzir a mulher do outro através de atos e/ou palavras. Podemos conspirar ou auxiliar para que alguma mulher seduza o outro. As possibilidades são infinitas. (Refletirei mais sobre esse exemplo um pouco adiante.)

Finalmente, a forma mais perversa e degenerada da expressão desse tipo de sentimento é quando a dor de ver que o que é do outro não lhe pertence é tão grande que o sujeito prefere provocar a destruição do objeto cobiçado a admitir a persistência dessa situação. Nesse caso, a perda do objeto cobiçado pelo outro, em si mesma, já traz gratificação, assim como sua eventual usurpação, mesmo que este tenha perdido toda a sua virtude original.

Sim, ter desejo pelo que faz parte da vida do outro é natural e humano. Como cultivamos e expressamos esse desejo, porém, é particular a cada personalidade e consciência.

Voltando ao último exemplo, tornando a situação mais concreta : suponhamos que um amigo seu tenha um relacionamento sério com uma mulher que desperta o seu próprio desejo.

Será por acaso moral continuar próximo dessa mulher após perceber em si o crescimento progressivo desse desejo?

Será que é moral cultivar esse desejo?

Será que é moral continuar próximo dessa mulher após perceber que ela se envolve com você?

Será que é moral cultivar uma situação de total conflito de interesses em que o insucesso do relacionamento do seu amigo lhe beneficie diretamente?

Será que é moral, após uma possível separação do seu amigo, investir num relacionamento com ela sem considerar os sentimentos dele sobre o assunto? Não será isso absolutamente equivalente a torcermos para que nosso colega do lado deixe sua bela calculadora científica na cadeira da sala de aula para então a “encontrarmos”?

Será que é moral iniciar um relacionamento mais próximo com ela mesmo sabendo que isso evidentemente trará desgosto ao seu “amigo”?

Será que é moral, em qualquer uma dessas circunstâncias, agir furtivamente e manter deliberadamente ocultos seus atos? Será que isso em si mesmo já não denuncia a natureza dos mesmos?

Cada um tem (ou deveria ter) sua própria consciência, a qual estará na condição mais privilegiada possível para julgar se incorreu em algum desses comportamentos. Quanto às respostas sobre a moralidade deles, bem – para mim, essa resposta é tão clara que é como aquela piada : “Se você precisa perguntar o que é jazz, esqueça.”

Ateísmo Transcendente

June 14th, 2000 by Sergio de Biasi

“O moralismo é o câncer da ética” – Betinho

Pedro Sette abre seu artigo mais recente citando São Paulo : “Tudo é bom, mas nem tudo é conveniente”. Acho a citação muito feliz e apropriada, e concordaria com ela sem qualquer problema. Portanto, já partimos os dois de uma base consideravelmente comum – o prerequisito para um debate que faça algum sentido. Resta, naturalmente, discutir como decidir o que é e o que não é conveniente.

Com relação a isso, cito acima uma fonte que normalmente não me agrada muito, mas que nos deixou alguns pensamentos interessantes, como esse. Acredito que a intenção nesta frase fosse, em resumo, repudiar a idéia de que seja possível tranformar o pensamento moral em uma cartilha petrificada de atos bons e maus. Mais do que isso, a frase parece conter a noção de que o desejo de impor um determinado conjunto de reflexões éticas criados por uma pessoa ou grupo em particular a todos em volta é algo comparável a uma doença.

Podemos ir ainda mais longe. Eu diria que um significado ainda mais profundo que podemos tirar dessas poucas palavras é o de que mesmo quando estamos com total razão e mesmo que por inspiração divina pudéssemos ser informados onde afinal de contas está o lado do “bem”, mesmo nesse caso pode não ser conveniente – para usar as palavras de São Paulo – tomar em nossas mãos a tarefa de retificar a todo custo e até o último detalhe a mais mínima ação “errada” daqueles à nossa volta. Fazê-lo, além de ser extremamente pretensioso, pode ser invasivo e destrutivo se levado às últimas conseqüências.

Apesar de ter opiniões fortes sobre determinados assuntos, eu tendo a concordar com esta visão desfavorável do moralismo, portanto mais uma vez assinaria embaixo de vários pontos levantados pelo Pedro em seu artigo. Contudo, somente até um certo momento.

