Dawkins

July 11th, 2009 by Sergio de Biasi

Como todos por aqui a essa altura provavelmente já estão cansados de saber, eu sou 110% ateu. Porém, ou talvez coerentemente, sou radicalmente contra aceitar acriticamente as pregações de quem quer que seja, incluindo – e aliás, principalmente – as que parecem confirmar as coisas que me agradam ou que eu gostaria que fossem verdade.

Dentro desse espírito, mesmo admirando a paciência e a determinação de Richard Dawkins em enfrentar todos os aborrecimentos decorrentes de buscar combater a religião como agente universalmente catalisador de ignorância, intolerância e fanatismo, não parto do princípio de que tudo o que ele diz seja automaticamente lindo e maravilhoso e certo, nem idolatro sua pessoa, nem tenho qualquer vontade de me tornar seu discípulo (nem de ninguém mais, aliás).

Muitas coisas podem ser ditas sobre Dawkins com variável grau de razoabilidade. Pode-se dizer que ele teria se tornado tão intolerante quanto aqueles que critica. Eu não concordo, mas não é uma crítica absurda, e é um risco constante quando se entra num debate acirrado. Pode-se afirmar que ele não conheceria de forma suficientemente profunda as religiões que critica. Eu também não concordo, mas novamente, ter um PhD e prestígio não tornam ninguém automaticamente especialista em tudo, então uma crítica nessa direção não é algo que deva ser descartado sem reflexão. Como essas poderiam ser feitas muitas outras meritórias de consideração.

Agora, dizer que Dawkins seja *burro* decididamente não é uma delas. Não passa nem perto. Suas credenciais acadêmicas e profissionais como pesquisador, professor e escritor são estelares. Criticar Dawkins atirando-lhe o rótulo dé “burro” é tão pueril quanto criticar o papa atribuindo-lhe o mesmo adjetivo. Nenhum dos dois tem nem um pouco de burro, e afirmar o contrário equivale a querer ganhar um debate chamando o oponente de cara de mamão.

Agora, para acrescentar vários níveis de ironia e constrangimento a isso, se o problema é a palavra “provavelmente”, Dawkins foi explicitamente contra ela. Aliás, a campanha dos ônibus não foi inicialmente nem sequer concebida por ele, e sim por uma jornalista inglesa, a qual aliás agiu motivada por achar que os cristãos estavam agindo de forma psicologicamente abusiva ao promoverem incessantemente a idéia de que quem não seguisse os preceitos de sua religião passaria toda a eternidade sendo torturado. Claro, os cristãos podem fazer isso sem problemas e chamar ateus de perversos, maus, pecadores e perdidos. Mas se alguém decide educadamente dizer que as crenças dos cristãos estão erradas – ah, isso é completamente inaceitável. Hipocrisia total, como de costume.

Dawkins acabou apoiando a campanha, por achar que ela tinha mérito, mas declarou explicitamente que na opinião dele seria mais adequado dizer “There is almost certainly no God.”, sendo que o “almost” fica por conta da consideração prudente de que nosso conhecimento e nossa capacidade de intelecção são evidentemente finitos e possivelmente falhos, e que isso representa apenas o melhor que podemos concluir diante do que sabemos. Aliás, note-se que não costuma ocorrer aos católicos modéstia intelectual similar de dizer algo como “Quase certamente há um deus.” ou “Provavelmente deus existe.” E são essas pessoas que vêm falar de discurso dogmático? Por favor.

Sobre a eternidade ser um custo infinito, esse argumento sim é patético e vexaminoso de tão primário. Ora, eu poderia atribuir todo tipo de conseqüência eterna terrível para os mais variados comportamentos e não segue daí que você deva então seguir minhas recomendações na hipótese improvável de eu estar certo. Inclusive religiões diferentes recomendam coisas diferentes, mutuamente exclusivas, e igualmente condutoras à danação. E aí? Essa linha de argumentação é ridícula. O que precisa ser estabelecida é a credibilidade da afirmação que exista uma punição eterna, não o quanto ela seria horrível se fosse real.

E sim, muito objetivamente, as religiões, em particular a católica, aterrorizam as pessoas mais crédulas e emocionalmente vulneráveis com essa ameaça constante de danação se não forem suficientemente submissas e obedientes. Essa preocupação é muito real para uma grande parcela dos atingidos por esse discurso despersonalizante, e atrapalha, sim, terrivelmente que as pessoas simplesmente aproveitem suas vidas e vão vivê-las em paz de acordo com suas consciências. Aliás, eu pessoalmente iria ainda mais longe e acharia ótima uma campanha que dissesse “Deus obviamente não existe. Pare de se submeter aos que dizem representá-lo e siga sua consciência.” Claro que infelizmente quem é capaz de seguir esse conselho não precisa dele.

36 Responses to “Dawkins”

  1. Leonardo says:

    Desculpa, mas tudo o que eu vi (sim, aqui está a margem) o Dawkins fazer foi criticar superstições – papel obrigatório a todo portador de bom senso, ateu ou não -, mas nunca enfrentar com maturidade a “religião” ou, enfim, qualquer teologia. Ou seja: olhar pra pessoas ignorantes e criticar a prática vulgar da religião que elas dizem praticar, argumentando o mal que a tal religião provoca através dessas pessoas, não é olhar pra religião, e sim pra histeria toda que acomete as pessoas, sejam lá quais forem suas inspirações. Isso poosto…, não sou contra o velho e até chavão reconhecimento do diálogo entre “ciência x religião” – é óbvio que não!, esse diálogo é necessário e deve ser sempre encarado com a maior lucidez e coragem -, mas quando o Dawkins se mete a falar do que não conhece (a pressupor o que uma “teologia” estaria oferecendo simplesmente através de maus exemplos catados tendenciosamente por aí) ele não é um bom representante de um diálogo honesto, e sim um ignorante. Ele assume dúvidas pessoais como cientista e as perigosas conseqüências dessas dúvidas num mundo como o nosso, mas toda pessoa que ignora a, digamos, “Religião” como modalidade do conhecimento que atende não à teoria generalizadora dos fenômenos da natureza – como a ciência – mas à motivação (ou talvez “teleologia”) do Universo, e ao conceito de transcendência em que cabe toda a existência, está sendo epistemologicamente imaturo. Não quero dizer isso com altivez, mas é fácil reconhecer o principal vício de cientistas: achar que a ciência substitui coisas como a arte ou a religião, e que essas outras coisas são no máximo um arremedo dela.

  2. Leonardo T. Oliveira says:

    Desculpa, mas tudo o que eu vi (sim, aqui está a margem) o Dawkins fazer foi criticar superstições – papel obrigatório a todo portador de bom senso, ateu ou não -, mas nunca enfrentar com maturidade a “religião” ou, enfim, qualquer teologia. Ou seja: olhar pra pessoas ignorantes e criticar a prática vulgar da religião que elas dizem praticar, argumentando o mal que a tal religião provoca através dessas pessoas, não é olhar pra religião, e sim pra histeria toda que acomete as pessoas, sejam lá quais forem suas inspirações. Isso poosto…, não sou contra o velho e até chavão reconhecimento do diálogo entre “ciência x religião” – é óbvio que não!, esse diálogo é necessário e deve ser sempre encarado com a maior lucidez e coragem -, mas quando o Dawkins se mete a falar do que não conhece (a pressupor o que uma “teologia” estaria oferecendo simplesmente através de maus exemplos catados tendenciosamente por aí) ele não é um bom representante de um diálogo honesto, e sim um ignorante. Ele assume dúvidas pessoais como cientista e as perigosas conseqüências dessas dúvidas num mundo como o nosso, mas toda pessoa que ignora a, digamos, “Religião” como modalidade do conhecimento que atende não à teoria generalizadora dos fenômenos da natureza – como a ciência – mas à motivação (ou talvez “teleologia”) do Universo, e ao conceito de transcendência em que cabe toda a existência, está sendo epistemologicamente imaturo. Não quero dizer isso com altivez, mas é fácil reconhecer o principal vício de cientistas: achar que a ciência substitui coisas como a arte ou a religião, e que essas outras coisas são no máximo um arremedo dela.

  3. Leonardo T. Oliveira says:

    Então… Acho que a noção de “religião” aqui, a qual precisaria ser definida com franqueza antes de um diálogo mais justo, está sendo a de um conjunto de dogmas a ser aceito e seguido pelo homem, através do qual – com o ônus de alguma autoridade ética e espiritual absoluta imaginada – o homem se livre de pagar pelos supostos males que tenha cometido nessa vida e herde algo melhor no além-cá. A partir dessa noção, tudo o que resta é de fato anti-científico: você aceitar que algo é verdadeiro pela procedência desse algo, e nunca mais pelo algo-em-si (nunca mais pensar o algo-em-si em um nível em que ele possa simplesmente ser contestado) é o atrofiamento da razão. E por esse caminho, contra essa noção e esse fenômeno, eu concordo com você, e vou sempre concordar com o Dawkins, que, ao eleger essa noção de religião, não está sendo mais que uma testemunha honesta da “aflição racional diante do dogma”.

