Ganhar o Mundo e Perder a Alma

July 15th, 1999 by Sergio de Biasi

Temos assistido recentemente a alguns dos maiores espetáculos de falta de consideração às necessidades e sentimentos de outras pessoas que já se viu na história da humanidade. Aos olhos das pessoas de bom caráter, alguns desses episódios são tão grotescos que a mente por vezes se recusa a aceitar o óbvio : eles não se importam. É tudo tão inconcebível que quem não conhece o mal de longa data fica tentado a buscar alguma explicação maravilhosa que conserte o que não tem conserto, que justifique o que não tem justificativa. E ao final, para muitos, diante de uma abjeta cortina de fumaça moral atirada vigorosamente em todas as direções, o verdadeiro significado de certas ações fica oculto, desapercebido, impronunciado, mesmo que pressentido.

O que eu tenho a lhes dizer é : não se enganem! Uma das artimanhas mais traiçoeiras de que o mal se utiliza é perverter nossas virtudes, vilipendiá-las, distorcê-las até servirem ao mal; dessa forma, a integridade moral é inflada até virar arrogância, o amor até virar luxúria, a indignação até virar ira, e, sim, até mesmo o perdão, até virar cumplicidade. É preciso ter os olhos muito bem abertos; é preciso saber escolher o momento de ser brilhante e o de ser humilde, o de ser apaixonado e o de ser asceta, o de ser forte e o de ser tolerante!

O mal estará constantemente nos seduzindo para que levemos longe demais o nosso julgamento. Tentará persuadir o misericordioso a ser tolerante com o intolerável e o justo a ser implacável até a crueldade. Novamente, lhes digo : não se enganem! A integridade tem um preço, que por vezes é altíssimo em termos terrenos, mas que não é pago sem motivo.

“Daquele momento em diante, Jesus começou a revelar a seus discípulos como ele deveria ir até Jerusalém, e sofrer muitas coisas com os anciãos e os sumos sacerdotes e escribas, e ser morto e retornar ao terceiro dia.

Então, Pedro veio até ele, e começou a contestá-lo, dizendo, Que nada disso ocorra convosco, Senhor, isso não deverá ser feito convosco.

Mas ele se virou, e disse para Pedro, Desapareça da minha frente, Satã, és uma ofensa a mim; pois dás valor não às coisas que são de Deus, mas àquelas que são dos homens.

Então Jesus disse a seus discípulos, Se qualquer homem procurar por mim, que esteja pronto para negar a si mesmo, tomar sua cruz, e me seguir.

Pois quem quer que esteja preocupado em salvar sua própria vida irá perdê-la; e quem quer que esteja disposto a perdê-la por mim irá encontrá-la.

Pois o que terá um homem lucrado, se houver ganho o mundo inteiro, e perder sua própria alma? Ou o que deverá um homem dar em troca de sua alma?”

(Mateus, 16)

Caridade

June 15th, 1999 by Sergio de Biasi

Estamos vivendo uma época em que está em falta – aguda! – um valor fundamental de todo o pensamento cristão : a caridade. Pensa-se demais no progresso da humanidade através da ciência, da tecnologia, da educação, da inteligência, do sistema jurídico, social, político e econômico, e no final das contas nada disso terá nenhum valor se as pessoas não estiverem determinadas a usar isso tudo para o bem.

“Se eu falo nas línguas dos homens e dos anjos, e não tenho caridade, não passo de uma trombeta estridente, um címbalo barulhento. E se tenho o dom da profecia, e entendo todos os mistérios, e todo o conhecimento, e embora tenha toda a fé, de forma a poder remover montanhas, se não tenho caridade, não sou nada. E mesmo que eu entregue todos os meus bens para alimentar os pobres, e dê meu corpo para ser queimado, se não tenho caridade, não terei realizado nada.

A caridade sofre longamente, e é gentil; a caridade não inveja, não se vangloria, não se infla; a caridade não se porta inadequadamente, não busca seu próprio benefício, não é facilmente provocada, não pensa em nenhum mal; não se regozija com a iniqüidade, mas sim com a verdade; suporta todas as coisas, acredita em todas as coisas, tem fé em todas as coisas, resiste a todas as coisas; a caridade nunca falha, mas onde houver profecias, elas falharão, onde houver línguas, elas se calarão, onde houver conhecimento, ele desaparecerá.

Pois nós apenas conhecemos em parte, e apenas profetizamos em parte.

Mas quando aquilo que é perfeito chega, aquilo que é em parte está terminado.

Quando eu era uma criança, falava como criança, entendia como criança, e pensava como criança; mas quando me tornei um homem, deixei de lado as coisas de criança.

Pois agora nós enxergamos através de um vidro obscurecido, mas então veremos face a face; pois agora eu conheço em parte, mas então eu saberei tanto quando sou conhecido.

Observa, portanto, a fé, a esperança, e a caridade, mas a mais importante de todas essas é a caridade.”

(1 Coríntios 13)

Nestes tempos difíceis, inspiro-me nessas palavras para lançar a todos os que me lêem um chamado, uma exortação, um brado de alerta e despertar; sejam íntegros! Não se deixem levar pela vaidade, pela auto-condescendência, pelas aparências e pela superficialidade; não troquem sua alma por meia dúzia de feijões. Não se deixem arrastar pela âncora da comodidade que certo como um novo dia carregará seus corpos, mentes e corações para o fundo de um mar de lodo e futilidade. Não tolerem a falsidade, a hipocrisia, a desonestidade, a ambigüidade; que o seu sim seja sim e o seu não seja não! Ao ver uma injustiça, não calem! Diante da traição, não sejam covardes! Não deixem a conveniência torná-los todos cúmplices de uma mesma mentira! Não celebrem a podridão! Não se tornem cegos guiados por cegos em direção a um grande nada!