Em primeiro lugar, acho equivocadíssimo concluir daí que não se deve “julgar os outros segundo seus (de quem julga) próprios critérios morais”. E ainda por cima usando o argumento de que “todos pecaram” como se daí decorresse que portanto ninguém teria autoridade para criticar o que quer que seja. Se não vamos julgar os outros segundo “nossos próprios critérios morais”, vamos julgar segundo quais, então? Segundo os do autor do ato? Segundo os do papa? Segundo a média da sociedade? Isso sim seria fazer pouco do “julgamento moral pessoal e instransferível” que Pedro descreve. Quanto à não inocência dos julgadores, ora – se formos realmente considerar cegamente as palavras de Jesus de forma literal e concluirmos que ninguém pode realmente julgar ninguém, ponto, então deveremos achar muito bom e normal o canibal, o estuprador, o genocida, etc… pois afinal de contas ninguém aqui é imaculado. Não acho que fosse isso que ele buscasse instar as pessoas a fazerem. Não acho que a pregação dele fosse a de que devamos abrir mão de ter um julgamento moral. Acredito, sim, que o sentido é outro bem diferente – o de que não devemos ser intolerantes e implacáveis ao perceber os erros dos outros. Ao impedir que a mulher infiel fosse apedrejada, em nenhum momento ele levantou dúvidas sobre o fato de que ela havia mesmo pecado.

Pedro diz também que “as coisas não são boas ou más conforme as julgamos, e sim conforme se apresentam em um dado momento”. (Aliás, acho muito engraçado ver essa idéia na boca de quem é incondicionalmente contra o aborto.) Conclui então que “as questões do bem e do mal no mais das vezes se apresentam apenas como casos concretos e irredutíveis, dos quais raramente se pode extrair uma regra geral”. Ora, longe de mim querer defender que o significado moral de um ato não dependa do contexto em que ele se insere. Concordo plenamente que cada ato humano é único e tem também um significado único, e que não há quantidade de regras suficiente para dar conta de todos eles. Porém, isso não quer dizer que as “regras” não nos permitam apreender parcialmente o significado de um ato, um aspecto desse ato, visto à distância, num alto grau de abstração. É claro que a realidade é independente e sempre muito mais rica do que as abstrações que construímos sobre ela, mas somente através da construção de abstrações podemos processar o conhecimento incompleto e imperfeito a que temos acesso. É óbvio que todos os assassinatos são diferentes e têm significados morais muito diferentes. Mas também me parece bastante razoável dizer que um assassinato seja algo em princípio ruim; senão, teremos que rejeitar “Não matarás” por ser “insensível ao contexto”.

Mais adiante, Pedro elabora especificamente sobre a questão do significado moral da aproximação com a namorada de um amigo, e diz : “E ainda pode acontecer de ela ser um bem tão importante e fundamental que justifique o rompimento de quaisquer relações.” Ora, agora sim estamos entrando em terreno perigoso. Quer dizer então que “o rompimento de relações” pode ser um “preço” razoável a se pagar para atingir o “bem” de relacionar-se com a namorada do amigo? Ora, essa é a racionalização mais antiga do mundo para se realizarem as maiores besteiras. Claro, eu consigo construir mentalmente um contexto em que “relacionar-se com a namorada do amigo” (ou até mesmo esposa, estragando seu casamento) possa colateralmente trazer de alguma forma um “bem”, assim como posso imaginar contextos em que matar alguém traz um “bem” (um psicopata ameaçando dez reféns, por exemplo). Porém, isso é uma forma de driblar a questão de que o ato em si é, em princípio, moralmente indesejável! Devemos lutar para que não seja necessário abater o psicopata a tiros e não buscar deliberadamente esse desfecho. Simplesmente executar o psicopata é imoral mesmo que o desejo de fazê-lo seja compreensível (isso me lembra a última cena de “Seven”).