    Mas é esse entendimento de religião que eu considero ignorante, e que, sendo fácil ou não de chamar de uma noção grosseira e caricata e me chamar de tendencioso por tê-la anunciado como exemplo, acaba sendo a noção combatida pelo Dawkins como se estivesse combatendo alguma teologia inteira. A noção é ignorante não só porque vai contra o bom senso, mas porque, se lermos essa noção à luz do cristianismo, é simplesmente anti-bíblica (!) (os Evangelhos mesmo apresentam Jesus repensando o sentido razoável da “lei” o tempo todo). Ser salvo por ser bonzinho? Aceitar o dogma contra a própria resistência da razão e do próprio bom senso? Isso se chama “Legalismo” e dá pra usar a própria bíblia pra contestar essa idéia. Antes de pensar e julgar essas coisas é preciso saber o que a tal teologia da religião que você faz questão de combater diz sobre a definição de mal, de “pecado” (palavra tão usada em terrorismo psicológico), de culpa, de consciência, da própria da tal “salvação” de que se fala, etc. Ou seja: definições maduras e teológicas, e não que você encontra simplesmente pelo comportamento ou por declarações infelizes de pessoas que se dizem seguidoras dessa religião.

    Ok, mas se religião não se define por essa coisa automática de dogma, como é que ela ainda se habilita como uma modalidade do conhecimento digna de espaço ao lado da ciência? Nesse momento nos vale a epistemologia: você (Sérgio) evoca a universalidade e a neutralidade ideais do método científico como leitura não só da própria disciplina “ciência”, mas de qualquer exame honesto e racional da realidade. Não era essa a distinção que eu pretendia, mas simplesmente aquela que reconhece em cada uma dessas disciplinas – religião, arte, ciência, filosofia, história – um método de se atingir conhecimento verdadeiro. A ciência cria teorias pra generalizar fenômenos da natureza, a história, pelo contrário, discerne o que um determinado fenômeno teve de específico num tempo e num espaço, a arte retrata o fenômeno de um ângulo que provoque a percepção a reconstruir o fenômeno subjetivamente, a filosofia mapeia a axiologia que traduz esse fenômeno, e a religião? Você disse que a religião ser tomada como uma disciplina à parte é cair no mesmo vício dos cientistas, mas eu não estou trocando a ciência pela religião, só a estou fazendo conviver com a ciência entre modalidades do conhecimento. E a religião (contanto que você a estude honestamente, ao invés de criticar pessoas ignorantes por segui-la irracionalmente) situa o fenômeno como imanência de uma transcendência da qual esse fenômeno depende pra existir. É por esse sentido (simplificado porcamente, pois é) que “religião” é algo de que não se foge pessoalmente: alguma resposta precisa ser dada diante dessa estrutura que situa a existência específica numa realidade de tempo e espaço transcendentes. Você já tentou e nunca encontrou nada? Pode ser que não tenha tentado direito, ou que, no seu próprio vácuo, já esteja se posicionando tão religiosamente quando São Tomás de Aquino deve ter mapeado em algum lugar da Suma Teológica.

  4. Igor says:

    Dawkins não é burro. Ganha dinheiro dizendo disparates.

    Ele só é mal intencionado e argumenta como uma criança de 10 anos que repetiu a 2a série três vezes.

    Burro é quem engorda a conta bancária desse fanfarrão!

  5. Joaquim says:

    Até agora ninguém discutiu nada. Só preferências abstratas.

  6. Igor says:

    Prezado Sérgio,

    de que lado estão as argumentações? Quantas vezes você se deu ao trabalho de discutir vias cosmológicoas ou ontológicas, por exemplo?

    Aliás, qual é o argumento nesse texto que comento? Você pode identificar algum para que eu possa combatê-lo?

    Desculpe-me, mas você e todos os seus ateus favoritos envergonham os ateus que se esforçavam por desbancar argumentos filosóficos ou propriamente a teologia cristã: e empreendiam grandes esforços racionais para isso.

    Seu discurso inflamado pelo absurdo da religião só não é mais absurdo que sua crença em achar que argumenta racionalmente.

    Procurei termos como “Tomás de Aquino”, “Aquinas”, “Santo Agostinho”, “Agostinho”, “Anselmo”, “Richard Swinburne”, “Alvin Plantinga”, “Kurt Gödel”, “Fides et Ratio” e não houve uma só ocorrência no blog inteiro, em dez anos de existência.

    A única referência filosófica à questão de Deus é um patético comentário sobre o argumento ontológico de Anselmo, o que me faz perceber quão deficiente foi seu entendimento do argumento: sinceramente, não me parece ser plausível que diversos filósofos o tenham analisado – seja positivamente, seja negativamente – se este fosse um argumento patétito e anti-lógico. No mesmo parágrafo, após dizer que o argumento é uma piada, você diz que precisaria de centenas de páginas para refutá-lo. Uau! Essa é uma verdadeira piada! E de mau gosto.

  7. Carla Teixeira says:

    “Para o ser humano ignorante médio, tudo é simplesmente mágico e pronto, não há opção senão aceitar as coisas “irracionalmente” .

    Será que não há opção? Talvez seja prazeroso, confortador, sei lá, fazer a opção de acreditar em Deus. Outra coisa, ver – ou sentir – algo como “mágico” é determinante de ignorância? Tenho a plena consciência de que não me diferencio de uma flor (no que tange a nascer, viver, morrer), no entanto tenho sensações, por exemplo, que pra mim são sinônimos da presença de Deus. Sou ignorante? Eu acho que essa discussão sobre religião, sobre Deus, tem razão de ser na medida em que há uma implicação política aí (E acredito que é essa sua crítica principal, Sérgio) e não no que se refere a liberdade individual de crenças. Eu condeno a religião quando ela interfere na política, ponto final. Evitar essa mistura é um de nossos maiores desafios. E que cada um acredite no que quiser. Como racionalizar a fé?

  8. Júlio Oliveira says:

    Caro Sérgio,

    O ponto central da questão é que um católico tem no limite da verdade o limite de sua fé, por isso, ao longo da História, os pensadores cristões sempre aceitaram mergulhar nela sem lhe impor limites. Assim, os primeiros Padres se recusaram a banir Platão e Aristóteles apenas para ter uma vida mais fácil.
    Já os ateus e anticatólicos, após todas as racionalizações têm, ao final, suas idéias limitadas pelas premissas “não há Deus” ou “se é católico é superstição”.
    Como exemplo. quando a idéia de um universo eterno predominava, foram os esclarecidos cientistas que descartaram a teoria de Georges Lemaitre sobre um universo em expansão a partir de um ponto superdenso primordial. Sua teoria foi rejeitada não porque pudessem provar que estava errada, mas porque o cientista Lemaitre também era padre católico e sua teoria podia ser encaixada no relato do Gênesis. Hoje todos conhecem a teoria do Big Bang mas ignoram Lemaitre.

    E nem entrei no mérito da teoria ser correta ou não.

    Saudações.

  9. Fabiano Costa says:

    Dawkins não é burro, mas é obvío que isso também não significa necessariamente que ele está com a razão. Afinal, Josef Goebbels era um brilhante psicológo de massas e o perverso doutor Mengele tinha doutorado em filosofia. Em relação à propaganda ateia, eu endosso a seguinte frase de Voltaire(que era um deísta): “Posso não concordar com uma linha do que dizes, mas sempre defenderei o seu direito de expressão”. A frase não é exatamente essa, embora o pensamento seja. E mesmo que Deus exista, isso também não significa necessariamente que os ateus irão ser condenados eternamente ao inferno depois da morte. Os hindus, budistas, jainistas, espíritas e até alguns judeus e muçulmanos não acreditam no inferno como pena definitiva.

  10. Amilton says:

    “Mas irracionais somos todos nós, para começar”.

    ah,ah..então desligue o blog!

  11. Leonardo T. Oliveira says:

    Caro Sergio,

    (Ainda não sei fazer citações, mas acho que a tendência é ir arrematando o que conseguimos esclarecer até aqui)

    Quando eu cito que o “Legalismo”¹ pode ser combatido pela própria bíblia eu não estou jogando com a autoridade inquestionável da bíblia, mas mostrando que dentro do próprio discurso acusado de um dogmatismo inquestionável essa idéia não se sustenta (a referência legítima, pra combinarmos, deve ser a mesma: o discurso cristão dentro da bíblia). Como pode? De novo, é o que acontece se criticamos a incoerência das pessoas (o que é fácil) ao invés do plano da idéia que uma religião dispõe. Sim, é claro que a realidade não precisa ser abolida só pra sermos justos com uma idéia, mas considerar desde a realidade múltipla e paradoxal pra se deduzir uma idéia é, por algum motivo, um caminho suspeito.