E se sua espada estiver pesada, e sua vontade estiver fraca, e seu julgamento anuviado, e o que é certo e justo e bom não lhe parecer claro, se o conhecimento lhe faltar, e a fé lhe escapar, e a esperança lhe parecer impossível, mesmo assim, acima de tudo e sempre, tenha caridade! Não há iniqüidade maior do que desprezar as conseqüências de suas ambições, de seus prazeres, de seus caprichos sobre aqueles à sua volta. Ninguém precisa de nada a não ser seu próprio coração para saber o que machuca os outros. Não se enredem nas suas próprias teias de justificativas e racionalizações, de auto-enganos, de motivações lindas para fazer coisas horríveis. Jamais subestime o sofrimento alheio. E não se deixe enganar por aqueles que o fazem. Não se deixe encantar pelas palavras melífluas dos lobos que acusam os cordeiros por sua fome insatisfeita de destruição; não dê abrigo ao mal, não o receba em sua casa, não lhe dê espaço em seu coração; pois que ele sempre saberá semear degeneração e perversão por onde pisar…

Seu julgamento poderá lhe falhar, seu conhecimento, sua experiência, sua inteligência, sua força poderão ser todos inúteis diante do mal, que torcerá fatos e palavras e aparências até fazer o branco parecer preto e o preto parecer branco; decida com caridade, porém, e toda essa farsa se dissipará sob o brilho de uma alma íntegra.

Os Guardiães da Democracia

May 15th, 1999 by Sergio de Biasi

“Este ano entrará para a história como aquele em que, pela primeira vez, uma nação cililizada possui um registro completo de suas armas. Nossas ruas serão mais seguras, nossa polícia mais eficiente, e o mundo seguirá nossa liderança em direção ao futuro.”

Como abertura deste artigo, convido o leitor a refletir sobre a citação acima.

Será ela obra de um humanitarista genial, preocupado com o bem estar da população? Será ela o produto de uma grande nação que alcançou um grau admirável de sabedoria?

Vamos inverter a questão. Suponha que você seja um estadista que, por qual motivo for, deseja executar uma determinada política sem questionamentos, sem entraves. Suponhamos, por exemplo, que você acredite que a sua política é a melhor para todos. Adicionalmente, suponhamos que nem todos concordem com você. Aliás, suponhamos que você não quer ter que levar em conta quantos concordam ou não com você. Em outras palavras, suponhamos que você seja um estadista antidemocrático.

Bem, estaremos então diante do seguinte – eterno – problema político : como implementar uma política com a qual nem todos concordam? Evidentemente, à força. Se os discordantes forem as exceções, os pontos fora da curva da sociedade, tudo mais ou menos bem – o estado de direito e a democracia são isso aí mesmo (do que já dá pra tirar várias conclusões elucidativas sobre o assunto…).

Só que nesse caso, temos um problema um pouco mais grave. O que fazer se você quer implementar essa política seja qual for a reação da sociedade, ou seja, independentemente do que a massa da população efetivamente quer, como quem entorna um remédio (ou veneno) ruim goela abaixo da criança doente? Bem, então esse “à força” se torna mais difícil. É fácil noventa e nove pessoas obrigarem uma a seja lá o que for. Cinqüenta obrigarem cinqüenta já fica bem mais complicado. Dez obrigarem noventa, hummm – à força acho que não vai dar.

Porém, se as primeiras dez pessoas possuírem rifles e as últimas noventa, nada, bem – acho que nem é preciso dizer o que acontece. Mas eu digo assim mesmo. Acontece o que acontece em um presídio – está claro quem manda e quem obedece, está claro de onde “emana o poder”.

Só que nossa sociedade não é um presídio. O poder legítimo deveria, segundo nossa constituição, emanar da população, e não do presidente, do congresso, dos juízes ou da polícia. “O poder emana do povo” não é apenas um mero jogo demagógico de palavras. É um esclarecimento filosófico crucial sobre o modo correto de interpretar o papel do estado na sociedade. O estado não existe para dizer às pessoas o que fazerem. Existe para fazer o que as pessoas dizem. Não existe para obrigar as pessoas a fazerem o que ele quer. Existe para ajudá-las a fazerem o que elas querem. Não existe para julgar seus cidadãos. Existe para organizar o julgamento de alguns cidadãos pela maioria da sociedade. Quando a polícia prende um bandido, não foi o estado que desceu do céu miraculosamente e nos ajudou em sua infinita sabedoria. Foi a sociedade organizada que resolveu não tolerar um determinado comportamento, com a aprovação (supõe-se) das vítimas do bandido, dos parentes das vítimas, do policial que o prendeu, etc… A polícia não está acima ou abaixo ou ao lado do cidadão comum. A polícia é o cidadão comum, organizado para proteger os interesses comuns, assim como o síndico de um prédio é um morador que chamou a si, com a autorização dos outros, a tarefa de cuidar de certos interesses do condomínio. O governo é o síndico do prédio, não o diretor de alguma prisão. Quem realmente manda são os condôminos, não o síndico, cujo poder é limitado e transitório. Ou, pelo menos, assim recomenda a nossa constituição.

Suponhamos, porém, que este “esquema”, como estadista antidemocrático que é, não lhe agrade. Digamos que você se sentiria muito mais confortável se quando você desse uma “ordem” ela fosse prontamente cumprida, sem possibilidade de questionamento ou recusa. Ou seja, digamos que você queira que o poder emane de você, e não de nenhum algum outro lugar desagradável; digamos que você queira ser o diretor de uma prisão, e não o síndico de um prédio.

Bem, neste caso, acho que será necessário arranjar formas de eliminar qualquer poder que você não possa controlar.