Próximo ao final do artigo, Pedro afirma que “A idéia de uma moralidade atéia, que permaneça como uma régua fixa de um objeto mutante, dissociada das necessidades da vida real da alma, e daquilo que lhe convém ou não em tal ou qual momento na sua peregrinação rumo à perfeição, não pode ser minimamente aceita.” Pra começar, não percebo qual a relevância do “atéia” neste caso. Quer dizer então que uma moralidade que permaneça como uma régua fixa, etc… seria muito boa se não fosse atéia? Não deve ser isso, pois nesse caso vários trechos do artigo seriam refutados por um ou dois mandamentos. Será então que ele está querendo defender que do atéia decorrem as outras críticas? Acho que não, pois a posição atéia nitidamente permitie (e até favorece) o relativismo moral e coisas como “réguas não fixas”. Acredito, portanto, que a rejeição aqui seja ao “atéia” em si mesma, como na frase “não posso aceitar uma moralidade atéia”, independentemente das outras críticas apresentadas na frase. E acho que a motivação para isso está na colocação prévia de que “E ao meu amigo Sergio, a quem estimo e respeito, falta a medida fundamental, que é a admissão da existência de Deus. Somente o absoluto divino pode mensurar e dar sentido ao relativo humano.” O problema é que o benefício apontado pela admissão da existência de Deus nesse contexto seria, portanto, precisamente estabelecer uma escala em comparação à qual poderíamos avaliar alguma coisa. Só que o que seria isso senão exatamente a “régua fixa para objetos mutantes” execrada logo em seguida? Aliás, a própria imagem não me parece muito bem escolhida, pois o objetivo mesmo de uma régua é justamente ser fixa diante de objetos mutantes – esse é seu comportamento esperado e apropriado. Senão, tudo teria o mesmo valor moral e avançar um sinal seria um erro de valor tão grande quanto (ou no mínimo incomparável ao de) dar um tiro em alguém. Claro, isso, por mais que o Pedro não queira, acaba sendo a indefensável (a meu ver) posição relativista. Portanto, a idéia de usar “réguas mutantes” para “objetos mutantes” definitivamente não parece muito acertada. Vem então a crítica “dissociada das necessidades da vida real da alma”. Bem, aí, já concordo; uma moralidade baseada em modelos abstratos e que não se refira, a cada aplicação, à vida real e concreta, provavelmente resultará em um erro de julgamento atrás do outro. Em nenhum momento eu fiz a defesa do contrário. Exprimi meu julgamento pessoal sobre várias situações, com afirmações como “roubar é ruim”, mas é claro que não pretendi com isso excluir o contexto no qual a ação ocorre. Se um mendigo “rouba” um pão quando ninguém está olhando porque está com fome isso tem um significado moral bem diferente de apontar um revólver para cabeça de alguém e dizer “isso é um assalto”. Novamente, posso até imaginar um contexto em que um roubo possa trazer, colateralmente, um bem (o mendigo não morrer de fome certamente me parece ser um bem) mas isso não significa que (aliás, como alguns acabam se enrolando em achar) o roubo que o mendigo cometeu, em si, seja um “bem”. Não vamos agora tentar resolver o problema da fome dos miseráveis incentivando-os a furtar (não que não haja gente que ache a idéia ótima).

Finalmente, Pedro conclui ao final que “a correção nas ações é mais importante do que o fluxo descontrolado da simples imaginação e dos desejos”. Concordo plenamente com isso, e nunca sugeri que o contrário fosse verdade. O que defendi (e reitero) em meu artigo original é que deliberadamente cultivar pensamentos imorais é diferente de sentir atração uma passageira atração pela mulher que passou ali na esquina. E que acreditar que “o fluxo descontrolado da imaginação e dos desejos” possa ocorrer sem quaisquer conseqüências concretas me parece meio pouco realista. E nisso, não estou sozinho:

Mateus, 5 (Sermão da montanha)

27 Vós ouvistes o que diziam nos tempos antigos : “Não cometais adultério”

28 Mas eu vos digo : Aquele, seja quem for, que olhar para uma mulher com desejo por ela já terá cometido adultério com ela em seu coração.

29 E se vosso olho direito vos ofende, arrancai-o o jogai-o longe, pois é de maior proveito para vós que um de vossos membros pereça a que o corpo todo seja atirado ao inferno.