    O pior é que nesse princípio racional de não justificar uma coisa pela sua procedência, mas pela coisa-mesma, há o risco de isolarmos a tal coisa do seu contexto: quando você diz que se eu cito a bíblia eu estou sendo ingênuo por imaginar que assim eu estou evocando alguma autoridade pseudo-válida-em-si, você já está usando um vício de negar a autoridade de algo até mesmo quando essa autoridade é o simples e justo sentido de um contexto completo. Ou seja: a “autoridade” de algo não precisa ser a premissa de uma revelação divina, mas apenas o sentido definido com coerência no seu discurso de origem completo.

    A sua reivindicação pela racionalidade como pressuposto pra que a verdade seja realmente conhecida parece ter, portanto, as seguintes conseqüências:

    1) Se descuidar, o contexto de algo acaba sendo abolido no receio de se engolir passivamente qualquer autoridade gratuita. Um preceito bíblico, lido como dogma por um ateu acusador, até poderia ter um contexto que poderia ser evocado como autoridade dessa passagem, mas, pseudo-cientificamente, é a passagem-em-si que deve ser defrontada como um objeto num laboratório e ainda assim sobreviver. O máximo a que isso leva é que você troca o contexto original da coisa pela sua subjetividade. E, como se sabe, a nossa subjetividade sempre reproduz o nosso contexto, nada mais.

    2) Se a razão é o que legitima uma modalidade de conhecer a verdade (modalidade que, seja a própria ciência ou a história ou a filosofia, você chama de “científica” na noção mais abrangente em que você usa a palavra (e que é um sentido possível de fato)), então a arte, além da religião, também fica de fora: não será uma modalidade de conhecer a verdade nem na sua etapa de contemplação. No entanto, sabe-se que a arte tem a capacidade de absorver um sentido da realidade que outras linguagens não poderiam absorver. É o caso bem ilustrado pelo Euclides da Cunha em Canudos, que foi como repórter mas só fez caber o sentido do que viu e do que quis registrar na condição de “poeta”. Ou enfim aquela frase meio clichê e duvidosa, mas que vale por si: “Tudo pode ser explicado cientificamente, mas carece de sentido. É como descrever uma sinfonia de Beethoven como ondas de som pressurizadas”². Penso que o papel “universal” da racionalidade entra em jogo quando a questão é comunicar algo. Mas o fenômeno contemplado tanto pela arte quanto pela ciência ou história ou filosofia não é necessariamente racional (geralmente é ontológico e olhe lá). A ciência tanto racionaliza um fenômeno quanto o comunica à razão, mas a arte e a religião se comprometem com a experiência que não exige apenas da razão, mas ultrapassa o seu cargo. Aí comunicar a arte ou a religião acabam dependendo de imperativos que provoquem à experiência, o que não é uma linguagem científica, mas o mais “dêitica” quanto possível. Ok, mas que experiência é essa que ultrapassa a tradução da razão e ainda assim pode ser verdade?

    3) O limite da racionalidade pra traduzir aquilo que existe e que pode ser experimentado não é algo difícil de reconhecer. Por exemplo: o velho jogo de se perguntar a origem da origem da origem da origem nos leva pra constatação de que em algum momento algo tem que ter existido desde sempre, o que é algo que a razão não sabe conceber. Sei que é constrangedor pra um ateu se deparar com essa idéia por dois motivos: a) ele pode querer falar de tempo físico, e que o próprio tempo pode ter nascido de um buraco negro – mas isso é falacioso, porque falar num tempo físico não exclui o tempo abstrato que simplesmente pergunta: “e antes disso?”; b) ele pode querer dizer que não é por não sabermos o que há pra além da razão que podemos dizer que a coisa incontingente seja necessariamente Deus. Mas calma, o ponto é apenas o limite da razão: se é tão fácil deduzir que a razão tem limite, por que o “conhecer verdadeiro” deve ficar sempre restrito ao campo de atuação da razão? (pode-se dizer que a “verdade” é apenas racional, mas chegaremos lá).

    4) A verdade é que tanto na arte como na religião a experiência pode ser verdadeira (seja se deparando com a paupabilidade do “mythos” absorvido pela linguagem artística, seja se deparando com a evidência da transcendência encarada pela religião), então não é porque a comunicação dessas experiências não se restringe ao racional que elas deixam de ser modalidades de se conhecer a verdade. Ambas, em suas experiências, apelam pros sentidos, tornando-se individuais, pois a razão não auxilia muito na transferência da percepção da obra-de-arte (como no desafio de descrevê-la que não por ela mesma) nem na transferência da fé.

    A religião deduz a transcendência e, a partir da evidência da transcendência, se abre pra percepção dessa transcendência (se a transcendência pode ser reconhecida no mesmo momento em que se reconhece o limite da razão, não é mais impossível que a transcendência seja fonte inteligível de propósito ao abarcar a nossa existência, afinal, de novo: ela existe e pode ser deduzida). Essa percepção, por ultrapassar o encargo da razão, se compromete a não ser comunicável racionalmente, restringindo-se ao individual, mas ainda assim a religião não deixa de ser a única modalidade capaz de sugerir alguma experiência com a parte transcendente da realidade. É nesse sentido que eu porcamente tentei definir a epistemologia de cada disciplina (desafio de síntese hercúleo): a arte é a única linguagem pra nossa relação com um sentido que existe e que clama pelo nossa percepção, assim como a religião (e você deverá escolher com qual conjunto de incentivos à experiência com o propósito advindo da transcendência você se identifica ou funciona pra você) é a única linguagem pra nossa relação com o transcendente (e aí é preciso verificar se esse transcendente “fala” mesmo, ou se o incontigente nos gerou dentro dele e nos esqueceu, etc.).

    Sobre revelação divina: a religião opera sobre uma definição de transcendência, e assim o seu fenômeno ultrapassa o papel da razão no mesmo momento em que a razão reconhece o seu limite. Então a comunicação da experiência dentro dessa linguagem também não pode mais ser estritamente racional. Por isso usar apenas a razão e o laboratório contra a religião é até um despropósito. Porém, eu não acho que o resultado da religião precise contradizer o bom senso e a própria razão, assim como a arte não contradiz necessariamente a ciência. Por isso, sim: é possível que usemos a razão pra avaliar o bom senso de cada sugestão religiosa. Até porque, se existe revelação divina, ela não vai querer mandar a gente fazer coisas burras, e não vai se importar se a gente verificar bem o que está fazendo com o que está ao nosso alcance (como cantar no chuveiro só depois de perceber que não tem ninguém pra rir de você por perto – normal).

    _______
    ¹ Aquela idéia de que seja possível (sequer possível) ao homem ser absolutamente bonzinho segundo a lei bíblica restrita e que esse seja justamente o caminho pra salvação.

    ² Na etapa da contemplação da arte, a “verdade” é dada por cada percepção, mas a percepção não é ilimitada, e, se “correta”, deve ir de encontro a uma *mesma* matéria absorvida e concentrada pela obra-de-arte.

  12. Fabiano Costa says:

    Sobre dizer que os descrentes estão “condenados ao inferno”, eu acho que os evangélicos, nesse ponto, conseguem ser bem piores que os católicos. É só ver uma pregação do pastor Silas Malafaia ou do reverendo Pasquale(R.R Soares, mas eu chamo de Pasquale porque ele é parecidíssimo com o professor Pasquale).

  13. Fabiano Costa says:

    A posição da ala mais liberal da Igreja Católica em relação aos ateus é mais tolerante que a dos tradicionalistas. Conheci uma professora de religião católica no Santo Inácio que dizia que um ateu, mesmo negando “da boca para fora” a existência de Deus, iria pro céu se permitisse que Deus manifestasse o seu amor através dele ajudando o próximo. Quando se fala dos católicos, é necessário evitar generalizações.

  14. [...] vai dar em “Dawkins é burrão” e “Rousseau não pegava ninguém, haha!”. Esse tipo de reação é tola e [...]

  15. Jonas Santiago says:

    Cara, parabéns pelo texto e principalmente por todas as respostas. Eu já li vários blogs afins e não tinha encontrado nenhum com respostas de tão alto nível quanto as que você escreveu. E já faz um tempo que escreveu. Pena não ter encontrado antes. Foi, de fato, enriquecedor.
    Esta página vai ficar nas minhas favoritas.

    • Valeu! Por vezes em respondendo a críticas e mal entendidos os comentários acabam contendo mais detalhes do que o texto original… o problema depois acaba sendo resgatar um todo coerente disso tudo… :-)

      Saudações,
      Sergio

  16. Leonardo,

    Eu não concordo com o que você falou sobre o Dawkins, acho que ele fala coisas bastante razoáveis sobre religião tanto genericamente quanto sobre exemplos específicos. Não acho que as opiniões deles possam ser descartadas como ignorantes, nem que sejam desinformadas, e acho que elas se aplicam mesmo para as manifestações mais sofisticadas de religião. Mas ao invés de me concentrar nessa parte do que você falou, sobre a qual aparentemente discordamos, vou me concentrar na que vem a seguir, com a qual concordo em grande parte.