Note que, seja qual for a motivação por detrás, estamos lidando aqui com duas visões diferentes da relação entre estado e sociedade. Em uma, o estado é a sociedade organizada; o cidadão ajuda o policial a livrar-se dos criminosos, e o policial ajuda o cidadão a livrar-se dos criminosos, pois são ambos uma única coisa : pessoas, juntas, defendendo valores que compartilham. Em outra, o estado paira sobre a sociedade – mesmo se “eleito” por ela – e interfere de forma coercitiva em suas atividades. O policial é um ser alienígena que entra indistintamente na vida do cidadão e do criminoso para cumprir determinações arbitrárias do estado com as quais talvez nenhum dos envolvidos concorde.

Agora, diga-me você, leitor, em qual desses dois estados será permitido ao cidadão comum ter armas?

Ou, invertendo a pergunta : se você é um estadista antidemocrático, você lutará pela proibição ou pela liberação das armas para os cidadãos comuns?

Se, por outro lado, você – estadista ou não – prefere não viver em uma prisão, e quer que a responsabilidade e o poder de agir sejam, em princípio, acessíveis a todos, qual será a sua escolha?

Se o cidadão comum, quando oprimido, tiver os meios de reagir por si mesmo, a democracia se auto-sustentará; nenhum grupo minoritário – estatal ou não – poderá impor sua vontade à força ao resto da sociedade. Serão então os cidadãos comuns os guardiães da democracia. Os melhores e verdadeiramente únicos que ela pode ter. Se tiramos deles sua voz, sua autonomia, seu poder concreto de agir, bem…

A quem ainda não entendeu do que estou falando, vamos ao autor da citação que abre o artigo. Trata-se de uma declaração de Hitler, em uma entrevista de jornal em 1935, sobre o controle da posse de armas na Alemanha nazista.

O fato é que se realmente acreditamos na democracia, somos obrigados a acreditar na capacidade de julgamento – ou ao menos no respeito ao julgamento – do cidadão comum. Afinal, toda a idéia da democracia é justamente essa – a administração da sociedade segundo os valores, objetivos e diretrizes do cidadão comum. Qualquer outra coisa não é democracia.

Hoje Pinochet, Amanhã o Mundo

October 15th, 1998 by Sergio de Biasi

Organizações de direitos humanos do mundo inteiro rejubilam-se com a prisão, na Inglaterra, do ex-ditador do Chile. Um número cada vez maior de vozes se levanta para anunciar que este é o prenúncio de uma nova ordem mundial, na qual tribunais internacionais terão competência para julgar e condenar pessoas em qualquer parte do planeta. E festejam isso como um avanço em direção à liberdade, justiça e dignidade da raça humana.

Esquecem-se, porém, que um tal tribunal não será possível sem um enorme poder que o apoie. E quando falo de poder, quero deixar bem claro : poder coercitivo de se fazer obedecer, não o “poder” lamuriento de uma determinação da ONU.

O caso do ex-ditador Pinochet é muito particular; ele não é mais chefe de estado, o Chile não é mais uma ditadura, ele estava fora de seu país e não estava em missão diplomática.

Uma legislação que se pretenda realmente útil, porém, deveria entrar em ação assim que os crimes fossem cometidos, contra tiranos ainda ativos; deveria prevenir atrocidades, e não tentar buscar sua exorcização, vinte e cinco anos depois, na figura de um vilão somente afastado do poder após agir como quis durante quase duas décadas. Senão, teremos uma reles e mesquinha vingança.

Em outras palavras: um tribunal mundial que realmente pretenda proteger qualquer povo de genocídio, tortura e outras violações dos chamados direitos humanos fundamentais tem que poder intervir em qualquer país a qualquer momento. Tem que poder chamar o Clinton para explicar por que bombardeou o Sudão, o Fidel para prestar contas do destino reservado aos dissidentes em Cuba e o Yeltsin para contar quantos chechenos matou. E tem que ter o poder – e o dever! – de prendê-los se os julgar culpados. Menos que isso e teremos uma justiça arbitrária de velho oeste, que de justiça evidentemente tem muito pouco.

Portanto, é preciso que um tal tribunal tenha autonomia e – por que meios for – poder efetivo de ação coercitiva sobre todo o mundo.

Ora, dirão os ativistas, é isso mesmo! Afinal, a justiça é para todos.

Digam-me, porém: por que é que o Pinochet não foi julgado e condenado no próprio Chile? Afinal, ele contrariou, antes de mais nada, as leis chilenas. A questão é que a justiça formal não é realizada pela mão divina que desce miraculosamente do céu. Ela só é possível através do exercício do poder. E, sendo Pinochet o poder máximo no Chile, é claro que não permitiu que este fosse usado contra si mesmo. É preciso que isso fique bem claro. Sem um poder esmagador, irresistível, não há possibilidade de haver julgamentos e condenações. Esse poder, no Chile, era Pinochet. Pinochet julgava a todos e não era julgado por ninguém.

Exatamente como ocorreria com um tribunal internacional.

Com vários agravantes, porém. Noticia-se que por ação direta do governo de Pinochet, aproximadamente três mil pessoas foram mortas. Muitas, muitas mais, porém, conseguiram deixar o país e ir viver no resto do mundo. E sobreviveram. O mesmo ocorreu em Cuba, na China, no Brasil, e para citar o exemplo clássico, na Alemanha nazista.

Pois bem, isso foi possível porque temos países diferentes, com culturas diferentes, leis diferentes, e histórias diferentes. É justamente esse equilíbrio de forças que garante um certo grau básico de liberdade a cada ser humano do planeta. No mundo atual, nossas culturas, economias e estruturas políticas tornam absolutamente inviável que um tirano assuma o controle de todo o planeta; estamos livres da ameaça de uma ditadura mundial à la Pinochet.

É realmente irônico que as pessoas perseguidas por regimes de força clamem, lutem, bradem por mais estruturas concentradoras de poder ao invés de menos. Elas têm a ilusão de que os tribunais mundiais serão compostos por anjos e santos, que agirão infalivelmente enviando os vilões de carteirinha para queimar eternamente no fogo do inferno. Deveriam, ao invés disso, pensar em para onde teriam se exilado se o Chile fosse o mundo inteiro.