Ou seja, no cristianismo, o mandamento não é algo óbvio como “não tomar a mulher do próximo” e sim algo de significado moral mais amplo que é “não cobiçá-la”.

Por que é que não há mandamentos como “não estuprar” ou “não comer carne humana”, etc…? Acredito que isso se deva ao fato de que é tão óbvio que isso não é pra fazer que ninguém normal tentaria ficar inventando argumentos para dizer que fazê-lo seja bom. Já em algumas outras situações – como cobiçar a mulher do próximo, e não apenas dar uma olhadela nela e achá-la atraente – nossa inteligência pode freqüentemente nos prestar um desserviço ao construir elaboradas racionalizações para tentar justificar o que no fundo é imoral mesmo.

Fascistas!

April 15th, 2000 by Sergio de Biasi

Um articulista defende na internet a política de privatização de empresas estatais do governo federal. Resultado : chega um email chamando-o de “FASCISTA” e pedindo a sua morte(!).

Um grupo de alunos de uma universidade escreve um editorial declarando que a coletividade não tem consciência moral e que sem o pensamento individual não há pensamento algum. Resultado : um grupinho de ativistas cerca-os berrando “FASCISTAS” e ameaçando-os de agressão física.

Roberto Campos escreve na sua coluna que o excesso de legislação social provoca desemprego e que empresários e assalariados deveriam ter a liberdade de se entenderem sozinhos. Resultado : militantes do PT repetem aos quatro ventos “é mesmo um FASCISTA”.

Alguns funcionários do estado resolvem declarar que talvez a proibição total da posse de armas pelos cidadãos não seja uma idéia assim tão boa. Resultado : a mídia os execra, denunciando, “FASCISTAS!”.

Eu poderia continuar com mais páginas e páginas de exemplos, mas depois da terceira ou quarta situação já me sinto meio confuso; será que eu não sei mais o que é fascismo? Sinto vontade de correr até um dicionário.

Para ilustração de todos nós, efetivamente o faço. Aqui está o que o Aurélio tem a dizer sobre o assunto :

FASCISMO
[Do it. Fascismo]
S.m.
1. Sistema político nacionalista, imperialista, antiliberal e antidemocrático, liderado por Benito Mussolini (1883-1945) na Itália, e que tinha por emblema o feixe (em it., fascio) de varas dos antigos lictores romanos.
2. Atitude ou procedimento próprio de fascista.

Minha confusão aumenta. Será que eu não consigo mais entender o que está escrito?

Não é possível. Analisemos com mais cuidado. O Aurélio é por demais sucinto, vou consultar a Enciclopédia Britânica. Pois não é que lá está escrito o seguinte?

“Fascismo – Atitude política e movimento de massa que tendeu a dominar a vida política na Europa central, meridional e centro-oriental entre 1919 e 1944. Comum a todos os movimentos fascistas era a ênfase na nação como centro regulador de toda a história e vida e na autoridade indiscutível do líder por trás do qual o povo deveria formar uma unidade inquebrantável.”

Pois bem, então não tem jeito. Digam-me como, diante disso, alguém que defende a privatização de estatais é rotulado como FASCISTA – e ainda por cima justamente sob a alegação de que com isso estaria ameaçando a soberania de nosso país? Como é que pode alguém que está pregando o enfraquecimento do poder estatal ser acusado de defender totalitarismo nacionalista? Continuemos.

“O fascismo rejeitava as principais correntes filosóficas dos séculos 18 e 19, o ‘espírito’ das revoluções americana e francesa com sua ênfase na liberdade individual e na igualdade de homens e raças. A mensagem do Iluminismo havia servido para aumentar a dignidade do indivíduo e havia enfatizado a abertura em uma sociedade secularizada. Em contraste, o fascismo pregava a soberania suprema da nação como um valor absoluto (…) com completa coordenação de todo o pensamento e atividades intelectuais e políticas contra o individualismo moderno e o ceticismo científico.”

Diante disso, me expliquem, por favor, como é que alguém que se dá ao trabalho de escrever um manifesto a favor da defesa da possibilidade de pensamento individual pode ser execrado como FASCISTA?