    Deixando o Dawkins de lado um pouco, existe uma tendência das pessoas que dão grande valor à lógica e à racionalidade – entre as quais me incluo – a caírem na tentação de querer justificar tudo através da lógica e da racionalidade. E aí eu concordo com você que caímos num beco sem saída, porque várias das coisas mais fundamentais da experiência humana não têm nada a ver com racionalidade. Sem um certo grau de racionalidade viramos pessoas delirantes e esquizofrênicas, mas a razão sozinha não nos dá motivos para fazer o que quer que seja.

    Por outro lado, isso tendo sido dito, eu não acho que a religião seja uma outra “modalidade de conhecimento”, certamente não nos moldes em que é em geral praticada. Defender isso é para mim incorrer exatamente no mesmo tipo de erro do cientista que acha que vai justificar escolhas morais ou determinar o propósito de sua vida através da lógica. Certas decisões são como uma obra de arte, você é livre para criar o que achar melhor dentro dos limites da realidade, mas todo o significado é projetado nessas escolhas pelas nossas consciências, ele não está lá nas coisas em si mesmas para ser medido. No máximo talvez você possa aprender através de um aperfeiçoamento da sua introspecção qual é o significado que *você* dá a certas coisas, independentemente do que a sociedade, a lógica, sua família, o governo ou a religião digam que esse significado deveria ser.

    A meu ver a ciência é sim quase por definição a única forma de atingir “conhecimento” do tipo universal e que se aplique a todos. Se houvesse um sentido “teleológico” para o universo não haveria qualquer motivo para excluí-lo do âmbito da ciência. Eu até acho que alguém suficientemente coerente poderia argumentar que por exemplo teologia seria uma disciplina científica, ou seja, de que está falando de coisas reais e propondo a existência de entidades reais. Como tal, seria má e fracassada ciência, mas ciência, assim como dizer “eu tenho a teoria de que Júpiter gira em torno de Marte.” Mas dizer “os critérios de verdade da ciência não se aplicam a mim” equivale a dizer “eu não me importo com o que é realmente verdade, me deixe em paz para acreditar no que eu quiser.”

    Então, assim como ciência não vai te dar uma resposta para “qual o sentido da minha vida”, ou se der alguma, vai ser “nenhum”, e nisso eu concordo com você, por outro lado da mesma forma qualquer religião dogmática – e as religiões têm uma tendência universal insuportável a sê-lo – não vai te dar respostas decentes para qual é o sentido da sua vida.

    Saudações,
    Sergio

  17. Caro Igor,

    Sua argumentação (?) límpida e cristalina deixa bastante claro de que lado estão os fanfarrões.

    Para mim, é por exemplo a teologia católica inteira que é cristalinamente um disparate do começo ao fim. Agora, ao contrário de você, evidentemente eu não espero que as pessoas concordem comigo apenas por eu começar a bradar “É um disparate!” e chamar quem discorda de mim de burro. Novamente, Dawkins pode ser criticado de muitas formas sérias, mas uma delas não é afirmar que ele argumente como uma criança de 10 anos, especialmente sem depois disso apresentar qualquer argumento proferido por ele que seria supostamente digno de uma criança de 10 anos.

    Por outro lado, talvez você tenha aí um ponto válido no fato de que até uma criança de 10 anos que repetiu a 2a série três vezes provavelmente tem inteligência suficiente para perceber que as crenças da quase totalidade das religiões do mundo não fazem qualquer sentido e só têm qualquer possibilidade de serem aceitas se o senso crítico for desativado. Neste aspecto talvez você tenha razão; Dawkins argumenta como uma criança de 10 anos que vê que o rei está nu e diz isso claramente apesar de ser politicamente incorreto; ele faz as perguntas incômodas que uma crianca de 10 anos faria mas que aprendemos por constrangimento social que não se deve fazer. Ele argumenta como uma criança de 10 anos porque não é necessário mais do que isso para demolir certas idéias. O que é preciso para fazê-lo não é inteligência e sim coragem de falar “isso não faz qualquer sentido”.

    Saudações,
    Sergio

  18. a noção de “religião” aqui, a qual precisaria ser definida com franqueza antes de um diálogo mais justo

    Pois é, essa é uma questão escorregadia. Eu diria que o aspecto mais perverso comum à quase totalidade das religiões é a idéia do conhecimento religioso ser algo revelado e não determinado pela experiência e/ou pela razão. E dentro desse entendimento de religião aparentemente você concorda comigo e com Dawkins.

    Mas é esse entendimento de religião que eu considero ignorante

    Ora, eu não vejo por que seria. Quase a totalidade das religiões são abertamente e formalmente dogmáticas. Não é algo discreto ou camuflado. Não é um acidente ou uma perversão do sistema.

    A noção é ignorante não só porque vai contra o bom senso, mas porque, se lermos essa noção à luz do cristianismo, é simplesmente anti-bíblica (!)

    Peraí, a própria noção de que haja algo de especial com a bíblia já é profundamente dogmática. Se estamos buscando a verdade, ela deve poder ser encontrada em qualquer lugar, e não num livro específico. A justificativa de certos valores que se pretendam universais e baseados na verdade e não na autoridade nunca poderia começar com “porque Jesus disse que”. No máximo Jesus poderia ser citado como alguém que primeiro percebeu certas coisas que agora vamos citar porque ele as explicou muito bem. Mas argumentar que algo é assim “porque foi revelado por Jesus” é obviamente dogma, mesmo que depois ele tenha acrescentado “e vejam, alem disso faz sentido!”. Para escapar do dogmatismo, o critério deveria ser “faz sentido” e não “Jesus disse”. E deveria ser possível concluir que ele estava errado sobre certas coisas. Ao invés disso claramente o que ocorre é partir do princípio de que ele estava certo e (no máximo) tentar entender por quê.

    Antes de pensar e julgar essas coisas é preciso saber o que a tal teologia da religião que você faz questão de combater diz sobre a definição de mal, de “pecado” (palavra tão usada em terrorismo psicológico), de culpa, de consciência, da própria da tal “salvação” de que se fala, etc. Ou seja: definições maduras e teológicas,

    Naturalmente que sim. Não sei por que a pressa em achar que Dawkins discordaria disso. Ele é um acadêmico e tem plenas condições de apreender os conceitos adequados, e acho difícil de argumentar que ele não o tenha feito, especialmente considerando o quanto se envolveu com essas questões. Ou você está dizendo que alguém na posição dele escreveu livros inteiros sobre o assunto sem parar para conversar 5 minutos com um teólogo ou buscar compreender os sistemas de crenças que critica? Acho isso muito difícil de defender. Por outro lado, claro, não posso falar pelo Dawkins.

    Mas se não posso falar por ele, certamente posso falar por mim, e com certeza eu sei mais sobre teologia católica do que 99% dos católicos que eu conheço. O que talvez não seja grande vantagem, considerando o quanto o católico médio sabe sobre teologia católica. Aliás, a maioria absoluta desconhece até mesmo os dogmas nos quais supostamente deveria acreditar. Seja como for, não estou falando com base em caricaturas.

    Ok, mas se religião não se define por essa coisa automática de dogma, como é que ela ainda se habilita como uma modalidade do conhecimento digna de espaço ao lado da ciência?

    Bem, aí é que está – eu não concordo que a religião esteja livre dessa “coisa automática de dogma”, e isso não é uma opinião caricata, ignorante ou desinformada. Aliás, eu acho que afirmar o contrário disso é que é bastante difícil de defender. A existência de dogmas é parte integral da quase totalidade das religiões. Certamente é por exemplo da religião católica, na qual isso é feito formalmente e abertamente. Acreditar em certas coisas não é opcional. E elas são nominalmente chamadas de dogmas. O que pode ser mais literal do que isso?

    Nesse momento nos vale a epistemologia: você (Sérgio) evoca a universalidade e a neutralidade ideais do método científico como leitura não só da própria disciplina “ciência”, mas de qualquer exame honesto e racional da realidade.

    Eu poderia fazer ressalvas quanto a não existir realmente algo que possa ser universalmente chamado de “método científico” tanto quanto existe uma “atitude científica”, mas em resumo, sim.

    mas simplesmente aquela que reconhece em cada uma dessas disciplinas – religião, arte, ciência, filosofia, história – um método de se atingir conhecimento verdadeiro.