Rumo ao Século Dezenove

June 15th, 1998 by Sergio de Biasi

A cada dia que assisto aos noticiários neste país sinto uma sensação de que os eventos estão se sucedendo na ordem oposta à natural. Após pasmar-me repetidas vezes com esse sentimento, concluí que algum estranho fenômeno está fazendo com que, talvez assustados diante do milênio que se aproxima, retornemos correndo em direção ao século dezenove. Com base nesse pensamento, aventuro-me a prever os acontecimentos que nos aguardam, mantido o rumo atual, em nosso futuro.

1998-1985

O ponto de retorno deve ter ocorrido há já uns cinco ou dez anos; passado o efeito do porre e dissipado o entusiasmo com as mudanças trazidas pela “abertura” e pela “Nova República”, os “reformadores” de plantão puseram as mãos na massa para atacar uma série de liberdades duramente resgatadas – em particular, a da atividade intelectual independente e crítica. Justamente aquela cujo retorno, nos últimos anos da ditadura militar, a sociedade em peso celebrou. Que delícia a possibilidade de ver, divulgar e utilizar livros, filmes e músicas que se bem entendesse sem que o estado se intrometesse no assunto! Por alguns anos realmente me pareceu que finalmente vivia em uma nação que entendera que “cala a boca” não é um argumento. Porém, hoje observo que me precipitei. A cada dia que passa, mais e mais políticos, jornalistas, professores, “psicólogos”, etc. defendem, com os meios ao seu dispor, as mais flagrantes violações da liberdade de julgamento individual. Seus argumentos quase sempre se assentam, implícita ou explicitamente, na pretensa necessidade de defender o Cidadão de “idéias ruins”, que vão lhe fazer mal, coitado! (Um projeto grotesco por si só, mas que ainda traz de bônus a colaboração desses mesmos agentes para nos revelar – ou, pensando bem, nos esconder – quais são as “idéias ruins”). Estamos portanto, no processo de “desabertura”, durante o qual a facilidade de criação e comunicação de pensamento não sancionado pelos poderes dominantes será paulatinamente reduzida.

1985-1964

Após o processo de desabertura, é claro, teremos o fim da Nova República; o povo irá às ruas para pedir que um grupo autocrático assuma o poder para nos proteger de ideologias perigosas – sejam elas quais forem, note o leitor que isso não faz muita diferença. Afinal, a essa altura, o representante médio da população já não estará lá em condições muito vantajosas para avaliar sequer em que consistem, afinal de contas, as tais ideologias. (O que não impedirá, naturalmente, apaixonados julgamentos de valor sobre as mesmas.) Os anos passarão e o Cidadão ficará contente em perceber que está sendo cada vez mais “protegido” pelo estado. Seus “direitos” crescem a cada dia, chegando à sua vida pessoal, que o Estado já começa a considerá-lo incapaz de administrar sem a assistência de “especialistas”.

1964-1930

Para perseverar nesse nobre intento, o Estado terá que concentrar em si poderes cada vez maiores, e necessariamente acabará entrando, mais cedo ou mais tarde, em conflito com cada uma de quaisquer outras instituições remanescentes : a religião, a pesquisa científica, o empresariado, o sindicalismo, etc… O Cidadão porém, será ensinado desde cedo a desejar ardentemente o dia de sonhos em que não precisará tomar mais nenhuma decisão, e facilmente enxergará todas essas instituições como empecilhos, com sua irritante persistência em levantar contradições, ao estabelecimento de uma tal situação. Haverá conflitos, alguns deles sérios, mas o Estado vencerá, concentrando em si o poder, a lei, a justiça, o saber, a moral e a transcendência.

1930-1917

Guardião único de valores tão inestimáveis, o Estado se tornará evidentemente mais importante do que qualquer Cidadão, o qual não seria nada sem aquele. Dessa forma, a sobrevivência e soberania do Estado em todas as circunstâncias sobrepujará em importância quaisquer outras considerações, de forma que a conseqüência lógica e quase indolor será a extinção de todos os direitos civis. Afinal, estará atingida a utopia da alocação eficiente das potencialidades de cada um : ao Cidadão, tudo aquilo que não for obrigatório, será proibido.

1917-1900

Infelizmente, um sistema tão maravilhosamente perfeito colapsará justamente ao galgar os últimos degraus, assim como o cavalo que morreu quando estava “quase” aprendendo a viver só comendo papel. Ironicamente, o Estado não é uma entidade metafísica e deve ser encarnado por um grupo de seres humanos reais. Dessa forma, no limite máximo desse modelo, o exercício arbitrário do poder para atingir a objetivos elevados que escapam à competência do Cidadão comum confunde-se com o exercício simplesmente arbitrário do poder. Faltando dezessete anos para o fim do século, a organização formal da sociedade se desintegrará, despontando um neo-feudalismo no qual o poder – muitas vezes localizado – simplesmente existirá, assim como as montanhas e o Sol.

A Voz De Um Indivíduo

January 15th, 1998 by Sergio de Biasi

Indivíduo – um ser humano isolado, considerado separadamente de um grupo.

Qual a importância das idéias de um indivíduo ? Qual a relevância do que um indivíduo, sozinho, tem a dizer ? Por que deveríamos proteger o pensamento individual ?
Para melhor refletir sobre essa questão, invertamos a pergunta : Existe algum outro tipo de origem para idéias e pensamentos ? Ou será que, na verdade, tudo o que surgiu de original e belo e, inclusive, atualmente compartilhado como comunitário e coletivo em nossa cultura teve que primeiro ser criado por algum indivíduo em algum momento no espaço e no tempo, incluindo nossa língua, nosso país, nossos valores ? Mesmo que cada pequeno passo adiante tenho sido pensado mais de uma vez por indivíduos diferentes, e que cada um tenha apenas acrescentado sua pequena contribuição, o ato original, inovador, criativo é definitivamente um privilégio do indivíduo. Um dos fatores que mais nos torna humanos e especiais é justamente a nossa enorme capacidade para o pensamento divergente. Sem dúvida, é possível construir uma coletividade sem individualidade – basta examinar um formigueiro. Porém, isso seria abrir mão de tudo o que temos de melhor. Acredito que a humanidade, com toda a abrangência do termo, sustenta-se na existência e em um profundo respeito à individualidade.