Mas não nos precipitemos. Há mais. Quanto à legislação social, qual era mesmo a posição do fascismo? Vamos refrescar a nossa memória.

“Corporativismo – A teoria e a prática de organizar a sociedade como um todo em ‘corporações’ subordinadas ao estado. De acordo com a teoria, os trabalhadores e empregados seriam organizados em corporações industriais e profissionais que serviriam como órgãos de representação política e que controlariam em um grau considerável as pessoas e atividades dentro de sua jurisdição. Na prática, entretanto, como o ‘estado corporativo’ foi concretizado na Itália fascista entre a primeira e a segunda guerra mundial, ele refletiu a vontade do ditador muito mais do que um ajuste de interesses entre os grupos econômicos.”

Agora deixe-me entender. O Roberto Campos diz que o estado tem que se meter o mínimo possível nas relações de trabalho entre empresários e assalariados – e é chamado de FASCISTA? Justamente um sistema que prega total interferência do estado nesse processo? Será que alguém sonha que Roberto Campos acharia o corporativismo longinquamente desejável?

Nos resta, dos exemplos citados no início, a questão da proibição de armas. Quanto a essa, sinto muito – já dediquei um artigo inteiro ao assunto. Para quem não o leu, basta reiterar que é uma das primeiras coisas que qualquer governo com tendências FASCISTAS busca controlar – por motivos óbvios.

Digam-me agora : sou eu quem não sabe o que é fascismo ou a palavra tem sido muito mal usada?

Talvez, para não classificar os autores desse tipo de rotulação como ignorantes, burros ou malucos, possamos imaginar que eles acreditem que “fascista” seja simplesmente um palavrão para significar “O MAL”. Até aí, a única conseqüência seria esvaziar um pouco o conteúdo de suas críticas; seu discurso seria algo na linha “o que você defende está errado, seu cachorro” – sem que com isso estejam realmente querendo dizer que o alvo de suas críticas seja efetivamente um cachorro.

Porém, a partir do momento em que começam a defender que os “cachorros” sejam concretamente levados pela carrocinha, entramos no terreno do surreal. E torna-se necessário fazer um chamamento de volta à realidade – acordem! Acordem, pois que enquanto chamam, dedo em riste, focinho de porco de tomada e se sentem grandes heróis com isso, estão se tornando aquilo que, se levados a sério, deveriam desprezar.

Pois senão vejamos, o fascismo é um sistema político coletivizante que se opõe às liberdades individuais, que defende o fortalecimento do estado e a defesa de sua soberania acima de tudo. Seu discurso é nacionalista ao extremo e freqüentemente xenófobo. Sua política para as relações de trabalho é se meter diretamente em cada detalhe, regulamentar tudo e obrigar todos a pertencerem a sindicatos, comumente estabelecendo contratos conjuntos para categorias inteiras. Hmmm, soa incomodamente familiar.

Surpresa, no final das contas, quem é que tem jeito de fascista, discurso de fascista, comportamento de fascista? Eu lhes digo! São vocês, seus insconscientes irresponsáveis! Vocês, que, entorpecidos por slogans imbecis como “imperialismo ianque” passam a achar lindo ver gente humilde instada a brigar com a polícia, e bradam pela morte dos “canalhas fascistas” que acham que isso tudo talvez seja uma grande estupidez.

Um Artigo Bem Ateuzão

December 15th, 1999 by Sergio de Biasi

Pedro Sette Câmara me escreve sugerindo “por que é que você não escreve um artigo bem ateuzão, antes que isso aqui vire um jornal beato?”

Minha primeira reação foi de duvidar da necessidade ou utilidade de um artigo assim; afinal, o ateísmo é mais uma não-crença do que um conjunto organizado de convicções. Não faria sentido, para mim, criar ou organizar uma escola de pensamento baseada nessa não-idéia – seria como fundar uma “associação de pessoas que não acreditam que sejamos todos uma simulação de computador”. Nunca vi nenhum motivo sequer vagamente persuasivo para cogitar que assim fosse, não vou perder meu tempo com isso. Porém, como é possível? Em Deus muitos dizem acreditar! A idéia em si, a nível abstrato, já é meio fantástica, mas o mais impressionante é que não tem nenhuma mais exageradamente mínima correspondência na realidade acessível!