    Pois é, e eu não concordo com sua classificação. A história, por exemplo, evidentemente pode ser feita de forma científica. Eu não concordo que a ciência possa ser definida exaustivamente como “criar teorias para generalizar fenômenos da natureza”. Se assim fosse, o diâmetro correto da Terra não seria um conhecimento científico, dado que não é generalização de nada, e sim uma instância específica de algo que por acaso é verdade. A ciência tem a ver com conhecer a verdade através da razão e da observação, esteja a verdade onde estiver. Se forem verdade puramente abstratas temos por exemplo a matemática e a lógica, se forem verdades do tipo “houve uma guerra em 1812″ então temos disciplinas como história, se for tentar descobrir como funcionam os seres vivos temos disciplinas como biologia. Todas científicas, porque baseadas na razão e/ou na observação e buscando determinar a verdade. A religião, por outro lado, não funciona nos mesmos moldes. Embora muitas vezes se discurse sobre a verdade, o fundamento para o discurso está na autoridade e na revelação e não na razão e na observação. Isso torna a religião não apenas não científica como não produtora de conhecimento sobre o mundo. Um livro de folclore da idade do bronze não pode levado a sério no século 21 como base para determinar como funciona o universo. Ah, tá, metáfora, alegorias, etc. Mesmo que restringíssemos os ensinamentos da Bíblia ao seu significado moral, algo que nem Roma faz, continuaria não havendo qualquer motivo para encarar qualquer parte disso como “conhecimento”.

    Você disse que a religião ser tomada como uma disciplina à parte é cair no mesmo vício dos cientistas, mas eu não estou trocando a ciência pela religião, só a estou fazendo conviver com a ciência entre modalidades do conhecimento.

    Cair no mesmo vício dos cientistas em querer discursar sobre o que não é do seu domínio. Assim como é a meu ver um erro querer dar argumentos “científicos” para justificar pensamento sobre, digamos, moral, é um erro a religião querer se colocar como produtora de “conhecimento”. Quem produz conhecimento são os cientistas. A religião em geral produz é folclore. Os melhores teólogos até conseguem falar cientificamente sobre deus, mas se são religiosos, no momento em que começam a ter que justificar os dogmas de sua própria religião, a objetividade vai pelo ralo.

    E a religião situa o fenômeno como imanência de uma transcendência da qual esse fenômeno depende pra existir.

    Não vejo qualquer problema com isso desde que seja estudado em bases racionais e objetivas, não com base em revelação e autoridade.

    (contanto que você a estude honestamente, ao invés de criticar pessoas ignorantes por segui-la irracionalmente)

    Eu estou criticando *principalmente* as pessoas que não são ignorantes, porque para as que são ignorantes, a fé católica, o espiritismo e a astrologia são indistinguíveis de uma televisão, um computador ou um reator nuclear, ou aliás de uma árvore, um raio ou um sapo. Para o ser humano ignorante médio, tudo é simplesmente mágico e pronto, não há opção senão aceitar as coisas “irracionalmente”. Mas para as pessoas mais esclarecidas e capazes de distinguir entre o que é arbitrário e o que não é, não existe qualquer justificativa para aceitar algo formalmente com base na autoridade ou na revelação.

    alguma resposta precisa ser dada diante dessa estrutura que situa a existência específica numa realidade de tempo e espaço transcendentes.

    Bem, esse “precisa” ocorre em dois níveis. Um é lógico. E embora eu concorde que “precisa” mesmo, o fato de concordarmos quanto a essa necessidade não automaticamente leva a nenhuma resposta específica. Chamar de “deus” essa explicação que desconhecemos é só dar um outro nome para algo que não sabemos o que é, e não decorre daí nenhuma das propriedades de deus dogmaticamente protestadas pela igreja católica. Isso é uma pergunta para ser resolvida pela ciência, que pode ou não um dia chegar lá. Novamente, não existe nada que torne essa “transcendência”, se ela for conhecível, imune ao conhecimento científico.

    Agora, o outro nível é psicológico. Nós sentimos necessidade de uma explicação, e talvez mais do que isso, de um propósito. E aí para mim pessoalmente ocorre o seguinte. Desde sempre esteve muito claro para mim que teleologicamente falando não há nenhuma indicação de que haja qualquer propósito. Não acho que haja cosmicamente nada que eu “deveria” estar fazendo. Mas essa é uma percepção intelectual e apesar dela eu tenho uma enorme coleção de instintos e vontades irracionais que não dependem de qualquer justificativa lógica. Então embora de fato seja existencialmente insatisfatório não haver um “propósito”, talvez exatamente por isso não precisamos de um propósito logicamente justificável para termos vidas psicologicamente satisfatórias. Pelo contrário, quanto mais tentamos projetar em entidades externas o que na verdade são os nossos arbitrários valores e instintos, mais dogmáticos, fanáticos e intolerantes nos tornamos.

    Saudacões,
    Sergio

  19. Joaquim,

    Concordo parcialmente. Embora em linhas gerais concorde com o que você disse, quero crer que no meio disso coloquei alguns pontos mais substanciais do que apenas “eu não acho” quando foi possível. Faltam de fato exemplos mais concretos e sólidos do que seria o Dawkins sendo “burrão” para discussão. Talvez porque não existam. :-)

    Saudações,
    Sergio

  20. de que lado estão as argumentações? Quantas vezes você se deu ao trabalho de discutir vias cosmológicoas ou ontológicas, por exemplo?

    Esse é um dos problemas de um blog, não existe um índice organizado, uma divisão em capítulos, uma apresentação clara e consistente de idéias numa estrutura maior com começo, meio e fim. Então as vezes em que a discussão foi para o lado de se falar sobre aspectos mais profundos de certos argumentos estão entranhadas com todo o resto, no meio de milhões de comentários e de posts sobre assuntos completamente diferentes. E muitos argumentos nunca são tratados de forma rigorosa. De fato. Infelizmente.

    Aliás, qual é o argumento nesse texto que comento? Você pode identificar algum para que eu possa combatê-lo?

    Hehe, claro que não existe qualquer chance de que você *ouça* o argumento, certo? O pedido é que eu identifique para que você possa *combatê-lo*. Mas enfim, não há mesmo muitos argumentos neste texto em particular (embora a essa altura comecem a haver nos comentários), primordialmente porque ele critica um texto no qual também não há realmente argumentos a serem criticados, e a crítica é justamente essa. Mas se você acha que sem eu colocar explicitamente não está enxergando qualquer argumento, vejamos, por exemplo :

    Tema : Criticar a afirmação de que a eternidade é um custo infinito então qualquer “probabilidade” de que os cristãos estejam certos deve ser levada a sério

    Argumento : Esse argumento é completamente falacioso, e isso pode ser exposto de várias formas. Uma delas é apontar que eu posso facilmente fazer afirmações completamente contraditórias e/ou aleatórias sobre o que você deve fazer para evitar a danação e então será não só temerário como impossível tentar fazer todas elas ao mesmo tempo. Isso fica ainda pior quanto consideramos que dependendo das regras a serem seguidas elas trazem *certeza* de prejuízo no momento presente. Note, se fôssemos levar esse argumento a sério, deveríamos ir todo dia fazer apostas no cassino, porque existe uma “probabilidade” de ficar milionário, sendo que no cassino isso nem sequer é discutível. Da mesma forma, existe uma “probabilidade” de que se você comer um quilo de bacon todo dia você eventualmente ganhe o poder de voar. Ela é mínima, mas veja só – você vai ganhar o poder de voar! A falácia está em considerar que um resultado potencialmente de ganho ou prejuízo monumental automaticamente compense uma probabilidade mínima. Isso não funciona nem matematicamente, nem logicamente. Sendo que nesta instância específica é ainda pior, porque “ir para o inferno” não é um evento probabilístico; não estamos na verdade discutindo a probabilidade de um ateu ir para o inferno e sim se TODOS vão ou NENHUM vai. É uma falácia lógica em vários níveis. O argumento criticado é péssimo.

    Divirta-se “combatendo” este argumento.

    Desculpe-me, mas você e todos os seus ateus favoritos envergonham os ateus que se esforçavam por desbancar argumentos filosóficos ou propriamente a teologia cristã: e empreendiam grandes esforços racionais para isso.

    Existe todo tipo de pessoas escrevendo coisas sobre religião, mas Dawkins em particular argumenta de forma perfeitamente lúcida e coerente. Pessoas como você é que envergonham as pessoas que têm críticas sérias a Dawkins. Concordo, ele não é um grande filósofo apresentando teorias monumentais sobre a natureza da existência humana, mas nem está pretendendo ser. Na verdade a maior contribuição que acho que Dawkins deu ao debate moderno sobre religião foi insistir num ponto que em geral era desconsiderado até mesmo por ateus – o de que religião não traz qualquer benefício moral, e em geral pelo contrário. Ele resgata uma idéia que havia se tornado mais ou menos politicamente incorreta – a de que as religiões costumam não apenas estarem equivocadas – em termos de promoverem crenças que não correspondem nem remotamente à realidade – mas que também quase sempre são psicologicamente abusivas, promovedoras da intolerância, do fanatismo e do obscurantismo. E que portanto as religiões devem ser ativamente combatidas.