Essa constituía provavelmente a principal idéia com cuja divulgação eu pretendia colaborar ao participar da criação e da distribuição do jornal “O Indivíduo”. Infelizmente, no tumulto acalorado que se seguiu, muito pouco da atenção pública resultante se voltou para essa questão, e penetramos todos em um labirinto de equívocos. Escrevo o presente texto para tentar cooperar com os interessados na construção de um mapa desse labirinto.

A resposta ao número zero

Através das conversas que tenho tido e dos e-mails que foram enviados para o site do jornal na internet, cheguei à grata conclusão de que, para a grande maioria das pessoas que efetivamente leram o que foi publicado no número zero, conseguimos comunicar pacificamente e com razoável clareza a maior parte nossas idéias e reflexões. Analogamente, a maioria dos leitores – inclusive os discordantes – manifestou sua posição de modo civilizado e construtivo.

No entanto, paralelamente a esse debate, normal e desejável em uma sociedade livre, houve algumas manifestações (por vezes fisicamente) violentas e muito pouco civilizadas de desagrado, geralmente associadas a acusações ou à “justificativa” de que estaríamos promovendo essa ou aquela ideologia anti-social. Mais do que isso, observamos que tal tipo de reação destrutiva geralmente não veio acompanhada de argumentos, refutações ou do desejo de dialogar, mas, exatamente ao contrário, da defesa ou da exigência de que o jornal fosse banido, proibido ou de alguma forma censurado. Isso, é claro, levanta uma série de importantes questões relacionadas com o direito à liberdade de expressão, se deve mesmo ser permitido dizer publicamente o que quer que seja, etc…

Um redemoinho de mal-entendidos

Porém, curioso mesmo é que as acusações mais sérias se referem a posições que jamais defendemos, ou que até mesmo foram atacadas no próprio jornal.

Como isso é possível ?

Em primeiro lugar, percebo que muita gente simplesmente não leu o jornal mas manifestou (e manifesta) opinião formada sobre seu conteúdo. Incluo nesse grupo aqueles que leram os títulos e algumas frases de dois ou três artigos e consideraram isso suficiente para emitir um julgamento sobre o todo.

Em segundo lugar, vejo muita gente que não entendeu o que pretendíamos dizer. Talvez não tenhamos sido “suficientemente” claros (o que seria isso, afinal ?); o fato é que muitos parecem, em vários momentos, extrair de nossas palavras sentidos completamente diferentes daqueles que visávamos transmitir com elas. Alguns chegam a concluir que se interpretaram de um certo modo o que escrevemos então necessariamente era aquilo mesmo que queríamos dizer. Por outro lado, é bom verificar que a maioria da sociedade ainda tem o devido senso de proporção e sabe distinguir o que publicamos das estranhas interpretações que certos grupos vêm veiculando. O artigo que mais tem causado polêmica, por exemplo, não só não é racista como é profundamente anti-racista, tão anti-racista que considera perigoso que a raça seja usada como critério para qualquer coisa. Se ele está equivocado ou não em suas observações é uma discussão importante e válida, mas ele evidentemente não promove a discriminação racial
ou o racismo como comportamentos desejáveis.

Em terceiro lugar, vejo os que leram e compreenderam, mas que ao invés de questionar o conteúdo explícito dos textos apresentados, combatem o que “denunciam” como significados e propósitos “ocultos” nos textos – significados, os quais, é claro, subentende-se que nós jamais iríamos “confessar” abertamente. Esse argumento é particularmente irrespondível, pois é impossível demonstrar que não há uma conspiração ocorrendo. Ao contrário, quanto mais evidências se apontam para demonstrar que não há absolutamente nenhuma “intenção oculta” associada a seja lá o que for, mais perfeita e sofisticada a “conspiração” parecerá aos olhos de quem “já sabe” que “só pode” se tratar de uma. O fato concreto é que somos quatro estudantes universitários que se reuniram espontaneamente e por iniciativa própria para fazer um jornal contendo exclusivamente artigos de nossa autoria e que distribuímos o resultado de nossa iniciativa no campus da universidade onde estudamos com o único propósito de que as pessoas que participam daquela comunidade pudessem pacificamente lê-lo.

Será isso algo assim tão inusitado ?

Contribuíram para os ânimos acalorados alguns fatores externos ao jornal. Por exemplo, a PUC-Rio havia acabado de passar por uma das eleições para o DCE mais movimentadas dos últimos anos, e a nova chapa eleita tomava posse justamente enquanto distribuíamos “O Indivíduo”.

Talvez a maior coincidência, ou sincronicidade, como queiram, tenha sido o fato, extensamente apontado, de que a impressão do jornal tenha ficado pronta às vesperas do dia de Zumbi e da comemoração do dia da consciência negra. Isso contribuiu para que grande parte dos leitores não percebesse que o artigo “A Negra Noite da Consciência” se refere a uma semana de eventos e palestras promovida na PUC há algum tempo atrás, e não ao dia da consciência negra, promovido na época da distribuição do jornal. Não estou argumentando aqui que isso faria ou não muita diferença no conteúdo do artigo – isso deve ser perguntado a seu autor. A questão é que essa proximidade foi usada como argumento em acusações de que “o que o jornal visava mesmo era criar tumulto”. Ora, novamente, é impossível provar a inexistência de intenções conspiratórias, mas o fato objetivo é que já pretendíamos – e até preferíamos – distribuir “O Indivíduo” semanas antes, quando estaríamos em aulas e mais alunos teriam acesso ao jornal. Contudo, estávamos em provas, houve vários atrasos, e o jornal impresso acabou só chegando a nossas mãos na véspera do dia em que foi distribuído. Isso foi exatamente o que aconteceu – nunca planejamos lançar o jornal em nenhum dia específico.