Minha posição ateísta, destaco, não é metodológica; não parto gratuitamente do princípio de que Deus não existe para então tentar sair tirando conclusões. Ao contrário, minhas convicções atéias são resultado de uma postura metodológica mais ampla, baseada na confrontação da reflexão com a experiência e a observação. A maioria dos teístas, eles sim, têm nesse caminho uma escolha metodológica. Vêem a necessidade – lógica, espiritual ou emocional – de que Deus exista a priori. Ou então, nos casos covardes e hipócritas, é simplesmente tão mais conveniente se convencerem (ou agirem como se) de que Deus existe que o fazem.

Evidentemente, há também aqueles que afirmam que foram exatamente a experiência e a observação que os levaram à conclusão de que Deus existe. Seria a postura filosófico-científica, ou seja, resumindo, a de tentar descrever a realidade através de um modelo, comparar as previsões resultantes com o que realmente ocorre, e então estar disposto a corrigir o modelo. Porém, na prática o que via de regra observo ocorrer é que não há absolutamente nenhuma tentativa, das mais débeis, para se corrigir o modelo. Isso é um dos sintomas mais fortes do caráter não científico de atividades como a homeopatia, a astrologia, a acupuntura, assim como da totalidade das religiões, especialmente as teístas (a maioria das quais, coerentemente, pelo menos não se pretende científica). São atividades baseadas na tradição, na revelação e na repetição, e, nos casos mais nobres, também na reflexão, na meditação e na especulação, mas não na modelagem e experimentação. Mais forte ainda do que isso, as mais prudentes e antigas são, normalmente, completamente não falseáveis, no sentido em que não apontam experiências objetivas com resultados observáveis necessários. Seus modelos não incluem qualquer previsão de resultados não viáveis, como qualquer teoria para o funcionamento da realidade tem a obrigação de fazer para poder proclamar-se científica. Nesse sentido, a afirmação “tudo cai para cima” é infinitamente mais científica do que “Devemos resistir ao mal” ou “Deus é formado de pai, filho e espírito santo” ou “Aquarianos são criativos” ou “Este remédio aumenta a sua energia cósmica positiva”. Como demonstrar que essas últimas “hipóteses” não são verdadeiras? Impossível, e vão; elas não são “hipóteses”, não foram concebidas como algo para ser testado. Não são afirmações científicas. Apresentar afirmações desse tipo como científicas sem apresentar formas de falsificá-las é no mínimo ignorância e no máximo desonestidade.

O interessante é que essa “não falseabilidade”, muito longe de ser percebida como sintoma de possível vacuidade de conteúdo, é muito atraente para a maioria das pessoas, que podem então projetar nesses modelos suas próprias convicções e desejos (muitas vezes inconscientes) sobre o que gostariam que fosse verdade.

Claro, porém, que nem tudo neste mundo precisa ser científico. A meu ver, várias das atividades não científicas que discursam sobre como a realidade funciona podem, em princípio, ser fontes de iluminação e transcendência, afinal, há muitas perguntas cujas respostas não estão e talvez nunca estejam ao nosso alcance e que no entanto são parte fundamental da existência humana. Só pra começar, para que se possa falar sobre a realidade é preciso primeiro supor que ela exista e portanto a filosofia, por exemplo, não só é necessária e útil como precede a ciência como desbravadora do desconhecido. Da mesma forma, embora possa querer determinar, digamos, se meu sistema de valores é internamente coerente ou até mesmo consistente com a realidade, não pretendo que ele seja científico – já que, por exemplo, ele passa por necessidades psicológicas até certo ponto arbitrárias minhas. Claro que disso não decorre que ele seja irrelevante ou vazio de conteúdo.

Porém, existe, a meu ver, uma grande distância entre filosofar e refletir sobre o sentido da vida, deveres morais, metafísica, etc… e acreditar em qualquer coisa. Há uma diferença entre elaborar uma determinada interpretação transcendente da realidade – como por exemplo, as religiões em geral fazem – e, por outro lado, dessa interpretação começar a derivar conseqüências práticas não sobre o significado ou o valor de determinados eventos mas sobre sua existência e/ou verificabilidade concretas.