    O problema que *eu* tenho com essa posição é o mesmo que muitos outros que como eu defendem liberdades individuais, especialmente a liberdade de crença e pensamento, enfrentam – como tratar aqueles cujas idéias leva à repressão das liberdade individuais, como os católicos? Com tolerância ou com intolerância? O que fazemos com quem escreve literatura questionando a história do nazismo, jogamos na cadeia? Eu tendo a achar que claramente *não*, desde que o sujeito não comece a recrutar pessoas para sair cometendo crimes. Então não acho que se deva tornar religião algo ilegal ou persegui-la de forma coercitiva. Mas para mim a ideologia católica está na mesma categoria de escolas de pensamento que o nazismo ou o comunismo. É psicologicamente abusiva, baseada em pressupostos delirantes e seus proponentes acreditam estarem autorizados a qualquer coisa dada a santidade de suas intenções.

    Seu discurso inflamado pelo absurdo da religião só não é mais absurdo que sua crença em achar que argumenta racionalmente.

    Vamos por partes. Meu principal problema com a religião não é ela ser irracional, embora eu de fato defenda que ela seja. Mas irracionais somos todos nós, para começar. Além disso, existem várias outras atividades completamente irracionais, contra-cinetíficas e factualmente equivocadas como astrologia ou ufologia e que no entanto não têm as mesmas caracterísicas que religião. Ninguém fica fazendo testes de fé ou exigindo que você afirme acreditar numa lista de dogmas para ser “aceito” no seleto grupo de “astrológicos”. As religiões, por outro lado, são em geral psicologicamente abusivas e exigem nada menos que a submissão do seu julgamento pessoal em troca de aceitação no “grupo”. É precisamente isso. E grande parte das pessoas – tanto ignorantes quanto esclarecidas – estão infelizmente dispostas a fazê-lo, seja sem nem perceberem, seja de forma deliberada e consciente.

    Sobre estar argumentando de forma “racional”, eu não tenho a menor dúvida de que o que tenho escrito é infinitamente mais racional do que “Dawkins é burrão.” Admito livremente que em uma boa parte das circunstâncias, por vários motivos, expus minhas idéias sem ter apresentado – nem fingido apresentar – argumentos cabais para justificá-las exaustivamente. Mas isso não torna nada do que falei “irracional”. No máximo torna incompleto.

    Procurei termos como “Tomás de Aquino”, “Aquinas”, “Santo Agostinho”, “Agostinho”, “Anselmo”, “Richard Swinburne”, “Alvin Plantinga”, “Kurt Gödel”, “Fides et Ratio” e não houve uma só ocorrência no blog inteiro, em dez anos de existência.

    Ironicamente agora encontrará. :-) Mas esse comentário é um sintoma de algo típico da mentalidade religiosa. O apelo à autoridade é constante. Não existe a possibilidade de um argumento estar correto por causa de sua estrutura, por causa de ser simplesmente *verdadeiro*. Não, é necessário citar Aristóteles até para justificar pedir uma pizza calabresa ao invés de portuguesa. Ora, a verdade não é decidida em concílios ou na mente dos grandes pensadores. Estes no máximo a vêem antes de nós. Mas se for mesmo a verdade, uma vez encontrada, é acessível a todos diretamente. Um argumento não está correto porque “Aristóteles disse a mesma coisa”. Ele está correto porque está correto.

    A única referência filosófica à questão de Deus é um patético comentário sobre o argumento ontológico de Anselmo, o que me faz perceber quão deficiente foi seu entendimento do argumento: sinceramente, não me parece ser plausível que diversos filósofos o tenham analisado – seja positivamente, seja negativamente – se este fosse um argumento patétito e anti-lógico. No mesmo parágrafo, após dizer que o argumento é uma piada, você diz que precisaria de centenas de páginas para refutá-lo. Uau! Essa é uma verdadeira piada! E de mau gosto.

    Sim, o argumento de Santo Anselmo é patético, ele não faz qualquer sentido. Ele é completamente auto-referencial. Ele usa a suposição de que uma hipótese seja verdadeira para chegar a uma conclusão e então afirma que a conclusão é incondicionalmente necessária. Isso é um erro básico e embaraçoso. Além disso ele usa relações lógicas de forma completamente arbitrárias sem dar qualquer definição coerente delas. Não há como levá-lo a sério.

    Agora, como eu já disse anteriormente, é possível fazer todo um número de afirmações absurdas, como por exemplo “Há uma xícara de chá rosa em órbita em torno de Marte neste momento” tais que provar conclusivamente que este *não é* o caso pode ser complicado ou mesmo impossível. Esta afirmação sobre a xícara pelo menos tem o mérito de fazer sentido, apesar de ser falsa além de toda dúvida razoável. No caso do argumento de Santo Anselmo, nem isso.

    Ailás, eu jamais disse que são necessárias centenas de páginas para refutar o argumento de Santo Anselmo. O que eu disse foi que eu precisaria de centenas de páginas se eu fosse me meter a refutar individualmente toda a fantástica coleção de “provas” da existência de deus. Inclusive essa é uma estratégia freqüentemente usada por religiosos : vamos escrever um milhão de páginas de bobagens sem sentido e se você não refutá-las todas nós “ganhamos” por default. Infelizmente não é assim que funciona. Todos podem escrever bobagens, isso é normal e parte integral do processo de busca da verdade. Muita boa ciência é feita perseguindo idéias que eventualmente se demonstram equivocadas. Mas se você não estiver disposto a revisar suas bobagens depois que fica extensamente demonstrado que elas são bobagens é porque não existe honestidade intelectual, e é nesse momento que deixa de ser ciência ou produção de conhecimento.

  21. Oi Carla,

    Será que não há opção?

    Não há opção enquanto o sujeito permanecer ignorante. É preciso conhecimento para entender o mundo. A “opção” é deixar de ser ignorante. Para quem escolhe permanecer ignorante, não existe mesmo opção senão encarar tudo como mágico. Claro que por outro lado é possível *não* ser ignorante e continuar encarando as coisas como mágicas, por escolha. O que estou dizendo é que se o sujeito é ignorante isso é inevitável.

    Talvez seja prazeroso, confortador, sei lá, fazer a opção de acreditar em Deus.

    Sim, este certamente é um motivo plausível – e aparentemente comum – para mesmo pessoas não ignorantes fazerem a escolha de continuar acreditando que a realidade seria mágica, contra todas as evidência e contra toda a lógica. Infelizmente, isso na minha observação leva – quase inevitavelmente eu diria – a todo tipo de distorcões psicológicas e emocionais, em particular e principalmente se a pessoa adere a um sistema dogmático de crenças sobre de que modo “mágico” o universo funciona.

    Outra coisa, ver – ou sentir – algo como “mágico” é determinante de ignorância?

    De forma alguma. Estou estabelecendo a relação oposta : ignorância implica em ser forçado a ver tudo como mágica. Porém, como eu disse acima, é perfeitamente possível continuar escolhendo ver as coisas como mágica sem ser burro e/ou ignorante.

    Tenho a plena consciência de que não me diferencio de uma flor (no que tange a nascer, viver, morrer), no entanto tenho sensações, por exemplo, que pra mim são sinônimos da presença de Deus. Sou ignorante?

    Não, existem muitas e muitas pessoas brilhantes e extremamente instruídas que acreditam em deus. Mas estas o fazem de forma muito mais voluntária e livre do que quem não tem qualquer idéia do que está acontecendo e para as quais um reator nuclear faz tanto sentido (ou provavelmente menos) do que a pregação do pastor no domingo.

    Eu acho que essa discussão sobre religião, sobre Deus, tem razão de ser na medida em que há uma implicação política aí (E acredito que é essa sua crítica principal, Sérgio) e não no que se refere a liberdade individual de crenças.

    Olha, eu tenho sim uma crítica muito forte à forma como os religiosos querem impor seus valores aos outros, mas isso transcende simplesmente a ação política. Eu acho uma violência absurda eles estenderem isso aos seus amigos, colegas e à sua família. (Ok, poderíamos com um pouco de generalização chamar também isso de ação política, mas acho que não era disso que você estava falando.) Mas antes de mais nada, eu acho intrinsecamente desonesto e necessariamente esquizofrenizante acreditar que certas coisas “tem” que ser verdade com base na autoridade, que é precisamente o tipo de pensamento e atitude promovido pela quase totalidade das religiões.