Individualidade versus Individualismo

Apesar do editorial publicado no número zero, que pretendia esclarecer o significado do título do jornal, houve quem nos criticasse pela defesa do “individualismo” no sentido egoísta da palavra. Retorno, portanto, ao tema.

Examinemos a definição de indivíduo :

Indivíduo – um ser humano isolado, considerado separadamente de um grupo.

Antes de formarmos qualquer grupo ou coletividade, somos todos indivíduos. Somos as células da coletividade, sua unidade estrutural indivisível. Quando um grupo de pessoas “decide” fazer alguma coisa, não surge uma “consciência grupal” autônoma que passa a deliberar independentemente. Dizer que uma coletividade “decidiu” alguma coisa é apenas uma imagem que simplifica a criação de um modelo para os fatos sem descrevê-los completamente. Para que essa “decisão” se efetive, é preciso que cada indivíduo, separadamente, decida por si mesmo colaborar com a “decisão” do grupo. Essa pode ser uma decisão emocional ou até mesmo inconsciente, mas permanece uma decisão individidual. Os indivíduos são os únicos com a capacidade de decidir o que quer que seja; um monte de indivíduos juntos decidindo mais ou menos a mesma coisa não é o mesmo que uma suposta entidade metaindividual tomando uma única decisão.

Por que isso é tão importante ? Porque é perigoso imaginar que “o grupo” tenha uma consciência moral – ele não tem. Quem dispõe da consciência moral é o indivíduo, e do ponto de vista prático só a pode exercer individualmente ou encontrando outros indivíduos dispostos – por seu julgamento individual – a colaborar com ele. A maturidade moral só é atingida quando um indivíduo percebe que pode estar errando apesar de todos à sua volta o apoiarem e que pode estar acertando apesar de todos à sua volta o condenarem. A verdade não surge do consenso ou da vontade da maioria, e sim da obervação e da reflexão cuidadosas.

Há uma história que diz que há muito tempo a China era governada por um imperador que nunca aparecia em público. Depois de algum tempo, os súditos começaram a se perguntar sobre a seguinte questão : “Qual será o comprimento do nariz do imperador da China ?”. Como era impossível verificar diretamente, um “sábio” resolveu então usar o seguinte método : reuniu vários camponeses e instruiu-os a percorrer a China perguntando, a todos os que encontrassem, qual eles acreditavam que era o comprimento do nariz do imperador. Com certeza, imaginou o “sábio”, quanto mais pessoas fossem consultadas, mais próximo ele estaria da resposta correta, bastando para isso obter a média das respostas colhidas. Pois é exatamente dessa forma que eu vejo muitas pessoas executando seus julgamentos éticos e morais. E o que eu tenho a dizer é : cuidado, isso é perigosíssimo.

Portanto, o título “O Indivíduo” pretende ressaltar o fato de que é preciso que cada indivíduo, isoladamente, exerça sua consciência ética, sua inteligência, sua criatividade, seus sentimentos, sua humanidade para que possamos então, juntos, formar uma sociedade ética, inteligente, criativa, sensível e humana. O sentido de nossas reflexões, portanto, não se encontra de forma alguma no individualismo egocêntrico mas sim na individualidade característica de todo e cada ser humano. Somos todos diferentes e especiais e misteriosos uns para os outros, e portanto cada ser humano é insubstituível e deve ser respeitado em sua singularidade.

Liberdade de pensamento e de expressão

Em nosso Brasil atual tenho visto algumas pessoas clamando pela repressão aos “abusos do direito à liberdade de expressão”. Ora, o próprio conceito de liberdade de expressão existe justamente porque há idéias que nos provocam repulsa, idéias que consideramos “perigosas” ou “erradas”. Ou seja, a liberdade de expressão não foi imaginada tendo em mente quem diz algo que ouvimos com prazer, e sim para proteger aqueles que têm a nos dizer coisas de alguma forma incômodas que não queremos que sejam ditas. Portanto, me parece muito estranho e perigoso falar em “abuso da liberdade de expressão” com base no fato de que alguem sentiu-se ofendido com o que foi dito. Ou é um direito fundamental ou não é. E o princípio é que não é desejável que as pessoas sejam punidas por comunicarem aquilo em que realmente acreditam. Mesmo crimes como perjúrio ou falsidade ideológica fundamentam-se justamente no fato de que o que foi manifestado não representava a expressão do pensamento do autor da manifestação! Claro, há o caso de incitações explícitas ao crime, que é mais complicado. A fronteira entre o crime, a incitação ao crime, e opiniões sobre o crime pode por vezes ser tênue mas é fundamental que a procuremos. Se não o fizermos, daqui a pouco estaremos prendendo médicos por escreverem artigos científicos dizendo que a maconha não faz tão mal assim. Estamos atravessando tempos difíceis, tempos em que uma parte da sociedade, rapidamente esquecida dos terrores do patrulhamento ideológico e da censura, novamente se deixa inebriar pela tentação de reinstaurar em nosso país o delito de opinião. Quando isso ocorrer, teremos mais uma vez perdido nossa duramente conquistada democracia. É preciso que a maioria silenciosa que enxerga e teme essa terrível ameaça se manifeste. Lembremo-nos do seguinte diálogo, se não me engano imaginado por Thomas More em uma de suas obras, e que aqui recrio de memória :

- Quer dizer que você passaria por cima da lei se enxergasse o demônio do outro lado?
- Certamente que sim! Eu abriria um grande buraco na lei para poder atingir o demônio!
- Meu caro amigo, se você assim perseguir o demônio, e derrubar lei após lei, quando finalmente houver derrubado a última lei da Inglaterra e o demônio se voltar, sorridente, contra você, onde você se esconderá?