A maioria das pessoas tem, por exemplo, a necessidade psicológica de dividir os atos humanos em bons ou maus, para conseguir viver uma vida produtiva e equilibrada. Sendo essa necessidade um fato em si, e seus benefícios palpáveis; é natural que se queira justificá-la ou discutir suas causas. Pode-se supor, por exemplo, que alguma mega-consciência universal tenha acordado numa manhã de domingo sem ter nada melhor pra fazer e decidido o que é certo e o que é errado. Ok, é uma especulação válida. Mas por que ela seria melhor ou pior do que supor que isso foi um resultado da evolução biológica, ou um artefato cultural, ou obra de lavagem cerebral realizada por alienígenas? Podemos refletir sobre o assunto e especular sobre a resposta – que é a solução filosófica, a única acessível em muitos casos – ou, para certos tipos de questões, podemos comparar o que filosofamos com a realidade, e estarmos preparados para a possibilidade de termos uma decepção – e então estaremos fazendo ciência no sentido moderno da palavra.

No caso das atividades que se aventuram a sustentar previsões e modelos pseudo-científicos, como a homeopatia e a astrologia, sua inconsistência fica patente a partir do momento em que não há tentativas minimamente sérias de confrontá-las com a realidade efetivamente observada (aliás, como dito anteriormente, já fica patente a partir da inexistência dessa preocupação nos praticantes dessas atividades). No caso específico da explicação “Deus”, desconheço qualquer escola de pensamento o coloque seriamente no campo científico da experimentação; normalmente os argumentos apresentados são pessoais e não reprodutíveis (intuição, revelação, etc…) ou então filosófico/lógicos.

Caímos então na tentativa de justificar a crença na existência de Deus através da filosofia, algo que foi repetidamente tentado através da história – o que já é indício de quão nebulosas são tais “provas”. Tomemos, por exemplo, o argumento ontológico. Vou ter que ser sincero aqui; para mim trata-se de uma das asneiras mais inacreditáveis que já se concebeu. A idéia é mais ou menos a seguinte : Deus é perfeito; não existir seria uma imperfeição; logo Deus existe. Só posso dizer o seguinte : caramba! Esse argumento não é piada; foi usado seriamente por teólogos. Claro, não cabe aqui buscar refutar minuciosamente essa ou qualquer outra das milhares de “provas” filosóficas da existência de Deus – para isso precisaria de mais algumas centenas de páginas. A questão que quero colocar é que, na minha avaliação, todas as que conheço dão saltos mortais mirabolantes e indefensáveis de anti-lógica, recorrem à “necessidade de um princípio organizador” ou ao fato de que “nada ocorreria sem uma força motriz” ou “tudo o que existe é criado por algo que lhe é superior” ou “o conceito do perfeito não pode surgir espontaneamente de uma realidade imperfeita”, e assim por diante. Em resumo, ouvi, processei, e não estou nem um pouco convencido.

Claro, podemos também simplesmente ignorar todas as evidências e argumentos devido à necessidade de acreditar numa determinada explicação, assim como uma criança pode ter necessidade de acreditar em coelhinho da páscoa. Isso pode se dar por comodidade, por medo, por corresponder a anseios emocionais – as motivações possíveis são várias e poderosas. O que observo é que a crença em Deus – assim como em algumas outras coisas – na maioria absoluta das vezes está mais ou menos por aí; ele é um papai noel que conquistou respeitabilidade social, resultado de um estado infantil de desenvolvimento psicológico em que o sujeito não percebe, não compreende ou não aceita o fato de que a realidade independe de suas necessidades e fantasias. Aliás, um problema muito comum.

Finalmente, há aqueles que parecem perceber a distinção entre fantasia e realidade, que parecem não estar numa armadilha dessas e mesmo assim proclamam acreditar em Deus. Geralmente tendo a acreditar que apesar de não parecer, no fundo estão – que o custo de renunciar a essa crença seria grande demais, que precisam dela por algum motivo. Porém, suponho que até nas melhores famílias na busca da verdade às vezes é mesmo possível cometer alguns grandes erros de julgamento.