    Uma coisa é você sozinha pensar “puxa, acho que deus existe”. Outra bem diferente é você “acreditar” que deus existe porque isso é requerido para ser católico. Então embora eu tenha sim restrições genéricas a acreditar em deus, elas são similares às que eu tenho a acreditar em astrologia – confortador que seja, evidentemente não é verdade. Mas isso não é o problema maior, todos nós temos crenças que possivelmente estão equivocadas sobre diversos assuntos. O problema *mesmo* é com religiões organizadas que buscam impor sistemas dogmáticos de crenças, que ativamente estimulam a aceitação acrítica de “verdades reveladas” com base na autoridade. Isso afeta as pessoas a nível individual, quebrando seu senso crítico e tornando-as esquizofrenizadas e intolerantes, seja qual for a ação política promovida pela religião em questão, e mesmo que ela não busque impor seus valores também a não crentes (o que no entanto é opressivamente comum).

    Eu condeno a religião quando ela interfere na política, ponto final.

    Essa é uma questão complexa. O que eu acho é que por motivos religiosos ou não é inaceitável as pessoas quererem impor seus sistemas de valores aos outros. Então eu acho que nessas situações é preciso dar um passo para trás e pensar o seguinte. Genericamente, cada um deve ser tão livre quanto possível para viver sua vida do jeito que bem entender. O limite começa quando o exercício desta liberdade começa a interferir excessivamente (e “excessivamente” não tem uma resposta óbvia) com a liberdade dos outros. Mas em princípio cada um deve ser livre para fazer o que quiser. Essa é minha posição básica sobre política, e qualquer um que queira começar a ditar coercitivamente o que os outros podem ou não fazer sem ser de alguma forma com base no argumento de estarem restringindo a liberdade de outros e sim com base em princípios morais / estéticos / religiosos / filosóficos abstratos do tipo “mas isso é errado / antinatural / feio” tem a minha total oposição. Agora, de fato a religião tem uma tendência fortíssima de fazer exatamente isso, e eu diria que não é por acaso.

    Beijos,
    Sergio

  22. Oi Fabiano,

    Dawkins não é burro, mas é obvío que isso também não significa necessariamente que ele está com a razão.

    Ah, com certeza. Com isso eu concordo sem qualquer hesitação.

    Meu ponto é apenas que chamar ele de burro pretendendo ser sério é somente ridículo. Chamá-lo de desonesto, por outro lado, já tem talvez um comecinho de respeitabilidade, desde que seguido – ou precedido – de argumentos ao invés de somente fanfarronice.

    Nessa linha, naturalmente que um vídeo do papa entrando numa farmácia e tendo um ataque de pânico ao ver uma camisinha seria muito engraçado mas evidentemente não é um realmente uma crítica séria a nada que o papa tenha dito, e naturalmente não é realista apresentar o papa como ignorante e ingênuo. Eu pessoalmente não vejo nada de errado em apresentar seja o que for de forma cômica, mas existe uma grande diferença entre fazer somente isso versus fazê-lo apresentando argumentos.

    Sobre Voltaire, novamente concordamos. Nada do que aqui estou dizendo deve ser interpretado como significando que os religiosos não devam ter o direito e a liberdade de acreditarem no que quiserem e de falarem livremente sobre isso.

    Dito isso, eu considero que a religião da forma como tradicionalmente vivenciada (isto é, em bases dogmáticas) é profundamente perniciosa à psique. E um dos efeitos colaterais é a irritante freqüência com que os religiosos querem impor seu particular sistema de valores coercitivamente aos outros.

    Finalmente, sobre a questão da danação – de fato, nem todos os grupos religiosos condenam automaticamente ateus e/ou infiéis ao inferno, ou sequer têm um conceito de inferno. Os católicos são particularmente estritos nessa área. Tecnicalidades à parte, segundo a fé católica a negação veemente da existência de deus conduz diretamente ao inferno, ignorem-se quaisquer outras considerações sobre o mérito do sujeito. Que tal isso como modelo de tolerância ao diferente?

    Saudações,
    Sergio

  23. Ah, claro, com certeza suas motivações são perfeitamente racionais e suas decisões são baseadas na mais pura lógica.

    O problema é que como seres humanos, se por um lado temos (em potencial) a capacidade de construir argumentos racionais e de reconhecê-los como tal, por outro lado nossas emoções, instintos e motivos mais inatos e prementes são completamente irracionais. Se tivermos um mínimo de instrospecção (infelizmente algo raro) somos capazes de olhar para nós mesmos e perceber isso. Infelizmente o que a maior parte das pessoas faz é ou buscar racionalizar (i. e. apresentar explicações fajutas pretensamente lógicas para) seus motivos irracionais, ou buscar projetá-los em alguma influência ou entidade externa a si mesmos. Ambas as soluções são delirantes e esquizofrênicas, embora possam funcionar com razoável grau de sucesso para produzir seres humanos suficientemente funcionais e equilibrados, mesmo que sistemicamente aleijados na área de autoconhecimento (e de honestidade consigo mesmos). Assim como não é preciso saber como um carro funciona por dentro para dirigi-lo até o supermercado, não é necessariamente um pré-requisito ter um entendimento profundo da sua própria psique para apertar os botões e dirigí-la de forma pragmática onde você quer ir.

    Naturalmente, a partir da percepção de que somos todos intrinsecamente irracionais, não decorre daí que a solução seja passar a agir alucinadamente e de forma completamente irracional. Ironicamente, isso iria contra os nossos interesses irracionais. E então aí a racionalidade entra como uma ferramenta supremamente útil para conceber planos de ação que melhor nos permitam atingir todas aquelas coisas que desejamos por nenhum motivo razoável.

  24. Odinei says:

    A crítica ao Igor NÃO É válida.

    Você também não está “argumentando”, se for esse o problema. Aliás, argumentar neste campo é que é dose: me prove que Deus não existe e a gente pode começar.

    Você mesmo se entrega, ao dizer que admira quem combate a religião, agente catalisador da ignorância (!?). Se a inteligência que você admira é Dawkins, o seu desprezo pela religião é elogio.

    Negar as contribuições que a Igreja (não vou nem falar das outras religiões) ao conhecimento é um verdadeiro tiro no pé. A religião, neste caso, sempre foi, salvo poucas exceções, um CATALISADOR e CONSERVADOR do conhecimento.

    O comentário apenas mostra que você é um fundamentalista.

  25. Sobre dizer que os descrentes estão “condenados ao inferno”, eu acho que os evangélicos, nesse ponto, conseguem ser bem piores que os católicos. É só ver uma pregação do pastor Silas Malafaia ou do reverendo Pasquale(R.R Soares, mas eu chamo de Pasquale porque ele é parecidíssimo com o professor Pasquale).

    Bem, isso varia de denominação para denominação. Mas em geral os cristãos não são particularmente benevolentes em seus prognósticos quanto ao futuro da alma dos ateus. Ou dos seguidores de outras religiões, aliás.

    Saudações,
    Sergio

  26. A crítica ao Igor NÃO É válida. Você também não está “argumentando”, se for esse o problema.

    Sim, estou, e sem aspas. Talvez não na resposta ao Igor, já que o comentário dele não continha qualquer argumento. Mas sim, quando argumentos são apresentados, eu respondo com argumentos. Evidentemente dizer “X é verdade porque eu estou dizendo que é” não é um argumento.

    Aliás, argumentar neste campo é que é dose: me prove que Deus não existe e a gente pode começar.

    Tem tantas coisas erradas em tantos níveis com essa frase que dá até cansaço. Mas ok, vamos lá.

    Em primeiro lugar, não é tarefa minha provar que deus não existe. Pelo contrário, quem tem que “provar” (ou pelo menos estabelecer argumentos sólidos) que deus existe é quem está insistindo que ele existe. Enquanto isso não acontecer, é perfeitamente lógico e razoável seguir supondo que ele não exista.

    Eu não suponho que todas as coisas concebíveis existam até que surja prova em contrário. Esse seria uma forma evidentemente esdrúxula e alucinada de pensar. Se eu disse que tem uma lata de guaraná antártica neste momento em órbita em torno de Plutão você não vai instantaneamente acreditar nisso até que alguém prove que não há. Muito pelo contrário.

    Adicionalmente, provar que algo *não* existe é freqüentemente uma impossibilidade prática ou mesmo lógica. Ainda mais quando temos conhecimento incompleto. Se existe controvérsia sobre se os dodôs estão extintos, faz sentido dizer “então me mostre um dodô”. Mas não faz sentido dizer “então me mostre que não há”. Pode-se demonstrar que eles existem exibindo um. Mas para se demonstrar que eles não existem mais seria necessário instanciar todos os objetos do universo e mostrar que não são dodôs. Talvez alienígenas tenham sequestrado alguns e levado para seu planeta numa estrela próxima, quem sabe? Esse tipo de argumentação demonstra simultaneamente dificuldade com raciocínio lógico e desonestidade intelectual. Então se você está falando que dodôs existem, mostre um, ou pelo menos evidências de um, ou é muito lógico e razoável concluir que eles não existem. Eu não tenho que “provar” que eles não existem como pré-requisito para isso.