Divergências entre os autores

Já no momento em que apresentei meu artigo “Ciência e Filosofia” aos outros editores do jornal, eu ouvi : “Discordo completamente do que você escreveu.” Da mesma forma, eu não necessariamente concordo com tudo o que está escrito nos outros artigos do jornal. Isso não é nenhuma novidade. Não é algo que tenhamos descoberto agora. Já o sabíamos antes mesmo de imprimir o jornal. Porém, esse é o espírito que precisa prevalecer em uma sociedade que se pretenda “plural” e “multicultural” : o respeito à individualidade de cada um, ao que cada um tem para dizer. Sem individualidade, como se pode falar em pluralidade ?

Divergências editoriais

Infelizmente, o episódio todo acabou resultando em desdobramentos sobre os quais não conseguimos, como um conselho editorial, assumir uma postura coerente que pudéssemos defender todos juntos. É uma ironia, considerando a proposta do jornal; porém, é uma questão eterna com a qual tem de se defrontar todo empreendimento conjunto. Portanto, devido a divegências irreconciliáveis quanto à concepção da postura e da ação concreta a assumir com relação a nossos críticos, defensores, e quanto ao futuro do jornal, decidi deixar voluntariamente o conselho editorial do jornal “O Indivíduo”. É com tristeza que o faço, por considerar que “O Indivíduo” ainda tem, entalada na garganta, uma quantidade enorme de reflexões e idéias cujo debate poderia ser profundamente enriquecedor. Faço votos de que as idéias mais importantes não se percam e de que os editores remanescentes se deixem motivar pela vontade de estimular a reflexão e o pensamento crítico e não pela compreensível mas profundamente destrutiva vontade de agredir aqueles que os agrediram. Ao permanecer como webmaster e diagramador do jornal, é com satisfação que constato que assim tem sido.

Comentário adicional, 10 anos depois

Minha saída do conselho editorial foi devida basicamente a discordâncias quanto à publicação de certos textos de outros que não nós três. Eu definitivamente não aprovei certas escolhas, e achei por bem resolver o impasse retirando-me da posição de decidir textos de quem seriam ou não publicados. Mas passadas as turbulências que se seguiram à distribuição inicial do jornal, e em sua subseqüente existência como site, acabamos na prática por administra-lo conjuntamente. No princípio fui eu a cuidar do site, seguido pelo Álvaro, que por anos foi sua principal força motriz. Após um breve período de abandono, O Individuo foi eventualmente reinventado e revitalizado pelo Pedro, que passou então a ser seu principal arquiteto, autor e mantenedor, comigo fazendo contribuições moderadas e o Álvaro escrevendo cada vez mais raramente. Quando voltei a contribuir com mais freqüência, revelaram-se, coloquemos assim, diferenças de preferências sobre como fazer as coisas, e eventualmente o site se separou em dois, um administrado por mim e outro pelo Pedro.

Carta Aberta à Comunidade da PUC

December 15th, 1997 by Sergio de Biasi

Escrevo esta carta buscando colaborar para o desatamento da sucessão de mal entendidos que vem ocorrendo nos últimos dias com relação à publicação do jornal “O Indivíduo”, do qual sou co-autor e co-editor.

Meu nome é Sergio Coutinho de Biasi, sou aluno do Ciclo Básico do CTC da PUC-Rio e adoro estudar aqui. Meu objetivo, ao escrever e divulgar o jornal – e, tenho certeza, o dos outros alunos envolvidos em sua publicação – jamais foi perturbar o andamento pacífico das atividades na comunidade da PUC. Mesmo quando violentamente agredidos, inclusive fisicamente, nas dependências do campus, em nenhum momento esboçamos qualquer reação agressiva ou provocadora, procurando, ao contrário, dialogar com quem nos interpelava, infelizmente com pouco sucesso. Aliás, é justamente isso que pretendemos dizer com o nome de nosso jornal e com nosso editorial – ou seja, que mesmo diante de circunstâncias adversas, mesmo quando existem enormes pressões para se pensar ou agir de certa forma, cada ser humano tem a capacidade, dentro de si, de não concordar e não colaborar com aquilo que considera errado, desumano, indesejável. Enfim, que cada ser humano dispõe de uma consciência individual e que é desejável que ele a utilize. Que cada um busque defender o que considera certo e justo e bom, e não o que a massa ou as autoridades querem coagi-lo a pensar. Que cada ser humano tem um valor inestimável que não deriva do grupo ao qual pertence. Que todos têm o direito de buscar a verdade e o dever de respeitar essa busca nos outros. Mais do que isso, acreditamos que isso só é possível através de um profundo exercício de compreensão e de aceitação do outro, de solidariedade ao outro que, como nós, tem direito a ter sua dignidade e sua liberdade garantidas não apenas pela lei, que é distante e impessoal, mas pelas consciências vivas e humanas dos que o cercam. No calor das reações emocionais a nosso jornal, acredito que tais idéias, que guiaram todo o nosso pensamento, acabaram desconsideradas e incompreendidas.

Coloco-me desde já à disposição para participar, no que for possível, no esclarecimento de todo esse episódio.

Ciência Versus Filosofia ?

November 19th, 1997 by Sergio de Biasi

Iniciamos com este artigo uma coluna cujo assunto será a consideração das relações mútuas entre os desenvolvimentos da ciência e da filosofia.

Vivemos em uma época na qual os filósofos, em sua maioria, estão muito afastados dos cientistas. Historicamente, ciência e filosofia surgiram juntas e durante muito tempo se confundiram; a própria física começou como filosofia natural. À medida em que o tempo passou, e a ciência ganhou uma complexidade cada vez maior, e nossa compreensão do mundo e do universo – pelo menos a nível fenomenológico – se expandiu, porém, uma atividade ficou cada vez mais distinta da outra. À medida em que o território da ciência se expandiu, suas fronteiras – para além das quais está a metafísica e a filosofia – pareceram cada vez mais distantes, para muitos, da quase totalidade da atividade científica. Desse modo, chegamos a uma cisão suspeitíssima na qual acredita-se que é possível produzir ciência de alta qualidade sem nunca gerar qualquer pensamento filosófico novo e que seja possível filosofar sobre a realidade (supondo que exista uma) sem conhecer ou se reportar à ciência.

Ora, em ambos os sentidos estamos cometendo erros crassos, e prejudicando – em certos casos impedindo – tanto o progresso da ciência como o da filosofia. Por um lado, a ciência não pode avançar – ou sequer existir – sem a filosofia. As estruturas filosóficas, conscientes ou não, constituem a ferramenta através da qual tentaremos interpretar a realidade – e isso vale tanto para um bebê recém nascido como para um grupo de pesquisa em física nuclear. Até aí, poderíamos conceber a filosofia como fundamento implícito mas dissociado do objeto da ciência. Só que o conhecimento não consiste apenas em preencher com percepções e experiências uma forma já pronta. Ao contrário, os grandes saltos de compreensão se dão quando reformulamos nossas formas (geralmente ao depararmos com percepções que não sabemos onde encaixar). De fato, o tipo de conhecimento que a ciência pretende obter sobre a realidade está muito mais nas estruturas que descobre serem “adequadas” para interpretá-la do que no acúmulo infinito de percepções. Assim, todo grande avanço na ciência – aquele tipo de avanço que alarga suas fronteiras – não só requer mas consiste em uma mudança nas estruturas filosóficas através das quais pensamos a realidade.

Por outro lado, em particular pelo exposto acima, a filosofia não pode ficar alheia aos avanços da ciência. À medida em que a ciência avança, ela penetra em domínios que antes pertenciam à filosofia. Nossa apreensão da realidade se altera através das eras e, aos poucos, questões que antes pertenciam por excelência ao domínio do debate filosófico puro, e demarcavam até mesmo os limites do cognoscível, passam a poder ser tratadas cientificamente. Dessa forma, questões como “Que são as estrelas ?”, “O que é a luz ?”, “Será o universo infinito ?”, “De onde surgiram os seres humanos ?”, “O tempo passa com a mesma velocidade em todos os lugares ?” que em diferentes épocas já foram – e facilmente esquecemo-nos disso – questões filosóficas, hoje são tratadas pela ciência. Tal mudança de situação não impede incursões da filosofia pura em nenhum desses assuntos – porém é fundamental que quem se disponha a fazê-las considere – e para tanto precisará conhecê-los – os argumentos científicos relevantes. Já outras questões como “O que é o bem ?”, “Por que estamos aqui ?”, “Existe um Deus ?”, “O futuro está predeterminado ?”, ainda hoje são, eminentemente, competência da filosofia. Talvez algum dia se torne possível tratá-las no âmbito da ciência, talvez não; a filosofia é mesmo mais abrangente que a ciência. No entanto, o filósofo deve perceber que as descobertas científicas revolucionárias não apenas apresentam conseqüências filosóficas profundas, mas mais do que isso, consistem em reformulações filosóficas, e muito bem fundamentadas.

A ciência expandiu-se tanto nos últimos séculos que muitas vezes filósofos e cientistas perdem de vista que são atividades com uma fronteira – freqüentemente nebulosa – em comum, e que quanto mais a filosofia fala sobre a realidade concreta, mais próxima ela está da ciência, assim como quanto mais a ciência se universaliza, mais próxima está da filosofia pura. Pretender conhecer a realidade e fazer ciência sem empregar a filosofia é como tentar construir a cobertura de um prédio antes de lançar as fundações. Porém, fazer filosofia ignorando a ciência é como estudar o problema genérico das fundações ignorando os arranha-céus que já estão construídos por aí.

Por mais forte e clara que seja essa ligação, há porém uma forma de sabotá-la, que desfruta de considerável popularidade : negar não só a acessibilidade mas a própria existência de uma realidade objetiva, concreta, suposição básica sem a qual a ciência se torna não só desconectada da filosofia mas completamente inviável. A conseqüência direta dessas concepções subjetivistas e relativistas é um universo no qual todas as opiniões têm o mesmo valor e ninguém está efetivamente “com razão” sobre coisa alguma. Deliciosamente “democrático” ? O que de fato ocorre é que demolida a distinção entre o pensamento/sentimento de cada um e tudo o que está fora de nós, entre o que projetamos nos outros e o que vem de nós mesmos, fica, de fato, impossibilitada a comunicação e compreensão do outro, dado que estamos efetivamente negando seu direito de existir independentemente. E, como nada faz sentido mesmo, estamos isentos de qualquer responsabilidade e só o que pode prevalecer é nossa vontade pessoal. Em uma tal situação, só nos resta submeter (a marretadas) continuamente tudo e todos a nossas ilusões e fantasias (ao invés de, ao contário, adaptar nossas concepções e representações internas ao que vemos),num orgasmo de egocentrismo esquizofrênico.

Felizmente, essa visão de mundo se revela não somente dantesca mas também de pouca consistência. Afastada a possibilidade da unificação de todas as nossas realidades subjetivas em uma única e universal realidade objetiva, qualquer proposta filosófica fica transformada em um fim em si, em um delírio exclusivamente formal. E, de qualquer forma, não adianta espernear e dizer que não é possível fazer o que já está efetivamente sendo feito. A evidência mais contundente da existência de algum tipo de realidade objetiva é justamente o gigantesco e cada vez maior sucesso que a ciência vem obtendo em operar baseada nessa suposição.