    Enfim, eu poderia dizer mais coisas sobre o quanto essa frase é evidentemente circular e fechada a argumentos, mas novamente – isso vai um pouco naquela direção de que ou é obvio ou não adianta explicar.

    Você mesmo se entrega, ao dizer que admira quem combate a religião, agente catalisador da ignorância (!?).

    Eu não sei como alguém pode “se entregar” dizendo explicitamente o que pensa, mas sim, sustento a opinião de que a religião é um agente quase universalmente catalisador da ignorância, da intolerância, da violência, do fanatismo, da maldade, da infelicidade, da opressão, da guerra, da destruição, do ódio.

    Se a inteligência que você admira é Dawkins, o seu desprezo pela religião é elogio.

    Bem, se o tipo de “inteligência” que você admira é a incentivada pelo domagtismo religioso, seu desprezo pelo Dawkins é elogio.

    Negar as contribuições que a Igreja (não vou nem falar das outras religiões) ao conhecimento é um verdadeiro tiro no pé.

    Ué, os nazistas também contribuíram para a ciência. Assim como a União Soviética. Assim como os cientistas da Coréia do Norte que pesquisam bombas nucleares. São então eles automaticamente agentes do livre pensamento, da livre discussão, do esclarecimento geral, do fortalecimento da consciência individual, da iluminação? Ou muito antes pelo contrário?

    A religião, neste caso, sempre foi, salvo poucas exceções, um CATALISADOR e CONSERVADOR do conhecimento.

    Não mesmo. A religião queima livros, proíbe idéias, sufoca pensamentos e pune a independência de consciência enquanto incentiva a uniformidade, a submissão, o dogmatismo. É o que ela fez historicamente, é o que ela faz hoje quando tem poder suficiente. O conhecimento serve para a religião muito mais como um instrumento de dominação e poder do que como um fim em si.

    O comentário apenas mostra que você é um fundamentalista.

    Ah, claro. Naturalmente. A posição não fundamentalista deve mesmo ser dizer “argumentar nesse campo é que é dose”.

  27. Leonardo,

    Seu texto é muito grande então no momento, por falta de tempo, após lê-lo, vou publicá-lo sem muitos comentários… mas fica registrado aí em cima o que você respondeu ao que eu disse. :-)

    Digo brevemente que algumas das coisas que você diz que “a razão não sabe conceber” são concretamente tratadas sim, dentro da matemática, da lógica e da física. E que eu acho curioso que a religião argumente tão fortemente que certas coisas escapem ao exame racional para então escrever volumes inteiros de teologia sobre o assunto.

    Saudações,
    Sergio

  28. Note, tecnicamente, essa professora está errada. Não é isso que a doutrina católica oficial prega. E como professora de religião ela está numa posição particularmente injustificável para falar tais coisas de forma vaga e imprecisa. Como pessoa ela evidentemente ganha pontos de tolerância, mas como professora perde muitos pontos, e aliás se formos levar a sério as crenças católicas ela está potencialmente induzindo seus alunos a acreditarem em coisas que poderão levá-los a passar a eternidade no inferno. Quando colocadas explicita e inequivocamente, uma boa parte das posições da igreja católica é simplesmente indefensável, mesmo para os próprios “católicos”.

  29. Leonardo T. Oliveira says:

    Por que essa professora está errada? O que ela disse é incoerente com a fala de quem precisamente?

  30. Respondendo ao Leonardo :
    O que ela disse está incorreto segundo a doutrina católica oficial como estabelecida por Roma. Para dar um exemplo, segundo a doutrina católica oficial (e não opcional) se um sujeito é abertamente ateu, nunca foi batizado, nega explicitamente a existência de deus, a divindade de Jesus e que o papa seja inspirado pelo espírito santo, ele irá para o inferno independentemente de quantos infinitos atos de bondade praticar e mesmo que jamais tenha prejudicado ninguém em sua vida.

  31. Já os ateus e anticatólicos, após todas as racionalizações têm, ao final, suas idéias limitadas pelas premissas “não há Deus” ou “se é católico é superstição”.

    É completamente falso que os ateus em geral tenham a inexistência de deus como premissa. É falso para um número enorme de pensadores (assim como pessoas em geral) para os quais o ateísmo é uma conclusão atingida através da razão e da reflexão, não raro após um longo processo de busca. E certamente é falso para mim.

    É também patentemente falso que os religiosos sejam menos propensos à censura limitados que estão pela precariedade da sua fé. Aliás, são precisamente os religiosos que em geral proclamam certezas absolutas.

    Sobre o “exemplo” do Big Bang, ele exemplifica precisamente o contrário do que você queria exemplificar : que uma idéia acabou sendo aceita por seus méritos e não por favorecer ou não uma cosmologia criacionista. Além disso, desde quando só existem cientistas ateus para que esse tipo de policiamento sequer seja possível? E que tal o fato de que algumas idéias fundadoras da genética tenham vindo de um monge católico e ninguém tenha qualquer problema com isso? Sinto muito, esse comentário é uma colagem de inverdades e distorções.

  32. Desculpa, mas tudo o que eu vi (sim, aqui está a margem) o Dawkins fazer foi criticar superstições – papel obrigatório a todo portador de bom senso, ateu ou não -, mas nunca enfrentar com maturidade a “religião” ou, enfim, qualquer teologia.

    A questão é que Dawkins critica a teologia em seus fundamentos, isto é, quanto à própria existência de um assunto sobre o qual discursar. E eu tendo a concordar com ele que não faz sentido ficar debatendo santos e anjos – exceto como fenômeno cultural e antropológico – se o fundamento próprio da religião – a existência de deus – está depositada sobre areia movediça. É como discutir como faremos para consertar o pneu furado de um carro que não tem motor. Mas ele discute, sim, argumentos teológicos relacionados com a existência de deus. Só que ele não parece achar – e novamente eu concordo com ele – que seja necessário um grande esforço intelectual para desmontá-los.

    Diante disso, de fato Dawkins gasta muito mais espaço em criticar as conseqüências nocivas da religião do que em discutir argumentos teológicos. E eu acho que ele presta um grande serviço à humanidade em fazê-lo; ele assumiu por idealismo uma posição extremamente desconfortável para divulgar uma mensagem que seria mais conveniente deixar para outros. Mas ele está muito longe de ser um ignorante ou intelectualmente imaturo e não vejo qualquer fundamento para descrevê-lo como tal.

    Sobre o “principal vício dos cientistas” ser achar que a ciência “substitui” coisas como a arte ou a religião, eu acho que essa opinião só pode vir de quem tem muito pouca convivência pessoal com cientistas. Só para começar, assim como em todas as outras áreas da vida humana, muitos deles são religiosos. Mas mesmo entre os que não são, não consigo citar sequer um que concordaria com essa afirmação. Inclusive provavelmente o Dawkins.

    Por outro lado, eu diria que um dos principais vícios da religião é precisamente quando ela quer se colocar como uma forma de “conhecimento” objetivo sobre fenômenos observáveis, mensuráveis e verificáveis do mundo físico, enquanto permanece fundamentada em dogmas, autoridade, e “revelação”.

  33. Leonardo T. Oliveira says:

    Essa mensagem tinha sido a primeira da discussão que aos poucos foi, de alguma forma, avançando e se esclarecendo um pouco.

    Mas enfim. Da sua nova resposta a esse trecho que selecionou, vale o que eu havia dito: a crítica do “desempenho” da religião, que passa pelo “desempenho” das pessoas que agem em nome dela no mundo todo, não precisa ser feita apenas pelo Dawkins, mas pode (e deve) ser feita por qualquer crente também. A discussão propriamente teológica não serviria pra adentrar na concepção de elementos assumidos avançadamente pela religião, mas sim porque devem estar na teologia os: 1) termos da dedução de que Deus existe e como ele é identificado como a transcendência que abriga toda a existência; e 2) a dedução de “bem” que sugere uma diretriz moral às pessoas, e os termos do processo de auto-conhecimento que essa teologia incentiva.

    Aquela coisa: ao invés de pegar a multiplicidade e o paradoxo do desempenho das pessoas no mundo, que pegue a idéia e o acerto que a representa. Ou então será quase como alguém empreendendo uma crítica decadentista à ciência, lembrando maliciosamente os limites colocados a ela desde o Popper e o Kuhn, etc.

    Sobre o vício de cientistas, é claro que eu não quis fazer uma generalização, mas sim uma ressalva contra um risco possível nessa discussão.

    Mas nós já tínhamos falado dessas coisas depois dessa mensagem.

  34. Essa mensagem tinha sido a primeira da discussão que aos poucos foi, de alguma forma, avançando e se esclarecendo um pouco.

    Hehe, é verdade, eu respondi a uma mensagem à qual eu já havia respondido. Por algum motivo insondável ela estava marcada como não respondida. :-)

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